Por Flávia Toledo, estudante de Ciências Sociais/USP

As primeiras semanas deste segundo semestre de 2023 chacoalharam a universidade e trouxeram de volta à cena, após anos de refluxo do movimento e de pandemia, a construção de uma greve na USP. Não poderia ser diferente: a falta de professores atingiu um ponto crítico, colocando em risco a continuidade de diversos cursos, as políticas de permanência vêm sendo desmontadas com extrema rapidez, o ideário ultraliberal tem se infiltrado feito praga pela universidade por meio do discurso da “inovação” e o cheiro da sanha privatista se faz sentir por toda a USP.

PROJETOS DE UNIVERSIDADE EM CONFLITO

O chacoalhão que estamos sentindo é resultado do choque entre dois projetos distintos de universidade: de um lado, o projeto da reitoria, do governo bolsonarista de Tarcísio de Freitas (Republicanos) e das elites brasileiras – universidade para a minoria -; do outro lado, o projeto historicamente defendido pelo movimento estudantil e de trabalhadores da universidade, pelo movimento negro e indígena e demais movimentos sociais – universidade para a maioria.

Esses dois projetos trazem respostas distintas para questões-chave da universidade: o tripé universitário – ensino, pesquisa e extensão – e os grandes desafios enfrentados pelos estudantes – entrar, permanecer e se formar com qualidade.

O famoso tripé universitário é o que a universidade deve ser e fazer: ela deve ensinar, transmitir conhecimentos e habilidades, formar pessoas; ela deve pesquisar e produzir conhecimento socialmente necessário; e ela deve devolver e integrar-se à sociedade, à população que a sustenta, por meio de projetos e equipamentos de extensão, como o Hospital Universitário e projetos de difusão de conhecimento.

A reitoria e os governos atacam a universidade desmontando esse tripé: cortes de verba, sucateamento dos projetos de extensão, destruição do HU, precarização da Escola de Aplicação, insuficiência de professores, corte de bolsas de pesquisa, salas de aula lotadas, fechamento de cursos e disciplinas… Esses são os sintomas do projeto privatista e ultraliberal que infesta a universidade.

Mas o sucateamento da USP não é o fim desse projeto, e sim o meio. O cerne da questão é quem deve ter acesso à universidade e a quem ela deve servir. Não interessa à burguesia que a USP deixe de ser “excelente”. Interessa, na verdade, que apenas os jovens herdeiros tenham acesso a essa “excelência”, e para isso é preciso evitar que os jovens trabalhadores, racializados e pobres entrem na universidade – e, quando estes conseguem furar o filtro étnico-social do vestibular, expulsá-los com medidas que inviabilizem a continuidade de seus estudos.

Quem terá o direito de entrar na universidade? Quem conseguirá permanecer estudando por 5 anos ou mais? Quem sairá da universidade pública com diploma em mãos, com a satisfação de ter sido bem formado e com a possibilidade de seguir os estudos na pós-graduação?

O movimento estudantil, de trabalhadores, negro e indígena e demais movimentos atuantes na universidade conquistaram a duras penas e após décadas de luta a ampliação do acesso à USP com a implementação (ainda que tardia) de cotas étnico-raciais. Essa vitória não caiu no nosso colo: além das décadas de luta protagonizadas pelo movimento negro, destacadamente o Núcleo de Consciência Negra, grande foco de resistência antirracista na USP, a conquista de cotas em 2017 foi fruto de um giro do movimento estudantil desde 2014 e da aliança entre os três setores da universidade. 

Em 2014, durante uma importante greve geral da universidade, as pautas centrais dos estudantes eram aumento do financiamento, ampliação das políticas de permanência e implementação das cotas. Os trabalhadores, ainda que estivessem em greve devido à absurda proposta de 0% de reajuste, também traziam a defesa da implementação de cotas em seu programa político. Em 2015, com o ascenso do debate acerca das questões raciais, o movimento estudantil deu o giro definitivo para a questão e a palavra de ordem “cotas raciais já” passou a ser a demanda principal dos estudantes. 

Durante a greve estadual de 2016, a força da luta unificada das três estaduais paulistas fez com que a Unicamp aprovasse cotas, colocando a USP contra a parede. Já não era mais possível se manter fechada à maior e melhor mudança no ensino superior brasileiro desde a sua criação – em que pesem os limites dessa política, dado que, enquanto houver vestibular, serão os estudantes racializados e pobres que ficarão de fora da universidade -, e em 2017, graças à articulação dos pouquíssimos representantes discentes, de funcionários e professores aliados no CO, conquistamos as cotas étnico-raciais na USP

Essa conquista mudou visivelmente a composição social da universidade, historicamente muito elitizada, criada para os filhos das elites açucareiras e cafeicultoras de São Paulo, mas construída pelas mãos de trabalhadores braçais nordestinos que deram origem às favelas no entorno da cidade universitária, trabalham na USP e ainda hoje têm o seu direito de acessar a universidade negado.

Essa derrota da Casa Grande uspiana gerou uma reação que fez com que o projeto de destruição do caráter público da universidade se acelerasse – um projeto que nada tem de novo e que foi tocado, inclusive, por muitos anos pelo ex-governador tucano e atual vice-presidente Geraldo Alckmin.

Cada ataque à universidade ajuda a modelar as características da comunidade universitária, ou seja, de quem tem acesso a ela. Sem precisar impor critérios abertamente excludentes, a reitoria realiza ataques que impõem obstáculos às parcelas mais pobres de estudantes para seguir sua formação.

A falta de bolsas capazes de sustentar uma pessoa na cidade de São Paulo, por exemplo, impõe um critério financeiro que define quem pode e quem não pode se dedicar à pesquisa, uma vez que o tempo é um recurso limitado e, quando se trata de um estudante trabalhador, muito escasso, de modo que a opção pela pesquisa concomitantemente a uma jornada de trabalho torna-se um fator de adoecimento mental e físico que inviabiliza, muitas vezes, a sequência dos estudos. 

O corte de disciplinas devido à falta de professores sempre começa a ser sentido nos cursos noturnos. Ora, se esses mesmos cursos são, sabidamente, os que reúnem o maior número de estudantes trabalhadores, então, na prática, estudantes que precisam e que não precisam trabalhar têm um acesso desigual à formação acadêmica dentro da mesma universidade, tendo passado pelo mesmo vestibular. 

O desmonte do CRUSP é o exemplo cabal desse projeto de expulsão. A moradia estudantil nunca foi suficiente para atender à demanda dos estudantes pobres da USP, mas a falta de vagas nunca foi tão grande quanto é hoje. Alguns fatores levaram a um aumento da quantidade de estudantes que precisam de auxílio para morar e estudar: a implementação de cotas raciais, a possibilidade de ingresso pelo ENEM, que facilita o ingresso de estudantes de baixa renda e de fora de São Paulo à USP (ou seja, estudantes que precisam sair da casa dos pais e mudar de cidade para estudar), e a crise estrutural do capitalismo que tem desdobramentos categóricos no Brasil, com a juventude sendo relegada aos piores postos de trabalho, como o dos entregadores de aplicativos – tudo isso sem falar da especulação imobiliária que assola a região no entorno da Cidade Universitária, jogando os aluguéis lá no alto. Se a demanda por moradia e auxílio para permanência estudantil aumenta sem aumentar a oferta de vagas e bolsas e sem que o aumento do valor dessas bolsas seja condizente com o aumento da carestia de vida, então a suposta ampliação no acesso de que muito se orgulham os burocratas da USP é uma mentira! De que serve entrar sem poder permanecer?

E há ainda outros tantos exemplos que poderiam ser citados aqui, todos capazes de demonstrar como o sucateamento expulsa os alunos mais pobres da universidade.

Algumas lacunas na graduação, como a falta de trabalhos de campo devido à falta de verba, de traduções para o português de textos importantes, de livros nas bibliotecas e de impressão nas salas Pró-Aluno, podem ser supridas quando se tem dinheiro para viajar, adquirir livros (que têm passado por uma alta significativa de preços nos últimos anos), equipamentos eletrônicos, impressão de textos, quando se tem domínio de línguas estrangeiras e tempo para estudar fora de sala de aula. Mas como se forma um estudante trabalhador que cumpre dupla ou tripla jornada todos os dias, especialmente se for mulher, que recebe um salário mínimo insuficiente (ou que pedala no almoço para comprar a janta) e que mal tem tempo pra dormir, quanto mais de fazer um curso de inglês para “correr atrás do prejuízo” de uma formação básica precária na rede pública?

Esse projeto de universidade para a minoria herdeira fica escancarado quando vemos os ataques à extensão e à permanência estudantil. O maior exemplo de ataque à extensão é o desmonte do Hospital Universitário, que fez com que a população no entorno da USP – muitos, inclusive, trabalhadores da universidade – perdesse um hospital de referência, o maior da Zona Oeste, precarizando o acesso à saúde de toda a região. De quebra, o sucateamento do HU também afeta negativamente o ensino e a pesquisa dos estudantes da área da saúde.

Os ataques à permanência estudantil, por sua vez, são um verdadeiro manifesto racista e classista da reitoria. Destruição da moradia estudantil e diversas arbitrariedades cometidas no CRUSP, fechamento das creches, oferecimento insuficiente de bolsas… A lista de ataques é longa e tem um único objetivo: expulsar os estudantes negros, indígenas, mães, trabalhadores, pobres da USP.

Diante da irrupção de uma greve estudantil, é preciso que fique muito claro: nenhum ataque se dá isoladamente. Cada ataque é uma engrenagem de um projeto maior e mais complexo de universidade e de educação, que por sua vez se filia a um projeto de país. Entender isso é fundamental para construir uma greve capaz de vencer.

LUTAR POR OUTRA UNIVERSIDADE POSSÍVEL

Quando olhamos para todos esses ataques e os identificamos como partes de um mesmo projeto, conseguimos perceber que há um sistema de compensações que confere à reitoria um certo “fôlego” na disputa do caráter da universidade. Ou seja, ela pode recuar em um ponto – como, por exemplo, não tentar reverter a política de cotas -, mas avançar sobre outro para “compensar” uma concessão indesejada – mesmo havendo cotas para entrar, sem políticas de permanência, os estudantes negros e periféricos correm grande risco de evadir. Isso acontece com mais facilidade quando os movimentos de resistência à privatização da universidade se limitam a programas rebaixados, mais palatáveis para as discussões demagógicas nas instâncias burocráticas da USP, porque esse rebaixamento desmobiliza o movimento e favorece esse tipo de manobra da reitoria.

Para nos enfrentarmos com esse projeto de universidade para a minoria, é preciso que tenhamos mais do que apenas um conjunto de reivindicações: precisamos de um contra-projeto de universidade para a maioria trabalhadora, capaz de fazer ruir o sistema de pesos e contrapesos da reitoria e virar a USP de ponta-cabeça – ou melhor, desvirá-la, porque de ponta-cabeça está uma universidade pública que não atende aos interesses da maioria da população.

Em outras palavras, precisamos construir um programa que seja capaz de apresentar uma solução para as demandas específicas dos cursos, mas que também ouse disputar os rumos da universidade. Partir dos problemas concretos que enfrentamos cotidianamente na USP para colocar os estudantes em movimento, criar as condições objetivas e subjetivas pra que os estudantes possam se encontrar e daí chegar a conclusões políticas que consigam tornar o movimento estudantil um sujeito politicamente relevante na atual conjuntura nacional, capaz de ocupar de forma coesa e contundente as ruas como parte de uma grande frente de luta em defesa da educação pública, contra os ataques dos governos, contra a extrema-direita e pela prisão de Bolsonaro e todos os golpistas.

Um programa político é o equivalente a uma bússola aos que navegam nos mares da luta de classes. A partir dele nos localizamos e entendemos quão perto ou quão longe estamos de ganhar, de perder e de se desmoralizar em um processo de luta. Por isso, ele precisa ser mais do que mero acordo formal: deve ser capaz de se concretizar em força política real, de movimentar de forma unitária setores expressivos de estudantes e, inclusive, preparar o terreno para construir uma aliança com professores e funcionários. Sem isso, não há perspectiva de vitória para greve alguma.

Sempre que o movimento estudantil obteve vitórias, o fez graças a uma política acertada e a um programa qualificado para a ação. Um exemplo que tem sido muito relembrado é o da greve de 2002, quando a FFLCH saiu em luta pela contratação de 259 professores porque as salas estavam absolutamente lotadas, com estudantes assistindo às aulas no chão ou pela janela. Neste ano, o movimento conseguiu alcançar um forte programa comum para a ação – contratação imediata e a implementação do gatilho automático de claros, que previa a contratação imediata de professores sempre que alguém se aposentasse ou viesse a falecer, principais motivos para a saída de professores da universidade – e, principalmente, acertou com tudo nos métodos de organização da luta. 

Os estudantes organizaram comitês profundamente ativos, capazes de realizar um enorme e preciso levantamento da necessidade real de professores, dissecando a burocracia uspiana e sendo capazes de botar a direção da faculdade e a reitoria de chinelos. As assembleias ocupavam a Avenida Luciano Gualberto, as manifestações extrapolaram os limites da universidade e estudantes, funcionários e professores, juntos, arrancaram a contratação de docentes.

Precisamos aprender com essas experiências bem sucedidas em que se construiu uma unidade programática adequada à gravidade da situação, apostando nos nossos métodos históricos de luta.

“QUEM NÃO SE MOVIMENTA NÃO SENTE AS CORRENTES QUE O PRENDEM”

Os cursos mais avançados politicamente, hoje, na USP, como a Geografia, a Letras e cursos da EACH, não “acordaram” para a mobilização do dia para a noite, muito pelo contrário: são cursos onde os estudantes estão há meses debatendo politicamente os problemas que estão enfrentando.

Na Geografia, o CEGE, de cuja gestão nós, da Juventude Já Basta!, fazemos parte, realizou um grande censo do curso, recolhendo informações fundamentais do corpo discente no primeiro semestre deste ano. Além disso, diversas atividades reunindo professores e estudantes ao longo do ano colocaram na ordem do dia o debate sobre a crise que o curso vem enfrentando com a falta de professores, a falta de verba para trabalhos de campo e a reforma curricular ultraliberal – aos moldes do Novo Ensino Médio e do Escola Sem Partido – que a reitoria quer impor sem nenhum debate com a comunidade universitária. Passagens em sala, panfletagens, atividades diversas pavimentaram o caminho para uma assembleia de curso cheia, com 150 estudantes, aprovando greve pra 19/09 e um importante comitê para organizá-la na última quinta-feira.

Na Letras, onde algumas habilitações correm o risco de fechar devido à falta de professores, os estudantes das habilitações em situação mais crítica se organizaram em comissões para tocar a luta junto a alguns professores e ao CAELL. A organização em comissões se expandiu por todo o curso, culminando em dois dias de paralisação no final de agosto e mais de 700 estudantes em assembleia aprovando greve no maior curso da USP, também para dia 19/09.

Na EACH, a mobilização deste ano já construiu uma ocupação que pressionou a reitoria a adiantar a contratação de alguns professores e agora foi aprovada a paralisação das atividades no dia 21/09. A ECA também já realizou atos contra o fechamento de disciplinas em seus cursos neste segundo semestre. Isso sem falar de toda a luta no CRUSP por moradia digna e permanência estudantil, num processo incansável de enfrentamento.

Mas não é toda a USP que está assim. O curso de Ciências Sociais, por exemplo, ainda que também sofra com a falta de disciplinas, com falta de bolsas de estudo e pesquisa e esteja, literalmente, no meio das duas grandes mobilizações da FFLCH – Geografia e Letras -, ainda tem um grande caminho pela frente a ser trilhado para mobilizar o curso. Não é de se espantar: a gestão do CeUPES, dirigida pela UJC/PCB, que também é parte da gestão do DCE, praticamente não convoca atividades para reunir os estudantes, utilizando frequentemente a desculpa de que “os estudantes não se mobilizam” – com exceção da calourada e da Semana de Ciências Sociais, não ocorreram debates, festas ou qualquer tipo de atividade política ou cultural no curso. As poucas assembleias e plenárias foram mal convocadas e, consequentemente, esvaziadas. E, diferente do que ocorreu na Letras, por exemplo, o GT de Lutas do curso não tem servido para potencializar a mobilização, mas para cumprir tarefas básicas que deveriam ser responsabilidade da gestão de um centro acadêmico, como realizar passagens em sala.

Problema semelhante ocorre no movimento geral: apenas duas assembleias gerais foram realizadas este ano, ambas esvaziadas. A única paralisação do movimento geral este ano foi deliberada em um Conselho de Centros Acadêmicos (uma reunião entre o DCE e os Centros Acadêmicos, que tem caráter unicamente encaminhativo), sem que tenha passado por nenhum espaço de deliberação dos estudantes além de assembleias de curso isoladas, uma das várias “novidades” antidemocráticas dessa gestão do DCE (Juntos/MES, Correnteza/UP e UJC/PCB) – na plenária realizada no dia dessa paralisação, o DCE inventou uma regra absurda, que não existe e nunca existiu, de que os estudantes não poderiam votar uma exigência de convocação de uma assembleia geral porque, segundo o estatuto, a convocação de assembleias é prerrogativa da gestão e, portanto, a votação não valeria de nada – depois disso, a mesa simplesmente desligou o microfone e encerrou a plenária, cena que foi seguida por outra ainda mais deprimente, em que “valentões” do DCE buscavam uma briga física com opositores da gestão. Felizmente, não houve agressão física, sendo que apenas a democracia de base dos estudantes saiu ferida.

É exatamente por posturas como essas que o DCE foi incapaz de organizar a revolta dos estudantes no primeiro semestre com os cortes no oferecimento de bolsas e os ataques à permanência estudantil. E, por mais que a gestão defenda, no discurso, que haja uma greve unificada agora, faz muito pouco para que ela aconteça e se massifique por toda a USP. Afinal, em todas as oportunidades que teve de ouvir os estudantes, que há meses levantam a necessidade de se construir espaços para a organização unificada do movimento, a gestão puxou o movimento para trás e impediu que ele se fortalecesse. Ao não ter espaços onde o movimento possa se expressar, debater, acumular reflexões, a democracia de base dos estudantes escorre pelo ralo, afastando ainda mais o estudante “comum” da vanguarda do ME, fomentando a ideia de que o movimento “não serve de nada” e estagnando a construção político-programática da categoria.

A situação de paralisia do movimento mudou bastante neste segundo semestre graças à pressão da mobilização estudantil em alguns cursos. A situação crítica em relação à falta de professores, que fez a ECA e a Geografia se mobilizarem e colocou centenas de estudantes na assembleia da Letras para aprovar uma paralisação, e a resistência dos estudantes da FFLCH ao assédio da extrema-direita no Vão da História e Geografia no início do semestre colocaram o DCE contra a parede, pressionando-o a convocar a tão aguardada e atrasada segunda assembleia geral do ano para colocar em pauta a mobilização e a possibilidade de uma greve.

Além de não ter construído devidamente a assembleia, que estava esvaziada e aconteceu totalmente no escuro (literalmente sem luz) pela escolha equivocada de local para a sua realização, o DCE errou, novamente, na condução do fórum: na assembleia onde se votou um “indicativo de discussão de greve a ser feita nos cursos” a mesa não abriu a possibilidade de realização de informes, impedindo que os cursos informassem o conjunto do movimento sobre a sua situação e compartilhassem suas experiências de mobilização, como ocorreu com a companheira que daria o informe pela Geografia, com a justificativa de que “o tema da contratação de professores já seria abordado pelo informe da Letras”, além de promover seu costumeiro confusionismo no momento dos encaminhamentos para privilegiar as suas próprias posições, atrapalhando a apresentação de contrapropostas pelo plenário e distorcendo posições a partir da mesa. Essas atitudes são opostas à necessidade de unificação das lutas.

No calendário proposto e construído pelo DCE, faltam atividades conjuntas entre os cursos e não há qualquer tentativa de unificar a mobilização com funcionários e professores. A única atividade que propunha reunir os centros acadêmicos de diferentes cursos para buscar uma atuação conjunta aconteceu durante a paralisação da Letras, sem qualquer contribuição do DCE para sua construção.

Nós, do Já Basta!, apresentamos a proposta de realizar uma plenária dos 3 setores da universidade como atividade rumo à greve na reunião online do dia 05/09, mas não pudemos contar com o Diretório Central dos Estudantes na efetivação desse espaço fundamental para construir um greve realmente unificada – com estudantes, funcionários e professores de toda a USP. Como construir uma greve unificada sem espaços conjuntos para que os cursos e categorias possam trocar experiências de mobilização entre si?

Colocar tudo isso assim, às claras, não tem como objetivo mero denuncismo ou “picuinha”, como costuma-se dizer no movimento estudantil. Trata-se de uma análise fundamental neste momento em que estamos começando uma greve: como atuam e como precisam atuar as direções do movimento para que a mobilização se transforme em uma greve unificada em toda a USP, capaz de colocar a reitoria e o governo do estado de joelhos?

A famosa frase de Rosa Luxemburgo, “quem não se movimenta não sente as correntes que o prendem”, deixa uma lição de grande importância para nós: sofrer ataques não é suficiente para que se vá à luta; é o próprio movimento que gera a consciência necessária sobre os ataques sofridos e, acima de tudo, sobre as possibilidades de derrotá-los. Não são os ataques que levam a lutar, mas sim a luta se realizando que permite compreender e expor os ataques tal qual eles efetivamente são.

Voltando o olhar cá pra USP, não se pode esperar que os estudantes simplesmente apareçam nas assembleias plenamente convencidos da necessidade de se construir uma greve. Como as experiências citadas aqui demonstram, é o trabalho consciente voltado à massificação da ideia de que é necessário e possível se mobilizar para garantir que a universidade pública siga existindo que cria a possibilidade de uma greve acontecer.

Em outras palavras, o estudante, no seu cotidiano, percebe que a cada semestre ele corre mais risco de ser “chutado” das turmas por falta de vagas, que aquela disciplina interessante que viu no JupiterWeb nunca é oferecida, que as salas ficam tão lotadas que chega a ser desconfortável assistir à aula, que a sua bolsa acaba bem antes do mês e que a sua própria ansiedade tem prejudicado seus estudos. 

Mas é preciso que o movimento estudantil saia à ação para que ele se dê conta de que seus problemas com as matrículas estão relacionados ao fato de, em 9 anos, a USP ter perdido 1039 professores e que, portanto, não é a sua média ponderada que o faz ficar sem vaga na matéria; só por meio da mobilização que o estudante será capaz de perceber que seus colegas também não dão conta de passar o mês com um auxílio-permanência no valor irrisório de R$800, que supostamente deveria ser capaz de suprir os custos com moradia, alimentação, transporte e livros (mesmo que a cesta básica em São Paulo esteja custando R$1261,36 e o aluguel de um quarto minúsculo em repúblicas superlotadas perto da Cidade Universitária não saia por menos de R$700); só havendo espaços onde os estudantes possam se colocar e dividir suas angústias é que se torna possível perceber que estamos todos adoecendo com uma lógica produtivista bizarra, com demandas irreais e que os índices de suicídio só fazem aumentar na universidade.

Os estudantes só podem se levantar contra um ataque se souberem de sua existência. E, pra isso, é preciso que se encontrem para debater a universidade e a sociedade na qual ela se insere. 

Quem deve promover esses encontros são as entidades estudantis, cujas gestões são eleitas anualmente exatamente para cumprir esse papel. Mas se engana quem pensa que apenas convocar assembleias seja suficiente: o movimento precisa estabelecer uma cultura de passagens em sala, debates, reuniões abertas, aulas públicas, cervejadas, cine-debates, revistas, saraus, festas e o que mais a criatividade dos estudantes gerar para ocupar os nossos espaços estudantis.

Um exemplo categórico da diferença que faz uma gestão consequente à frente da entidade é a própria Geografia. O CEGE esteve por muitos anos sob um regime de “autogestão”, o que impedia o avanço da mobilização dos estudantes e impunha à Geografia um papel secundário no movimento estudantil geral. Só recentemente o CEGE voltou a ter uma gestão eleita, da qual orgulhosamente fazemos parte, e hoje a Geografia está na linha de frente da luta na USP, entrando em greve junto à Letras já no dia 19/09, antes mesma da data indicada pelo DCE, devido à enorme disposição de luta que os estudantes do curso puderam demonstrar graças à existência de espaços de debate.

Não podemos, claro, confundir a necessidade de entidades atuantes com tentativas de “substituir” os estudantes nas lutas da universidade: nenhum centro acadêmico, grêmio ou DCE tem condição de arrancar nenhuma vitória sozinho, mas é sua tarefa número 1 criar as condições para que a mobilização no curso e na universidade aconteça.

“Construir a greve”, portanto, é colocar-se à disposição de massificar a denúncia da situação em que a universidade se encontra e criar condições para que os estudantes de cada curso da universidade possam debater e afinar o programa para a nossa mobilização, capaz de criar força política para vencer a reitoria e o governo do estado. Para isso é preciso de mais do que apenas discursos: é preciso criar espaços de debate e preenchê-los com política.

CONSTRUIR UM PROGRAMA QUE UNIFIQUE O MOVIMENTO

Mas, afinal, com qual política preencher os espaços do movimento estudantil? Ora, com uma política que apresente uma resposta às demandas urgentes, mais sentidas pelos estudantes, que parta de um projeto de universidade para a maioria trabalhadora, de uma concepção de movimento estudantil que privilegie nossos espaços e métodos de luta testados historicamente e que se proponha a ser parte de uma luta geral, que se proponha a debater grandes ideias.

As demandas mais urgentes de toda a universidade, hoje, referem-se a duas questões fundamentais: a falta de professores e o desmonte da permanência estudantil. Ambos os problemas, como já vimos, acabam por expulsar a juventude pobre, racializada e trabalhadora da universidade ou prejudicar sua formação. Partamos dessas questões, então, para pensar no nosso programa.

A falta de professores é resultado de um projeto de sucateamento de anos. O gatilho automático para contratação de professores foi revogado pelo REItor João Grandino Rodas no início de sua gestão, em 2010 – e ele era conhecido assim, mesmo, como um pretenso “rei”, dado a medidas muito impopulares de sua gestão, marcada por violências e intenso sucateamento da universidade.

Logo no início de 2011, uma forte mobilização das estudantes de Obstetrícia, único curso superior voltado à formação de obstetrizes do Brasil, denunciou para toda a universidade e para a sociedade os planos da reitoria de fechar o curso. A forte luta foi capaz de manter o curso aberto – mas a história se repetiu neste ano de 2023, em que mais uma vez o curso esteve prestes a fechar, em uma política fundamentalmente machista da universidade. 

Também nos primeiros meses daquele ano, uma inspiradora greve de funcionárias terceirizadas parou a FFLCH após 3 meses de trabalho sem remuneração. Passando fome com suas famílias, essas trabalhadoras deram um show de luta! Pejorativamente chamado pela direita de “greve do lixo” devido aos protestos realizados pelas trabalhadoras, que por alguns dias se recusaram a recolher o lixo gerado nos prédios, essa foi, na verdade, a greve das gigantes: uma greve de mulheres negras que se recusaram a trabalhar sem receber, que enfrentaram seus patrões, o sindicato patronal das terceirizadas da limpeza e a reitoria, contando com a ajuda do Sintusp e de setores dos estudantes num forte grito contra a superexploração do trabalho. Foi nesse contexto, inclusive, em atividade de greve ocorrida em frente à velha reitoria, que nasceu o primeiro coletivo feminista da USP, o então nomeado Coletivo Feminista Marias Baderna da Letras.

Reconhecido por sua truculência, o então reitor e ex-diretor da faculdade de Direito foi responsável por assinar o convênio que colocou de vez a polícia dentro da USP, tentou expulsar 79 estudantes por sua atividade política – 73 deles presos após violenta desocupação da reitoria em 2011, colocando um fim a uma luta contra a repressão policial na universidade -, criou a Secretaria de Segurança da USP (que recebeu oficialmente a péssima sigla de SS), colocando um policial reformado para assumi-la, desenvolveu todo um sistema de espionagem das atividades do movimento estudantil, de funcionários e professores, com relatórios informando quem disse o quê em assembleias dos movimentos e ainda usou a expressão “Revolução de 1964” em placa colocada no monumento em homenagem aos mortos e desaparecidos da Ditadura Militar que estava sendo produzido na USP na época (a placa foi retirada após protestos, mas o monumento segue na Praça do Relógio, em frente ao auditório Camargo Guarnieri, completamente abandonado – como está, de fato, a memória desses estudantes, professores e funcionários em uma universidade que segue funcionando em base a um código de condutas da Ditadura Militar)

Vale dizer que essa não foi a única vez em que ele demonstrou um apreço no mínimo “esquisito” pela Ditadura: em 1997, quando compunha a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos do Ministério da Justiça representando o Itamaraty, foi um dos juristas que votou contra o reconhecimento da culpa do Estado pela morte de Zuzu Angel. Não à toa, Rodas foi considerado persona non grata pela Congregação da Faculdade de Direito por problemas relacionados a contratos escusos, sem a devida licitação, e pela sua truculência à frente da direção da unidade.

Rodas foi um reitor muito marcante da universidade, pois sua gestão representou uma virada antidemocrática importante na USP. Ele atacou todo mundo: estudantes, funcionários e professores. E acabou, como dito, com o gatilho automático de contratação, uma conquista importante de 2002 que seria fundamental para evitar novas crises por falta de professores. 

O projeto de desmonte continuou com seu sucessor, Marco Antonio Zago, que assumiu em 2014. Responsável por dois grandes Programas de Incentivo à Demissão Voluntária (PIDV), fechou mais de mil postos de trabalho na universidade – o projeto era de fechar 2800 -, baseando-se em relatório de firmas privadas que “aconselharam” a USP em troca de milhões de reais a “enxugar sua folha de pagamento” como forma de controlar uma suposta “crise orçamentária” da universidade. O desmonte do HU (chamado de “parasita do orçamento” pelo reitor anti povo) se aprofundou, as creches foram fechadas e aprovou-se uma reforma orçamentária apelidada de “PEC do Fim da USP” em 2017, que congelava as contratações na universidade, entre outros absurdos.

O fim do gatilho automático, o incentivo à demissão voluntária e o congelamento de contratações de professores por Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), além do aumento da terceirização na universidade, só poderiam levar ao cenário catastrófico que vivenciamos hoje: a falta de professores coloca em risco a continuidade de diversos cursos e os funcionários da universidade, absolutamente sobrecarregados, estão adoecidos.

A situação se complica ainda mais quando lembramos da perigosa experiência da pandemia, em que a universidade funcionou de modo remoto. Historicamente o movimento estudantil se opôs à Univesp, modalidade de ensino superior à distância que há tempos o governo tenta impor às universidades públicas paulistas. A oposição à EAD diz respeito tanto à defesa da qualidade da Universidade, que seria afetada pelo ensino remoto, quanto pela necessidade da ocupação física dos espaços da universidade para a defesa de seu caráter público. A recusa à Univesp, inclusive, foi uma das pautas da icônica greve com ocupação da reitoria em 2007 em defesa da autonomia universitária e contra os decretos do então governador José Serra (PSDB), uma greve fortíssima, que reacendeu o movimento estudantil, unificou estudantes, professores e funcionários da USP, UNESP, UNICAMP, Fatec e as Escolas Técnicas Estaduais do Centro Paula Souza sob um mesmo programa e que conseguiu derrotar os decretos contra as universidades paulistas (o Centro Paula Souza, infelizmente, não conseguiu evitar a implementação dos decretos, as escolas perderam o “estadual” do nome, tornando-se ETECs e o seu sucateamento foi acelerado, chegando aos graves problemas que vemos hoje na rede). A ocupação da reitoria da USP naquele ano tomou conta dos jornais, impondo até à mídia burguesa que expusesse o alto grau de ataque à autonomia universitária, e levou a uma onde de ocupações em universidades de todo o país.

Em 2016, durante a gestão de Zago, após o golpe parlamentar contra Dilma Rousseff e inspirado pelas ocupações de escola dos estudantes secundaristas, o movimento estudantil e de trabalhadores realizou uma nova greve, que mobilizou centenas de estudantes e levou à ocupação de alguns prédios da universidade, como o prédio de Letras, História e Geografia e ECA. A greve pautava a urgência da implementação de cotas, de incremento das políticas de permanência e, já naquele ano, a contratação de professores e funcionários. A greve também se expandiu estadualmente e foi a mobilização que faltava para impor as cotas raciais na USP.

Com Vahan Agopyan à frente da reitoria de 2018 a 2022, os ataques se aprofundaram e vimos a desprezível gestão da universidade durante a pandemia, que não forneceu qualquer suporte para a permanência estudantil e para a continuidade do ensino na universidade de forma qualificada. Enquanto economizava com os custos diminuídos da universidade desocupada durante a pandemia, Vahan enviava comida estragada para os estudantes moradores do CRUSP e impunha aos funcionários que realizassem trabalhos não essenciais presencialmente, expondo-os a risco de morte. Ao mesmo tempo, sobrava dinheiro para realizar exposição de iates na Cidade Universitária.

O atual reitor, Carlos Gilberto Carlotti Júnior, recebeu uma USP em que todos os limites de ataques por parte da reitoria estavam esgarçados, aproveitando-se da óbvia desarticulação dos movimentos dentro da universidade devido à pandemia. E ganhou de presente o perigoso precedente de uma universidade que “funcionou” por dois anos remotamente. Ou seja, abre-se a possibilidade de a reitoria levar a falta de professores até o limite para justificar a abertura de mais disciplinas online na universidade – como ocorre com a disciplina de Libras para todos os cursos de licenciatura, em um claro desrespeito às políticas de inclusão da população surda e negligência absoluta com a perspectiva de uma educação inclusiva. Afinal, disciplinas online são mais baratas financeira e politicamente, pois não há turmas onde estudantes e professores possam se conhecer e conversar sobre o que pensam a respeito da universidade, da sociedade e nem sobre a própria disciplina.

Diante desse cenário complexo, em que a falta de professores é resultado de um projeto de (bem) mais que uma década, fica claro que não basta reivindicar apenas a contratação de professores. A própria reitoria tem uma proposta de contratação: cobrir até 2025 80% da demanda por professores a partir, inclusive, de editais de mérito em que serão escolhidos professores alinhados ao projeto de “inovação” da USP, beneficiando os cursos que aceitarem realizar a reforma curricular imposta pela reitoria – que mais parece uma espécie de “Universidade Sem Partido” com foco em empreendedorismo.

Nossa reivindicação tem que ir além: exigir contratação imediata de professores, e não daqui a dois anos; que a contratação atenda a 100% da demanda levantada nos próprios cursos por estudantes e professores; que o processo seletivo seja por meio de concurso público para vagas em Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP), revogando todos os editais de mérito ou voltados à contratação de professores temporários; e que o gatilho automático para contratação seja novamente instaurado na universidade.

Além dos professores, precisamos de contratação imediata de funcionários por concurso público, especialmente para as seções de alunos dos cursos e bandejões, onde a sobrecarga de trabalho adoece e afasta diversos trabalhadores – inclusive, a demanda dos moradores do CRUSP de 3 refeições aos finais de semana no bandejão só pode ser cumprida se houver contratação de funcionários para o restaurante, caso contrário esse direito legítimo dos estudantes se converteria em ainda mais exploração dos trabalhadores da universidade. 

É preciso, também, fazer coro ao Sintusp em suas reivindicações contra a precarização do trabalho: somos contra a compensação das horas de pontes de feriado e recesso de final de ano imposta pela reitoria, contra o uso de banco de horas para ampliar a jornada de trabalho e contra a substituição de técnicos administrativos concursados por estagiários que recebem salários miseráveis para suprir, em metade da jornada, o trabalho de dois ou três trabalhadores efetivos. 

A precarização do trabalho na USP, que afeta inclusive os estudantes, quando pensamos nos estagiários, já teve consequências fatais: Filipe Varea Leme, estudante de Geografia que nomeia o centro acadêmico do curso, morreu aos 21 anos enquanto exercia função indevida durante seu estágio na Poli. Falar sobre a precarização do trabalho é fazer Filipe estar presente em nossas lutas!

Sobre os trabalhadores hoje terceirizados da USP, é urgente que sejam efetivados, uma vez que são tão importantes para o funcionamento da universidade quanto os concursados e devem ter o mesmo salário, os mesmos benefícios e a mesma estabilidade.

A ideia ultraliberal de que a universidade deve “cortar os gastos com a folha de pagamento” se expressa em outros âmbitos da universidade, como na controversa reforma curricular que a reitoria quer impor, atrelada a “valores empreendedores e inovadores”, abrindo espaço para grandes inimigos dos trabalhadores, como o Ifood, botarem suas patas na universidade pública. Repudiamos essa reforma! Qualquer reforma curricular deve ser debatida e construída pelos estudantes, professores e funcionários para que atenda aos interesses da maioria trabalhadora da população que a sustenta, e não pela camarilha burocrática que governa a universidade do alto de seus rechonchudos salários. 

Precisamos, sim, de uma reforma curricular. Mas uma reforma que enegreça nosso currículo, que traga as epistemologias indígenas para a universidade erigida sobre os pilares do colonialismo, que reconte a História sem excluir a participação das mulheres, que coloque a USP pra se jogar em pesquisas e divulgação científica visando a reversão da catástrofe climática e que reorganize a universidade para que ela seja efetivamente acolhedora para os jovens trabalhadores que saíram da rede pública e que finalmente conseguiram acessar a USP, oferecendo disciplinas de leitura e escrita acadêmica e inglês dentro das grades oficiais dos cursos, para permitir a esses jovens que possam aproveitar plenamente da universidade sem exigir-lhes um tempo a mais que sequer têm para estudar esses temas “por fora”. Exigimos uma reforma curricular democrática, debatida entre os 3 setores da universidade, e não uma excrescência ultraliberal imposta de cima pra baixo!

Todos esses ataques estão diretamente ligados à estrutura de poder da universidade, que é extremamente antidemocrática, com estudantes e funcionários sendo absolutamente sub-representados nas instâncias de poder. O Conselho Universitário (cuja sigla é CO, por motivos óbvios) tem o costume de passar como um trator sobre o caráter público da USP, agindo como uma verdadeira Casa Grande onde a ínfima participação estudantil e de funcionários pouco pode fazer. 

Mas ainda mais antidemocrática é a forma como se escolhe o reitor da universidade. Alguns professores – não são todos, apenas os titulares – têm direito a voto. Dessa votação sai uma lista tríplice que é encaminhada ao governador de São Paulo, que pode escolher qualquer um dos três ou, caso não considere nenhum dos três apto para assumir o cargo, um quarto nome à sua total e livre escolha. Lembra do Rodas, o REItor truculento, que chama 1964 de revolução? Então, ele era o segundo nome na lista tríplice enviada ao governador José Serra em 2009. O tucano, que teve seus decretos destruidores da universidade derrotados pela greve com ocupação da reitoria em 2007, não se preocupou em seguir os princípios de “boa convivência” que fazia com que os governadores indicassem o primeiro nome da lista e indicou o segundo colocado, causando enorme desconforto na comunidade universitária.

Em 2026, um novo reitor será escolhido pelo governador de São Paulo. Sim, ao que tudo indica, o próximo reitor da USP será escolhido pelo bolsonarista Tarcísio de Freitas, cujos principais projetos, pelo que temos visto neste primeiro ano de mandato, são privatizar tudo e mais um pouco, aumentar exponencialmente a repressão e a impunidade policial e destruir completamente a educação pública. Permitir que isso aconteça é inaceitável.

Precisamos impor que as eleições para a reitoria da USP sejam democráticas e diretas, com um voto por cabeça e atendendo única e exclusivamente aos interesses de estudantes, funcionários e professores. Basta dessa reitoria reacionária e anti povo!

Finalmente, chegamos à reflexão sobre permanência estudantil. Neste tópico, a lista de ataques é revoltantemente longa. Podemos destacar duas áreas que vêm sendo muito atacadas pela reitoria: as bolsas e a moradia estudantil. O reitor Carlotti – ou seria melhor dizer reitor Calote? – começou o ano atrasando pagamento, cortando oferecimento de bolsas e impondo mudanças nos processos de seleção da PRIP (Pró Reitoria de “Inclusão” e “Pertencimento” – aspas nossas), deixando-os menos transparentes do que já eram. Agora, novos cortes nas bolsas PUB, que foram desatreladas do PAPFE (deixando, portanto, de ser uma política de permanência estudantil), voltam a assombrar os estudantes que não conseguem sequer ter a certeza de que poderão se manter estudando no próximo mês.

Na moradia estudantil, toda sorte de desrespeito aos direitos humanos é cometida, tanto estruturalmente pela reitoria e pela PRIP, quanto diretamente pela polícia militar, cuja base fixa foi construída “coincidentemente” em frente ao CRUSP. Isso pra não falar da assistência ainda mais precária à moradia para os estudantes que estudam em outros campi da USP.

Os estudantes trabalhadores que dependem do CRUSP estão sujeitos a cortes de energia, de água, de internet, a riscos de curtos-circuitos e incêndios, cozinhas e lavanderias precárias e apartamentos com problemas importantes de segurança, além da perseguição realizada pela reitoria, com a colaboração da polícia, contra os moradores e da falta de vagas para estudantes que dependem da moradia. Não podemos nos calar quanto a isso!

A demanda inicial e urgente é a de retomar todas as bolsas cortadas. Mas temos que ir além: precisamos exigir que as bolsas sejam ampliadas em número – atendendo a toda a demanda – e em valor – para o equivalente a um salário mínimo sem descontos. Mas não só: a iniciativa privada adora financiar pesquisas na universidade, pois sai muito mais barato para uma empresa de cosméticos, por exemplo, pagar uma bolsa miserável para alguns estudantes utilizarem laboratórios públicos para realizar pesquisas cujo resultados serão apropriados de forma privada do que financiar a montagem e a manutenção de um laboratório de ponta e pagar salários competitivos para profissionais desenvolverem as próximas inovações tecnológicas da área. Portanto, não podemos deixar de exigir que a universidade pública e as bolsas de ensino, pesquisa e extensão sejam financiadas exclusivamente por dinheiro público, de modo que os equipamentos públicos de ciência não sejam apropriados pelo capital privado.

Os critérios para concessão das bolsas devem ser transparentes, objetivos e precisam considerar critérios socioeconômicos para que sejam, prioritariamente, políticas de permanência estudantil e reparação com os setores historicamente excluídos da universidade pública. Que as bolsas PUB sejam reintegradas ao PAPFE! A mesma transparência deve ser exigida no processo de seleção para as vagas no CRUSP.

Também sobre o CRUSP, é urgente que sejam devolvidos aos estudantes os blocos K e L da moradia já prontos para morar. Com esses dois prédios disponíveis, será possível remanejar os atuais moradores para que sejam feitas as devidas reformas nos prédios sem que nenhum estudante fique sem vaga e, ao final da reforma, liberar as vagas de mais dois prédios para novos moradores. A segurança dos cruspianos deve ser garantida a partir de um plano construído democraticamente com os moradores, que devem ter suas vagas regularizadas e sua privacidade e integridade física preservadas. Basta de ameaças de despejo e repressão policial no CRUSP!

Diante de reivindicações como essas, a reitoria certamente usaria o argumento de que atendê-las geraria um rombo financeiro na universidade. Conhecemos essa conversa e não acreditamos nela! Sabemos que a USP fechou 2022 com R$5,7bi em caixa. Pra onde vai esse dinheiro, se as bolsas estão sendo cortadas, a moradia está cada vez mais precária e faltam professores e funcionários na USP? Será que realmente falta verba para atender às nossas exigências? A reitoria nos deve respostas quanto a isso. Portanto, exijamos a abertura do livro de contas da universidade e a gestão democrática dos recursos a partir de deliberação da comunidade universitária.

Há muitas outras demandas na universidade, como a reabertura e ampliação de vagas nas creches, a saída da PM dos campi, fim das perseguições a professores, funcionários e estudantes que lutam, fim do vestibular, obstáculo classista e racista à universalização do acesso ao ensino superior no Brasil, entre tantas outras reivindicações específicas dos cursos. E é nos espaços históricos do movimento estudantil que melhor podemos nos apropriar delas e desenvolvê-las o máximo possível, acumulando força política para impor derrotas à reitoria e ao governo do estado.

SEJAMOS REALISTAS, EXIJAMOS O IMPOSSÍVEL

Uma vez fortalecido, nosso movimento poderá ser parte relevante de uma frente nacional contra os ataques do governo federal – como o Marco Temporal e o Arcabouço Fiscal -, pela revogação total do Novo Ensino Médio e pela prisão de Bolsonaro e todos os golpistas por meio da luta da juventude e dos trabalhadores. Transformar a USP em uma ágora onde as diversas reivindicações dos movimentos sociais, da juventude e dos trabalhadores de dentro e de fora da universidade possam se expressar e fortalecer é, sem dúvida, um dos maiores objetivos que temos a perseguir.

O movimento estudantil foi fundamental na luta contra a Ditadura Militar no Brasil e, ao longo da história e em diversos lugares do mundo, cumpriu um papel fundamental na construção de fortes alianças entre trabalhadores e estudantes, como ocorreu no lendário Maio de 1968 francês. Podemos voltar a cumprir esse papel de fundamental importância – e precisamos, pois a extrema-direita ainda é um ator importante da política nacional, principalmente agora que tem espaço até mesmo no governo de Lula e Alckmin (um atravessamento de princípios que não vimos nem no governo genocida de Bolsonaro: ele nunca dialogou com o petismo nem ofereceu cargos a inimigos políticos em troca de governabilidade), e precisamos de grande força social e política para derrotá-la de vez e enviá-la para o esgoto da história, de onde esses vermes jamais poderiam ter saído.

De tudo o que se desenvolveu aqui, o fundamental é compreender que a oportunidade que temos, hoje, de retomarmos com força o movimento estudantil, inspirando os funcionários e professores a saírem, também, à luta em defesa da educação pública e contra a privatização da universidade, é imperdível. Não podemos, de forma alguma, desperdiçar a chance de desferir um golpe certeiro contra a reitoria, impondo que cessem os ataques e o avanço das ideias neoliberais na universidade.

Com a devida organização e disposição de luta, nós podemos impor a construção da universidade que defendemos, uma universidade para a maioria trabalhadora, que produza conhecimento a seu serviço e que se abra à população que a sustenta. Eis a única posição realista e consequente diante dos ataques: exigir que tudo se transforme radical e plenamente, construir uma nova universidade possível e revolucionar esse sistema que, se não for destruído, acabará levando o planeta à total destruição.

DA UNIVERSIDADE AO MUNDO NOVO: TOMEMOS O CÉU DE ASSALTO!

A reflexão que trazemos aqui não diz respeito apenas à luta de 2023 da USP, mas a uma concepção de movimento estudantil que não se encerra na universidade ou na luta pela educação pública. Defendemos outra educação porque defendemos, também, outro mundo, construído sobre outras bases, um mundo em que todos trabalhem de acordo com suas possibilidades e que o produto desse trabalho seja repartido entre todos de acordo com suas necessidades.

Nossa elaboração se insere em uma longa tradição de luta revolucionária, que se inspira na força das e dos trabalhadores russos que fizeram, em 1917, a maior revolução proletária da História. Ecoamos as vozes revolucionárias de León Trotsky, Vladimir Lenin, Rosa Luxemburgo, Antonio Gramsci. Ecoamos o coro dos anônimos que construíram da Tebas de Sete Portas às grandes obras de arte da humanidade.

Nos inspiramos nas experiências do Maio de 1968 francês, em que trabalhadores e estudantes construíram uma forte aliança criativa que provava que a beleza estava, mesmo, pelas ruas ocupadas de sonhos e de garra. Aprendemos com os fortes combatentes brasileiros que se enfrentaram, de diversos modos, com a Ditadura Militar: somos a continuidade daqueles que transformaram em luta o luto por Edson Luís, Alexandre Vanucchi Leme, Isis Dias de Oliveira, Vladimir Herzog, Honestino Monteiro Guimarães e tantos outros que, desaparecidos e assassinados pela Ditadura, não nos deixam outra opção que não honrar seu legado lutando contra a barbárie capitalista.

Somos a continuidade dos que lutam contra o patriarcado, o genocídio e o colonialismo incrustado neste projeto de extermínio chamado Brasil. Somos a caixa de ressonância que mantém viva a memória dos mortos pela nossa pseudo democracia: por Amarildo, Ágata, DG, por cada criança assassinada pela guerra às drogas, por cada vítima de feminicídio, pelos 8 da Candelária, pelos 9 de Paraisópolis, pelos 111 do Carandiru, pelos 540 dos Crimes de Maio, por Mestre Môa do Katendê, por Bruno Pereira e Dom Phillips, por Marielle Franco – quem mandou matá-la?

Por tanto, por tantos, pelas centenas de milhares cujas vidas foram ceifadas pelo governo genocida de Jair Bolsonaro e que precisam ser vingadas, pelos milhões de trabalhadores refugiados pelas guerras imperialistas e pela catástrofe climática capitalista em todo o mundo, não podemos nos dar ao luxo de pensarmos apenas em nossas demandas corporativas, restritas às nossas salas de aula.

Não, nossos sonhos não cabem nos muros da universidade burguesa. Por isso precisamos nos organizar para fazer mais, para revolucionar o mundo e colocar um fim à barbárie capitalista. Para nós, do Já Basta! e da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie, não há tempo a perder: é preciso derrotar esse sistema antes que ele acabe com o planeta.

Lutemos na USP, nas escolas, nos bairros, nos bolsões onde se reúnem os entregadores de aplicativo, nas fábricas, no metrô, no campo. Lutemos por mais! Lutemos por tudo! Construir o movimento estudantil, apenas, não basta: para tomar o céu de assalto, precisamos construir fortes organizações socialistas, proletárias, com a juventude, as mulheres, negros, indígenas, LGBT+ à frente!

Um mundo novo e possível: eis o que nos move. Porque a vida, já nos dizia Trotsky, “é bela. Que as futuras gerações a livrem de todo mal e opressão, e possam desfrutá-la em toda sua plenitude.”