A esquerda revolucionária na Argentina e no Brasil

Um debate fraterno com Valério Arcary

“Outros arriscaram que a experiência com os limites dos governos Lula e Dilma Rousseff seria mais acelerada, e permitiria o fortalecimento de um partido revolucionário independente e sem mediações: uma importação para o Brasil do modelo idealizado na esquerda argentina de autoconstrução, igualando o lulismo ao peronismo.” (Valério Arcary, “Boulos e o futuro da esquerda”, esquerda online, 30/11/20)

ROBERTO SAENZ*

O companheiro Valério Arcary, membro da Resistência – corrente interna do PSOL no Brasil – tem publicado uma série de notas instigantes sobre as perspectivas de construção revolucionária em seu país com muitos elementos de comparação e analogia com a Argentina que são bem-vindos porque permitem uma reflexão.[1]

Valério começa apontando algo muito importante, que às vezes é esquecido, e que é que os destinos da esquerda revolucionária na Argentina e no Brasil, no Brasil e na Argentina, estão intimamente associados; eles são inseparáveis, como ele também afirma.

Entretanto, e além de uma série de caracterizações corretas, Valério também introduz, sub-repticiamente, uma série de afirmações sutis que nos parecem incorretas, especialmente em termos de construção revolucionária.

É evidente que o companheiro polemiza, sobretudo, com seus antigos companheiros/as do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado). Entretanto, ele estende sua reflexão às correntes da esquerda na Argentina, colocando sobre elas – colocando-nos – de forma abusiva uma série de conotações negativas: “lógica de autoconstrução”, “partido-fração”, “sectarismo argentino”, etc., afirmações que, de modo geral, são erradas e, também, perigosas para a construção revolucionária em seu país.

A análise comparativa e as analogias entre os países são fundamentais. Especialmente hoje, além disso, neste mundo globalizado, quando nenhuma construção e nenhuma estratégia podem ser puramente “nacionais”. Além disso, a análise comparativa lança luz sobre aspectos que, talvez, nos equivocaria com um estudo “nacional exclusivo”.

Valério também tem em sua cabeça parte da “memória histórica” da corrente da qual ele – assim como muitos de nós – vem: a corrente histórica de Moreno, que no início dos anos 80 atingiu seu auge com uma acumulação militante significativa em ambos os países, e que, sobretudo na América Latina, era uma verdadeira corrente internacional.

Por outro lado, após a explosão do velho MAS no final daquela década, o PSTU juntamente com a LIT (Liga Internacional dos Trabalhadores) nos anos 90 e 2000 entrou em um “freezer”, revelando-se incapaz de tirar qualquer conclusão dos eventos históricos que ocorreram com a queda do Muro de Berlim.

Como subproduto desses desenvolvimentos e, é claro, do impacto da luta de classes internacional e nacional, o PSTU acabou explodindo em 2015/2016 devido à sua posição errada em relação ao golpe parlamentar que depôs Dilma Rousseff (já estava acumulando todo tipo de erros internacionais e nacionais).

Dessa experiência nasceu a Resistência, a corrente que Valério faz parte, que depois de romper com o PSTU – com uma posição correta – se integra como uma corrente interna do PSOL.

Naturalmente, não pretendemos nos dedicar aqui aos elementos de balanço histórico-estratégico de conjunto que não fazem parte destas observações sobre as posições do companheiro. Pretendemos debater, sim, algumas de suas definições, aquelas que nos parecem mais equivocadas do ponto de vista estratégico, sem esgotar toda a riqueza de suas notas. Um contraponto que pretendemos fazer dentro do espírito de um debate fraterno e não esquemático ou fracionário.

Brasil e Argentina

O companheiro Valério faz uma série de comparações entre as dinâmicas da Argentina e do Brasil nas quais, em geral, estamos de acordo. Além da envergadura diversa de ambos os países e da criação do MERCOSUL, que estabeleceu uma certa dinâmica de mercado comum e integração industrial nas últimas décadas, a trajetória política de ambos os países nas últimas décadas teve pontos de contato, mas também tem sido, de fato, bastante diversa.

A ditadura brasileira foi comparativamente menos sangrenta que a argentina, mas sua saída foi acordada; amortecida. Na Argentina, os militares realizaram um genocídio com 30.000 desaparecidos, mas sua queda foi um subproduto direto de uma onda de mobilizações democráticas que deixou as Forças Armadas desprestigiadas e feridas até hoje (cuidado para que, por oposição, os militares no Brasil gozem de amplo prestígio popular).[2]

No final dos anos 70, o Brasil experimentou uma ascensão no movimento operário que não se via na Argentina em nenhum momento após o classismo dos anos 70. Mas a formação da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do PT (Partido de Trabalhadores), ao mesmo tempo em que eram inicialmente grandes conquistas da classe trabalhadora (conquistas reformistas, é claro), foram progressivamente reabsorvidas pelo regime burguês; integradas ao seu funcionamento normal.

Tanto na Argentina como no Brasil, os anos 80 foram uma época de crise e instabilidade, e os anos 90 foram uma década reacionária de modo geral em ambos os casos.

Entretanto, no início dos anos 2000, as dinâmicas se tornaram divergentes. A saída do neoliberalismo menemista ocorreu através do “Argentinazo”, uma rebelião popular que estabeleceu relações de forças que estão presentes – em termos gerais – até hoje.

No Brasil, a vitória eleitoral de Lula no final de 2002 foi parte de uma operação de contenção/mediação para evitar uma rebelião popular. Ele assumiu o que em nossa opinião era um governo burguês atípico – não estritamente um governo de frente popular como foi definido na época pelo PSTU – em que as organizações do movimento de massas em coalizão com a burguesia estavam a cargo do governo nacional, com lideranças já comprovadas há mais de uma década na gestão do sistema capitalista (prefeitura de São Paulo e outras cidades, acordos de cogestão na indústria automotiva, traição à histórica greve do petróleo de 1995, etc.).

As jornadas revolucionárias de dezembro de 2001 na Argentina renovaram a experiência da ampla vanguarda do país e deram origem a toda uma série de novas experiências de luta e organização independentes; toda a esquerda foi enormemente dinamizada em termos gerais (as experiências de luta e organização indo além da consciência política, além de nos dar uma “ginástica revolucionária” bastante constante).[3] Enquanto isso, no Brasil, a enorme vanguarda dos anos 80 (aquela que ergueu o PT e a CUT, mesmo a que construiu o PSTU e as outras tendências da esquerda revolucionária), estava envelhecendo e não conseguiu se renovar, até certo ponto devido às condições objetivas: a inibição, por responsabilidade da burocracia lulista, de uma nova ascensão da luta de classes. (É impressionante que Valério nunca atribui o caráter de burocracia à direção do PT e da CUT, uma questão que abordaremos novamente abaixo).

Valério ressalta que na última década houve dois processos opostos no Brasil que reabriram a dinâmica política após o apaziguamento da luta de classes sob o governo Lula. Em 2013 houve um enorme transbordamento popular-juvenil pela esquerda ao governo Dilma Rousseff, cujo processamento político foi complexo porque a experiência se deu com um governo que afirmava ser “dos trabalhadores”…

Por outro lado, Rousseff reeleita, nos anos 2015/6 começaram as mobilizações em massa da direita reacionária que levaram a um golpe parlamentar que acabou por depor o governo Dilma, levando à assunção de Michel Temer, seu vice-presidente, que começou a impor contrarreformas profundas e reacionárias, e mais tarde à eleição do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro.

Se o pêndulo também balançou para o lado reacionário na Argentina sob Macri, seu governo não pode ser comparado ao de Bolsonaro: ele constituía um governo que era um agente direto do empresariado, reacionário, de direita, mas de forma alguma de extrema direita como o ex-capitão brasileiro.

No geral, e desde os anos 80 (embora não exatamente no final dos anos 70) as relações de forças na Argentina têm sido mais favoráveis do que no Brasil. Também aqui o tamanho da burguesia no país pesa: a burguesia brasileira, a burguesia “sub-imperialista” implantada no Brasil e o próprio lugar do país no esquema imperialista mundial é, sem dúvida, mais “pesado” do que todas essas categorias na Argentina, além de ser o país muito mais complexo e descentralizado. O peso da AMBA na Argentina (a Capital Federal mais os subúrbios proletários da grande Buenos Aires) dá uma centralidade estratégica à política, à luta da classe trabalhadora e até mesmo um impacto político incomparavelmente maior da esquerda revolucionária do que em nosso país irmão, o que diz respeito à “magica” da centralidade da política que, no caso da Argentina, se realiza potencializando nossas correntes, além de nosso peso orgânico real.

Além de várias nuances e ênfases, nossas análises gerais das relações de forças relativas em cada caso são semelhantes. Não é aqui que discordamos do camarada Valério.

O peronismo e o PT

Vamos agora a uma análise comparativa do peronismo e do PT. Eles têm trajetórias históricas distintas e caráter de classe diversificado. O peronismo foi inicialmente um movimento nacionalista burguês fundado nos anos 40 que se transformou – ao longo das décadas – em um partido neoliberal nos anos 90 e assumiu um perfil progressista sob o Kirchnerismo.

Junto com a histórica burocracia sindical ligada a ela (um aparelho muito forte que continua a controlar o núcleo mais concentrado dos trabalhadores)4, controla o movimento operário há décadas. É verdade, porém, que no caminho ficou majoritariamente a identificação política dessas mesmas massas como peronistas “de pleno direito”, por assim dizer, embora não sua ligação com os critérios reivindicativos e sindicalistas, que não foi superada (será necessária uma verdadeira revolução para superá-la).

O PT é um fenômeno mais recente e nunca teve um perfil anti-imperialista claro (a princípio, teve de forma difusa, como os outros pontos “democráticos populares” de seu programa). Era originalmente um partido reformista dos trabalhadores, não um partido burguês. Mas foi progressivamente transformando-se, com sua adaptação ao regime capitalista, em um partido operário-burguês, ou melhor, burguês-operário, que atualmente é dominado por uma camada burocrática e pequeno-burguesa de funcionários.

Valério parece apontar uma definição semelhante, mas, na realidade, não concordamos com ele quando afirma que o PT não tem nenhuma relação orgânica com nenhum setor burguês. Esta é uma definição economicista porque o partido não precisa representar uma certa fração econômica da burguesia para ter vínculos orgânicos com ela, mas este vínculo passa pela mediação do estado burguês, de ser uma parte orgânica de sua administração durante um período histórico. Sem mencionar que muitos de seus quadros passaram a administrar Fundos de Pensão, pequenas e médias empresas de comunicação e assumiram posições importantes durante os governos do PT, integrando vários de seus membros na classe média alta ou diretamente na burguesia.

Em qualquer caso, é um fato que como fenômeno de filiação política do grosso dos trabalhadores (a juventude em geral e o movimento de mulheres, negras, etc.) nenhuma das duas experiências foi totalmente superadora. Tem havido altos e baixos históricos com tendências a se separarem das massas – tendências que não foram finalmente confirmadas até agora – assim como momentos de recuperação de sua hegemonia sobre as massas.

Se estes altos e baixos foram mais visíveis na Argentina, isto se deve em grande parte ao que o próprio Valério afirma: a Argentina acabou passando por situações pré-revolucionárias nas últimas décadas que não aconteceram no Brasil.

Valério assinala que o PT dificilmente se “refunde” à esquerda, embora não feche completamente a porta. Na Argentina, todas as hipóteses de construção populista – para chamá-las de algum modo – foram absorvidas pelo peronismo, pelo kirchnerismo e pelo atual governo de Alberto Fernández. Criticar a esquerda argentina por “autoconstrução” – embora existam práticas sectárias de autoconstrução dentro dela, o que é outra coisa – corre o risco de jogar “água suja com o bebê dentro dela”, como diz o ditado.

Porque o caminho do desenvolvimento independente da esquerda revolucionária na Argentina tem sido o único caminho real nas últimas décadas com seus alcances e limites; que tem a ver com a experiência da luta de classes e, também, com os acertos e erros de cada corrente, mas que não condenam, como tal, a estratégia independente.5

Portanto, é um grave erro contrapor experiências nacionais diversas de forma sumária, como Valério o faz. Porque ao invés de defender opções táticas, eventualmente diferentes, de acordo com as diversas circunstâncias de tempo e lugar, opções muito adaptáveis, parece descartar qualquer ideia de estratégia independente, neste caso dentro do PSOL …

Estratégia e tática

Em seu balanço do PSTU, Valério comete um grave erro: confunde aspectos táticos – embora muito importantes – com aspectos estratégicos. Não é verdade que a esquerda na Argentina tenha aberto um espaço independente através de uma lógica de autoconstrução sectária; ou seja, sem bases reais e objetivas.

A Argentina não é idêntica ao Brasil em relação à experiência com o peronismo e o PT. Se na Argentina a esquerda trotskista abriu um espaço político independente real, este tem sido um subproduto de uma luta histórica – e não apenas nas últimas décadas – onde a estratégia de construir-se dentro do peronismo provou estar errada e a orientação de construir-se de forma independente estava certa.

Isto não é uma conquista do FIT ou do Nuevo MAS; uma conquista de uma tática ou meramente eleitoral, mas algo muito mais estratégico que vem de décadas atrás com um capítulo importante com a experiência do antigo MAS e antes disso com a luta de organizações como o PST e Política Obrera e até mesmo com as experiências iniciais de fundação do trotskismo no país.

Embora certas correntes tenham de fato uma lógica sectária de autoconstrução, reduzir a questão a isso é um grave erro político: parece negar, tout court, a própria possibilidade de construção independente (a palavra “autoconstrução” coloca uma necessidade “caprichosa” e não uma necessidade objetiva à questão).

A discussão sobre a independência organizacional da esquerda argentina em relação ao peronismo foi resolvida, e nos parece um retrocesso histórico cair em posições como as de alguns ex-líderes desmoralizados do MAS, que mudaram para o populismo ou chavismo e não alcançaram resultados dignos de menção, tudo à custa de desistir da independência política.6

O caso do Brasil é diferente. A construção de correntes políticas e organizativamente independentes dentro do PT, como foi o caso do morenismo nos anos 80, foi fundamental para evitar que a esquerda revolucionária capitulasse, diluísse ou desmoralizasse (como aconteceu com a SU mandelista) e para que um núcleo de quadros revolucionários pudesse ser mantido no Brasil. Não é necessário descrever todos os caminhos independentes para defender a orientação correta de construção hoje no PSOL.

Valério aponta as poucas possibilidades de “reforma revolucionária” do PT hoje, uma questão sobre a qual estamos de acordo. Ele também sublinha o esgotamento da experiência do PSTU, que parece plausível dada a série interminável de erros políticos e construtivos dessa organização.

Mas daí condenar toda experiência de construção independente como “auto-construção”, é reduzir um problema político a uma questão organizacional. O próprio PSOL é uma organização reformista de esquerda. O que o camarada propõe a sua organização? Dissolver-se completamente dentro do PSOL e abandonar qualquer construção como uma corrente independente dentro dele?

Isso poderia estar certo se o PSOL tomasse um rumo decididamente revolucionário (uma espécie de frente única revolucionária). Mas nos parece que isto seria pedir demais e não está nos cálculos de ninguém.

Nossa corrente no Brasil milita dentro do PSOL e consideramos que, apesar de todas as suas contradições e limitações, este partido amplo desempenha hoje um papel político majoritariamente progressista. A última campanha eleitoral com Boulos em São Paulo é uma prova disso.

Mas, não acreditamos que seja correto assumir a hipótese de que o PSOL como tal, como um todo, evoluirá como uma corrente revolucionária. O que não negamos, insistimos, é que o PSOL é efetivamente seu caminho de desenvolvimento hoje. Pelo contrário, a construção de fortes correntes políticas revolucionárias dentro do PSOL é uma condição necessária para que esse partido possa manter seu papel progressivo na luta de classes, na medida em que, devido à sua evolução e à debacle petista, tende a assumir cada vez mais responsabilidades políticas.

Há ainda outra teorização que sutilmente introduz Valério e nos parece errada: a crítica ao que ele chama de “partido-fração”. Segundo Valério, qualquer construção de uma corrente internacional, qualquer afirmação de uma certa identidade político-programática constituiria um “partido-fração”, incapaz de convergir com qualquer um: “O destino da esquerda revolucionária no Brasil e na Argentina é indivisível. Mas o modelo de tendências internacionais como extensão de um partido-fração com um centro em Buenos Aires não é promissor. Um centro em São Paulo não muda nada, e não foi nunca menos desanimador. Já foi tentado mais de uma vez e, mesmo quando parecia dar certo, estava errado. Foi somente a antessala de impasses intransponíveis. O internacionalismo exige uma coordenação, mas ela impõe a necessidade de uma paciente e lúcida articulação anticapitalista mais ampla.” (A esquerda revolucionária no Brasil e na Argentina, esquerda online, 13/12/20).

O internacionalismo exige coordenação, é claro. Também é verdade que é necessária uma articulação lúcida e paciente anticapitalista e é por isso, por exemplo, que nossa corrente internacional está levantando a necessidade de uma Conferência Anticapitalista que poderia ser pelo PSOL hoje melhor convocada.

Por outro lado, se Resistencia ou Valério não veem perspectivas de se constituir como uma corrente e/ou tendência internacional, estão no seu direito. Mas a redução dos problemas teórico-estratégicos e políticos a meros problemas de organização parece-nos um erro (atenção que hoje não há como ter perspectivas estratégicas sem ao menos elementos de balanço da experiência passada).

Não há oposição em se tornar uma corrente internacional a partir de uma experiência comum e conclusões comuns gerais, e convergir com outras em âmbitos mais amplos, como talvez Valério esteja pensando em relação ao “Secretariado Unificado”. 7

Por outro lado, o “partido-facção” é negado, mas não se sabe com qual perspectiva estratégica. Uma ampla organização revolucionária internacional digna desse nome não existe hoje em lugar nenhum e, se existisse, poderia se fazer parte dela como uma tendência tal como ocorreu historicamente – em termos gerais – com o bolchevismo, o luxemburguês, a esquerda holandesa, etc., no seio da Segunda Internacional.

Valério contrapõe a coordenação à construção de correntes internacionais, oposição que nos parece mecânica. Se Valério pensa que o “mandelismo” ou o “pós-mandelismo” também não tem elementos de corrente internacional que reivindica sua tradição, engana-se.

Você pode propor qualquer curso; pode-se decidir convergir com uma corrente maior ao invés de se propor construir a sua própria ou o que quer que seja, mas a redução dos problemas políticos e programáticos a questões organizativas e, ainda por cima, fora das condições reais da luta de classes, repetimos, parece-nos um erro grave. Os balanços necessários da experiência histórica devem ser tirados.

Aqui, novamente, questões de diferentes ordens se misturam: questões políticas e questões organizativas, duas ordens de problemas que não têm porquê coincidir, nem o conteúdo porquê não assumir diferentes formas organizativas. É a partir desses balanços que se formam as tendências políticas internacionais com suas concepções, programas, organizações, métodos.

Não se pode participar desses processos mais amplos de confluência começando do zero; não há geração espontânea de correntes internacionais e nacionais de vanguarda com influência de massa sem ser fruto da luta de tendências. Diluir nesse sentido é um erro fatal.

De resto, Valério acrescenta outro problema que vem da velha LIT: os problemas do chamado “partido mãe” e se a sede de uma corrente latino-americana, por exemplo, seria diferente se fosse em Buenos Aires ou em São Paulo, a que ele acrescenta que isso não resolveria nada, questão com a qual concordamos.

Mas o problema não é esse. Em primeiro lugar, o “modelo” de “Internacional” da velha LIT de “organização com centralismo democrático” era uma caricatura que só multiplicava os erros porque as decisões eram tomadas a partir de um centro com pouca e/ou nenhuma autoridade e com pouco e/ou nenhum conhecimento do terreno de cada país, o que estava – e está – errado de ponta a ponta.

Mas outra questão diferente é que dentro de uma corrente política internacional impere o puro federalismo e não se possa processar posições políticas e uma experiência comum, tomando todo o cuidado para não impor nada que não corresponda ou que signifique não respeitar cada experiência nacional.

Não é necessário proclamar-se ridiculamente uma “Internacional” como foi o caso do morenismo, nem é necessário – no sentido de algo mecanicista determinista – que tornar-se uma corrente internacional signifique assumir-se como um “partido fração” que impeça a convergência com outros ou estar em âmbitos mais amplos.

A crítica ao “partido-fração” parece ter como objetivo liquidar a importância incontornável da luta política para construir e fortalecer correntes e tendências revolucionárias em qualquer cenário político-construtivo: de forma independente, organizativamente (como na Argentina), ou no interior de partidos amplos (como no Brasil).

De qualquer forma, os textos de Valério nos instigaram a escrever esta reflexão, assim são bem-vindos.

1 Agradecemos as contribuições de nosso companheiro Antonio Soler, do SoB Brasil, na redação deste texto.

2 A ditadura na Argentina foi neoliberal e desindustrializadora, no Brasil foi desenvolvimentista.

3 As jornadas revolucionárias na Argentina se repetiram, em menor escala, nos dias 14 e 18 de dezembro de 2017, atingindo fatalmente o governo Macri. E, em geral, as experiências de ação direta com participação central da esquerda se repetiram ao longo dos anos, o que dá aos partidos argentinos uma experiência no terreno que, talvez, não esteja presente em muitos outros lugares hoje.

4 Repetimos que Valério não toma o problema da burocracia sindical, que é a outra face do peronismo e do PT no domínio de ferro sobre a classe trabalhadora.

5 De passagem, estabeleçamos que a caracterização sumária de Valério do trotskismo inglês parece sectária e unilateral – eles só poderiam ter se dedicado a “escrever e estudar” – embora seja verdade que a situação naquele país tem sido muito difícil.

6 A reescrita da história da Revolução Russa e da esquerda argentina em tom populista não parece convincente do ponto de vista da construção revolucionária, mas sim de uma rota de fuga que deixou suas próprias perspectivas estratégicas ao longo do caminho.

7 Não desconhecemos que essa corrente concentra uma acumulação e experiência política e intelectual internacional, mas também alertamos sobre sua pouca vitalidade militante independente na maioria dos grupos que a compõem, bem como seu oportunismo.

*Publicado originalmente em http://izquierdaweb.com/debate-la-izquierda-revolucionaria-en-la-argentina-y-brasil/

Tradução do espanhol: Antonio Soler