Publicamos a seguir o artigo de Roberto Saenz, dirigente internacional da corrente Socialismo ou Barbárie que esteve em nosso país algumas vezes neste ano e que, em sua última passagem, acompanhou junto à nossa organização o segundo turno das eleições mais importantes desde a redemocratização. O texto comporta uma riqueza de elementos históricos, políticos, sociais e metodológicos que contribuem de maneira pedagógica para o debate sobre a necessidade de se aproximar da maneira mais sensível à realidade, abordando suas tendências e contratendências, suas heranças que configuram o atual quadro político-social e econômico, como guia para a formação e ação revolucionária.

Sem dúvidas trata-se de uma elaboração marxista que se soma ao conjunto de elaborações de nossa corrente internacional com a perspectiva estratégica de relançar o marxismo revolucionário para este século, e que para isso, portanto, exige uma compreensão histórica e atual do desenvolvimento do capitalismo internacional – sob o escopo da luta de classes – e suas implicações em um país de dimensões continentais como o nosso.

REDAÇÃO


São Paulo, Buenos Aires, novembro de 2022.

Por Roberto Saenz

“Em vez de religião na política, devemos falar de religião como política (como identidade política). Mais do que uma forma religiosa de política, que separa forma e conteúdo, ou mais do que religião entrando na política, como se nunca tivesse estado nela, fazer religião é fazer política.

Ronaldo de Almeida, Folha de São Paulo, 27/10/22

“Quando todas as alternativas parecem imprevisíveis, surge a metáfora contundente de Bacurau. Depois dos enormes saques causados ​​por forças externas poderosas e quase invisíveis, aconteceu o menos provável: uma revolta popular, a revolta de toda a população da cidade contra a vilipêndio que vinha sofrendo. Isso porque é difícil imaginar que uma sociedade – qualquer uma delas – possa ser destruída ilimitada e eternamente”

Antunes; 2022; 46 [1]

Raúl Zavaleta Mercado, o grande sociólogo boliviano da segunda metade do século passado, afirmou uma questão simples, mas profunda: que as sociedades se mostrem abertas ao céu quando ocorrem os grandes eventos da luta de classes. E a recente eleição no Brasil foi um desses grandes acontecimentos que nos permite ainda apreciar intuitivamente algumas de suas tendências, de suas grandes “linhas de tensão”.

Assim, a seguir, interessa-nos desenvolver alguns apontamentos do que poderíamos chamar de uma espécie de “sociologia política” do Brasil contemporâneo. Isto a título de tentar explicar, dar algumas pinceladas para compreender os desenvolvimentos políticos e sociais naquele país; compreendê-los mais profundamente.

Essa tarefa é agora de certa forma “facilitada” pela histórica derrota eleitoral de Bolsonaro, que, embora não tenha resolvido que o país continue dividido em dois, ao menos mostra que há, como em todo o mundo, tendências e contratendências ; que no Brasil há reservas contra o avanço reacionário – embora essas reservas tenham sido acionadas em grande medida apesar da campanha de Lula e Alckmin , e não graças a ela [2] .

As relações de forças não estão resolvidas, nem a transição para um regime abertamente bonapartista poderia ser indolor. Isso ficou claro nos últimos dias, quando simpatizantes de Bolsonaro saíram às ruas exigindo a intervenção militar e ignorando a vitória eleitoral de Lula, mas, ao mesmo tempo, o clima social começou a esquentar com torcidas organizadas, bairros populares e setores de trabalhadores saindo para romper os bloqueios fascistas. Mesmo que, como sempre, Lula e o PT pedissem “calma” se os cortes continuassem se arrastando, o caldeirão social do Brasil poderia explodir em mil pedaços. Não é fácil, quando se abre, fechar novamente a caixa de Pandora de uma nação com 215 milhões de habitantes, um país popular por antonomásia que possui capas geológicas de relações de forças não testadas (é dizer, o oposto a um corpo vazio, com de maneira impressionista se poderia acreditar – a ideia de que Bolsonaro era “todo-poderoso”, que “a desmoralização não tinha limites” e afins [3]).

O próprio Bolsonaro foi – e é – um subproduto do esvaziamento “reformista” do PT e da CUT (essas organizações deixaram, entre outras coisas, de organizar vastos setores populares que se tornaram arregimentados pelas igrejas pentecostais [4] ). E, no entanto, sua derrota eleitoral no segundo turno desencadeou uma justa e legítima festa popular e criou as condições para construir uma oposição de esquerda ao futuro governo Lula; para apreciar a medida das coisas – as relações de forças não resolvidas – em um contexto que, obviamente, não carecerá de elementos de instabilidade.

Nesse contexto, no quadro em que foi mostrado que há reservas no gigante latino-americano (como uma simples prova ver a torcida do Corinthians alertando que iriam romper os bloqueios fascistas se não conseguissem chegar ao estádio), as pinceladas de uma antropologia política brasileira que pretendemos apresentar, certamente serão um pouco mais equilibradas do que outros textos que circularam nos últimos anos, destacando, apenas, o fenômeno Bolsonaro. É um esforço para entender tanto os pontos fracos quanto as fortalezas -potenciais- do movimento de massas no Brasil como base analítica, justamente, dos pontos de apoio para construir uma oposição de esquerda ao novo governo de conciliação de classes (que, simultaneamente, está nas ruas antes de qualquer nova aventura bonapartista [5]).

1- Gigantismo

A primeira coisa para entender o Brasil “sociologicamente” é apreciar o gigantismo do país. Por extensão em área, é o quinto maior país do mundo, atrás da Rússia, Canadá, Estados Unidos e China. O Brasil tem uma enorme diversidade regional e também muita diversidade “étnica”, por assim dizer de alguma maneira. Todas as “cores” e regiões se misturam dando um ar cosmopolita a algumas de suas cidades (só conhecemos São Paulo até certo ponto, e em menor medida Porto Alegre, Brasília e Bahia onde ficamos apenas alguns dias em cada caso). Negros, brancos, povos originários, árabes, japoneses, mulheres, homens, LGBTQIA+ e etc., fazem do Brasil uma mistura, uma “riqueza de cores” que tanto mostra suas potencialidades humanas, quanto explora sua diversidade de forma burguesa e reacionária para gerar divisões e falsas oposições (falsos fetiches). “Camadas geológicas” de pobreza e injustiça social de tal magnitude que autores como Antunes chegam a compará-las com a Índia [6].

A pobreza e a desigualdade na distribuição da riqueza são dramáticas; tema característico da sociologia brasileira (a estratificação social que denota o país é incomparável, por exemplo, com a Argentina, cuja estrutura de classes é muito mais “homogênea”). Na Avenida Paulista, centro político e comercial de São Paulo, há belos prédios de uma riqueza e modernidade invejáveis ​​que podem ser facilmente comparados à Quinta Avenida de Nova York, junto com corpos humanos reais jogados nas ruas aos quais ninguém presta atenção [ 7]…

No Brasil, a migração interna continua imensa. O que também resulta em uma enorme massa de “população flutuante” que continua sem ser absorvida na produção e que pode ser vista nas cidades. (O número de pessoas em situação de rua deve estar entre os mais altos da média internacional [8]). Os dados sobre o emprego estão entre os menos confiáveis ​​do mundo, multiplicados por terem dado a “intermitência de trabalho” (contratos intermitentes sem pagamento quando a pessoa não trabalha) o estatuto de “empregado”, fazendo desaparecer o desemprego das estatísticas (Antunes, idem).

O gigantismo do país e a força de sua burguesia, a monumentalidade dos prédios nos centros institucionais e financeiros, convivem com a monumentalidade de um movimento de massas que se poderia dizer ainda jovem: um gigante social majoritariamente “adormecido” (a força de trabalho assalariado no Brasil chega a 100 milhões de almas). Uma população que se apresenta cultural e politicamente muito jovem, feliz, com baixo nível de alfabetização, com um misto de atitudes calorosas e solidárias, bem como com a continuidade das “reverências” que vêm da escravidão… Ou seja, uma gratidão forçada , não livre.

Não é fácil, e não se entende bem por fora do cotidiano brasileiro – ou dos Estados Unidos, por exemplo, dos quais temos menos percepção [9] – o legado dramático da escravidão. Deve ser entendido como extremamente diferente do legado de opressão da população originária nos países andinos, por exemplo. Enquanto a população originária subjugada pelo conquistador mantinha, porém, formas de organização comunal, relações de solidariedade e dignidade -mesmo esmagadas pelo opressor colonial-, deve-se entender que a escravidão se caracterizava -se caracteriza mesmo em suas formas modernas- como campos de concentração na Segunda Guerra Mundial – por romper e/ou impedir todos os laços de solidariedade; a condição de escravo inibe até a formação da família. E este é um fato que deixou um enorme legado no Brasil, promovendo inclusive a falsa e paternalista história de que o “povo brasileiro é um povo pacífico”, mas não vinculado ao bom trato solidário que se sente ao entrar em qualquer padaria (atendidas invariavelmente por trabalhadores de origem proletária, especialmente na cozinha), por exemplo, mas a uma forma de dar por certa uma submissão que não é tal… [10].

As relações políticas geradas pelo gigantismo brasileiro são paradoxais. O Brasil é um país federal com muitas capitais. Não é um país politicamente centralizado como a Argentina ou a França; seu símile são os Estados Unidos. Para piorar a situação, a classe dominante teve a inteligência estratégica de transferir a capital do país para Brasília, uma cidade inventada –artificial-, carente de outra coisa que não o pessoal administrativo e, de resto, também monumental [11]. Logicamente, sendo – grosso modo – a décima economia mundial por PIB (algo em torno de dois trilhões de dólares), era possível – e pode, ainda que à custa de cortes permanentes nos gastos públicos, era do neoliberalismo dixit– financiar essa obra monumental, bem como apoiar tal aparato administrativo (não é qualquer coisa que a campanha de Lula tenha como objetivo em seu terceiro mandato uma contrarreforma administrativa, ou seja, demissões e redução de condições de trabalho e salário da base do funcionalismo público).

Mesmo definições de décadas atrás podem manter sua validade nesse sentido: “Visto de uma perspectiva regional, o progresso econômico não é homogêneo nem tende necessariamente à homogeneização da economia nacional. E menos uma tendência à harmonização dos índices de desenvolvimento que não são visíveis. As disparidades regionais permitem-nos compreender melhor o aparecimento e a sustentação de uma liderança ‘estatal’ bem marcada [algo que ainda hoje se faz presente em certa medida] (…) É verdade que esse quadro indica progressos e retrocessos (…) se olharmos mais de perto as tendências (…) verificamos uma predominância progressiva de um centro sobre os outros. A predominância de São Paulo sobre os Estados do país é evidente (…) A transformação da região Centro-Sul (com centros nas cidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte) no núcleo dominante da economia nacional” (Ianni; 1988; 38/9). É evidente que desde que este texto foi escrito, em 1988, muitas coisas mudaram no Brasil, mas algumas de suas grandes linhas parecem permanecer as mesmas.

Soler não diz nada muito diferente: “(…) já na década de 1940 havia um processo de urbanização acelerado. Este é o período de formação do nosso ‘fordismo tardio’, constituído pela urbanização acelerada e caótica e pelo enorme fluxo migratório (…) O jovem proletariado migrante, muitas vezes oriundo da construção civil, demonstra grande capacidade de adaptação social, articulação sindical e compreensão política. O proletariado fabril, então, a partir da década de 1950, começa a desenvolver suas primeiras experiências de ‘auto-organização sindical’. Essa organização de base foi responsável pela onda de greves que assolou São Paulo [no final da década de 1970]” (Soler; 2015; 13 [12]).

Aparentemente, e como nos Estados Unidos, o gigantismo do país conspira, em certa medida, contra a mobilização social massiva, além do fato de que a alavanca política da desmobilização nos últimos longos está diretamente ligada a decisão do PT e da CUT de sistematicamente e por toda uma geração “amarrar” a mobilização popular, perdendo, aliás, a capilaridade social , valorizada pelo lugar conquistado, em sua substituição, pelas igrejas pentecostais, questão sobre a qual voltaremos a seguir (bem, também , que essa perda de capilaridade não foi, como acabamos de ver, absoluta, além do fato de que a reação massiva de alegria pela derrota de Bolsonaro foi em grande parte espontânea [13]).

Aqui temos, então, a oposição entre países gigantes e países mais centralizados. A França e a Argentina, por exemplo, não se caracterizam pelo gigantismo populacional, mas porque Paris e Buenos Aires têm o monopólio absoluto da política em seus respectivos países. São países políticos por antonomásia, onde todos os problemas atingem o nível nacional muito rapidamente.

Por oposição, poderíamos dizer que os Estados Unidos e o Brasil não são, precisamente, “países políticos”, mas as pessoas não são idiotas: acabamos de presenciar uma massiva celebração popular pela derrota eleitoral de Bolsonaro que mostra, repetimos, que há reservas no país [14]!

E ainda assim, toda luta de classes tem sua astúcia. Quando um motorista farto dos bloqueios fascistóides atropelou 10 bolsonaristas, Bolsonaro imediatamente foi às redes pedir que os bloqueios fossem suspensos de maneira iminente; se o Brasil pegasse fogo, era toda a classe capitalista de qualquer segmento que iria sair perdendo… Assim, dia 30 de outubro tivemos uma histórica derrota eleitoral do bolsonarismo ratificada nos dias seguintes nas ruas, o que é mais importante para além, obviamente, do bolsonarismo não ter acabado.

2- Modernização truncada

O segundo vetor é onde o Brasil está em seu desenvolvimento. Pela magnitude do país, pelo seu território e extensão, pela sua população, pelos vários centros políticos e econômicos que o país possui e pela acumulação de capital, pela sua industrialização nas décadas de 50, 60 e 70, falava-se até mesmo do Brasil como um país “subimperialista” [15]. A realidade posterior colocou as coisas em seu devido lugar: mostrou que o Brasil não seguiu o padrão de uma Coreia do Sul , por exemplo. É um grande país dependente onde sua força relativa se expressa no peso de algumas de suas multinacionais no mundo, sua condição dominante no Mercosul, as relações de dependência estabelecidas com vários países africanos etc., mas que, ainda assim, é multiplicada pela relativa desindustrialização nas últimas décadas e o crescimento do agronegócio, assim, continua sendo um país dependente, ainda que gigante [16].

O tema da modernização do Brasil atravessou os debates de seus sociólogos por várias gerações. Florestan Fernandes e vários outros têm falado desse processo de modernização como uma “revolução burguesa” em obras clássicas como A Revolução Burguesa no Brasil: “Florestan (…) aponta para a relevância estrutural fundamental da preeminência de uma estrutura social de estamentos e não de classes (…) A sociedade de classes e a revolução burguesa que ela lidera foram realizadas de forma precária, dependente de compromissos com o passado persistente e da valorização das estruturas de referência do antigo regime (…) A escravidão gerou uma estrutura social vigorosa, produziu instituições duradouras e engendrou mentalidades que persistem de alguma forma até hoje” (2006; 19/20).

Desde a primeira edição da mencionada obra (1975), fica claro que várias décadas se passaram, especialmente a ascensão trabalhista moderna das décadas de 1970 e 1980. E ainda, os elementos de estratificação social, o cruzamento de classes e estamentos do velho Brasil ainda estão presente de alguma forma na psicologia social.

As diversas etapas modernizadoras advindas do movimento abolicionista, movimentos artísticos como o Antropofágico (nos anos 20 do século passado), a dinâmica industrializante a partir de 1930, a reafirmação desse movimento de industrialização no segundo pós-guerra, a própria criação de Brasília desde o início dos anos 1960, o surgimento de uma imensa e nova classe trabalhadora nos anos 70, o fluxo migratório do nordeste para o sudeste modernizador do país, o impacto de megalópoles como a Rio-São Paulo etc. têm sido, evidentemente, movimentos modernizadores, embora ao mesmo tempo desiguais e em muitos aspectos inibidos: “Dado seu caráter singular, o subdesenvolvimento não pode ser concebido como um simples elo da cadeia do desenvolvimento nem como uma evolução truncada. Não passa de uma produção de dependência (…) [de] introduzir novos elementos na construção da especificidade da forma brasileira de subdesenvolvimento (…), uma forma específica de modernização conservadora, ou então de revolução produtiva sem revolução burguesa ( …) A extensa ditadura entre 1964 e 1984 continuou claramente com o ‘caminho prussiano’. Ou seja, uma repressão política muito forte, mão de ferro sobre os sindicatos, coerção estatal no mais alto grau, maior presença das empresas estatais (…), abertura ao capital estrangeiro, industrialização em ‘marcha forçada’ (… ) e nenhum esforço explícito para liquidar o patrimonialismo (…)” (Francisco de Oliveira; 2009; 137-143).

Oliveira acrescenta algumas características da formação socioeconômica brasileira contemporânea: a) altamente urbanizada, b) com pouca mão-de-obra e população no campo, c) com forte presença de agronegócios, d) um setor de “segunda revolução industrial” (acrescentamos, em retrocesso dada a relativa desindustrialização das últimas duas décadas), e) progresso hesitante afirma o autor da terceira revolução industrial da informática (talvez menos hesitante do que há 20 anos quando o ensaio que citamos foi escrito), f) uma estrutura diversificada de serviços, g) estratos de renda muito alta e, no outro extremo, uma estrutura primitiva diretamente ligada ao consumo dos estratos pobres, h) um sistema financeiro que pela financeirização e o aumento da dívida interna e externa, monopoliza grande parte do PIB, algo em torno de 10% do produto. Finalmente, aponta para uma participação fraca e declinante na PEA do trabalho rural e da força de trabalho industrial que atingiu seu ápice na década de 1970 e depois começou a declinar com a contínua explosão do trabalho precário na área de serviços. A formação social brasileira é muito extensa e nesta “nota” é impossível cobri-la. Bastamos em dar algumas “pinceladas” disso a serviço dessa “sociologia” do país hoje.

Diante desse movimento modernizador contraditório, o crescimento do agronegócio promovido desde a primeira presidência de Lula e, no terreno cultural, diante do retrocesso bolsonarista, significou uma evidente desaceleração da modernização (mais do que uma desaceleração, uma marcha à ré porque toda as motivações ideológicas do bolsonarismo são um retrocesso em relação às conquistas da própria Revolução Francesa, por assim dizer, da própria revolução burguesa no campo cultural). Um pouco como apontou Florestan na obra que citamos, a “revolução burguesa” brasileira não poderia ser outra coisa senão um “movimento” inconsequente e de certa forma truncado, inibido, além do qual simultaneamente deu origem a um país monumental: “ O Brasil moderno foi proposto contra o Brasil arcaico. Mas ao mesmo tempo o dualismo foi questionado e tudo foi direcionado para uma interpretação do desenvolvimento do país como desigual e combinado, uma ideia, aliás, subjacente a este trabalho, que reflete a influência do trotskismo na formação política de Florestan Fernandes” (Florestan Fernandes; 2006; 17).

Por sua vez, o sociólogo Octavio Ianni apresenta para o Brasil uma tese semelhante à de Milcíades Peña a respeito da Argentina e que reflete esse caráter desigual e combinado ou a combinação de processos de progresso e retrocesso: ele aponta que a indústria surgiu dos capitais gerados no antigo setor agrícola do país: “(…) direta ou indiretamente, o capital agrícola está na base dos primeiros esforços de industrialização. Em suma, na esfera estrutural, o capital agrícola é a base do capital industrial” (1988; 33).

Soler, por sua vez, aponta algo semelhante: “O Brasil passa por intensa industrialização e urbanização ao longo de 40 anos. A industrialização, a formação de um Estado moderno e a urbanização estão transformando rapidamente a aparência de cidades como São Paulo e Rio de Janeiro (…) por outro lado, a ponto de serem fatores que os acentuam, como observa Celso Furtado. O acentuado subdesenvolvimento brasileiro e suas desigualdades regionais, longe de ser uma etapa necessária para o pleno desenvolvimento capitalista, reflete o lugar [dependente] do Brasil na divisão internacional do trabalho e os interesses das classes dominantes locais” (Soler; 2015; 12 ) .

Aqui devemos lembrar que a ditadura militar brasileira teve um papel contraditório em relação ao desenvolvimento industrial do país. Diferentemente da ditadura argentina, neoliberal e desindustrializante tout court , a ditadura brasileira internacionalizou o setor industrial (algo já iniciado sob o governo de Juscelino Kubitschek, 1956-1960, muito semelhante ao de Frondizi na Argentina na mesma época [17], que entregou a indústria para as multinacionais, mas não se desindustrializou).

A monumentalidade de certas cidades, de certas obras arquitetônicas, o número de centros político-econômicos do país, o moderno sistema metroviário de São Paulo, a própria Brasília, e mil e um dados que necessariamente nos escapam porque não conhecemos o resto do país, falam de certa tendência modernizadora de décadas atrás. Sabe-se também, mas hoje esquecido, que o Brasil cresceu a uma média muito elevada durante várias décadas, embora hoje, repetimos, restem apenas lembranças (o Brasil cresce hoje no nível medíocre da maioria das economias do mundo).

O Brasil é uma meca financeira e do agronegócio. Teve por décadas – e continua tendo – taxas de juros em dólares extremamente altas, o que significa uma enorme saída de lucros em moeda estrangeira (esse é um dos legados dos dois primeiros governos Lula). Também é verdade que acumula reservas de algo em torno de 400.000 milhões de dólares, algo não insignificante. Mesmo em termos de construção imobiliária, ela é vista como muito dinâmica, embora não seja o caso em termos de infraestrutura, que é a chave para as condições gerais de acumulação de capital multiplicador e, claro, decorre dos gastos públicos (mas no Brasil o teto de gastos tem prevalecido desde Temer, ainda que seja violado a cada passo [18]).

No entanto, não parece que as tendências modernizadoras tenham continuado a se desenvolver; ao contrário, o que parece dominar é uma tendência à estagnação de alto nível para a média latino-americana (nenhum país se assemelha ao Brasil na América Latina além do México, embora a posição dominante do Brasil na região seja mais categórica [19]).

As tendências retrógradas em várias áreas são bastante evidentes: a) pelo menos desde os primeiros governos Lula, se não antes, houve um giro para o agronegócio e a financeirização econômica que continuou a se desenvolver mais tarde, b) tem sido experimentada nas últimas décadas um dramático processo de precarização do trabalho somado a uma relativa desindustrialização que atingiu os núcleos mais concentrados do proletariado somada a um certo deslocamento industrial interno para regiões com menor tradição de luta, c) é visível no Brasil o atraso em termos de infraestrutura em relação para o que é o país. Esse atraso em aeroportos, portos, rodovias, etc., é um problema conhecido, devido, entre outros motivos e como já apontamos, ao mecanismo de economia de gastos públicos imposto pelo FMI e à lógica neoliberal, d) também é um fator evidente de regressão o bolsonarismo, o crescimento das igrejas pentecostais e das notícias falsas, o aumento geral da ignorância através do avanço das próprias igrejas, etc.

 

Ou seja, regressões aparentemente antigas e regressões contemporâneas travaram a dinâmica modernizadora ainda desigual ou valorizada em décadas passadas no Brasil e que mantém sua monumentalidade em uma série de aspectos, mas que não esconde que essa desigualdade e esses elementos de extremo atraso não aumentaram nas últimas décadas no Brasil [20].

Embora o termo seja exagerado, é verdadeira a definição de Antunes de que o último período, em oposição à desigual “revolução burguesa” de que falava Florestan Fernandes, poderia ser caracterizado – exageradamente, repetimos – como uma contrarrevolução burguesa preventiva que diz respeito ao termo, mais para o campo político do que para qualquer outra coisa, mas que na realidade está por detrás de todos os retrocessos em matéria econômica e social que temos apontado e que vão noutras direções que não a modernização.

Antunes destaca que na década de 1990 o país experimentou um processo de “desertificação neoliberal” onde o setor produtivo estatal foi parcialmente privatizado, a legislação trabalhista desmantelada gradativamente, o setor financeiro do capital aumentou sua hegemonia, tendências que permaneceram sob os esforços do PT e reforçada sob Temer e Bolsonaro. O reformismo que defendia a reforma agrária, urbana e industrial em sentido progressivo, e que se expressou principalmente no governo de João Goulart, 1961/4, praticamente desapareceu do cenário brasileiro e quando o PT chegou ao governo em 2003, só continuou com as tendências neoliberais ou social-liberais que já vinham do governo de Fernando Henrique Cardoso [21].

Conversando com um integrante da nossa corrente no Brasil, perguntei a ele, justamente, que sensação o país gerava na população (já que sua monumentalidade impressiona quem vem de fora do país, principalmente no meu caso da Argentina) e ele me respondeu com clareza, “decadência ”, que coincide exatamente com o diagnóstico que estamos transmitindo em vista das análises sociológicas ou antropológicas do Brasil que são apreciadas entre os analistas [22].

“(…) um tipo particular de capitalismo dependente (…) surgiu no Brasil, cuja origem agrária acabou se metamorfoseando, no final do século XIX e início do século XX, em uma burguesia industrial subordinada a um centro monopolista e imperialista (Estados Unidos e Europa). Um capitalismo economicamente integrado por fora e socialmente desintegrado por dentro” (Antunes; 2022; 63 [23] ). (Uma caracterização semelhante à indicada na época por Milcíades Peña, que caracterizou fortemente a Argentina como um “país leque”, ou seja, integrado para fora e desintegrado para dentro.)

3- Estados Unidos e Brasil: uma simbiose rara

Uma terceira característica da “antropologia política” é como o Brasil está numa espécie de “espelho” político e cultural com os Estados Unidos. Os Estados Unidos continuam a ser a potência imperialista mais importante (para não falar militarmente, a guerra na Ucrânia prova-o mais uma vez); O Brasil é um grande país dependente com características, eventualmente, de uma potência regional (o velho e controverso conceito de subimperialismo é desproporcional demais para isso). De qualquer forma, apesar da diferença qualitativa estrutural, diferença acentuada pela primarização e financeirização econômica brasileira das últimas décadas, em questões políticas e culturais há enormes laços entre Brasil e Estados Unidos.

O peso da igreja evangélica, a capilaridade do neoliberalismo – uma espécie de “neoliberalismo social” e não apenas econômico -, a cultura de resistência negra como contratendência, elemento progressista que transita do norte dos E.U.A ao Brasil em termos de Hip Hop e de disputa entre facções em bairros populares, os fenômenos de Trump e Bolsonaro, etc., são traços progressistas e regressivos que paradoxalmente se assemelham aos dois países.

Logicamente, a escravização dos afro-americanos aproxima os dois países, embora dê a impressão de que a opressão das pessoas negras nos Estados Unidos continua tendo, de certa forma, um elemento “nacional”, enquanto no Brasil é , antes, um fenômeno dramático de estratificação social, considerando que o Brasil não é um país imperialista, não tem esse tipo de “espessura” – caracteriza-se por outro tipo de espessura social marcada mais diretamente pela pobreza [24].

Os laços do Brasil com os Estados Unidos datam, pelo menos, da segunda guerra. O Brasil foi o único país latino-americano que por volta de 1943 declarou guerra à Alemanha nazista e somou tropas – ainda que reduzidas – ao combate. Posteriormente, os laços continuaram a se fortalecer e não é por acaso que o elemento antiimperialista nunca fez parte da ideologia do PT, nem é claro que faz parte da consciência popular, como na Argentina, por exemplo.

De resto, outro exemplo é a reação à morte da rainha Elizabeth II da Grã-Bretanha: na Argentina ela causou alegria como parte do repúdio ao imperialismo britânico e da memória da guerra das Malvinas, no Brasil durante o dia sua morte foi lamentada na mídia e várias instituições públicas como o prédio da FIESP (é a mais importante federação empresarial industrial do país com sede em São Paulo) a homenageou com a bandeira inglesa na fachada de seu edifício…

Muitos aspectos da cultura popular ianque estão instalados na cultura popular brasileira, pelo menos nas regiões urbanas do país: por exemplo, a comemoração do Halloween e muitas outras datas, e não parece haver resistência a ela, o que por si só não é ruim porque, ao contrário para versões populistas, os Estados Unidos também são uma sociedade de classes onde muitos aspectos de sua cultura popular são obviamente progressistas (por exemplo, hip hop ou orgulho negro).

Mas, logicamente, também é real que parte da simbiose cultural e política com o gigante do norte tem aspectos regressivos como a crescente influência nas últimas décadas das igrejas evangélicas, o desenvolvimento do terraplanismo e do negacionismo ecológico e pandêmico, as teorias da conspiração, o quase império total de fakenews, etc.

Uma explicação para isso é também a simetria da monumentalidade de ambos os países. É como se houvesse uma relação “físico-geográfica” no continente americano entre os dois gigantes que se olham e se comparam além dos aspectos estruturais indicados, sendo o mais profundo o passado escravocrata (nos dois países a escravidão foi abolida tardiamente: nos Estados Unidos com a guerra civil de 1861/5; no Brasil sob a combinação da resistência dos escravizados com o peso de um crescente movimento abolicionista dos setores burgueses esclarecidos, mas sem nenhuma guerra: como por um gesto final da coroa em 1888).

“A escravidão não foi apenas um fenômeno colonial. Nos Estados Unidos e no Brasil, as duas maiores nações americanas que vivenciaram esse fenômeno, a escravidão persistiu por muitos anos, ao final do regime colonial. No século XIX, período de maior desenvolvimento da escravidão norte-americana, a sociedade escravagista limitou-se ao Novo e Velho Sul americano do Leste e teve que conviver com a produção capitalista agressiva e expansionista no Oriente, até ser definitiva e militarmente destruída por essa último.

“No Brasil, até a abolição, as práticas sociais e econômicas da escravidão se desenvolveram ao longo do Império e a escravidão constituía a relação social dominante na produção. Foi em nosso país que o trabalho escravo produziu a maior variedade de mercadorias coloniais – açúcar, ouro, pedras preciosas, cacau, café, arroz, couro, carne seca etc. O Brasil foi a nação escravista que recebeu o maior número de africanos escravizados: aproximadamente 38% do tráfico internacional de escravos, ou seja, algo em torno de 5 milhões de homens e mulheres. O Brasil foi uma das primeiras nações do Novo Mundo a aprender sobre a escravidão e foi a última a aboli-la. Em toda a América escravista, além das determinações regionais, havia apenas um modo de produção escravista colonial, e foi o Brasil que alcançou seu maior grau de desenvolvimento” (Maestri; 1988; 14/19).

De 1807 a 1835, na Bahia e especialmente em Salvador, as massas escravizadas – influenciadas pelos movimentos sociais africanos, pela vitória dos haitianos e pela crise do regime colonial – foram protagonistas de uma impressionante série de movimentos insurrecionais (…) O que aconteceu no Brasil, após um complexo processo de embates políticos e sociais, com o abandono massivo das grandes plantações de café pelos cativos, trouxe o fim da escravidão entre o final de 1887 e o início de 1888.

E, logicamente, a luta contra a segregação racial também estabelece paralelos entre os dois países. Na década de 1930, ocorreram dois Congressos Afro-Brasileiros. E também nessa década foi criada a Frente Negra, uma organização política que reunia muitos intelectuais e artistas negros, em várias partes do Brasil. A década de 1930 foi marcada, sobretudo, pela mobilização de grande parte da intelectualidade para enfrentar as ofensivas segregacionistas promovidas pelas elites brasileiras, que tentavam culpar a população negra pelo atraso do país.

Por sua vez, a Bahia foi e continua sendo um importante ponto de referência para as relações raciais vivenciadas no Brasil. Uma Bahia que Jorge Amado revelou em Jubiabá, mostrou ao mundo um bom exemplo de convivência entre pessoas de diferentes raças e cores, sem conflito explicitamente violento. Na década de 1970, o cientista político Donald Pierson afirmou que “Se quisermos encontrar uma ‘porta’ no Brasil pela qual pudéssemos entrar e examinar in loco a ‘situação racial’ brasileira , nenhuma seria mais adequada do que o antigo porto da Bahia” (Imagens da cidade da Bahia).

É claro que esse legado da escravidão não apenas estabelece traços comuns paradoxais entre Brasil e Estados Unidos, mas também não deixaria de ter consequências na formação da classe trabalhadora assalariada brasileira moderna.

4- Brasília, praça e palácio

Uma característica particular do Brasil é o peso de suas instituições: as “pétreas” e as da democracia burguesa. Desde o início do regime democrático burguês no Brasil sempre foi – desde seu relançamento pós-ditadura entre 1985/89 – mais reacionário do que na Argentina, por exemplo. As forças armadas longe de serem desacreditadas, aconteceu o contrário,  sempre mantiveram certa tutela sobre o regime, expressa de forma mais aberta no governo Bolsonaro. De resto, a polícia militar e a polícia federal e rodoviária federal têm grande peso no regime e no funcionamento institucional, o Rio de Janeiro está mais ou menos militarizado há anos, a violência policial diária é bárbara e brutal e o sistema prisional, outra semelhança com os Estados Unidos, tem uma proporção desproporcional de presos e prisioneiros negros pelos padrões internacionais, e as condições de detenção são barbárie em estado puro[25]…

Mas junto com o acima, existem outros elementos de enorme importância. Como já apontamos, a burguesia teve a sabedoria estratégica de transferir a capital do país para uma cidade administrativa artificial, Brasília, longe das pressões sociais diretas de baixo (Antunes fala de uma institucionalidade completamente separada do cotidiano das massas). De resto, as instituições estão muito distantes das massas, atuando nas alturas “galácticas” de costas para qualquer escrutínio público que não seja o noticiário na TV e nas redes sociais, de notícias falsas que vão e vêm. E, o que é mais importante, com metade dos deputados e senadores que integram o Centrão, bloco “fisiológico” movido por interesses “sem ideologia”, subornos diretos como no caso do Mensalão ou do recente Orçamento Secreto, e que, logicamente , assim que se soube que Lula havia vencido as eleições, eles deixaram de ser base do governo de Bolsonaro para “trabalhar” com o novo governo de Lula e Alckmin…

A Justiça também faz uma arbitragem desproporcional, como pôde ser visto no caso Lava Jato, de tal forma que todos os poderes querem fazer ou fazem algum tipo de arbitragem proporcionalmente maior aos demais poderes e, logicamente, às massas: as Forças Armadas, a justiça, o próprio Congresso Nacional etc., com a imagem, principalmente no caso de Lula, de que ele é “refém” de não sei o quê como justificativa para não reverter nenhuma contrarreforma de Temer e Bolsonaro (é a desculpa que vem).

Todos estes são elementos de bonapartização ou semi-bonapartização do regime “democrático burguês” que são constitutivos dele. Como contrapeso institucional, há a Constituição de 1988, embora não tenhamos conhecimento para saber o quanto dela resta…

Característica deste regime é que, pelo menos, do ForaCollor! o PT cumpriu o “pacto social” e sob a presidência de Lula e Dilma Rousseff até 2013 no país nenhuma mosca voou [26]. Sabe-se que Lula tomou posse em 2003 como uma operação preventiva para que não ocorresse no Brasil uma rebelião popular como na Argentina, questão que reforçou os mecanismos bonapartistas do regime que, logicamente, deu um salto de qualidade desde a manobra parlamentar – ou golpe – contra Dilma Rousseff: “Durante uma década, a política saiu das ruas e foi transferida para o interior das instituições (…) o lulismo, o PT, a CUT e outros desempenharam um papel decisivo no recuo da consciência de classe, que havia sido construída durante as décadas anteriores” (Soler; 2015; 9/10).

Soler acrescenta que as lutas do final dos anos 1970 perderam sua radicalidade quando o PT se moveu, com mala e cuia, e até hoje, para a defesa da democracia burguesa como um “valor universal” (“democracia versus ditadura” foi um dos leitmotiv da recente campanha de Lula, e embora a eventualidade de uma mudança de regime estivesse de fato em jogo, o ângulo democrático não é usado para ir além à uma perspectiva anticapitalista, mas, ao contrário, para posicioná-la como um objetivo em si mesmo).

Característica deste regime é que a pressão diária das massas sobre ele é muito mediada: não é uma dialética de palácio-praça [aqui o autor refere-se ao palácio como política institucional e à praça como política extraparlamentar] que pode ser vista na Argentina ou na França, mas algo mais ao estilo dos Estados Unidos onde a pressão das massas aparece apenas esporadicamente – talvez esporadicamente demais, embora apareça como acabamos de ver contra os piquetes bolsonaristas.

De qualquer forma, o regime não deixou de ser democrático burguês com elementos de bonapartismo, não passou ao semi-bonapartismo ou bonapartismo absoluto: Bolsonaro tinha essa intenção e certamente ainda tem, mas não conseguiu, não conseguiu fechar o regime sob sua presidência e agora esse objetivo foi afastado [27]. Uma questão que mostra que o que as eleições e os acontecimentos da luta direta de classes que a cercaram protegeram não foi simplesmente mais um governo burguês, o que elas também são, mas a eventualidade de uma mudança de regime político com a ameaça do regime democrático e organizacional das liberdades democráticas dos trabalhadores, do movimento estudantil, do movimento negro, do movimento de mulheres e LGBTQIA+ e etc., mais uma razão para o crime político cometido pelos grupos abstencionistas.

Voltando a um ângulo de análise “geográfico-político”, podemos apontar que a localização e o caráter de Brasília nos fazem, justamente, buscar uma distância sideral entre a praça e o palácio. Surpreendentemente ou nem tanto, algo semelhante acontece com Washington DC, pois se não fosse a capital, não teria a importância de centros sociopolíticos como Nova York, Chicago, Los Angeles, etc., cidades com muito mais capilaridade social. E de qualquer forma, o caso do Brasil é muito pior, não só porque é uma cidade muito mais artificial, mas também porque está mais distante dos centros do que a capital estadounidense.

Até a sua esplanada é uma provocação a qualquer protagonismo das massas: é tão enorme, tão monumental, que é óbvio que a arquitetura que a caracteriza tem por finalidade exaltar as próprias instituições (presidência, parlamento, etc.) e rebaixar e diminuir qualquer indício de protagonismo das próprias massas.

Pode-se perguntar qual é a base de uma “democracia”. Um socialista revolucionário ou até mesmo apenas um democrata liberal à moda antiga diria o “povo” ou algo assim. Mas não: para os planejadores de Brasília, a “democracia” ou melhor, a abstração da República (que na realidade advém da res pública , ou seja, uma coisa pública), vem de instituições nas quais as massas, os elementos do poder direto democracia, etc., não têm nada a ver com isso…

5- A deterioração do tecido social

No que diz respeito ao tecido social das classes -especialmente da classe trabalhadora- tem havido um movimento contraditório nas últimas décadas, isto é, do progresso ao retrocesso, embora se deva tomar cuidado para não exagerar as coisas -tornar algumas tendências visíveis e outras invisíveis que as tornam um contrapeso.

É evidente que a perda de capilaridade do PT e da CUT deram origem ao surgimento do bolsonarismo e ao peso das igrejas evangélicas. Isso ocorre em dois planos. De um lado, a desindustrialização do país, a redução do tamanho da força de trabalho em fábricas que nos anos 1980 eram de propriedade de massa, como as “montadoras”, empresas automotivas que empregavam até 60.000 trabalhadores sob o mesma teto, precarização do trabalho etc., forneceram a “infraestrutura” para um eventual retrocesso qualitativo na consciência de classe anterior, no mínimo reformista, expressa no slogan que caracterizou a primeira campanha presidencial de Lula, “trabalhador vota em trabalhador”. No terreno desse enfraquecimento estrutural, que, em todo caso, é relativo e não absoluto (a classe trabalhadora brasileira continua sendo um gigante social, já veremos) avançaram outros tipos de identidades e enquadramentos, claramente regressivos [28]. Com a capilaridade dos sindicatos e do PT retrocedendo, talvez até “desaparecendo”, e com a precarização do trabalho avançando, paralelamente temos o surgimento das massas do “capitalismo pentecostal” e da ideologia do empreendedorismo [29].

É significativo que a Igreja Católica, mais tradicional que a evangélica no Brasil, antes marcada pela Teologia da Libertação e hoje pelo giro reacionário à Igreja Reformada, tenha cedido imenso terreno às igrejas evangélicas, que certamente são muitas das que ocupam o quadro organizacional dos bairros populares (em concorrência, porém, com outras instituições).

Não temos clareza sobre o fenômeno petista no nordeste brasileiro, onde Lula acaba de ser eleito com quase 70% dos votos [30]. Mas, diferentemente da Argentina, onde os setores de trabalhadores desempregados são majoritariamente organizados em movimentos, temos a impressão de que os planos sociais no Brasil são atribuídos individualmente. E é evidente que além do MTST (Movimento Sem Teto, encabeçado pelo reformista Guillermo Boulos) e do MST (Movimento Sem Terra, hoje transformado em uma grande cooperativa que é o maior exportador de arroz orgânico da América Latina), a circunstância de uma assistência estatal sem uma organização independente ou pelo menos “própria”, desarma esses setores das massas. Deixa -os indefesos contra as representações religiosas do mundo que é, aliás, um retrocesso em relação às conquistas da modernidade, justamente da revolução burguesa, como a separação da Igreja e do Estado que o bolsonarismo ameaçava – continua a ameaçar – com voltar o fusionar…

O empreendedorismo é o outro lado desta moeda. É como o “tipo ideal” do neoliberalismo, o “agente” do livre mercado na medida em que na lei da selva do mercado o “empresário” que vende principalmente “quinquilharias”, “afirma-se” contra o mundo com algum tipo de “ideologia do mérito do subdesenvolvimento”: o mérito da sobrevivência e a luta de todos contra todos em meio à miséria geral [31].

Logicamente, isso faz parte do tecido social, pelo menos na última fase do país. É claro que não se trata apenas dos setores mais pobres. A “burguesia comum”, a pequena burguesia e a “base” da burguesia, são a base social de Bolsonaro. Há continuidade nos perfis “anticomunista” e “anticorrupção” dessa camada social reacionária, como se vê no livro de três décadas atrás que citamos de Octavio Ianni: “(…) uma ampla campanha de opinião pública, dirigida especialmente à classe média, que preparou as populações urbanas de São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, etc., para aceitar antecipadamente o colapso do governo de João Goulart [golpe de 1964] (…) uma operação político-militar organizada para combater o ‘comunismo e a corrupção’ (…) A ‘marcha da família, de Deus, pela liberdade’, que antecedeu e preparou a opinião pública para o golpe, foi realizada muito antes (…)” (Ianni; 1988; 116) Qualquer semelhança com Bolsonaro não é coincidência: “O mais universal desses matrizes discursivas, o combate à corrupção, ilustra o papel que o ultraliberalismo e o anticomunismo desempenham na amarração discursiva das diferentes variantes do bolsonarismo. A corrupção sempre operou no imaginário brasileiro como uma espécie de metaproblema, uma causa mágica que, eliminada, resolveria todos os males do país. Nessa narrativa, o peso das limitações estruturais e as diferenças de orientação política são totalmente negligenciadas em favor de uma visão voluntarista e individualista da política” (Antunes; 2022; 34). E o autor acrescenta: “(…) a maior conquista do bolsonarismo é ter conseguido trazer todos esses diferentes elementos – militarismo, anti-intelectualismo, empreendedorismo, anticomunismo, liberalismo econômico, discurso anticorrupção, conservadorismo social – para convergir em torno de uma única figura: o ‘cidadão de bem'” (Antunes; idem; 37).

Mas, por outro lado, o problema é que nos últimos anos esse fenômeno se tornou absoluto e o outro invisibilizado, que ressurgiu até de forma distorcida nos atos de Lula no Nordeste durante a campanha eleitoral, na Avenida Paulista no sábado 29 e no domingo 30 de outubro, nos bairros populares que saíram para desarticular os piquetes reacionários no dia seguinte à votação, pela torcida do Corinthians e outros torcedores antifascistas que fizeram o mesmo, na ação de setores de trabalhadores que saiu espontaneamente, etc.

Ou seja: algum grau de consciência de classe e/ou popular deve existir para que os que ganham entre dois primeiros salários mínimos, entre as mulheres e a população negra, entre os jovens, a maioria dos votos tenha ido para Lula e não para Bolsonaro, mesmo com tudo rebaixado e direcionado no terreno do adversário que foi a campanha de Lula (e não só Lula, Lula e Alckmin nem mais nem menos!).

Esse ressurgimento à beira de uma campanha eleitoral que, se não fosse por isso, o lulismo a afundaria, nos diz algo sobre a relação de forças no Brasil e seu quadro sociopolítico. Ele nos diz que há reservas mesmo que a situação desde 2016 seja reacionária e agora possa começar a mudar (certamente, e até certo ponto, está mudando [32]).

Acontece que o medo apavorado de Bolsonaro de que o país exploda depois de um motorista antibolsonarista ter atropelado pessoas em um bloqueio reacionário na estrada nos diz, também, como Zavaleta Mercado, do Brasil profundo, de um país com 215 milhões de almas, nem mais nem menos. Um país que, logicamente, não é um “corpo vazio”, mas uma totalidade de estratificações de camadas sociais e classes que, como em uma “panela de pressão”, e embora não tenha um centro político social claro com o PT e a CUT praticando desde décadas atrás a desmobilização social, poderia explodir a qualquer “pavio pequeno”: acontece que as massas são sempre maiores que qualquer aparato (uma lição que nunca deve ser esquecida!).

A não satisfação das esperanças de Lula e do PT, as mil e uma traições e capitulações, o “Lulinha paz e amor”, a “confiança na justiça” quando de sua prisão, etc., a continuidade dos planos do neoliberalismo [ 33], etc., desmoralizou a base social petista e cutista. Mas, ao mesmo tempo, é evidente que houve uma reação contra Bolsonaro refletindo que havia, há, reservas de classe e consciência popular ; que houve e há um setor que soube diferenciar os “reformistas” dos neofascistas.

No mesmo sentido, foi lindo como na Avenida Paulista na noite de domingo, 30 de outubro, cantavam metade das músicas contra Bolsonaro e não só a favor de Lula, principalmente aquela que diz: ” Chegou a hora do Jair embora”, ou seja, tchau Bolsonaro. Uma questão que, obviamente, reflete algo da relação de forças mesmo no campo distorcido da consciência, para não falar do enfrentamento popular aos piquetes reacionários dois ou três dias após a votação e que criou um ar de uma potencial “guerra civil” que assustou a burguesia como um todo.

Aqui algo significativo e reiterado sobre o comportamento do PT (André Singer) aconteceu novamente: Gleisi Hoffman e o PT em massa pedindo para “não ir às ruas” por nada nesse mundo. Responsabilizar-se por advertir o MTST que ameaçou chamar para romper algum bloqueio, com Boulos imediatamente recuando da chamada… poderia dar origem a um surto revolucionário no Brasil. Sim senhor: aos elementos da guerra civil! Porque em um país de 220 milhões de almas, polarizado como nunca antes, onde os bloqueios se espalham massivamente por 400 pontos de sua geografia (ainda que concentrados nos territórios mais bolsonaristas), de qualquer forma está cheio de municípios, etc., que queriam passar, ir trabalhar, ou o que seja, instantaneamente se colocou como uma fratura social que poderia terminar em um enfrentamento de um vizinho contra outro que é a raiz da guerra civil: se acabam todas as relações de solidariedade e se passa as “bofetadas”!

Essa eventualidade é o que finalmente parou Bolsonaro: se forçou desesperadamente a sair e pedir à sua base social que saísse das estradas! O que também é importante para aquelas análises que dizem sim, “Lula ganhou, mas Bolsonaro teve muitos votos” e blá, blá, blá (uma análise de raízes chorosas). É verdade que Bolsonaro recebeu muitos votos e que continua sendo uma força reacionária de massa. Isso vai além do fato de Bolsonaro não ser Trump, entre outras coisas porque ele não tem partido próprio e porque o Brasil não é os Estados Unidos… só não podia ignorar o resultado eleitoral, mas também tinha que levantar o espetáculo dos piquetes porque o país ia para um eventual transbordamento revolucionário (abriu-se uma dinâmica que poderia sair do controle da burguesia)…

6- As relações de forças (ou a luta contra o impressionismo [34] )

O ponto anterior deixa outra lição: a luta contra o impressionismo. O país é tão grande, tão vasto, que é fácil cair numa análise unilateral . Há autores brasileiros que dizem que a esquerda brasileira sempre cai em um falso debate entre “otimistas” e “pessimistas” (Arcary). E chama a atenção porque, embora o debate entre as duas “tendências de análise” seja comum à esquerda, não parece ocorrer com a nitidez que se aprecia o Brasil.

Nem é preciso dizer até certo ponto: o Brasil tem tais dimensões que é difícil, senão impossível, cobri-lo em sua totalidade; não sejamos unilaterais. Há um elemento de método aqui: é improvável estimar todas as tendências. Mas há elementos metodológicos no marxismo que nos permitem entender que, quando se trata de dimensões tão grandes, há muitas tendências e contratendências em jogo (ou seja, permitem compensar metodologicamente as análises). Nenhum país, muito menos o Brasil, é um “continente vazio”: as contradições de classe são tão grandes, as sensibilidades que dominam a exploração e a opressão capitalistas são tão dramáticas, que, de alguma forma, na medida em que em última análise a existência determina a consciência, embora a consciência esteja tão inundada de “malabarismos mentais” como está hoje no Brasil, de uma forma ou de outra virá uma reação, ou seja, aquele elemento que nos escapa para se fazer afirmar: como apontamos com Antunes no início desta nota, porque é difícil imaginar uma sociedade que possa ser destruída de forma ilimitada. E o cientista político marxista francês, Antoine Artous, quando aponta no mesmo sentido que o totalitarismo é inconcebível enquanto houver formas associativas na sociedade civil [35].

Na análise da luta de classes há sempre graus (gradações). Por exemplo: uma coisa é um regime democrático burguês, outra é um regime semi-bonapartista, bonapartista, uma ditadura ou um regime fascista puro e simples. São todos graus da luta de classes (relações determinadas de forças). E passar de um grau para outro, por assim dizer, é impossível acontecer fora de uma prova entre as forças vivas. Porque é a luta de classes que dá a medida das coisas; o “micrômetro” que mede a espessura das coisas. O fato de que para certas mudanças no regime político a própria intervenção da luta se torna inevitável; se convoca a luta de classes (certas mudanças não podem acontecer “frias”; pelo menos a priori [36]).

O impressionismo caracteriza-se por aumentar a força do inimigo e diminuir a nossa, assim como o facilismo que faz o contrário: é incapaz de ver os inimigos e seus desdobramentos.

Ambos os unilateralismos desarmam o lado oposto, mas, logicamente, o que esteve sobre a mesa na última etapa no Brasil foi o impressionismo, isso na medida em que Bolsonaro parecia todo-poderoso (e essa determinação ainda segue sobre a mesa pela um pouco pela força das coisas, outra parte como desculpa para as forças oportunistas que vão se refugiar na subsistência do bolsonarismo para capitular ao novo governo de Lula e Alckmin, integrar suas fileiras ou o que for [37]).

Mas não: acaba de ficar provado que Bolsonaro não era todo-poderoso (sequer foi capaz de desmentir o resultado eleitoral mesmo não reconhecendo Lula explicitamente). E não apenas porque, além das contradições de classe, também há contradições no seio da classe dominante. Mas porque, como apontamos, a vertigem dos acontecimentos imediatamente após o segundo turno esteve ameaçada com ingredientes de “guerra civil”…

Como dissemos em outra nota (“Brasil, um cenário perigoso”), é de bom marxista revolucionário: a) identificar os perigos quando eles surgem sem subestimá-los ou ignorá-los, b) não se impressionar, apreciá-los de frente e ver os pontos de apoio para a ação – enfrentá-los [38]. Está muito claro que o impressionismo é uma receita ruim porque ampliar a força do inimigo, impressionar-se com ele, paralisa e não permite encontrar as “forças psíquicas” e os pontos de apoio material para enfrentá-las.

Assim, essas semanas foram uma escola de política no Brasil. Para encontrar a melhor orientação diante de uma conjuntura difícil. E, em primeiro lugar, para não se impressionar. Saiba que sempre há reservas; que tudo tem medida e Bolsonaro também.

Logicamente, na eleição não estava apenas em jogo um resultado eleitoral. As campanhas eleitorais são uma forma distorcida de luta de classes; não deixam de ser parte dela. Ao mesmo tempo, são uma espécie de “fotografia”, de “estatísticas políticas” da sociedade que equilibram coisas de pesos diferentes: a força material-social de uma classe social não é a mesma de outra, embora tudo pareça “ equalizado” na aritmética eleitoral de uma pessoa um voto (a classe trabalhadora quando convocada à luta é sempre mais forte do que uma classe de pequenos proprietários agrupados por uma força neofascista, por exemplo).

De resto, nem a facilidade complacente de que o resultado eleitoral é “indiferente”: é bastante evidente que uma vitória ou uma derrota para Bolsonaro não são a mesma coisa – não eram a mesma coisa. Ocorre que o ponto de referência que produziu sua derrota eleitoral foi um enorme ponto de apoio para evitar a escalada bonapartista de Bolsonaro. É evidente que a ferramenta eleitoral em mãos era a eleição de Lula, e que ela precisava ser apropriada (o voto é algo tático, não de princípios. Romper com os princípios é entrar numa frente de conciliação entre as classes – “O limites elásticos do possibilismo”, esquerdaweb).

Se a independência de classe for mantida, e a abordagem for politicamente crítica, ou seja, independente, o voto é tático. Mas o fato de ser algo tático não significa que não seja muito importante: os grupos de esquerda que chamaram a abstenção cometeram um crime político que desarmou, assim como os que aderiram à frente popular o cometeram… O segundo ato mais grave que o primeiro, obviamente. Mas nada justifica educar a militância para se transformar numa seita marginal que dá as costas ao combate político real e, o que é pior, fugir de qualquer debate com os trabalhadores de carne e osso (que recusam e evitam –covardemente- as verdadeiras batalhas como um “rato de esgoto” [39]).

Sob os mesmos parâmetros, que significa saber ver – aprender a apreciar – o que está por trás da “fumaça” na superfície, as eleições devem ser analisadas; um resultado eleitoral. As eleições são sempre, repetimos, uma expressão distorcida das relações de classe, das relações de força. Levar um resultado eleitoral, dita fotografia do estado de consciência da sociedade às relações de forças, não é algo simples ou automático (nem para um lado, nem para o outro).

O paradoxo da eleição no Brasil é que a relação de forças teve um primeiro teste imediato. De maneira simples, Bolsonaro não conseguiu ignorar o resultado eleitoral (apesar de toda as sua bravatas). A prova foram os piquetes bolsonaristas espalhados pelo país, mas também o incêndio social que os ameaçava -e ameaçava o país- se não se levantassem.

Se você não vê isso, você não vê nada. Quem diz “sim, Lula venceu por uma pequena diferença” diz a verdade, mas é uma meia verdade. Primeiro, porque ele ganhou a presidência. Segundo, e sobretudo, porque por trás não de sua vitória eleitoral, mas da derrota eleitoral de Bolsonaro, que não é exatamente a mesma coisa, e da derrota dos piquetes, o que se apreciou foi um “resultado histórico”: o bolsonarismo chegou para ficar, e não é estrategicamente derrotado por assim dizer. Mas ele recebeu um primeiro tapa retumbante na cara em 4 anos amém (que recebeu as próprias relações de forças), mostrando-se, enfim, neste primeiro grande combate, como um “Leão sem dentes” (ou com dentes menos afiados do que se pensava).

De qualquer forma, os últimos dias no Brasil foram mais uma prova suplementaria de que por trás de qualquer resultado eleitoral, a medida de todas as coisas está sempre, de uma forma ou de outra, na luta de classes (na prova do equilíbrio de forças [40]).

E isso se liga a mais uma questão: a experiência eleitoral burguesa é em grande parte uma experiência individual: uma pessoa, um voto. No entanto, a luta, a batalha, é uma ação coletiva. E, obviamente, a força da classe trabalhadora, o que ordena tudo por assim dizer, é a ação coletiva de nossa classe (que também assenta e organiza as cabeças dos trabalhadores, que são bombardeados dia e noite pela mídia e pelas redes dominadas pelo sistema). Por isso, a ação coletiva de nossa classe vale infinitamente mais do que uma ou outra “fotografia eleitoral” (argumento que usamos não para minimizar a derrota eleitoral de Bolsonaro, nada a ver com isso, mas quando alertamos sobre o alcance e também os limites de um eventual triunfo do “capitão reformado” – derrotado).

E como dissemos em uma troca de ideias com nossos colegas do SoB Brasil, esse é um dos maiores crimes históricos do PT: ter inibido a ação coletiva de nossa classe (ter entorpecido seus reflexos de luta coletiva). E, no entanto, como afirmou Trotsky, as classes sociais são mais fortes do que qualquer aparato. Assim, quando no limite tinha que se manifestar a potencialidade dessa ação (o “poder” das massas poderíamos afirmar em sentido tonynegrista spinoziano); quando ninguém a chamou e o PT, desesperado, arriscou tudo para evitá-la, os setores populares começaram a se mobilizar para romper os piquetes .

Aquele motorista que atropelou um piquete de fascistas bolsonaristas, ação que viralizou ao infinito (para nós foi muito bem ; essas são as regras da guerra civil [41]), mas em sua ação refletiu -e, sobretudo, chamou- o que viria se a provocação bolsonarista continuasse: uma explosão social de proporções bíblicas.

Então nada: uma lição universal da luta de classes dos últimos dias no Brasil. Além disso, é claro que está chegando um governo de conciliação de classes que irá ceder à classe dominante tudo e muito mais para o qual terá que haver oposição da esquerda para isso. E que, de resto, o processo com o bolsonarismo não terminou (não pode ser encerrado pelos reformistas).

 

Bibliografia

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“Brasil, um cenário perigoso”, esquerda web.

“Uma conjuntura atrelada à dinâmica brasileira”, esquerda web.

“Brasil e o futuro da esquerda”, esquerda web.

“Os limites elásticos do possibilismo”. A esquerda brasileira diante do perigo de uma capitulação histórica, esquerda web.

Antonio Soler, O colapso do Lulismo. Ascensão e permanência de um pacto social , Coleção SoB, Guarulhos, 2015

Notas:

[1] Bacurau é um filme brasileiro de 2019 dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles que ganhou diversos prêmios internacionais.

[2] Mais uma semana de campanha e Bolsonaro venceria a eleição. É que a campanha eleitoral de Lula e Alckmin foi feita, inteiramente, no terreno de Bolsonaro e não por conta própria (Lula renunciou ao direito ao aborto, fez um segundo turno quase inteiramente na questão da religião e apenas no final campanha, por um deslize de Paulo Guedes apontando que o salário mínimo e as aposentadorias não seriam mais reajustados pela inflação, permitiu que Lula levasse as bandeiras socioeconômicas).

[3] Isso não significa que ainda existam correntes de esquerda que foquem suas análises em Bolsonaro como forma de jogar uma cortina de fumaça sobre os primeiros passos do novo governo Lula e os técnicos neoliberais que ele está designando para a área econômica de a equipe de transição…

[4] Mais adiante veremos a passagem do império da Igreja Católica aos evangélicos pentecostais.

[5] Um camarada da nossa corrente disse-nos, e tem razão, que de certa forma é preciso “apaixonar-se” pelo país para o conhecer logicamente, nunca perdendo o contexto maior que é o mundo como um todo .

[6] Deve-se lembrar que a Índia contemporânea continua a expressar uma mistura mais ou menos informal de divisão de classes e estratificação de castas, de modo que a comparação do Brasil com a Índia não deixa de adicionar drama à sua “radiografia social”…

[7] Às vezes é irreconhecível se por trás das cobertas há uma pessoa ou não (a miséria no Brasil está sendo jogada em um fundo social que adquire a dimensão de um abismo infinito, de um verdadeiro “buraco negro” social).

[8] Octavio Ianni já falava décadas atrás do êxodo rural-urbano que caracteriza o Brasil, revelando as dimensões sociais e humanas da industrialização e urbanização do país, às quais poderíamos agora somar o crescimento do agronegócio, o desmatamento da Amazônia e a desindustrialização do Brasil (ou seja, as tendências e contratendências históricas progressivas e regressivas que marcam as “mãos e contramãos” do desenvolvimento brasileiro nas últimas décadas; suas mais profundas clivagens contraditórias).

[9] Impossível ter percepções de um país que não se visita há 20 anos e menos neste mundo em constante transformação, em “estado líquido”.

[10] Se Bolsonaro não ousou ignorar o resultado eleitoral apesar das margens estreitas pelas quais perdeu, é porque, entre outros motivos, temia uma explosão social no país . Ciente de que era falsa a crença de que no Brasil não haveria ressalvas no movimento de massas ou que suas relações de forças estavam acertadas: bastava a ameaça dos coríntios de varrer os piquetes para que fosse negada…

[11] Brasília é um exemplo de fracasso das “utopias arquitetônicas” destacadas da transformação das relações sociais (utopias da moda nos anos 20 do século passado sob o impacto do modernismo, tendência extremamente progressista para o resto – voltaremos). Otto Niemeyer, um grande arquiteto brasileiro filiado ao Partido Comunista, foi o criador de Brasília, além de muitas outras brilhantes obras de arquitetura. Mas além da falsa ideia de que a arquitetura pode transformar a vida por si só, o que é concreto é que Brasília continua sendo uma obra desproporcional, abstrata, cujo gigantismo conspira contra o elemento utópico e não o contrário (qualquer mobilização popular em sua esplanada parece feita por ” formigas” por mais ridiculamente grande que seja! Uma ode mais ao Estado brasileiro do que ao seu movimento de massa).

[12] Soler acrescenta, algo que não costuma ser destacado, que a direção sindical chefiada por Lula começou sua trajetória traindo as greves metalúrgicas do final dos anos 1970, recusando-se sistematicamente a unificar as greves do ABC com as do resto do país.

[13] É um clássico que as massas são maiores que qualquer aparelho e que essas massas, em condições extremas, mesmo com as direções contra elas, muitas vezes irrompem na história e a viram de cabeça para baixo (Rosa Luxemburgo, dixit ) mesmo contra as previsões daqueles que acreditam que as massas populares brasileiras são irremediavelmente “mansas” ou que deveriam ser protegidas paternalisticamente (Lula e PT, e porque não as correntes do PSOL – todas, direita e esquerda).

[14] Muitos militantes e intelectuais ficaram impressionados com Bolsonaro, um perigo real, mas que, como todo perigo, sempre convoca a medir sua magnitude ao milímetro , nem para subestimá-lo nem o superestimar, procurando uma maneira prática de parar sua mão.

[15] Os estágios econômicos contemporâneos do Brasil são: a) modelo agroexportador de café até 1930, b) substituição de importações de 1930 a 1964, c) desenvolvimentismo multinacional durante o governo militar e d) neoliberalismo a partir dos anos 1990 (Collor de Melo em diante até hoje).

[16] Seria necessário ver em que categoria está, por exemplo, a Índia com todo o seu enorme desenvolvimento desigual, mas, talvez, suas características tenham, de certa forma, muitos pontos comparáveis ​​às do Brasil embora sua população seja de cinco ou seis vezes maior.

[17] Governos burgueses “modernizadores” de mãos dadas com o imperialismo e as multinacionais.

[18] As chamadas “PEC Kamikaze” foram uma série de ordens de gastos aprovadas pelo Congresso por Bolsonaro, além do fato de que também existem despesas secretas naquela sede que ele pode realizar… Ou seja, um bonapartista e discricionário operação de gastos que, em suma, não termina sabendo onde começa e onde termina.

[19] O México está muito próximo dos Estados Unidos para ter uma atração gravitacional semelhante à do Brasil.

[20] Em linhas gerais, as etapas do desenvolvimento político contemporâneo no Brasil são: a) a “República Velha”, etapa oligárquica que vai do final do século XIX a 1930, b) O Estado Novo sob o primeiro regime ditatorial. / presidências populistas de Getúlio Vargas e terminando em 1964, c) a ditadura militar de 1964 a 1985 (com as primeiras eleições pelo voto universal desde a “democratização” em 1989, e d) a “Nova República” com a Constituição de 1988 como fundamento fundador evento para esse assunto. diga

[21] Em relação ao PT Nunes destaca que quando chegou ao governo em 2003 o partido já não era o mesmo. O transformismo já o havia tocado profundamente. Em primeiro lugar, no que havia sido característico de sua origem: sua origem operária e social popular. Uma análise semelhante é feita por Antonio Soler referindo-se ao transformismo como cooptação orgânica do PT no regime burguês. No entanto, ele ressalta que não houve “revolução passiva” sob os governos petistas, simplesmente porque não ocorreram grandes transformações estruturais nem mesmo de cima .

[22] Deve-se dizer que uma característica do Brasil, em contraste com a Argentina, é que possui uma grande camada de sociólogos e cientistas políticos que produzem ensaios sobre o país dia e noite, algo ausente no atual cenário argentino.

[23] Nunes fala do Brasil como uma sociedade capitalista dependente do tipo “prussiano”, no sentido de uma industrialização tardia originada em uma sociedade senhorial, escravista, colonial e virulenta e autocrática em relação às classes populares, e servil, subordinado e dependente em relação à burguesia central.

[24] A questão da pobreza continua tendo enorme densidade no gigante latino-americano. Não podemos nos debruçar muito sobre isso aqui, mas a distribuição da riqueza é tão regressiva que é obscena: enquanto as classes altas vão às compras de helicóptero, existem dezenas de milhares, senão milhões, que estão literalmente passando fome (muitas pessoas pulam refeições porque habitual).

[25] Já filmes clássicos como “O Beijo da Mulher Aranha” ou “Carandiru” retratam o que estamos apontando: a barbárie carcerária em sua forma mais pura.

[26] Nunes define claramente o PT como um “partido da ordem”.

[27] Cada mudança de regime político, todas as suas nuances, implica relações de forças e eventos diversos que não podem ser substanciados fora da luta de classes. Esta é a lição deixada por Trotsky quando insistiu, por exemplo, que o próprio bonapartismo era um regime de transição onde as relações de forças permaneciam abertas e podiam se inclinar para um lado ou para o outro.

[28] Arcary aponta que nas lutas parciais da classe trabalhadora nas últimas décadas, a classe trabalhadora sempre foi “mais radical em suas ações do que em suas reivindicações. Ele moveu montanhas, mas para reivindicar muito pouco” (Arcary; 2014; 49). O que fala de outra questão apontada por ele na qual concordamos, que a classe trabalhadora brasileira continua sendo, de certa forma, uma classe trabalhadora ainda jovem marcada, também, pela inércia reacionária de um país culturalmente atrasado e onde o medo de a retaliação sempre foi muito eficaz para neutralizar a ação coletiva de um povo politicamente desorganizado (idem; 50). E, no entanto, o que se viu nos dias de hoje é uma emergência anti-neofascista que, talvez, não estivesse nos cálculos de muitos, mas que passou por cima do freio que tentou colocar o PT.

[29] Um colega brasileiro nos disse de forma contundente que há elementos no Brasil de hoje que se referem -logicamente, em termos muito gerais- à “ética protestante e ao espírito do capitalismo” magistralmente retratados na época por Max Weber em uma obra homônima.

[30] André Singer e outros sociólogos brasileiros relatam que nas eleições de 2006, Lula mudou sua base social: o conservadorismo tradicional dos estados nordestinos voltou-se para o PT, ao mesmo tempo em que o PT perdeu sua base social no Sudeste. , mais industrializada (tendência que continua até hoje se mantivermos os dados de que na única região em que Lula prevaleceu, e por enorme diferença, foi o Nordeste).

[31] Nunes fala da ideologia do empreendedorismo como mecanismo de ocultação das relações salariais (exploração).

[32] Discordamos logicamente nesse aspecto de Valerio Arcary, que acaba superestimando o Bolsonaro e subestimando as massas populares. Os perigos de fechar o regime existiam e continuarão existindo. E, no entanto, também é verdade que houve uma reação popular que foi além das eleições e não pode ficar de fora da análise .

[33] Um neoliberalismo com uma pátina social que nunca chegou a um desenvolvimentismo (desenvolvimentismo).

[34] É significativo que Arcary fale em seus últimos artigos do perigo do easyism. E é verdade, existem os dois perigos: o facilismo e o impressionismo. Mas depois do tapa na cara que Bolsonaro recebeu por nem sequer poder desconsiderar a eleição, e embora o bolsonarismo tenha vindo para ficar e sem dúvida trará perigos no futuro, o apelo à crítica da facilidade pode ser o recurso para uma crescente deslize oportunista (é certo que o PSOL vai aproveitar para entrar no governo burguês com armas e bagagem).

[35] Seu argumento refere-se a sociedades pré-capitalistas onde elementos associativos ligados à comunidade rural ou corporações artesanais dissolvidas sob o capitalismo e a regra do “trabalho livre” subsistiam.

[36] Embora ocorram frias mudanças revolucionárias ou contrarrevolucionárias, em todo caso atentas a uma mudança ocorrida anteriormente e que talvez não saibamos medir.

[37] Isso mostra que a análise também pode ser instrumentalizada para outros fins que não o seu verdadeiro propósito, que é estimar objetivamente a verdadeira correlação de forças.

[38] Trotsky tinha uma metáfora ilustrativa em relação a eles quando falava de um alpinista que olhava para uma parede de montanha ao longe e parecia lisa, mas ao se aproximar dela começou a encontrar as projeções nas quais se apoiar para conquistá-la.

[39] Esse crime foi cometido pelo grupo PTS no Brasil, o MRT, que, vergonhosamente, inventou a tática do “voto nulo envergonhado”).

[40] O fato de que por trás da aritmética eleitoral estejam sempre as relações de forças é algo universal (que se aplica a vários campos e não apenas às eleições burguesas).

[41] As regras da guerra civil não podem ser escolhidas: são olho por olho, dente por dente. A responsabilidade era dos fascistas que bloquearam as estradas exigindo um golpe militar. (Se fosse possível, eles teriam que ser fuzilados. Ou seja: pegar as bandeiras democráticas com métodos revolucionários – que as transcendem).