Aconteceu no último mês de julho, o 59° Congresso da União Nacional dos Estudantes (CONUNE) em Brasília, o primeiro depois da histórica derrota eleitoral de Bolsonaro e sob o governo burguês de frente ampla de Lula e Alckmin. Um espaço que deveria ser o palco democrático da deliberação das lutas estudantis, mas que sob a direção burocrática da UJS/PCdoB e do PT serviu para garantir o compromisso da entidade em renunciar a luta e atuar como um braço do governo federal, assim como aconteceu durante as outras gestões petistas. Nós da juventude anticapitalista Já Basta! travamos a essencial discussão por um movimento estudantil que tenha independência dos governos e reitorias e que aposte nas lutas em unidade com os trabalhadores e demais setores oprimidos para a conquista de nossas reivindicações.

Por Pedro Cintra

Com a colaboração de Víctor Artavia

Um congresso burocrático e submisso à conciliação de classes

Ao invés de organizar uma ampla e unitária campanha de luta pela revogação do Novo Ensino Médio e do Arcabouço Fiscal, regime que ameaça o orçamento da educação, o CONUNE foi um verdadeiro show de horrores governista e conciliador, e contou com a presença de diversas figuras do establishment político burguês como Flávio Dino (PSB), Ricardo Cappelli e Luís Roberto Barroso, ministro do STF que suspendeu o piso salarial da categoria da enfermagem. 

A atração principal, sem sombra de dúvidas, foi a presença de Lula em um ato político realizado no ginásio Nilson Nelson. Ele estava acompanhado de José Mujica, ex-presidente uruguaio, e do atual ministro da educação, Camilo Santana (PT), que tem tocado na pasta uma gestão fiel aos interesses dos tubarões do mercado privado da educação, uma vez que se nega a revogar a contrarreforma de Temer. A participação de Carlos Fávaro (PSD), ruralista e ministro da Agricultura defensor do Marco Temporal, estava confirmada na programação, mas teve que ser cancelada às pressas pela entidade para evitar que se repetisse mais um episódio constrangedor semelhante ao de Barroso, que foi vaiado pelos estudantes na plenária de abertura do congresso. 

Além disso, as mesas de debate foram marcadas pelas já conhecidas manobras burocráticas da direção da UNE, que tentou o tempo todo impedir a intervenção e manifestação das forças de oposição. Em vários espaços, nós do Já Basta!, mesmo inscritos na lista de falas organizada pela direção, tivemos que enfrentar as manobras da UJS que, nas oportunidades que teve, quis coibir as intervenções das organizações socialistas independentes críticas ao governo Lula-Alckmin. [1]

Não podemos deixar de mencionar que as condições proporcionadas para os estudantes, foram as piores possíveis. Eram frequentes os relatos sobre os alojamentos superlotados, falta de acessibilidade para PCDs, filas intermináveis para as refeições e falta de marmitas, bem como a falta de água. Isso, repetimos, é um reflexo do caráter burocrático da direção da UNE que pouco se importou em garantir as necessidades básicas dos participantes e assegurar o andamento adequado do congresso: como participar das mesas e dos debates com fome, sem saber se terá como jantar e exausto pela precariedade e lotação nos alojamentos?

A única atividade que contornou o caráter formal do evento foi um ato de rua convocado pela UNE que aconteceu em frente ao Banco Central, pressionando pela redução da astronômica taxa de juros. Um ato totalmente protocolar e governista, com uma clara limitação programática, já que sequer questionava o pagamento da dívida pública e nem mesmo denunciava o fato de que Lula tem prerrogativas que o permitem, se acatar uma denúncia apresentada por Simone Tebet e Fernando Haddad como membros do Conselho Monetário Nacional, retirar Roberto Campos Neto da presidência do Bacen. É verdade que a decisão ainda teria que passar por votação no Senado, mas dependeria da capacidade de articulação dos governistas para que fosse aprovada essa pauta, que diga-se de passagem está longe de apontar para um programa de esquerda, pelo contrário, conta com apoio de setores da burguesia industrial e varejista. Lula prefere apostar no jogo de cena midiático, criticando Campos Neto mas sem tomar nenhuma atitude a respeito porque não quer comprometer sua aliança com os setores do mercado financeiro. Assim, este ato colocou a UNE numa vergonhosa posição de “conselheira econômica” do governo e do regime burguês.

Nossa juventude também enviou à direção do CONUNE uma proposta de moção de apoio à luta dos entregadores de APPs [2], que têm se mobilizado desde 2020 contra a brutal precarização imposta pelas empresas de delivery por plataforma. Também não é coincidência que o iFood tem investido em itinerários formativos do NEM pelas escolas do país; seu objetivo é formar uma massa de mão de obra cada vez mais explorada e submissa ao ideário de precarização neoliberal. O Já Basta! apresentou essa moção porque entendemos que o lugar da juventude e do movimento estudantil é ao lado dos trabalhadores, em unidade e impulsionando as lutas dos mais precarizados pela exploração capitalista. Infelizmente nossa proposta foi recusada pela organização do congresso, que pouco fez questão de explicitar a tramitação do processo de veto, o que mostra que nem a democracia congressual muito menos a unidade operário-estudantil estão na ordem do dia para a direção da UNE

O último prego no caixão da antiga oposição 

Para além da já esperada recondução do bloco majoritário (UJS, Juventudes do PT e LPJ) à frente da direção da União Nacional dos Estudantes, a plenária final do CONUNE reforçou um cenário que algumas organizações parecem não querer assimilar: a antiga Oposição de Esquerda da UNE não existe mais. 

Esse diagnóstico ficou ainda mais evidente com a capitulação da Juventude Sem Medo (Afronte, RUA, Fogo no Pavio, Travessia e Manifesta) ao campo majoritário, uma movimentação que acompanha no plano estudantil a liquidação política do PSOL, nosso antigo partido, que no último período orquestrou um giro oportunista à direita entrando de cabeça no frenteamplismo burguês e ocupando cargos no governo de conciliação de classes de Lula, assim como uma federação partidária com um partido burguês que é a Rede Sustentabilidade. A Juventude Sem Medo, que em várias universidades compôs chapa com as forças majoritárias, escancarou sua posição de linha auxiliar do lulismo ao defender a resolução conjuntural apresentada pelo bloco da burocracia pelega. 

Desde o início do processo congressual, nós levantamos o debate sobre a tarefa necessária de reconstruir o campo da Oposição de Esquerda da UNE sob um programa socialista e independente [3]. Uma tarefa central para enfrentar a majoritária e retomar um movimento estudantil combativo que mobilize os estudantes pela base para derrotar os ataques neoliberais e a extrema-direita. Nossas intervenções, defesas e articulações durante o congresso deram conta dessa responsabilidade. Esse eixo também foi incorporado pelas teses de outras juventudes revolucionárias como o Rebeldia/PSTU e a Faísca Revolucionária/MRT. Entretanto, orientações sectárias, as quais iremos nos debruçar no decorrer desse texto, prevaleceram sobre a consequência política e impossibilitaram a conformação de um bloco de oposição independente. 

A “Oposição de Esquerda” que não se opõe ao governo

É essencial dizer que o autointitulado “bloco de oposição” formado principalmente por Juntos/MES, UJC/PCB e Correnteza/UP não representa uma verdadeira alternativa à política traidora e burocrática da UJS, e nem mesmo possui uma clara posição independente do governismo. 

O Juntos é, sem dúvidas, o caso mais grave dessa aliança. Apesar de dizer defender uma UNE com independência, esta organização que hoje compõe o PSOL, um partido que faz parte da base aliada de Lula e tem cargos em vários escalões do governo, o mais importante deles ocupado por Sônia Guajajara no Ministério dos Povos Originários. Sua adaptação à conciliação de classes e à linha traidora de seu partido ficou carimbada na abstenção envergonhada de suas parlamentares na votação da reforma tributária, um projeto apoiado pela bancada ruralista, pela FIESP e pelos banqueiros. O Juntos diz se opor à política de submissão programática ao liberalismo-social dirigida pelos setores majoritários de Boulos e Juliano Medeiros, porém foi o MES, corrente dirigente dessa juventude, um dos maiores defensores e definidores da conformação da federação partidária com a Rede Sustentabilidade, um partido burguês eco-capitalista e financiado por herdeiros do Banco Itaú. A dita corrente “dissimula” a sua capitulação a conciliação se utilizando da necessidade de combater o perigo da ultradireita e de Bolsonaro, um fato real que a esquerda não deve esquecer na atual conjuntura política. Se apegam a uma premissa verdadeira de derrotar o bolsonarismo de maneira categórica, mas deixam no caminho sua independência e a necessidade de impulsionar o enfrentamento ao Arcabouço Fiscal e ao Marco Temporal, o que explica a sua ausência nos espaços e mobilizações que têm organizado a luta contra os ataques neoliberais de Lula, como os que têm acontecido em torno da CSP-Conlutas. 

Já o setor neostalinista dessa coalizão, composto por Correnteza/UP e UJC/PCB, até nutre uma independência organizativa ao lulismo, mas defende, cada um à sua medida, uma política capituladora, uma vez que critica os seus ataques mas não explicita o caráter burguês do governo. Não têm uma orientação política que aponte com clareza à juventude quem são os inimigos que formulam esses ataques e a sua real natureza de classe, se limitando a uma abordagem meramente sindical. Essa é uma prática que encontra paralelo no histórico de reboquismo dessa tradição aos governos de conciliação de classes, como o apoio e composição em cargos de baixo escalão do PCB até 2005, já sob a sua suposta reconstrução revolucionária, ao governo de Lula e José Alencar, à época filiado no PL. O Correnteza/UP que ocupa cargos em secretárias de mandatos do PT e que como direção da FENET compôs a equipe do governo de transição, deixaram claro que não querem construir uma oposição real e socialista ao atual governo ao afirmarem na plenária final que defendem “uma une independente, mas não uma oposição ao governo, muito pelo contrário”. Estes setores, portanto, se apropriam do eixo de independência para a UNE como mera propaganda, mas nunca como um campo que constrói concretamente uma alternativa anticapitalista a um governo que já demonstrou que vai seguir a receita neoliberal de ajuste fiscal contra os trabalhadores que iniciou em 2015 com Dilma e Joaquim Levy, e que foi continuada em uma escala mais destrutiva por Temer e Bolsonaro. 

No movimento sindical, a Unidade Popular e o PCB acumulam traições e alianças com as mesmas forças burocráticas que hoje estão à frente da direção da UNE. Nas últimas eleições para a direção da Apeoesp, a Unidade Classista, braço sindical do PCB, apoiou a burocracia da Bebel do PT em uma chapa com o PSOL e demais partidos da esquerda da ordem. Já nas eleições para o Sindicato dos Metroviários no ano passado, foi a vez da UP apoiar a chapa da CUT e do PSB de Alckmin. 

Para além de suas linhas capituladoras, as forças ditas de “oposição” cada vez mais se mostram adaptadas aos métodos burocráticos da UJS e a lógica da disputa de cargos, vide o veto à participação do Rebeldia na chapa que construíram, que sucedeu para não atrapalhar a negociação das cadeiras entre essas organizações. Nas universidades que dirigem, a aliança entre Correnteza, UJC e Juntos trai as mobilizações e mina os espaços de discussão e deliberação das lutas dos estudantes. A frente do DCE Livre da USP, a “oposição” foge da tarefa de convocar uma assembleia geral que discuta com os estudantes um plano de luta unitário para revogar o NEM e enfrentar os graves ataques da reitoria à permanência estudantil. Durante todo este ano de 2023 tivemos uma única assembleia, na primeira semana de aulas, número que nem as gestões passadas do PT pôde lograr. Nas eleições para os delegados do CONUNE, a gestão se negou a chamar um debate aberto entre as chapas concorrentes, o que seria fundamental para politizar o processo e abrir a discussão para toda a base estudantil. Quando confrontados sobre o tema, disseram que não era caráter dessa eleição ter debates. Imagina, que loucura tremenda querer promover um debate durante o processo que decide os rumos da mais importante entidade estudantil desse país e a maior da América Latina!

O desafio segue: Reconstruir uma verdadeira oposição de esquerda classista e revolucionária

Como apontamos anteriormente, nós do Já Basta! posicionamos como um dos principais eixos da nossa intervenção a necessidade de recolocar de pé a Oposição de Esquerda da UNE. Uma tarefa de suma importância, pois representa um primeiro passo para avançar na recomposição política do movimento estudantil diante dos desafios que têm os socialistas revolucionários diante da atual conjuntura nacional e de uma nova etapa do capitalismo e da luta de classes internacional.

Em concreto, achamos necessário fazer um debate fraterno com es companheires do Rebeldia/PSTU e da Faísca Revolucionária/MRT, duas correntes com as quais temos profundas diferenças táticas mas que as reconhecemos como independentes da política de conciliação de classes. Durante a plenária final, procuramos articular uma chapa unitária com essas organizações que, assim como nós, fizeram o chamado pela reconstrução desse campo, mas por seguirem diferentes táticas equivocadas, acabaram por produzir o mesmo resultado: a inviabilidade de conformarmos um bloco independente com uma política classista de oposição de esquerda ao governo e com a disposição para encabeçar um processo embrionário de refundação da oposição da UNE.

O Rebeldia, mesmo depois de ser vetado da chapa da “oposição”, abriu mão de sua chapa para apoiar o bloco de Juntos, UJC e Correnteza em nome da luta contra a majoritária, o mesmo caminho tomaram es companheires do Vamos à Luta/CST que acertadamente acabam de romper com o PSOL. Essa orientação está explícita em seu balanço do CONUNE, onde reconhecem que todas as correntes da dita “oposição” “capitulam ao governismo” e pouco se diferenciam da majoritária com “relação aos métodos utilizados para a condução das coisas”. Apesar disso, defendem que taticamente era importante se somar a essa frente “tendo apenas uma tarefa comum: derrotar a UJS, o PT e a direção majoritária da entidade estudantil”. [4]

Consideramos essa orientação um sério erro tático, porque não é possível derrotar o governismo e a UJS dentro do movimento estudantil fortalecendo uma frente composta por correntes que cedem à conciliação de classes, reproduzem os mesmos métodos burocráticos e que, segundo o próprio texto de balanço dessa organização, capitulam à direção majoritária por não colocarem a ruptura da UNE com o governo como centro de suas intervenções. Há uma incoerência entre sua análise e sua política. Ao fazer isso, o Rebeldia descartou o chamado para que se construísse uma chapa conosco e com outras correntes que participaram do antigo Polo Socialista Revolucionário nas últimas eleições. Formaríamos uma frente minoritária, é verdade, mas essa unidade representaria um avanço importante em direção a construção de uma verdadeira oposição de esquerda independente do governo e anti-burocrática, e que para além do espaço do congresso, poderia se desdobrar em lutas estudantis conjuntas entre as nossas militâncias como contraponto ao cenário de imobilidade atual do movimento.

Quanto ao debate com a Faísca Revolucionária, é importante pontuar que, durante a plenária final, nós apresentamos a sua direção a nossa disposição de unidade e a proposta de unificar as correntes trotskistas independentes em uma chapa. Infelizmente não tivemos nenhuma resposta. Sectarismo e autoproclamação vazia são atitudes frequentes dessa organização, que se utilizou de uma importante tarefa como a de reconstruir a oposição de esquerda como mera propaganda panfletária de sua delegação. Na prática, não militaram para materializar a unidade e tampouco tiveram política para encarar esse processo com a consequência que a conjuntura nos exige. 

Frente a esse quadro, nosso voto para a eleição da direção da UNE foi nulo. Não depositamos nosso voto em uma “oposição” que nem independência ao governo tem quanto mais disposição para organizar democraticamente as lutas dos estudantes, como demonstraram ao longo deste burocrático um ano diante da direção do DCE da USP e de tantas entidades universitárias pelo país. Embora nosso voto não fosse definitório da eleição, é fundamental que nossa atividade militante seja coerente em todos os espaços com nossa política de independência de classe, pela democratização das organizações e para impulsionar as lutas do movimento estudantil em unidade com a classe trabalhadora. 

A tarefa pela reorganização da Oposição de Esquerda da UNE segue. Fazemos um chamado às organizações da esquerda independente, em especial às juventudes do Rebeldia e da Faísca Revolucionária, para romper com o seu sectarismo e trabalharmos conjuntamente pela reconstrução desse campo e pelo esforço unitário de inflamar as lutas da juventude. Esse é o primeiro passo para que possamos construir um movimento estudantil e uma UNE com uma política classista, combativa e democrática, que rompa com os métodos burocráticos e seja independente da burocracia, dos governos e dos patrões. Essa é uma tarefa indispensável para aqueles que querem impulsionar a luta pela revogação integral do Novo Ensino Médio e do Arcabouço Fiscal, derrotar o Marco Temporal e exigir a prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas. 

 

[1]https://www.instagram.com/reel/CurncEgAwFb/?utm_source=ig_web_button_share_sheet&igshid=MzRlODBiNWFlZA==

 

[2]https://esquerdaweb.com/proposta-de-mocao-ao-59-conune-em-apoio-e-solidariedade-a-luta-dos-entregadores-as-de-apps-contra-a-precarizacao-trabalho-por-direitos-e-pela-autodeterminacao-da-categoria/

 

[3]https://esquerdaweb.com/pela-reconstrucao-da-oposicao-de-esquerda-na-une/

[4]https://www.pstu.org.br/59o-congresso-da-une-um-congresso-burocratico-e-governista/