Diante do novo governo de conciliação com a burguesia, é necessário independência política, auto-organização e aliança do movimento negro com a classe trabalhadora e os oprimidos em geral 

“O trabalho de pele branca não pode se emancipar onde o trabalho de pele negra é marcado a ferro” (Karl Marx)

DANILO MOREIRA, com a colaboração de Marcos Vieira e Antonio Soler

Aproximamo-nos de mais um Dia da Consciência Negra (20), sobre o qual aproveitamos o ensejo para debater fatos que são herança da escravidão e, também, do racismo capitalista subsequente que atinge de forma mordaz a população negra, maioria da população brasileira.

O racismo é um fenômeno histórico ligado de forma mais recente à acumulação capitalista que ocorreu através da escravização de populações originárias do continente americano e das que foram sequestradas do continente africano. Esse escravismo colonial serviu como elemento central para a acumulação capitalista na Europa e, posteriormente, para as vias hiper tardias (caso brasileiro) de acumulação pré-capitalista das antigas colônias.

Certamente que desde a revolução antiescravocrata haitiana, a primeira, até o processo de libertação da escravidão brasileira, a última da América (Brasil), os escravizados tiveram papel central. Mas, ao contrário do que muitas correntes historiográficas afirmam, o movimento abolicionista no Brasil contou com a participação ativa, coletiva e consciente – um projeto coletivo de libertação – das massas de negros escravizados que no campo brasileiro organizavam fugas, sequestros de senhores e queimas de plantações.

Queremos já anunciar no início desta nota que para nós a autoatividade é um princípio inegociável e que foi confirmado, e se confirma diariamente, em toda a história da luta dos explorados e oprimidos. Da mesma forma que a revolução antiescravista do XVII e XIX até as lutas mais recentes, as conquistas dos escravizados e, depois, da classe trabalhadora negra, da juventude e das mulheres só podem ser obtidas de maneira autônoma, independente e em aliança com os setores politicamente mais avançados da nossa classe. Tema que procuraremos desenvolver um pouco mais no desenrolar desta nota.

Um combate à totalidade da opressão e da exploração

As estatísticas em relação à desigualdade no Brasil – negros e pardos representam 56,1% da população – demonstram que são os negros a parte da população que mais sofre com as taxas de desigualdade. Dados do IBGE de 2021, em um estudo sobre a desigualdade social pelo recorte de raça e cor, indicam que a pobreza é maior entre negros (34,5%) e pardos (38,4%), o que chega a ser o dobro em relação aos brancos (18,6%).

O desemprego para pessoas negras é de 16,5%, sendo 0,3% e 5% a mais entre pardas,16,2%, e pessoas brancas, 11,3%. Lógica essa que também se manifesta em relação à informalidade do trabalho, em 2021 a informalidade no conjunto da população economicamente ativa era de 40,1%, mas em relação à população negra o índice era de 43,4%, na parda de 47% e na branca de 32,7%.

Em relação ao rendimento, os dados indicam que os maiores são para aqueles com maior nível de escolaridade, mas o corte de raça e cor em relação ao salário se sobrepõem para marcar a desigualdade salarial. O rendimento de pessoas brancas graduadas era de 50% e 40% maior do que entre negros e pardos, respectivamente, podendo chegar a 75% em alguns casos.

Em relação à violência, o governo Bolsonaro com sua necropolítica aumentou práticas de letalidade dos agentes públicos, que de forma explícita atiram para matar “alvos negros”, como aponta o relatório de novembro de 2022 da Rede de Observatório da Segurança Pública, Pele Alvo: a cor que a polícia apaga. Em estados do nordeste, como a Bahia, a população negra morta pela polícia em 2021 chega a 97,9% em relação ao total de mortes causadas pelos agentes de segurança pública. Em Salvador, capital do estado, entre os mortos, só uma pessoa não era negra. No estado do Rio de Janeiro, das 57 chacinas policiais registradas, em 30 delas todas as vítimas eram negras. De forma geral, números levantados mostram que a polícia é o núcleo duro do racismo no Brasil: das 3.290 vítimas da letalidade policial nos sete estados onde os dados foram levantados (BA, CE, MA, PE, PI, RJ e SP), 2.154 são pessoas negras.

O nível de analfabetismo entre crianças pretas e pardas saltou de 28,8% e 28,2% em 2019 para 47,4% e 44,5% em 2021, respectivamente como mostra levantamento feito pela ONG Todos pela Educação, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), feita pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Esse aumento foi especialmente cruel durante a pandemia de Covid-19, onde os alunos/as negros/as e pobres foram os mais prejudicados com fechamento das escolas e sem acesso à internet e materiais didáticos.

A fome, o desemprego e a crise social estão criando hiper periferias nas grandes cidades brasileiras. Aliadas à falta de políticas públicas de habitação e à especulação imobiliária do capital financeiro, cada vez mais brasileiros se veem tendo que procurar abrigo nas ruas e em ocupações, e a maior parte dessa população é negra, como mostra o IBGE: dos 13,5 milhões vivendo em extrema pobreza, 75% são pretos ou pardos.

Para compreendermos como os dados acima são parte de uma lógica societária perversa, Silvio Almeida traz uma contribuição teórica muito importante a partir do conceito de racismo estrutural. Conceito que demonstra que o racismo tem três dimensões interligadas na realidade social: subjetividade, institucionalidade e economia. Sendo que essas três dimensões do racismo estrutural interconectam, retroalimentam e se totalizam, ou seja, nenhuma delas pode existir sem a outra.

Estes mecanismos ideológicos, jurídicos e econômicos do estado burguês e do modo capitalista de produção dão ao racismo seu caráter sistêmico, não o isolando em um ato de violência individual apenas, mas criando essa estrutura em que certos grupos racializados são beneficiados e, outros, prejudicados socialmente, criando e operando no mesmo sentido, vulnerabilidade, de um lado, para fomentar poder, do outro.

Almeida explica que o racismo não é uma “patologia social”, um fenômeno conjuntural da sociedade ou alguma deficiência intelectual, mental ou desvio de caráter dos racistas. O racismo se coloca como estrutural porque faz parte de um processo de normalização e de racionalização das desigualdades sócio raciais em nossas sociedades com base em comportamentos, instituições e economias (capitalistas) a serviço da manutenção de privilégios de raça, acesso desigual ao poder e da riqueza.

O racismo estrutural demonstra que o racismo não é um processo anormal e sim “normal” em nossa sociedade. É uma forma de racionalidade das relações sociais, fazendo parte do consciente e inconsciente que naturaliza a violência genocida contra os jovens negros, a desigualdade de poder nas instituições políticas e o plus de exploração sobre o trabalho dos trabalhadores negros.

Como exemplos de subjetividade (comportamento) racista, Almeida coloca o fato dos assassinatos em série dos jovens negros na periferia não causar impacto e indignação na sociedade. A estimativa de mortes de jovens negros, justificadas com políticas de estado não causam impacto na realidade, como era de se esperar em assassinatos de pessoas.

Em relação ao racismo político (institucional) não causa estranheza que nos lugares de poder praticamente não temos a presença de pessoas negras. O Portal do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) aponta que nas Eleições Gerais de 2018, somando todos os cargos, apenas 27,8% dos eleitos eram pretos ou pardos, sendo 4,28% pretos. Nas Eleições Municipais de 2020, essa proporção melhorou para 43,03%. Porém, é ainda um percentual muito baixo quando se refere apenas a candidatas e candidatos pretos, especificamente, que constituíam somente 5,63% dos eleitos. Naturalizar a ausência de pessoas negras em certos ambientes, locais e setores da sociedade onde é frequentado apenas por pessoas brancas, em geral espaços de poder e de decisão, assim constituindo o racismo estrutural, como vemos representados em novelas, não causam impacto, mesmo sabendo que segundo dados 52% da população brasileira se declara negra.

Sobre à economia, Almeida traz o exemplo da tributação brasileira que tem como base o consumo e o salário. Os ricos são os que mais reclamam da carga tributária mesmo sendo os que menos pagam impostos, como a lógica tributária no Brasil é extremamente regressiva (quem ganha menos paga mais), as pessoas que ganham menos na sociedade, o caso das mulheres negras, são as que acabam pagando mais impostos. Assim, mulheres negras é o grupo social mais afetado pelo racismo estrutural, pois é aquele com menores salários, que pagam mais impostos relativamente e são as maiores vítimas da violência doméstica, consequentemente, são as que menos têm representatividade política.

Fica evidente na exposição de Almeida as interrelações entre as dimensões do racismo estrutural, como o comportamento racista se reflete na institucionalidade e quanto essa interfere na dimensão racista da economia capitalista; e todo o caminho contrário de interpenetrações causais racistas nutrem-se umas às outras, corroborando para instituir o racismo como estruturante e na estrutura do sistema sociopolítico como um todos.

Os efeitos disso em uma pessoa não-negra, seria naturalizar o padrão branco como uma regra, rotulando todo aquele que é exceção e aproveitando-se dos privilégios nessa construção social. Assim, os privilégios de raça e classe seriam naturalizados nas relações sociais. Almeida afirma que para superar essa situação é preciso lutar contra o racismo em todas as suas dimensões, é preciso de mudança de comportamentos sociais, que se renuncie aos privilégios, que se tenha políticas efetivas de combate ao racismo para desnaturalizar o preconceito, a discriminação, a violência e a exploração.

Podemos adicionar que a luta contra o racismo só pode ser feita com o mais absoluto protagonismo do movimento negro. porém, cabe ao conjunto do movimento social desenvolver discussões, programas, campanhas e organizações antirracistas. Além disso, como em qualquer luta contra a ordem atual, é necessário a busca de aliados estratégicos no conjunto da classe trabalhadora e dos oprimidos. Uma vez que a economia, o Estado e sociedade como um todo são baseados em privilégios de classe, de gênero e de raça voltados para a competição e a acumulação individual, a luta contra o racismo estrutural para ser viável e eficiente do ponto de vista histórico, tem que necessariamente colocar em pauta tarefas anticapitalistas e socialistas que possam colocar esse edifício abaixo. 

Derrota de Bolsonaro foi vitória dos negros, explorados e oprimidos

No governo neofascista de Bolsonaro, como não poderia deixar de ser, as políticas de combate ao racismo foram destruídas, foi ampliada a necropolítica, foi colocada em prática um genocídio deliberado durante a pandemia e os dados de desigualdade, de violência e exploração da população negra foram ampliados.

Durante os quatro anos de governo Bolsonaro, não houve sequer um investimento em pautas sociais em relação ao povo negro e/ou a periferia para diminuir essas desigualdades, mas sim a de manter e elevar as formas de opressão e repressão, que se traduz no cerceamento de direitos, no encarceramento em massa, ataque de várias formas a cultura e religiões de matrizes africanas, ficando explícito a política abertamente racista do governo e, também, o racismo na estrutura da sociedade que estava velado.

Não é por acaso que a população negra, nordestina, de baixa renda e mulheres, ou seja, os setores mais explorados e oprimidos da classe trabalhadora, tiveram um papel central na derrota de Bolsonaro nas urnas. Pesquisa do instituto IPEC um dia antes do segundo turno dava conta de que entre os negros 54% votavam em Lula, entre os que ganham até 1 salário-mínimo 62% e entre os de menor escolaridade 58%. 

Esse fenômeno de politização das massas mais exploradas e oprimidas, além de ter sido fundamental para a derrota eleitoral de Bolsonaro, indicam que esse setor da população, a população negra, a classe trabalhadora mais explorada, as mulheres e a juventude negras tendem a ser o setor mais dinâmico da luta de classes no próximo período. Na verdade, esses já tem sido os setores mais dinâmicos da luta de classes através das lutas por cotas e permanência nas universidades, contra o genocídio da juventude negra, pela legalização das drogas e contra o patriarcado que aumenta a violência contra as mulheres negras em particular.

Comemorar a derrota de Bolsonaro e exigir o respeito à soberania popular não é o mesmo que apoiar o governo de colaboração de classes Lula-Alckmin. Desde a formação da frenteampla Brasil da Esperança que viemos apontando que foi uma traição dos setores da esquerda fazer parte orgânica dessa frente. Essa tática de entrar na chapa afirmando mentirosamente que não se poderia chamar o voto em Lula de outra forma, diluiu táticas de luta, programa anticapitalista e projeto de superação do lulismo pela esquerda. Assim, ao contrário do que afirma a direção do PSOL, apenas serviu para reafirmar o caráter conciliatório da chapa Lula-Alckmin, não contribuiu para levar a campanha para as ruas, para exigir um programa que atendesse às necessidades dos trabalhadores e para apontar uma alternativa independente.

Ao entrar na chapa com a burguesia se perdeu toda condição de desenvolver táticas capazes de levar a campanha para as ruas, o que, aliás, quase causou a derrota de Lula. Agora, a esquerda da ordem mente novamente ao afirmar que entrar na comissão de transição para o novo governo é uma forma de garantir os direitos democráticos. Na verdade, apenas reforçam o caráter de colaboração de classes do novo governo que por sua natureza burguesa será incapaz de enfrentar o racismo estrutural a serviço da classe dominante e de seus interesses.

O movimento negro em países que tem sua formação capitalista alicerçada no trabalho escravizado é fundamental na luta dos explorados e oprimidos como um todo. A luta pela superação do racismo passa necessariamente pela luta anticapitalista e vice-versa – não podemos conceber a luta antirracista desconectada da luta anticapitalista. Nesse sentido, relembremos a importância que Trotsky dava para a questão negra em seu texto Planos para a Organização dos Negros (1939) e de como para ele essa questão não podia ser dissociada da luta de classes, assim como considerava fundamental difundir as ideias socialistas entre os valorosos militantes do movimento negro:

Devemos dizer aos elementos conscientes dos negros que eles são convocados pelo  desenvolvimento histórico para se tornar uma vanguarda da classe trabalhadora. O que serve como freio para as camadas mais altas? São os privilégios, os confortos que os impedem de se tornarem revolucionários. Isto não existe para os negros. O que pode transformar uma certa camada, torná-la mais capaz de coragem e sacrifício? Esse elemento concentra-se nos negros. Se acontecer que nós, no SWP (Partido dos Trabalhadores Socialistas – EUA), não somos capazes de encontrar o caminho para alcançar esta camada, então não somos dignos de nada. A revolução permanente e todo o resto seria apenas uma mentira.

Da mesma forma que na década de 30, é a classe trabalhadora negra, pelo nível de exploração e opressão que é submetida, a mais interessada na superação do capitalismo. Por essa razão, o movimento socialista, seus partidos e organização precisam entrar em um diálogo sistemático com o movimento negro para lutar em seu interior pela construção de medidas anticapitalistas como única maneira estrutural (radical se poderia dizer também) para combater o racismo.

Para atender as necessidades gerais da classe trabalhadora, em geral, e específicas da classe trabalhadora negra, em particular, as medidas anticapitalistas são incontornáveis e não serão levadas a cabo pelo governo de conciliação de classes que se prepara para assumir o controle do estado no próximo ano. Não se pode suspender as contrarreformas dos anos anteriores (inclusive as de Lula e Dilma), responsabilizar Bolsonaro pelos seus crimes de genocídio, reduzir a jornada de trabalho, conquistar o salário-mínimo do DIEESE, a reforma agrária e urbana, lutar contra o genocídio da juventude negra, contra o encarceramento em massa, por educação de qualidade e pública em todos os níveis para todos, contra a superexploração das mulheres negras e uma série de demandas necessárias, conciliando com a burguesia, como vai novamente fazer Lula e seu governo.

Por essa razão, é necessário que o movimento negro, o movimento social e a esquerda como um todo, coloquem-se de forma totalmente independente em relação ao próximo governo. Essa é a única forma de avançar na luta contra o racismo estrutural, contra o necropolítica, contra a desigualdade social e racial e de fortalecer o movimento para derrotar o neofascismo nas ruas e avançar para uma sociedade sem racismo, exploração e opressão. Nós da Socialismo ou Barbárie – SoB, estaremos nas ruas no próximo dia 20 contra o racismo em todas as suas dimensões, por medidas anticapitalistas de combate ao racismo, pela organização independente e de base do movimento negro e pela unidade de ação e aliança de classe com todos explorados e oprimidos.

Referências:

A escravidão reabilitada, Jacob Gorender. Fundação Perseu Abramo.

O que Marx entendia sobre a escravidão, Kevin B. Anderson. https://jacobin.com.br/

O que é Racismo Estrutural? Silvio Almeida. youtube.com

Planos para uma organização de negros, Leon Trotsky. https://www.marxists.org/

Pele alvo: a cor que a polícia apaga, Silvia Ramos. CESeC