Em tempos de crises, guerras, barbáries e – eventualmente – revoluções, implicando o acirramento da luta de classes, onde os derrotistas que somente enxergam e unilateralmente exageram os traços reacionários, é importante observar que “toda ação tem uma reação. As sociedades são “corpos vivos”; são seres humanos, em sua grande maioria explorados e oprimidos, que têm expectativa de vida e são capazes de construir uma concepção de mundo.” (Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie em https://esquerdaweb.com/declaracao-da-corrente-internacional-socialismo-ou-barbarie-para-o-1o-de-maio ). O texto abaixo, publicado pelos camaradas do NPS da Costa Rica (integrantes da corrente SoB), vem trazer o caráter de luta do Jazz, a música negra estadunidense que “gritava injustiças na sua cara” ou “retratava os corpos de pessoas negras assassinadas penduradas em árvores” e a capacidade de afrontar o establishment e as atrocidades do imperialismo dos EUA. Como resumo disso, com palavras que mais do que nunca devemos fazê-las nossas no dia a dia militante de hoje, segue abaixo magnífico trecho de Trotsky, em sua Carta à conferência de fundação da Quarta Internacional de 01/07/1938: “Sempre me forcei a descrever os sofrimentos, esperanças e lutas da classe trabalhadora pois é como eu encaro a vida, e, portanto, a arte, que é uma parte inseparável dela. A atual crise capitalista não resolvida carrega consigo uma crise de toda a cultura humana, incluindo a da arte. De certo modo a situação mundial impele artistas talentosos e sensíveis à estrada da criatividade revolucionária. Mas essa estrada, infelizmente, está obstruída com os cadáveres podres do reformismo e do Stalinismo. Se a vanguarda do proletariado mundial encontrar sua liderança, a arte de vanguarda encontrará novas perspectivas e uma nova esperança.”

Da redação

À esquerda do jazz

O jazz nasceu rebelde. Os escravos negros combinavam em sua música a dor, o protesto e a luta pelas condições humilhantes em que viviam. Virou uma música que gritava injustiças.

Por Alejandro Vainer

O jazz nasceu rebelde. Aqueles escravos negros libertos tomaram as ferramentas deixadas nos campos de batalha da Guerra Civil Americana. Aí combinaram na sua música a dor, o protesto e a luta contra as condições humilhantes em que viviam. O jazz e seu irmão, o blues, combinaram raízes africanas com o que surgiu ali. Tornou-se uma música que gritava injustiças na sua cara, enquanto Billie Holiday cantava a sombria “Strange Fruit“, onde retratava os corpos de pessoas negras assassinadas penduradas em árvores.

Mas sua massividade, fruto da originalidade e da possibilidade de reprodução, levou o jazz a ser apropriado pelo poder. Em poucos anos do século passado, o jazz tornou-se “música americana”. Na época da chamada Guerra Fria, o governo dos EUA financiou turnês de músicos de jazz, equiparando a liberdade de improvisação à liberdade supostamente defendida por sua democracia capitalista em oposição ao comunismo. Assim, levou músicos como Dizzy Gillespie e Dave Brubeck em turnê para alguns países, incluindo a Argentina. Muitos deles desconheciam a operação e simplesmente, como qualquer músico, aceitaram o trabalho.

Tentou-se cortar suas raízes de dor e protesto para transformá-lo em outro gênero. Muitos se opuseram a ela, tanto do lado dos críticos (como Leroy Jones), quanto dos próprios músicos, que continuaram a considerá-la uma forma de luta contra as injustiças.

Como esperado, o compromisso político nunca passou incólume. No final dos anos 50, ocorreu a revolução do “free jazz”, onde tentou libertar o jazz de suas amarras em todos os níveis, sua burocratização nas improvisações, sua complacência no plano musical, social e político. Seu fundador foi Ornette Coleman. Mas em seu grupo havia um contrabaixista branco que se destacava não só por sua cor. Seu nome era Charlie Haden.

Charlie Haden nasceu em 6 de agosto de 1937 em Shenandoah, Iowa, EUA. Ele cresceu em uma família onde desde cedo eles tocavam música country e folk americano. Quando criança, ele cantava, mas depois de ter poliomielite em suas cordas vocais, ele teve que mudar de instrumento. Pegou o contrabaixo de seu irmão mais velho e se interessou por jazz. Então se mudou para Los Angeles e começou a colaborar com o saxofonista Art Pepper.

Mas seu nome começa a ficar conhecido por ser o contrabaixista do grupo de Ornette Coleman, criador do free jazz. Gravou os primeiros álbuns famosos: “The Shape of Jazz to Come” e “Change of the Century”. Em 1960 fez parte dessa experimentação que foi o álbum “Free Jazz”, onde Coleman reuniu dois quartetos para quase 40 minutos de improvisação selvagem.

Demorou alguns anos para estrear como artista solo, o que é um marco na história do jazz. Porque se tornou um símbolo de luta. O álbum chama-se “Liberation Music Orchestra”. Foi gravado em uma data-chave de lutas: um ano depois do Maio francês e poucos meses antes do argentino “Cordobazo”: entre 27 e 29 de abril de 1969, e foi lançado em janeiro de 1970 pelo selo Impulse.

Embora o álbum tenha sido uma declaração de princípios diante da Guerra do Vietnã, o núcleo do álbum é formado pelo resgate das canções da Guerra Civil Espanhola, uma homenagem a Che Guevara e encerra com o hino de luta “We shall overcome.

Haden explicou sua motivação: “Por muito tempo eu estava realmente preocupado com o que estávamos fazendo no Vietnã. Este primeiro registro foi concebido quando Nixon estava bombardeando o Camboja. Liguei para a Carla Bley e falei: ‘Quero fazer um álbum de músicas políticas’.” Bley viveu com o trompetista Michael Mantler, que também tocou no álbum. Eles se conheciam desde os 16 anos e compartilhavam os mesmos gostos musicais como Erik Satie e Dmitri Shostakovich. Haden conhecia seu talento como arranjadora e tinha muitas músicas da Guerra Civil Espanhola e alguns originais. Passou-as e foi ver a pessoa que dirigia a gravadora Impulse, que a princípio chamou o projeto de “estupendo”.

Bley começou a trabalhar em canções como “The Fifth Regiment”, “he Four Generals”, “The Song for Che”, e outras para as transformar em partituras para serem tocadas por 10 ou 12 músicos. Carla Bley disse: “Eu queria fazer parte de tudo o que era importante, emocionante e diferente. Mas nenhum dos caras da banda compartilhava as opiniões políticas de Charlie. Para eles era apenas um trabalho.” Eles eram Dewey Redman, Barbieri the Cat nos saxofones, o trombonista Roswell Rudd, o clarinetista Perry Robinson, o baterista Paul Motian, Sam Brown na guitarra, Don Cherry e Mike Mantler no trompete, Bob Northern na trompa e Howard Johnson na tuba. A própria Carla Bley no piano e Haden, claro, no contrabaixo.

Para a capa, eles improvisaram uma sessão de fotos. Com um pano vermelho, colaram letras de feltro preto que a própria Bley cortou e lá fizeram a capa. Um grupo de músicos protestando.

Os três dias de sessões de gravação contaram com a presença de todos, desde o arranjador Gil Evans até sobreviventes dos voluntários que lutaram na Guerra Civil Espanhola, da Brigada Lincoln. Esta brigada tinha enviado 3.000 voluntários, metade dos quais regressou porque tinham problemas em estar na lista negra dos EUA. Bley lembrou: “Havia pelo menos seis deles com suas esposas, sentados com rostos que refletiam sua perplexidade, perguntando-se que tipo de música era essa“.

Também podemos nos perguntar por que as conhecidas melodias são filtradas por arranjos e improvisações próximas ao free jazz e, ao mesmo tempo, com fragmentos de gravações antigas. O álbum não é bonito, nem é “felpudo”. É um álbum que realça a musicalidade das lutas, colocando-as numa chave de jazz.

Após o término da gravação, os donos da gravadora não quiseram lançar o álbum. Colocaram-no à venda, mas não o promoveram. Também se tornou um clássico contracultural, um objeto de culto.

Carla Bley continuou sua carreira, assim como Haden, mas quando a política os chamou, eles publicaram outro volume da “Liberation Music Orchestra” para reviver o som e sua ideologia, durante os governos republicanos.

Em 1982, sob o presidente Ronald Reagan, enquanto invadia El Salvador, eles gravaram “The Ballad of Fallen”.

Em 1990, com Bush pai, “Dream Keeper”.

Em 2005, “Not in our Name”, em rejeição à extensa invasão americana do Iraque. Para este álbum, Bley e Haden repetiram a antiga capa com os novos membros da orquestra.

Haden fez álbuns maravilhosos de todos os tipos nesses mais de 50 anos de carreira. Colaborou com Keith Jarrett, Egberto Gismonti, Pat Metheny, Gonzalo Rubalcaba, Brad Mehldau, Hank Jones e muitos outros. Ele também formou seu próprio quarteto: o Charlie Haden Quartet West.

Em 1989 prestaram-lhe homenagem em Montreal, das quais há gravações que mostram as diferentes facetas deste músico. Sobre sua vida produziu-se o filme “Rambling boy” (2009).

Seu primeiro álbum solo recupera a música das lutas, música tão necessária para colocar paixão, música e corpo em todas as lutas. Sem eles, são apenas discursos vazios. Sua faceta de lutador foi silenciada (NT: Haden faleceu em 11 de julho de 2014).

A sua música, assim como nossas lutas, continua.

Traduzido por José Roberto Silva do original espanhol em https://izquierdaweb.cr/arte-y-cultura/a-la-izquierda-del-jazz/ transcrito do publicado em https://www.topia.com.