A luta estudantil para além das eleições

MARIA CORDEIRO

A importância do DCE e a cidade de São Paulo

O Diretório  Central dos Estudantes, o DCE, é o órgão máximo de representação do corpo discente de uma universidade. Ele trabalha em conjunto com outras entidades de base como centros acadêmicos, grupos de trabalho, e forma/organiza um conselho dessas entidades estudantis. Assim, por meio de reuniões e assembleias junto dessas entidades e dos estudantes em geral,  o DCE  atua em questões  internas da universidade (lutas por melhorias na qualidade de ensino, nas condições de permanência, na democracia interna da Universidade e na articulação do Movimento Estudantil), como também, tem a responsabilidade de levar adiante o movimento estudantil para fora dos muros das faculdades, atuando na na sociedade em geral: em manifestações, campanhas, mobilizações etc. ⑴.

 O DCE da Universidade de São Paulo, denominado Diretório Central dos Estudantes Alexandre Vannucchi Leme, também conhecido como DCE Livre da USP,  representa todos os campi da referida universidade (capital e interior). Sua diretoria é eleita anualmente pelo sufrágio direto facultado a todos os alunos da USP.  Esse órgão é o maior e mais importante diretório central da América Latina, já que a USP, principalmente nos campi da cidade de São Paulo, está localizada em uma cidade global, a quarta cidade mais populosa do mundo ⑵, e onde se concentra 10% de todo o PIB brasileiro. A USP está no centro econômico do Brasil ⑶. 

Concomitantemente, essa cidade concentra em si uma extrema desigualdade social:  há distritos em que a expectativa de vida ao nascer é mais de oitenta anos, em em outros em é menos de 60. Segundo o mapa de desigualdade feito em 2021 pela Rede Nossa São Paulo, há faltas alarmantes de serviços públicos, oferta de emprego, falhas na saúde, na habitação, na educação, no transporte, cultura ⑷. Essas contradições se combinam dialeticamente criando um terreno de imensas possibilidades para a luta de classes, e organização dos trabalhadores. Um exemplo prático disso é o peso político que apresentam as manifestações que ocorrem historicamente na capital paulista. 

Essa desigualdade também tem seu reflexo na universidade, que funciona como uma miniatura dessas relações urbanas previamente estabelecidas, a USP tem um investimento bilionário que não é distribuído igualmente: a universidade tem uma orientação extremamente elitista: negligencia os alunos, principalmente os de baixa renda, a direção falta com necessidades básicas de permanência – como os problemas estruturais da moradia estudantil, o CRUSP, o pagamento de bolsas e auxílios baixíssimos que não garantem a subsistência dos alunos, filas longas nos ônibus circulares e restaurantes universitários, etc ⑸.

 Hoje, no cenário atual de uma profunda crise capitalista, em uma situação nacional abertamente reacionária, sob um impetuoso pauperismo, com uma escalada das ameaças golpistas do governo genocida de Bolsonaro, é candente a necessidade de um DCE Livre da USP combativo, que tem uma tradição histórica de direção de luta na esquerda brasileira e responsabilidade na organização da juventude estudantil – um dos setores mais dinâmicos da luta de classes a nível internacional com muita reserva de disposição para o enfrentamento político. 

Como método para a análise da realidade e elaboração da prática, nós, marxistas, devemos sempre voltar aos textos teóricos e balanços históricos para melhor entendermos os processos da nossa realidade. Porém sem nunca fazê-lo de forma mecânica. Por isso, para entender mais sobre o caráter político do DCE, faz se pertinente a intervenção de Lênin publicado em separata em 1921: Sobre os Sindicatos, o Momento Atual e os Erros de Trotsky ⑹ (Trotsky posteriormente reconheceu seu equivocado posicionamento). Aqui podemos encarar o Diretório Central dos Estudantes de uma forma análoga ao sindicato: uma organização (muitas vezes burocrática) que aglutina várias organizações, e pessoas que apesar de terem contradições atuam com um objetivo comum: organizar a luta pelas pautas estudantis. Os sindicatos, segundo Lênin, são uma organização fundamentalmente educadora – uma escola de governo, administração, de formação de quadros e, finalmente, uma escola de comunismo. Nessas organizações, que não há professores nem alunos previamente estabelecidos, é que se destaca a vanguarda revolucionária. Por isso, mais adiante no texto, quando o teórico bolchevique lê as Teses do informe do camarada Rudzutak, rechaça os métodos burocráticos e as ordens impostas por cima das direções sindicais. Tal posição – as escolas dirigidas pela burocracia – tem como produto resultado contrário àquilo que se busca: a politização, organização e mobilização do movimento como meio para alcançar as demandas mais imediatas e históricas portanto, trata-se de uma política irresponsável com a luta de classes, um freio à ofensiva dos explorados e oprimidos.  

As eleições

Após 5 anos de gestão da chapa Nossa Voz [coalizão do lulismo: Disparada (PT), UJS (PCdoB) e Levante Popular da Juventude (Consulta Popular)] , – direção  essa extremamente burocrática, que ao longo do último período se mostrou incapaz em organizar e mobilizar o corpo estudantil sob uma orientação cupulista de aproximação política com a Reitoria, sem um permanente diálogo com os centros acadêmicos (não houve um assembleia geral dos estudantes sequer durante a pandemia e após o anúncio do retorno presencial tardaram 8 meses em convocá-la). Ou seja, uma gestão estéril às necessidades da juventude universitária, principalmente a trabalhadora – reflexo político da direção da UNE da qual são parte majoritária e do lulismo a nível nacional.

Diante desse quadro, na última semana (dias 6, 7 e 9 de junho), iniciou-se um processo de eleição do DCE da USP. Foram inscritas um total de nove chapas, número maior do que o esperado.

Um primeiro elemento que pode-se destacar, a partir da quantidade de chapas inscritas e diante de uma conjuntura histórica e lastreada por uma gigantesca pressão política, é o da dificuldade de inflexão entre as organizações da esquerda socialista – cartografia que reafirma um processo de reorganização desse campo para o próximo período. Contudo, a questão central, que permeou todo o processo eleitoral, foi a preocupante despolitização com a qual se realizou as eleições para o maior diretório central dos estudantes da América Latina – uma sobreposição do aparato sobre a discussão política que trataremos de analisar. 

Em primeiro lugar, o calendário sugerido para o processo eleitoral sofreu um irresponsável e sintomático atropelo: tratou-se de um tempo político incapaz de combinar as imprescindíveis e preparatórias discussões nas bases dos cursos que pudessem aprofundar a discussão programática com uma campanha que tivesse tempo e espaço para o debate crítico. As eleições devem ser um processo de síntese política ao movimento estudantil, entretanto, o que se viu foi justamente o contrário. Como produto dessa desorganização eleitoral, a campanha foi marcada pela falta de debates ou debates esvaziados,  ou até sem a presença de alunos independentes, discussões nada concretas, auto proclamação, oportunismo, aparelhamento de CAs pela chapa vitoriosa e o destaque para o aparato a serviço de chapas com parlamentares que tornou este processo uma disputa desigual.

Durante e ao final do processo, foi visível o cansaço dos estudantes: saturados dos assédios panfletários, muitos não sabiam que se tratava das eleições para o DCE, percebeu-se que a base dos estudantes não era parte orgânica deste processo. Tratou-se de uma “apresentação” irresponsável do movimento estudantil que repeliu setores importantes da base discente dos recém ingressados que para nada contribui com a batalha pela retomada da luta em um ano tão decisivo e diante da grave situação da permanência dos jovens trabalhadores na universidade. 

O alijamento do movimento estudantil das lutas de rua é alarmante e produto direto de uma política de conciliação de classes que aposta todas as suas fichas nas eleições de outubro – eleições ameaçadas com os ataques de Bolsonaro e que devem estar sob tutela da mobilização de massas. A mobilização estudantil é na história a franja social da vanguarda das lutas políticas e sociais que, diante do sucateamento das universidades públicas, atraso no pagamento de auxílios, ameaças de privatização, em um ano tão importante como 2022, deve ser convencida permanentemente da importância de se colocar outra vez como guarda avançada para modificar a correlação de forças, derrotar Bolsonaro e defender a educação pública de qualidade. 

Ficou evidente que a linha política da maioria das chapas refletiam a postura passiva e conciliadora de suas direções nacionais, que não contribuem uma vírgula sequer para as tarefas colocadas na ordem do dia: pouca discussão programática sobre as necessidades concretas dos estudantes, principalmente dos alunos negros, de baixa renda, como também, a repetição estéril de um discurso eleitoreiro para eleger Lula acriticamente sem nenhuma perspectiva de mobilização independente para, inclusive, garantir o direito popular do voto às massas (fator que será decisivo). Aqui destacamos que, com a liquidação política do PSOL e sua diluição na esquerda da ordem, a chapa USP Sem Medo, composta por setores da direção de nosso antigo partido (Resistência e Insurgência), evidenciou aquilo que dissemos que aconteceria diante de tal capitulação e traição: postaram-se como linha auxiliar do lulismo, da conciliação de classes, que estanca a disposição de luta juvenil para arrancar ao futuro as necessidades básicas e históricas para uma educação verdadeiramente universal. Tragicamente, fizeram da campanha para o DCE uma campanha antecipada para a eleição de Lula e Alckmin sem qualquer perspectiva na mobilização independente dos estudantes como garantia suprema das necessidades emergenciais sentidas pela juventude trabalhadora.

Sob o quadro de crise no lulismo (houve duas chapas inscritas do campo democrático-popular) e com o giro à direita das organizações do PSOL, nós, da juventude Já Basta!, entendendo a necessidade político-pedagógica de haver edificado um processo de debates programáticos que convergisse para a unidade da esquerda socialista e independente em uma única chapa, com setores mais à esquerda do PSOL e com as organizações que constroem o Polo Socialista Revolucionário, tivemos de encarar um revés tático sedimentado por uma tradição sectária que urge por superação. Definida as movimentações políticas das organizações, optamos por lançar a chapa “Retomada” para a eleição do DCE ⑺ com membros da juventude Já Basta!, Socialismo ou Barbárie e independentes, ainda com a perspectiva de que, em nome de uma unidade combativa da esquerda socialista, abdicaríamos da chapa para unificar forças. A Retomada, construída a partir de uma permanente crítica ao processo eleitoral que carregava pouca legitimidade política, tinha como cerne a necessidade de elevar o movimento estudantil uspiano para além dos interesses eleitoreiros e da retomada da luta nas ruas para derrotar o bolsonarismo e contrabalancear a correlação de forças políticas – tarefa que seguimos tendo como prioridade inegociável. Apresentamos, então, um programa centrado na defesa dos interesses da juventude trabalhadora, vinculado à necessidade estratégica da unidade estudantil-operária. Diante do desafio de efetivar uma  universidade verdadeiramente pública e de qualidade com o fim do vestibular e permanência estudantil para garantir à juventude trabalhadora, negra, indígena e periférica condições dignas para o estudo e o lazer, defendemos, e seguimos defendendo, que a melhor sustentação programática é a mobilização cada vez mais coletiva e permanente.

Retomada da luta estudantil

A pandemia combinada a um governo autoritário que impõe ataques aos explorados e oprimidos terminaram por desenhar uma situação reacionária, contudo, não há uma derrota histórica aos de baixo – muito menos às novas gerações. Ao mesmo tempo que o período de isolamento severo, somada a política burocrática das direções lulistas, contribuiu para um refluxo do movimento estudantil, setores da juventude demonstraram nos atos pelo Fora Bolsonaro a tremenda disposição de luta que persiste contra a violência política e social. A Marcha da Maconha e a Parada do Orgulho LGBTQIA+ são os mais recentes fatos que comprovam tal disposição e que devem servir como ponto de apoio para romper com a lógica passiva e eleitoreira de apostar todas as fichas apenas no deslocamento às urnas em outubro deste ano. Eis que as eleições do DCE terminam por não refletir uma orientação a serviço da mobilização – um processo atropelado que rifou a possibilidade de maior politização nas bases estudantis para a construção de um caminho comum orientado à luta nas ruas.  

Recai, portanto, sobre nós, estudantes e nova gestão do DCE, desafios de natureza histórica para enfrentar a grave reversão na condição de vida dos trabalhadores e trabalhadoras, bem como os sistemáticos ataques à educação e aos direitos democráticos. Devemos nos debruçar de maneira consequente sobre a mais importante conjuntura histórica desde a redemocratização do país e resgatar na história as ferramentas mais efetivas para romper com o imobilismo e alavancar de uma vez por todas um tsunami pelas ruas do país – processo que a juventude, sem sombra de dúvidas,  pode levar adiante e que se garantido terá condições concretas para varrer o bolsonarismo e demonstrar às novas gerações a imprescindível condição para a garantia de nossos direitos: a luta coletiva pelas ruas. 

Por isso, entendemos a importância de realizar uma atividade de balanço do processo eleitoral que possa apresentar uma análise coletiva a serviço de uma síntese propositiva para o próximo período. Queremos discutir com o conjunto dos alunos sobre a importância das eleições ao maior diretório central de estudantes da América Latina e o por quê hoje não estão a altura dos desafios a serem encarados. Mais do que isso, queremos contribuir para o próximo período na construção de um movimento estudantil que tome de maneira cada vez mais coletiva as tarefas necessárias para garantia e conquista dos interesses dos explorados e oprimidos. Apresentar que as eleições não são um fim em si, mas parte de um arsenal de ferramentas que devem servir de apoio à luta independente dos estudantes e que devemos vigiar permanentemente as direções das entidades de representação discente, bem como pressioná-las conforme nossas necessidades. Mais ainda, queremos enraizar a ideia de que devemos confiar única e exclusivamente em nossas próprias forças em unidade com funcionários e professores.

Sendo assim, convidamos a todos e todas a participarem de nossa roda de conversa nesta quinta-feira (23), às 18h, na sala de vídeo da geografia (FFLCH): Balanço eleitoral do DCE e a luta para além das eleições.

Referências

MENEZES, Ebenezer Takuno de. Verbete D.C.E. (Diretório Central dos Estudantes). Dicionário Interativo da Educação Brasileira – EducaBrasil. São Paulo: Midiamix Editora, 2001. Disponível em <https://www.educabrasil.com.br/dce-diretorio-central-dos-estudantes/>. Acesso em 15 jun 2022.

GUITARRARA, Paloma. As 20 cidades mais populosas do mundo; Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/geografia/cidades-mais-populosas-mundo.htm. Acesso em 15 de junho de 2022.

Capital paulista é responsável por 10% do PIB do Brasil. Veja São Paulo. Disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cidades/sao-paulo-pib-brasil-2019-ibge/. Acesso em 15 de junho de 2022.

Mapa da desigualdade de São Paulo. Rede Nossa São Paulo. 2022. Disponível em: https://www.nossasaopaulo.org.br/2021/10/21/mapa-da-desigualdade-2021-e-lancado/. Acesso em 15 de junho de 2022.

⑸ ASSAD, Renato. A necessidade histórica de inflamar o movimento estudantil. Esquerda Web. Disponível em: https://esquerdaweb.com/a-necessidade-historica-de-inflamar-o-movimento-estudantil/ . Acesso em 15 de junho de 2022.  

⑹  LÊNIN, V, ILITCH. Sobre os sindicatos, o momento atual e os erros de Trotsky. 1920. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/lenin/1920/12/30.htm. Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo

RETOMADA DCE USP 2022. linktree. 2022. Disponível em: https://linktr.ee/chaparetomada. Acesso em 15 de junho de 2022.