Por Maria Cordeiro e Karen Rezende

A economia brasileira é considerada uma das maiores do mundo, sendo a maior da América Latina, no entanto, o Brasil também é um dos países com mais graves índices de desigualdade. Isso se reflete em diversas instâncias, inclusive no sistema educacional do país, que desde as bases até o ensino superior, sempre se colocou de forma sucateada, desigual e elitista.

Enquanto crianças e adolescentes de famílias ricas têm a oportunidade de acesso aos melhores colégios particulares, a maioria esmagadora dos jovens brasileiros dependem exclusivamente do sistema público de ensino[1], que sofre constantemente com a falta de verba, o que afeta desde a contratação de professores até a falta de materiais básicos para que se possa ter um ensino de qualidade.

Além da disparidade de classe, a cor também segue sendo, de maneira histórica, utilizada como um instrumento de segregação. Com um passado escravocrata que deixou raízes profundas em nossa sociedade, o Brasil é, todavia hoje, um país extremamente racista, ainda que a maioria da população seja preta ou parda. Isso se reflete também no ensino superior.

Mesmo com a implementação da política de cotas nos últimos anos – que só foi conquistada após um longo processo de luta independente do movimento estudantil e do movimento negro – o acesso ao ensino superior público no Brasil está longe de ser igual. Alunos que aspiram uma vaga em universidades públicas se chocam com o filtro social e racial que representa o sistema de vestibular, tanto o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que garante a participação em processos seletivos como o Sistema de Seleção Unificado (SiSU), quanto provas como a Fuvest, Comvest e a Vunesp, no estado de São Paulo, além de vários outros vestibulares específicos das universidades do país, que pela sua formulação padronizada, barram estudantes trabalhadores, pretos, pardos, indígenas e de baixa renda que vêm de um ensino precarizado de acessarem o ensino superior.

A precariedade do ensino público brasileiro

É no ensino fundamental e médio que a maioria dos estudantes irão formar sua base de conhecimento e técnica para poder ingressar no ensino superior. No entanto, a educação básica no Brasil apresenta enormes desigualdades sociais e regionais: alunos que estudaram sua vida inteira em escolas privadas adquirem conhecimento com os melhores professores, preparação específica e individualizada para a entrada em vestibulares desde cedo, estruturas escolares aptas para um estudo focado, apoio acadêmico e cultural  para enriquecimento pessoal.

Por outro lado, a maioria das escolas públicas no Brasil não recebem investimento suficiente, falta livros e materiais didáticos para o estudo, há desvalorização e falta de professores e outros servidores da área de educação e, por fim, problemas graves estruturais das escolas tais quais salas superlotadas e problemas com encanamento e a falta de energia. Como um exemplo dessa falta de estrutura, nos Estados dentro da Amazônia Legal (Estados da região Norte mais Mato Grosso e Maranhão), cerca de 820 mil alunos das redes de educação pública nesta região estudam em escolas sem energia elétrica[2]. Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua) a taxa de analfabetismo no país em 2019 correspondia a 6,6%, ou seja, ao menos 11 milhões de brasileiros maiores de 15 anos nem sequer tiveram acesso à educação formal[3].

Essa desigualdade gritante, como dito anteriormente, filtra a grande parte da juventude trabalhadora e não-branca – como pessoas pretas, pardas e indígenas – de entrar em universidades. De acordo com dados do IBGE em 2018, 79% dos alunos que estudaram em rede privada ingressaram em uma faculdade, essa porcentagem se reduz à mais da metade quando se trata de estudantes que fizeram ensino médio em escolas públicas, apenas 36%[4]. Nesse sentido, dados de 2017 feitos pela ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior) revelam que 51% de estudantes brancos que concluíram o ensino médio entraram no ensino superior contra apenas 33,4% de estudantes negros. Quando se trata de estudantes indígenas esses números são ainda mais alarmantes, uma vez que segundo dados do Censo da Educação Superior do Ministério da Educação, em 2018, estudantes indígenas correspondiam a apenas 0,7% das matrículas realizadas – em comparação com 41,7% de estudantes autodeclarados brancos[5].

Como agravante, a pandemia de Covid-19, no período de 2020 a 2021 teve consequências devastadoras no nível de aprendizagem dos jovens brasileiros, com altos níveis de evasão escolar e diminuição do rendimento e engajamento nas aulas, que afetou, principalmente, estudantes de escolas públicas, em que grande parte dos jovens não possuíam equipamento para assistir às aulas remotas, além de muitos destes também precisarem de maneira imediata passar a contribuir na renda familiar para garantir a sua subsistência.

O gráfico abaixo, do Conselho Nacional da Juventude, mostra a diferença de adesão entre os estudantes para com o Enem. Observa-se que de 2020 para 2021 – após um ano de pandemia – a porcentagem de jovens que pretendiam realizar o exame diminuiu em 5%, além da preocupação com o desempenho ter aumentado em 18%:

Ainda, a implementação recente na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), documento que determina todo o currículo da educação básica, de caráter utilitarista e autodidata, facilita o desmonte das escolas e a implantação do ensino à distância. Em uma perspectiva mais ampla, reduz o processo de formação do jovem a um currículo mínimo prestado pelo Estado, alinhado às políticas educacionais neoliberais.

O acesso ao ensino superior

As universidades brasileiras foram criadas para servir a uma elite branca e intelectual e durante muito tempo esse cenário se manteve. Após um longo período de luta do movimento negro e estudantil, essas instituições de ensino passaram a implementar a Lei de Cotas, que foi sancionada em 2012 e passou a valer em 2013, sendo a Universidade de São Paulo (USP) – considerada a melhor do Brasil e também a mais elitista – a última a aderir esse sistema, apenas no ano de 2017 após ampla e radicalizada mobilização estudantil.

Nesse cenário, estudantes pretos, pardos, indígenas e de baixa renda passaram a ter acesso a universidade pública, marcando uma nova etapa do ensino superior brasileiro. Segundo dados do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Educação Superior (Lepes), da UFRJ e da Ação Educativa, em 2011, antes da implementação da política de cotas, a frequência à graduação entre pretos e pardos ficava próxima aos 10%, enquanto os brancos correspondiam à um pouco mais de 25% da população jovem (entre 18 e 24 anos), em 2019 esses dados sofrem uma mudança e cerca de 15% dos jovens pretos e pardos nessa faixa etária acessam o ensino superior, enquanto o percentual de brancos também sofreu um aumento, ultrapassando os 30%[6]:

Este quadro mostra uma mudança importante no perfil dos estudantes que conseguem ingressar na faculdade, mas ainda é importante ressaltar novamente o caráter de classe da educação pública brasileira. Ou seja, a política de cotas significa um marcante passo para garantir o ingresso de estudantes dos mais baixos substratos sociais nas universidades públicas, mas ainda se faz insuficiente para uma verdadeira democratização do acesso ao ensino superior, exigindo a sua ampliação vinculada ao debate pelo fim do vestibular – o qual abordaremos abaixo.

A importância das políticas de permanência

Uma vez que estudantes pretos, pardos, indígenas e de baixa renda conseguem quebrar a barreira do vestibular e ingressar nas instituições públicas de ensino superior, se tornam necessárias medidas para garantir que esses jovens possam permanecer dentro da universidade.

Quando consideramos as desigualdades estruturais do sistema capitalista, alunos que pertencem a grupos marginalizados pela sociedade têm muito mais dificuldade de se dedicar aos estudos, por uma série de fatores, como a tarefa de conciliar os estudos com o trabalho (cada vez mais precarizado) – que jovens de classe média alta na maioria das vezes não precisam exercer -, ou a dificuldade de acesso aos espaços da universidade pela distância e a precariedade dos transportes públicos, os gastos com alimentação etc., tudo isso se coloca como grandes dificuldades para se dedicar ao aprendizado.

Dessa forma, as políticas de permanência se tornam necessárias para diminuir a disparidade existente dentro das instituições de ensino, como o auxílio financeiro, transporte, alimentação, ajuda de custo com os materiais exigidos pelo curso, disponibilização de moradias estudantis ou um auxílio moradia, etc. Hoje, as universidades públicas já contam com esse tipo de apoio, mas não antes de muita mobilização estudantil para que esses direitos fossem garantidos. No entanto, esses auxílios ainda se colocam de forma extremamente insuficiente e são constantemente atacados.

A exemplo, a USP. Esse ano o auxílio moradia, que era de R$500,00 reais, se unificou com outros auxílios disponibilizados em um só auxílio permanência de R$800,00. No entanto, apesar do aumento, considerando o câmpus da Cidade Universitária, na capital paulista, os custos com aluguel de qualquer local para moradia extrapolam esse valor, isso desconsiderando todos os outros gastos que se colocam. Além disso, a moradia estudantil da dita melhor universidade do país, o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP), é completamente sucateada e sofre ataques constantes, para além da falta de vagas, a estrutura é precária, os estudantes sofrem com a falta de água, cozinhas e lavanderias que não funcionam há anos e diversas outras questões que estão postas e afetam a graduação desses moradores, que correspondem aos estudantes pobres e pretos desta universidade. Como exemplo, os recentes ataques da reitoria e Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP) à livre organização da Associação de Moradores do CRUSP (AMORCRUSP), com a perseguição de alunos moradores.

No cenário nacional, considerando as universidades federais, os auxílios também se mostram ineficientes, colocando em risco o estudo das pessoas que dependem desse tipo de auxílio. Por isso, a luta pela permanência, combinada à luta por uma educação verdadeiramente pública, laica e de qualidade, faz-se central  para a discussão e elaboração pelos estudantes e suas organizações de um programa radical e independente.

A luta pelo fim do vestibular

Como já mencionado anteriormente, o processo de vestibular age como uma barreira discriminatória, que consolida e aprofunda essas desigualdades, ressaltando o papel elitista da educação superior pública, que busca salvaguardar interesses do capital e de iniciativas privatistas cada vez mais integradas nas universidades públicas do país.

Para alcançar uma educação superior verdadeiramente pública, laica, de qualidade e à serviço da classe trabalhadora, é importante ressaltar a necessidade de se combinar a luta e a organização do movimento estudantil, sob um programa anticapitalista, com as demais lutas dos explorados e oprimidos. Assim vinculando as pautas mais imediatas, como a ampliação das cotas étnico-racias, rumo ao fim do vestibular, com o horizonte estratégico da luta por uma outra sociedade que unifique a juventude e a classe trabalhadora numa mesma luta.

A partir disso, é preciso questionar a naturalização do processo seletivo para a entrada no ensino superior. Torna-se necessária, então, a luta da juventude pelo fim do funil social e racial que é o processo seletivo do vestibular. Ou seja, o ingresso na universidade pública que não passe por provas discriminatórias, massantes e elitistas, mas sim por um ingresso irrestrito, isto é, verdadeiramente democrático. É interessante analisar o caso do ingresso no ensino superior na Argentina, país onde não há vestibular e o número de ingressantes ao ensino superior público – no que pese ainda certas debilidades – é escandalosamente maior em um país onde sua população é aproximadamente um quarto da brasileira. Como exemplo, a principal universidade da cidade de São Paulo, USP, conta com apenas 97 mil[7] alunos matriculados – dados de 2020 – ao passo que na UBA, principal universidade de Buenos Aires, segundo últimos dados colhidos pela própria universidade, o número de matriculados é mais de 3 vezes maior – 308.784 alunos.

Na Argentina cada instituição de ensino superior (faculdades) no país tem seu método de ingresso próprio, onde, antes do aluno cursar sua faculdade é feito um período de curso preparatório por área de interesse, em que o aluno passa por um Ciclo Básico Comum (CBC) antes de entrar no curso específico desejado. Porém, ainda que o ensino superior público na Argentina seja mais progressivo em relação ao Brasil no que se refere ao ingresso, ainda há filtros sociais nas universidades como o oferecimento de cursos apenas no período diurno, que dificulta o estudo de estudante trabalhadores, burocracia e pouca disponibilidade de bolsas de auxílio social, assim explicitando que a educação superior do país não é retrato daquilo que queremos. Além disso, o próprio CBC, muito mais progressivo que qualquer tipo de vestibular, também se coloca como uma barreira, uma vez que, com suas particularidades, também padroniza os ingressantes, desconsiderando a trajetória do ensino básico desses estudantes que também é desigual.

Tendo esse exemplo em mente, quando o movimento estudantil coloca a  discussão sobre o fim do vestibular, é muito comum haver estudantes que nunca haviam ouvido falar sobre a possibilidade de não ter uma prova como o vestibular, ou que direções achem isso algo irrealizável (desconsideram, por sua natureza política, toda a capacidade de mobilização que as novas gerações têm mostrado na luta contra o bolsonarismo e aos ataques à educação pública), no entanto, a experiência da Argentina coloca, com todos seus limites, à prova que é possível e para além disso, uma necessidade de se lutar contra a opressão que os processos seletivos para ingresso em universidades públicas produzem.

 A importância da luta do movimento estudantil e da juventude

 Portanto, é necessário que a juventude entenda a importância da luta em relação ao acesso à universidade e que haja uma mobilização constante para que todos consigam acessar esses espaços sem que tenham que passar por um filtro social que exclui a juventude trabalhadora e faz com que os estudantes se desgastem a níveis extremos.

Nesse sentido, a luta por uma educação verdadeiramente pública, laica e de qualidade para todos deve começar desde as bases. É de extrema importância que o movimento estudantil e suas organizações da esquerda socialista, em unidade com os secundaristas, mobilizem nas bases a luta por um outro projeto de ensino, a começar pela exigência ao atual governo burguês e de conciliação de classes, de Luís Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, para que revoguem o Novo Ensino Médio, que tem como caráter principal tornar a educação adequada aos moldes do capital e do mercado, sem se preocupar com realmente com a aprendizagem dos conteúdos básicos e críticos do processo educacional, tratando os estudantes apenas como mera força de trabalho. Além da revisão do Programa de Ensino Integral (PEI) que não considera a realidade dos estudantes e termina por fomentar uma política de exclusão. Importante também, a exigência para que taxem o grande capital para investir na educação pública, tarefa fundamental também, para a luta contra os oligopólios da educação privada no brasil que avançaram substancialmente nos últimos anos do governo de Jair Bolsonaro. Sendo, tudo isso, combinado à ampliação da política de cotas e a luta pelo fim do vestibular.

Por fim, é uma tarefa do nosso tempo lutar pelo ingresso e pela permanência de estudantes que sempre foram excluídos por esse sistema nas universidades, tarefa central para o auto-reconhecimento e organização desse corpo social historicamente marginalizado na luta anticapitalista. As políticas de cotas e de permanência só foram conquistadas através de uma ampla mobilização independente da juventude e, enquanto houver desigualdades, a luta por uma educação pública, laica e de qualidade – desde as bases até o ensino superior – deve ser permanente e em ampla unidade na ação.

[1]  Segundo dados do Censo Escolar do MEC, realizado em 2019, cerca de 85% dos estudantes de ensino básico no Brasil estudam em Escola Pública, comparado a apenas 14,6% em escolas particulares. Disponível em:http://portal.mec.gov.br/component/tags/tag/censo-escolar.

[2] BRASIL, Luana Melody. Escolas sem energia elétrica ainda são obstáculo para inclusão digital no Brasil. O tempo. 2022. Disponível em <https://www.otempo.com.br/politica/governo/escolas-sem-energia-eletrica-ainda-sao-obstaculo-para-inclusao-digital-no-brasil-1.2659327>. Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

[3] ANDRADE, Cibele Yahn de. Acesso ao ensino superior no Brasil: equidade e desigualdade social. Revista Ensino Superior Unicamp.  2012. Disponível em: < https://www.revistaensinosuperior.gr.unicamp.br/artigos/acesso-ao-ensino-superior-no-brasil-equidade-e-desigualdade-social>. Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

[4] Acesso à universidade é menor para alunos da rede pública. ExtraClasse. 2018. Disponível em: <https://www.extraclasse.org.br/educacao/2018/12/acesso-a-universidade-e-menor-para-alunos-da-rede-publica>. Acesso em 10 de fevereiro de 2023.

[5] Brasil. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP. (2018) Censo da Educação Básica, 2018. Resumo técnico. Brasil, Brasília

[6] AVALIAÇÃO DAS POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRMATIVA NO ENSINO SUPERIOR NO BRASIL: RESULTADOS E DESAFIOS FUTUROS. Pesquisa Lei de Cotas. 2022. Disponível em: <https://pesquisaleidecotas.org.br/wp-content/uploads/2022/07/resumoexecutivo_OK.pdf>.  Acesso em 13 de fevereiro de 2023.

[7] Dados do Censo da AUCANI, Agência USP de Cooperação Acadêmica Nacional e Internacional, referentes ao ano de 2019. Disponível em <https://internationaloffice.usp.br/index.php/usp-em-numeros>