Um debate com as principais forças da FITU

Por Juan Cruz Ramat

“Em relação à democracia burguesa, há sempre dois perigos à espreita: o sectarismo ultraesquerdista – do tipo ‘terceiro período’, que perde de vista as conquistas que representam as liberdades democráticas e o perigo oportunista, que perde de vista o caráter de regime de dominação capitalista”. [1]

Finalmente, e duas semanas após o resultado das eleições no primeiro turno, as forças que compõem a FITU deram a conhecer as suas posições em relação à segunda volta. Uma espécie de “self-service” de cargos que mostra que não haverá declaração comum, e que reforça que o único grande acordo real da frente é o usufruto de cargos.

Não se trata de um debate facilista, mas importante dada a crise histórica que vive o país, submetido a um capitalismo decadente. Uma crise cujos principais culpados são a classe capitalista e os governos que administraram o país até hoje e que gerou terreno fértil para expressões de extrema direita, que colocou os trabalhadores na necessidade de rejeitar o candidato que expressa uma ameaça às suas liberdades democráticas, votando ao pior ajustador das últimas décadas. Porque se trata justamente de proteger as liberdades democráticas e rejeitar a tentativa de cooptação política levada a cabo pelo peronismo em relação a uma parcela massiva de trabalhadores que, sem depositar confiança ou apoio em Massa, usaram essa ferramenta para rejeitar Milei.

Por sua vez, os principais partidos da FITU desarmaram e desarmam os trabalhadores diante do perigo de Milei, colocando-o como mais um candidato da austeridade, ao mesmo tempo em que se eximem da luta pela independência política de um setor massivo que reverteu resultado eleitoral das PASO (Primárias Abertas, Simultâneas e Obrigatórias).

O que aconteceu no dia 22 de outubro?

O resultado do primeiro turno das eleições mostrou uma reversão (não definitiva) das PASO, um caso em que o candidato de extrema direita Milei tinha conseguido um triunfo sobre os candidatos governistas da Unión por la Pátria e Juntos por el Cambio. Assim, no dia 22 de outubro, uma enorme reação democrática dos trabalhadores e setores populares foi expressa com um contundente voto anti-Milei usando a chapa de Massa, mas sem lhe dar apoio, dada a enorme raiva contra a política de austeridade que ele está realizando em seu governo.

Este fenômeno espontâneo, de baixo e de certa forma independente (não politicamente independente ou classista, mas no sentido em que não ocorreu por causa do oficialismo ou por todo o aparato do peronismo) teve o mérito de ultrapassar vários obstáculos. De um lado, o de ter identificado Milei, não apenas como mais um ajustador, mas como inimigo das mais elementares liberdades conquistadas pelos trabalhadores no coração da democracia burguesa. Por outro, de ter posto em marcha as enormes reservas democráticas e sociais para rejeitá-lo nas urnas, apesar do governo de Massa, que leva adiante o pior ajuste que o país experimentou desde o menemismo até hoje, a pior decadência em termos de insegurança trabalhista e salarial, ou os escândalos de corrupção de Insaurralde ou “Chocolate” Rigau.

Acrescentemos a isso o mérito de uma reação democrática não classista, mas sim de classe (quem reverteu o resultado foram fundamentalmente os trabalhadores) ao ter rejeitado o operativo da burguesia e do regime político/eleitoral/midiático que sempre apresentou o candidato fascistóide Milei como apenas mais um candidato e nunca denunciou seu caráter ultrarreacionário ou que representava um perigo para as conquistas democráticas alcançadas pela mobilização operária e popular que derrotou a ditadura militar e lançou as bases mais progressivas do regime de 1983, recuperando o direito de mobilização, de organização, de liberdade de expressão, entre outros.

Temos o mérito de ter tido a política de denunciar Milei como fascistóide logo no início de 2021, quando Manuela Castañeira enfrentou o liberfacho e denunciou na TN que o seu programa económico era o de Videla (general argentino e ditador entre 1976 e 1981). Uma política que mantivemos na campanha presidencial de 2023, que defendemos e que mantivemos este ano, denunciando ao mesmo tempo a brutal política de ajustes do atual governo e propondo medidas para reduzir os lucros das grandes empresas e assim apresentar uma solução anticapitalista à crise do país.

Pelo contrário, as principais figuras da FITU (PTS/Bregman, PO/Solano) sempre colocaram um sinal equidistante entre Milei e os demais candidatos, enredaram-se nas armadilhas do regime que abriu, e abre, a porta para um inimigo das liberdades democráticas. Exemplo disso são as intervenções de Myriam Bregman que chamou Milei de “gatinho fofinho de empresários” (algo que se encaixa tranquilamente em Massa) ridicularizando o candidato de extrema direita, quando o que cabia era denunciá-lo como inimigo das liberdades democráticas diante de milhões que assistiam ao debate. Bregman permitiu-se passar sem “ses” e “mas”, e respeitando rigorosamente as “regras do debate”, que Milei dissesse que na Argentina não houve uma ditadura, mas uma guerra em que se cometeram excessos (além do fato de que ele também questionava o número de desaparecidos, questão que já havia ocorrido no governo Macri; no entanto, essa ideia de que não houve ditadura tenta colocar a discussão não só sobre o número de vítimas, mas também na própria natureza do terrorismo de Estado e seu plano sistemático de extermínio). Ou, ainda, não tendo dito uma única vez que era preciso rejeitar o crescimento de Milei e o ajuste do governo com ações nas ruas (questão sobre a qual concordamos com o PO, encontrando-nos nas primeiras ações de rua após as PASO, o que nos parece valioso) ou exigindo uma greve geral à CGT em rede nacional.

Não faltam exemplos da operação reacionária do regime democrático dos ricos para lavar a cara de Milei: a presença insuportável do liberfacho em todos os meios que existem (de programas jornalísticos a Mirtha Legrand ou Tinelli) acumulando mais horas do que qualquer outro candidato; os jantares de campanha com todo o elenco burguês que flertou por um longo período com suas propostas; a interpelação de Massa, que convidou todo o espectro político, incluindo Milei, a formar um governo de unidade nacional; a passividade com que o aparato do PJ e os partidos da coligação no poder se movimentaram ao não convocarem uma única ação nas ruas para lhe bloquearem o caminho; a traição aberta de forças que se dizem “progressistas” ou no “campo popular” como La Cámpora, que teve o cuidado de dizer que qualquer ação na rua jogava nas mãos da direita, mesmo quando pela esquerda convocávamos a mobilização contra o ato pró-ditadura de Villaruel na frente do Legislativo da capital (outro exemplo da cumplicidade do regime e de suas instituições com eventos que reivindicam governos de regimes ditatoriais como os de 1976 a 1983).

Apesar de todos esses elementos e indo além deles, as relações de forças mais profundas conquistadas com a derrota da ditadura militar se expressaram em um terreno mediado e não na luta de classes; mas mesmo assim com contundência e com força no dia da eleição, em 22 de outubro, como um tapa na cara de Milei. Esse, insistimos, é o caráter mais importante do fenômeno que chamamos de reação democrática.

O impacto dessa reação deixou a imprensa burguesa e seus editorialistas sem bússola por muito tempo. A impossibilidade de explicar fenómenos políticos e sociais fora da vida superestrutural (“como é possível que, apesar de tudo o que acontece neste governo, as pessoas tenham votado no candidato oficial?”, perguntam-se vezes sem apresentar uma resposta coerente) decorre de considerar que os trabalhadores e o movimento de massas são simplesmente destinatários passivos e acríticos da ideologia dominante, incapazes de distinguir entre dois perigos qualitativamente diferentes. E que seu papel histórico é, foi e será o de serem meros fantoches de interesses alheios, de acordos e conspirações palacianas, ou peões de “grandes homens” que os manipulam e dirigem à vontade. Muitas dessas ideologias inspiram correntes historiográficas e políticas pró-capitalistas.

Pior ainda, explicações semelhantes foram dadas pelas correntes políticas da esquerda vermelha. O PO tenta explicar o fenômeno eleitoral ocorrido devido à ação da burguesia: um “plano de luta dos grandes empresários (que) criou o clima político para deslocar parte importante da opinião pública contra Milei” (sic)[2]. Mais uma vez, a redução do papel dos que estão na base a meros escravos das manobras dos que estão no topo que, aliás, longe de travar um “plano de luta contra Milei”, incentivaram, em primeiro lugar, a equiparação de todos os candidatos e reduziram as suas diferenças a meras orientações econômicas, promovendo a opção de oposição de Bullrich em vez da de Milei, na melhor das hipóteses.

No caso do PTS, com uma nota acadêmica e um tanto pós-moderna adaptada aos cânones do Le Monde Diplomatic, diz que “os resultados são explicados pelo medo gerado em um setor da sociedade pelas propostas encarnadas por Javier Milei”[3], definição que é reiterada com mais força na declaração oficial do partido: “Só o enorme medo da vitória de Milei explica por que muitos decidiram votar no candidato oficial[4]. Ou seja, reduz o fenômeno a um medo enorme. As pessoas ficaram muito assustadas e por isso não votaram na Milei. Novamente, um olhar das alturas que, na impossibilidade de dar conta do caráter ativo da reação (justamente por isso é reação), a reduz a um fato passivo como o medo, sentimento que como tal costuma impor desmoralização e retração. Os gatilhos da reação democrática incluem, sem dúvida, a defesa das conquistas democráticas e sociais, a raiva, o medo, entre outros aspectos. Mas reduzir o fenômeno ao medo é um capricho oportunista que visa facilitar uma posição sectária adicional: “compreendemos a atitude (dos que votaram contra Milei por medo), mas não a partilhamos”.

Vimos também reduções caprichosas desse tipo quando, para explicar o voto reacionário em Milei (como nosso partido o caracterizou, além de ter alertado que Milei era uma declaração de guerra contra a classe trabalhadora, enquanto o resto da esquerda ficava em silêncio), outras correntes como o PO optaram por ver nisso simplesmente um “voto castigo” ou que “Milei havia se tornado uma espécie de ‘significante vazio'” (?) ao qual cada aderente se aproximava com sua raiva e suas exigências”[5] (PTS). Mais uma vez, a explicação antidialética que busca reduzir os fenômenos políticos a apenas uma de suas características (a raiva) para facilitar posições políticas, ora oportunistas, ora esquerdistas, quando na realidade o voto em Milei contém desclassamento, desesperança, frustração, ressentimento e, obviamente, também raiva, mas cujo conteúdo político é o de um voto reacionário.

As posições

No domingo, 29 de outubro, depois de antecipar que nosso voto seria contra Milei, mantendo a independência política de Massa, realizamos uma Convenção Nacional na qual decidimos: “Pedimos para não votar em Milei. Da mesma forma, não damos nenhum apoio político a Massa e que, com exceção de Milei, os eleitores são livres para escolher sua opção. Posicionamo-nos contra um possível governo de Unidade Nacional de Massa, contra o ajuste econômico e em defesa das liberdades democráticas e de organização dos explorados e oprimidos”, ao que juntamos um apelo à unidade de toda a esquerda que vá além das eleições e construa a partir das lutas uma solução anticapitalista.

Essa formulação política absolutamente clara começa com o voto não em Milei e depois dá liberdade de ação no que diz respeito ao voto, sem incentivar nenhuma alternativa em particular (além da típica campanha stalinista do PTS mentindo sobre um suposto chamado nosso para votar em Massa), mas adverte que, independentemente de como o voto é expresso, a independência política é essencial e é essencial alertar que, no caso de um governo de Unidade Nacional de Massa, será uma intensificação do ajuste junto com o FMI. Essa formulação se baseia em uma urgência política que também tem a ver com cuidar o caráter independente da rejeição de Milei e não estupidamente entregá-la ao kirchnerismo ou ao peronismo.

Por sua vez, o PTS definiu de forma confusa e vergonhosa uma posição Nem-Nem: “Claro que pedimos para não votar em Milei, porém, da esquerda não podemos dar nenhum apoio político ou eleitoral a Massa”[6]. A meio do caminho e sem dizer “votem em branco porque as diferenças entre os dois candidatos são de grau, mais ou menos de ajuste”, tentam escapar a uma discussão política e a uma definição táctica (mas muito importante). Mas como estamos acostumados em uma nova encenação de “se você não gosta da minha posição, eu tenho outra”, dias depois de sua longa declaração política, Castillo disse no La Nación: “Nossa posição é não votar em Milei e, ao mesmo tempo, não dar apoio político a Massa”, evitando declarar uma posição eleitoral. Um jogo em que o partido político com desvios eleitorais esconde nada mais nada menos do que a sua política e a sua definição eleitoral…

Por sua vez, o PO foi mais claro, embora sem declarar explicitamente sua orientação de voto: “Não apoiamos politicamente nem votamos em Milei ou Massa”. Foram  as palavras de Solano que dizia: “Se você votar no Milei, ganha um Videla”.

O MST, por sua vez, fez um apelo ao “Não vote em Milei” para acrescentar que “não vamos pedir votos em branco ou fazer campanha nesse sentido”, mas que “não daremos apoio político nem votaremos em Massa”. Se for uma questão de falta de clareza, a formulação é impecável. Ousamos dizer que expressam um abstencionismo mais criptografado do que um bitcoin.

Por fim, a IS (Izquierda Socialista) fez o apelo a um “voto crítico em Massa, o que significa votar nele sem lhe dar qualquer apoio político, nem ao ministro-candidato Massa, nem ao seu possível governo peronista ou unidade nacional”, uma posição que não partilhamos, pois dilui desnecessariamente as fronteiras entre a esquerda e o partido no poder, confundindo o caráter progressivo do voto não em Milei (que poderiam ter resolvido com liberdade de ação) em uma chamada direta ao voto em Massa com críticas. Precisamente, quando se trata de cuidar das liberdades democráticas, mas sem desarmar diante da ofensiva do peronismo que visa tanto gerar ilusões em Massa, de um lado, quanto explicitar uma iniciativa para que organizações de base, sindicatos e coletivos, chamem o voto em Massa, colocando em risco a independência política, de outro. [7]

A discussão de fundo

“Há diferença no “conteúdo de classe” dos dois regimes? Se a questão é feita apenas sobre a perspectiva da classe dominante, não faz diferença. Mas se pegarmos a situação e as relações recíprocas entre todas as classes, do ponto de vista do proletariado, a diferença é muito grande. A questão deve ser considerada do ponto de vista da democracia proletária. É o único critério seguro quando se trata de saber onde e quando o regime fascista substitui a reação policial ‘normal’ do capitalismo apodrecido.” [8]  

Os ensinamentos políticos e metodológicos de Trotsky em termos de distinguir o que está em jogo para a classe trabalhadora diante de cada mudança de regime burguês (por regime queremos dizer as diferentes relações que se estabelecem entre o Estado, a economia e as classes sociais) permanecem absolutamente atuais, mesmo quando é claro que a possibilidade de um regime fascista não é levantada no país.

Muito distante do fascismo do século 20 na Alemanha e em outros países, a extrema direita na Argentina hoje não tem uma base social de massas mobilizada e organizada, longe disso. Ao mesmo tempo, não há nenhum processo revolucionário ligado à ascensão da classe trabalhadora no momento no mundo ou no país, como houve no início do século 20, o que também explica o fascismo como uma reação contrarrevolucionária. Com isso, queremos ressaltar que todo perigo tem seu contexto histórico, e que no contexto de um movimento de massas socialista ou classista, o perigo de Milei, mesmo sem ter uma organização de massas, não pode ser subestimado.

É claro que um fenômeno político eleitoral é uma coisa, como Milei é por enquanto, e outra bem diferente é uma força política fascista com inserção de massas, e que um triunfo eleitoral não significa mecanicamente uma mudança de regime para um com elementos bonapartistas ou simplesmente bonapartistas. E, de qualquer forma, um ataque aberto às liberdades democráticas deve ser consumado no terreno da luta de classes. Isso é importante porque, se o ultraesquerdismo parte, nesse caso, da subestimação política dos ataques às liberdades democráticas, o oportunismo (a concessão política às forças capitalistas e seu regime) se baseia na superestimação política dos perigos. [9]

Mas mesmo que as eleições sejam um evento político superestrutural sem ligação mecânica com a luta de classes (por isso dizemos que as eleições são um reflexo distorcido da luta de classes), elas não estão absolutamente descoladas das relações de forças. Dito de forma clara: um resultado eleitoral reacionário (não apenas adverso) como o triunfo de Milei e Villarruel poderia eventualmente ter um efeito depressivo sobre as forças sociais (clima que foi vivido em parte após o resultado das PASO) facilitando um rumo reacionário e a subjugação de nossas liberdades, além de concentrar nem mais nem menos do que os recursos repressivos do Estado (Forças Armadas) nas mãos de um liberfacho[10].

Acrescentemos que, ao contrário de Bolsonaro, que respondia em ultima instância às Forças Armadas e teve uma carreira parlamentar de décadas, ou Trump, que reflete o Partido Republicano, Milei é um personagem lumpenburguês ligado ao capital financeiro, mas inorgânico. Ou seja, não é diretamente responsável perante a burguesia, ou perante as Forças Armadas, ou perante um partido institucional, o que o torna mais volátil e perigoso pela falta de contrapesos. Eventos superestruturais como as eleições têm impacto na luta de classes e nas relações de forças (também o contrário), ignorar isso é um erro antidialético e um grande crime político diante de nossa própria classe.

O capitalismo explora e oprime os trabalhadores independentemente do regime político de dominação burguesa (democracia, bonapartismo, ditadura, fascismo), mas não é o mesmo lutar contra a exploração e a opressão, preservando o direito de protestar e se organizar como é sob um regime que o proíbe e proíbe. Esse é o ensinamento de Trotsky, e o ABC do socialismo revolucionário, que atropela o economicismo tosco que iguala o inigualável em nome do “conteúdo de classe” de cada regime (no caso) dos vários candidatos capitalistas.

Além das diferenças de forma, tanto o PTS quanto o PO partem de uma concepção ultraesquerdista, mecânica e economicista, na qual todo o arco político é equiparado em termos de serem diferentes expressões da defesa dos interesses da classe dominante. Essa equalização mecânica e economicista (são todos políticos da burguesia) esconde perigosamente dos trabalhadores que não é a mesma coisa enfrentar um ajuste com liberdades e direitos democráticos como é sem eles. Nossa defesa das conquistas de direitos dos trabalhadores dentro da democracia dos ricos é incondicional, algo que parece ser secundário para o PTS e o PO.

Tínhamos visto um pouco disso quando ocorreu a tentativa de assassinato contra CFK, quando o PTS se recusou a se mobilizar contra um óbvio ataque à liberdades democráticas. De nossa parte, marchamos de forma independente em defesa das liberdades, nas ruas (não no Twitter) e convergimos com enormes setores que, sem se dizerem pró-governo, perceberam a gravidade do fato. Não fosse a enorme mobilização ocorrida a despeito das principais lideranças do peronismo, La Cámpora e da CGT, é incerto que rumo poderia ter sido desenvolvido, deixando a direção dos assuntos políticos inteiramente a cargo do governo e das forças do regime.

Junto a isso, acrescentemos que é uma mecânica tosca equiparar tática eleitoral (a orientação de um voto) com política. As políticas são sempre definidas no quadro de profundas concepções revolucionárias e princípios de classe, do contexto internacional e nacional e das relações de forças (Gramsci). A defesa incondicional das conquistas democráticas é uma questão de princípio, pois elas representam não apenas uma conquista dos explorados e oprimidos a partir da classes, mas também permitem melhores condições para o nosso objetivo final, que é a luta pelo poder e pela revolução.

Na ausência de luta de classes e dado que o próximo governo será definido por meios eleitorais, as posições políticas independentes devem ser expressas de forma prática em uma tática eleitoral. A desastrosa equalização política feita entre PTS e PO resulta em uma tática eleitoral igualmente desastrosa, desvalorizando os critérios de princípio. Não é verdade, exceto para os políticos daltônicos que não conseguem ver os variados tons de cinza, que o voto branco é sempre a decantação mecânica da independência política. Depende do contexto e das conquistas a serem protegidas. [11]

Dito isso, antecipamos que, mesmo que Milei vença, seu governo minoritário terá que enfrentar o movimento sindical organizado em sindicatos (veremos qual o papel da burocracia sindical e qual o nível de transbordamento que pode emergir das bases), o movimento estudantil e seus centros estudantis, o movimento de mulheres e diversidade, e o ao movimento de direitos humanos e aos organismos democráticos de longa tradição, e às faixas de massas e organizações que levantarão a urgência de frentes únicas e a mais ampla unidade de ação.

Esse é o grande temor da burguesia: a possibilidade de um governo abertamente reacionário revelar as enormes reservas democráticas, sociais e operárias que a dominarão, em um clima de radicalização da luta de classes. Nem um governo de Unidade Nacional com Massa à frente resolverá facilmente o obstáculo estratégico da burguesia. Seria um governo de crise com elementos reacionários (embora com mais mediações) em meio a uma situação econômica e social de enorme crise sem qualquer garantia de sucesso quando se trata de desafiar o equilíbrio de forças do país.

Por fim, gostaríamos de destacar que nosso partido, o Nuevo MAS, com Manuela Castañeira à frente, realizou um giro “antieleitoral” (não no sentido de rejeitar as eleições, mas no sentido de se distanciar dos elementos reacionários do regime eleitoral) nos dias 9 e 10 de agosto, dias antes das PASO, quando o brutal assassinato de uma menina no sul da Grande Buenos Aires foi instrumentalizado por todas as forças políticas (desde Milei, Bullrich, Larreta e Massa arrastando a FITU para trás) e a mídia para suspender o encerramento da campanha e instalar um debate de direita horas antes do início das eleições. Nosso partido mantém a honra de ter sido a única força política a ter mantido o fechamento de campanha com uma mobilização nas ruas, e de ter rejeitado a armadilha midiática de ir aos canais da agenda reacionária dos que estão no topo, que pretendem acabar com a crise social gerada pelo capitalismo e seus governos reduzindo a maioridade penal. Um giro que se confirmou completamente correto e que nos permitiu, à saída das PASO, com o triunfo de Milei e a brutal desvalorização de Massa logo a seguir, promover e incentivar dias de luta que invertessem o resultado reacionário, para além do fato de não terem conseguido como tal ser um canal de expressão de sectores de massas.

Deixamos este texto como uma contribuição ao debate entre as correntes de esquerda e fora dela, com o compromisso estratégico de refundar uma coalizão de esquerda que vá além do plano eleitoral, que seja um polo de referência para milhões e permita a organização das lutas que virão, de uma forma ou de outra, e abra um rumo independente para a construção de uma alternativa anticapitalista e socialista.

[1] Roberto Sáenz. Notas sobre o marxismo, o Estado e o bonapartismo.

[2] A Armadilha do Segundo Turno, Gabriel Solano.

[3] Massa e Milei para a votação. Do “voto de punição” ao “voto defensivo”, Fernando Rosso.

[4] Declaração. Posição do PTS sobre a situação política nacional e o segundo turno.

[5] Massa e Milei para a votação. Do “voto de punição” ao “voto defensivo”, Fernando Rosso.

[6] Declaração. Posição do PTS sobre a situação política nacional e o segundo turno.

[7] Recentemente vimos essa ofensiva na CPR (Coordenadoria Provincial dos Residentes Hospitalares de Buenos Aires) onde um pequeno grupo de militantes peronistas forçou uma assembleia mentirosa concedida pelo PTS na qual apenas 28 militantes participaram, e queria impor um voto a Massa, uma questão que conseguimos rejeitar com absoluto protagonismo, embora a ofensiva continue.

Esta ofensiva, pelo contrário, foi bem-sucedida noutra falsa assembleia de moradores da Cidade de Buenos Aires, na qual 60 militantes peronistas impuseram ao PTS e ao PO (que até então lideravam o corpo da frente única, e que em 2022 conquistaram um aumento salarial) o slogan “Nunca com Milei, a assembleia da CABA pede um voto para Massa”. É evidente que a formulação político-eleitoral de ambos os partidos os inibe de defender a independência política dos espaços. Neste aspecto, a posição da IS peca por excesso e também por não definir corretamente a linha tática um vez que chamam ao voto crítico em Massa.

Esta ofensiva de cooptação peronista está a ser desenvolvida noutras esferas com o pronunciamento de atores, cientistas e outros coletivos com um apelo ao voto em Massa sem qualquer tipo de delimitação.

[8] Trotsky. Problemas vitais do proletariado alemão (1932)

[9] “Nunca é conveniente abusar de definições e/ou fazer generalizações muito abstratas, como ‘todo regime burguês tende ao bonapartismo, um deslize bastante clássico’. Isso é importante, porque se colocar defensivamente em uma situação que não o merece é uma das bases do oportunismo”. Roberto Sáenz. Notas sobre o Marxismo, o Estado e o Bonapartismo.

[10] Esse fato elementar também não foi percebido pelo PO em sua extensa declaração, quando afirma que “está claro que Milei (após o resultado da eleição de 22 de outubro) não reuniu os recursos políticos para realizar essa tentativa (de alterar o regime político)”. Tentar resolver por meio de análises superestruturais o que nem as eleições nem a luta de classes definiram é perigosamente pedante e antimarxista. Além disso, se Milei vencer, não está claro que ele não possa “reunir os recursos políticos” para realizar essa tentativa; pelo contrário, parece ser o contrário.

[11] Lembremos que na votação entre Macri e Scioli pedimos o voto em branco, não porque fossem iguais, já que ambos expressavam diferentes graus de exploração, neoliberal em um caso, liberal-social no outro, mas porque em nenhum dos casos eles questionavam abertamente os direitos democráticos, eram duas variantes de ajuste dentro da estrutura do mesmo regime de dominação. Nesse caso, era apropriado expressar sua rejeição a ambos os candidatos pedindo um voto em branco.