Um relato apologético do estalinismo

Uma polêmica com Emilio Albamonte sobre o balanço do século 20, o estalinismo e a revolução socialista

“(…) o movimento operário, que aparentemente estava derrotado sai com um resultado muito mais contraditório da guerra. A URSS não apenas manteve seu território, mas avançou em direção aos Bálcãs, Europa Oriental, até ocupar metade da Alemanha capitalista, um resultado inesperado para todo o mundo (…) as economias planejadas, embora burocráticas, haviam expropriado os capitalistas, e os estados operários deformados e degenerados, tiram um terço da humanidade da valorização do capital (…) Stalin saiu triunfante e ampliou o prestígio daquela economia planejada – burocraticamente deformada -, a economia da União Soviética cresceu de forma constante. Aliada à China, elas começaram a crescer e a desafiar a ordem mundial.” (Emilio Albamonte, “O método marxista e a atualidade da época de crise, guerras e revoluções”, esquerda, 20/12/2020)
ROBERTO SAENZ

Recentemente, o líder do PTS (Partido Socialista dos Trabalhadores, Argentina), Emilio Albamonte, fez uma palestra pelo Zoom para sua militância abordando alguns elementos da situação internacional. Na verdade, mais do que uma intervenção sobre a situação, ele procurou propor uma visão panorâmica da situação mundial, por assim dizer, estabelecendo uma visão mais geral das últimas décadas.

Sua intervenção contém algumas definições gerais do período atual com o qual concordamos, mas é permeada por um balanço equivocado do século passado que desemboca em análises do presente.

Fatores objetivos e subjetivos

Albamonte começa por salientar que a análise da situação mundial requer a combinação do estudo da economia internacional, das relações entre os Estados e a luta de classes, questão tirada da abordagem clássica de Leon Trotsky e que faz parte do ABC da análise internacional. Nesta abordagem geral, embora ele insista que o elemento determinante em última instância é a luta de classes, na realidade, Albamonte desenvolve uma análise onde, especialmente na segunda metade do século passado, sem dizer que a água vai água vem, ele passa para a análise das relações entre Estados. Em outras palavras, a centralidade da análise está situada nestas relações e não na luta entre as classes.

Além disso, como Albamonte coloca suas esperanças naqueles elementos objetivos que tiram os explorados e oprimidos de sua vida cotidiana e os impulsionam a uma ação revolucionária, o que é uma verdadeira determinação (“sofrimento além do habitual”, ele aponta; enfatizamos a mesma ideia em nossas palestras), Albamonte tende, no entanto, a subestimar em grande parte os fatores subjetivos. Isto acontece ainda que, paradoxalmente, ele seja ao mesmo tempo um defensor de uma ideia de partido como um resumo de toda a subjetividade da classe trabalhadora; existe o partido e nada mais do que ele em matéria de subjetividade dos explorados e oprimidos; uma abordagem da organização revolucionária que acaba um tanto abstrata; sem “solo nutritivo” para se desenvolver e construir-se.

O elemento da chamada “pressão objetiva” é real. É assim que funcionam as grandes crises que dão origem às revoluções sociais. Entretanto, o que falta na análise de Albamonte, insistimos, não é apenas a análise estrutural da situação atual da classe trabalhadora em termos gerais, a massiva proletarização do mundo, mas, sobretudo, seus elementos subjetivos: a classe trabalhadora como movimento operário e consciência não é analisada. Ou é analisada apenas, como indicamos acima, por meio de suas direções. Tudo parece ser um jogo de direções abstraídas completamente de suas raízes dentro das massas; todas as outras determinações da subjetividade dos trabalhadores não contam em nada. E, sobretudo, a crise da alternativa socialista, que ainda hoje existe como subproduto das frustrações do século XX, e que tem sua importância sobretudo no momento de realizar um balanço para relançar a batalha pelo socialismo, não conta.

Albamonte descarta completamente a dificuldade de não haver hoje um movimento de trabalhadores socialistas como havia há um século, o que não é uma dificuldade absoluta, é claro, mas é um problema que ainda tem que ser resolvido.

Por outro lado, é notável que em sua intervenção não aja lugar para a crise ecológica que a humanidade capitalista está atravessando e da qual faz parte a atual pandemia, que é um relato sem sensibilidade para os problemas reais, cotidianos, que afetam grandes setores daqueles que estão na base, separado das experiências reais das pessoas de carne e osso, tema que não tem lugar em sua longa intervenção1.

Em todo caso, na realidade, não é nisso que discordamos mais fundamentalmente de Albamonte, nem em sua avaliação do longo estágio de retrocessos que significou o neoliberalismo capitalista das últimas décadas, em relação ao qual temos uma abordagem semelhante, embora seu ângulo, acima de todos os efeitos “ideológicos”, esteja desligado da análise da crise da alternativa socialista, dando um ar um tanto abstrato à abordagem (embora a ideologia neoliberal, competitiva de todos contra todos, seja um elemento real).

A Revolução Russa como um evento estratégico

Mas o que ressalta dramaticamente na análise de Albamonte é sua visão do século passado e as consequências que esta experiência tem até hoje.

Basicamente, Albamonte divide a história do século passado em três partes. A primeira etapa seria (é) dos anos 20 aos 40, que foi marcada por grandes revoluções, começando com a Revolução Russa, que Albamonte não nomeia, mas que terminou em grandes derrotas. Sendo assim, no sentido amplo do termo, nenhuma avaliação é feita do interior destes processos, nem é apontado que foram eventos históricos marcados por revoluções socialistas – triunfantes e derrotadas – propriamente ditas, clássicas, com a centralidade da classe trabalhadora e o papel de enorme importância da nossa histórica corrente marxista revolucionária.

A segunda grande etapa é a do período imediato do pós-guerra, onde se vinha das grandes derrotas históricas dos anos 30, mas como subproduto das condições objetivas, segundo Albamonte e em parte realmente, grandes triunfos teriam sido obtidos expropriando um terço do mundo dos capitalistas.

A terceira é a do neoliberalismo (dos anos 80 até a crise de 2008) e, finalmente, a quarta é a atual a partir de 2008, com uma lenta tendência a reverter este ciclo de retrocessos que começou nos anos 70, uma questão sobre a qual estamos de modo geral de acordo. Albamonte fala que estamos “no limite do período de restauração neoliberal”, e nós apontamos que estamos vivendo um período de reinício da experiência histórica dos explorados e oprimidos; duas definições que podem ser complementares.

Porém, a visão de mundo e da situação política internacional, historicamente apreciada, é tão esquemática que acaba sendo, paradoxalmente, uma narrativa que de fato rebaixa a luta de classes: o papel dos sujeitos sociais e políticos, a consciência, programas, direções, etc., com a esperança de que a realidade objetiva seja o que, em última instância, resolverá nossos problemas …

De resto, no segundo pós-guerra todos os processos teriam sido um progresso, como na etapa anterior, aquela imediatamente após a Revolução Russa, todos foram retrocessos e, sobretudo, esses eventos não são analisados ​​criticamente.

Mas a realidade do século passado e suas consequências até hoje, tem sido muito mais contraditória. Ao contrário de Albamonte, acreditamos que o evento estratégico do século XX, aquele que acabou por enquadrar todos os desenvolvimentos junto com a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão dos anos 1930, foram os eventos que ocorreram em torno da Revolução Russa e subsequentes contrarrevoluções que desencadearam no surgimento do fascismo e do stalinismo; uma análise diferente da de Albamonte e em geral do trotskismo do segunda pós-guerra. A Revolução Russa foi uma comoção internacional de tal magnitude que continuou a “repercutir” durante todo o século.

A experiência da classe trabalhadora com suas organizações tomando o poder acompanhadas do campesinato e de todos os explorados e oprimidos, deu origem a um elã emancipatório sem igual – não apenas emancipatório, mas auto-emancipatório (Roland Lew) -, histórico. Uma revolução feita de baixo para cima, com a direção consciente da classe trabalhadora e do resto dos explorados e oprimidos que, além disso, teve repercussões nos quatro cantos do globo e deu origem a uma ascensão socialista; ciente de que estamos falando de uma ascensão propriamente socialista da luta de classes.

Além da triunfante Revolução Russa, seguiu-se um conjunto de revoluções operárias e socialistas derrotadas (húngara, alemã, chinesa, espanhola, etc.), que constituíram eventos históricos com centralidade da classe trabalhadora consciente na revolução e que se repetiram, também com derrotas, mas de forma muito significativa, tanto nas revoluções antiburocráticas do pós-guerra (RDA, Hungria, Polônia e Tchecoslováquia, esmagadas pelos tanques stalinistas2), e na Revolução Boliviana de 1952, o Maio francês, o Cordobazo, etc., embora os últimos não se tornaram revoluções.

Consequentemente, o marxismo revolucionário, o bolchevismo e outras tendências socialistas revolucionárias – trotskismo inicial, luxemburguismo, gramscianismo, etc., por assim dizer – tiveram um papel de liderança que as várias correntes do trotskismo não foram capazes de recuperar posteriormente – embora a história seja medida em outros tempos que não em algumas dezenas de anos e está sempre aberta e depende, até certo ponto e a partir de certo momento, de nós, da nossa ação.

A maior revolução histórica deu origem aos maiores fenômenos contrarrevolucionários que existiram na história da humanidade: nazismo e fascismo (que não eram exatamente a mesma coisa; o primeiro era mais virulento) e stalinismo; duas “almas gêmeas”, como Trotsky as chamaria, que tiveram consequências históricas ao longo do século passado e sem as quais as décadas subsequentes não poderiam ser compreendidas. Fenômenos contrarrevolucionários “gêmeos” o fascismo e o stalinismo, mas evidentemente de natureza social diferente.

Nos países do capitalismo ocidental, no caso europeu de mãos dadas com a socialdemocracia, e nos Estados Unidos por outras vias mais diretas (o New Deal e etc.), o imperialismo se entrincheirou em uma democracia burguesa imperialista, primeiro “sitiada” de certa forma pela polarização da revolução e contrarrevolução e depois parcialmente legitimada pela crescente burocratização da URSS e pelo surgimento do nazismo, bem como posteriormente pela derrota do nazismo.

As derrotas e retrocessos do final dos anos 1920 e 1930 (“a meia-noite do século”, como Victor Serge definiria o período), tiveram consequências dramáticas no que se seguiu, mesmo que as crises e guerras realmente tenham gerado novas revoluções – revoluções anticapitalistas, mas não socialistas; voltaremos a isso – bem como a novos fenômenos como a expropriação dos capitalistas sem qualquer revolução através da ocupação de países inteiros pelo Exército Vermelho estalinizado. E isso sem falar na expropriação camponesa na URSS no início dos anos 1930 por meio da contrarrevolução stalinista. (Albamonte continua a defender a trilogia de Isaac Deutscher sobre Trotsky, que contra todas as pesquisas historiográficas das últimas décadas apresenta a coletivização forçada e a industrialização acelerada como a “revolução de cima de Stalin ainda mais profunda que a Revolução Russa de 1917″…)

A eclosão da Segunda Guerra Mundial foi uma derrota colossal para os explorados e oprimidos em todo o mundo, assim como, distorcidamente, a derrota do nazismo e do fascismo foi um triunfo democrático colossal.

A guerra foi Inter imperialista, de fato, assim como uma guerra contrarrevolucionária contra a URSS, que mesmo que já não fosse um Estado operário – questão em aberto até quando o foi; inclinamo-nos a pensar que deixou de sê-lo na década de 1930 -, ainda era um país onde o capitalismo havia sido expropriado3. No entanto, a herança das derrotas das classes trabalhadoras mais fortes e tradicionais do centro do mundo não deixaria de ter seu peso no desfecho dos acontecimentos do segundo pós-guerra.

Como avaliar as etapas da luta de classes?

Nesse ponto, o relato de Albamonte se separa da luta de classes e se torna uma disputa entre Eestados; mesmo os Estados “operários” seriam os porta-estandartes da história e não a própria luta de classes (uma visão estatista em conflito com o marxismo revolucionário4). As consequências disso é que a análise internacional se baseia em bases de campo, Leste-Oeste, na ideia do “confronto entre dois sistemas sociais”, no conceito de que o stalinismo espalhou a “revolução socialista” em todo o mundo após a saída da guerra mundial …

No entanto, isso nada mais é do que o vulgar relato pablista (do líder da Quarta Internacional, Michel Pablo, que no início dos anos 1950 manteve uma orientação seguidista do stalinismo que terminou na divisão da IV em 1953) e não marxista revolucionário que, colocado nestes termos, e embora as novas gerações pouco saibam desse debate, deixou o marxismo revolucionário, o trotskismo, sem justificativa histórica; um “pablismo tardio e adornado” poderíamos chamar a narrativa de Albamonte.

No final da década de 1980, o Muro de Berlim e o stalinismo caíram e o capitalismo foi restaurado. Mas o que Albamonte não aponta é que cai como uma fruta madura – bastante podre! Ou seja: a explicação desta queda ignominiosa, sem dor nem glória, deve ser buscada – não há outra explicação materialista possível, que Albamonte não dá – no que aconteceu nas décadas anteriores, fundamentalmente, na derrota histórica da classe trabalhadora. na ex-URSS, em seu próprio Estado, nos anos 1930, assim como nas derrotas das revoltas antiburocráticas no Leste Europeu.

Nada se explica sobre o final do século XX (o “curto século XX”), e também o início do XXI, sem nos referir às consequências estratégicas daqueles anos, da dita contrarrevolução, ainda que, por outro lado, está também não evitou imensas conquistas democráticas, antiimperialistas e mesmo anticapitalistas mas não propriamente socialistas, na medida em que não trouxeram o poder à classe trabalhadora como Albamonte erroneamente afirma: “(…) os resultados da luta de classes dão que os trabalhadores chineses aproveitam a situação para tomar o poder e entrar em Pequim em janeiro de 1949, enquanto a URSS pode estender seu território ocupando todo o Leste Europeu ”. Não foi o que aconteceu nem na China, nem, muito menos, em nenhum dos países do Leste Europeu ocupados pelo burocrático Exército Vermelho (a extensão da influência da URSS a novos territórios não configurou nenhuma revolução) nem, portanto, eles realmente abriram a transição socialista para além da conquista progressiva da expropriação burguesa5.

O relato simplista de Albamonte joga todo esse balanço ao mar; um balanço muito mais matizado e compartilhado, mesmo em termos gerais, por muitas correntes do trotskismo “ortodoxo”. Em contrapartida, Albamonte nos apresenta um relato no estilo de Eric Hobsbawm, um historiador stalinista atualizado que justifica Stalin ou, logicamente, em Isaac Deutscher, um historiador da direita trotskista, que criticou em sua obra o fundador de nosso movimento em nome do pragmatismo. Segundo ele, Trotsky teria sido “o maior expoente do marxismo clássico”, mas suas análises não teriam sido válidas durante os anos 1930 e depois porque a revolução teria ocorrido de outra forma, afirma Deutscher em sua biografia do grande revolucionário russo.

E de fato a revolução aconteceu de forma diferente. Mas o problema é que não se pode dar a todos os processos a conotação de “socialista” e estudar criticamente o que realmente estava acontecendo sob nossos olhos. (Em qualquer caso, e como digressão, o pragmatismo não é, simplesmente partindo dos acontecimentos como eles são, a obrigação de todos os revolucionários de não serem meros propagandistas, mas de se recusar a se adaptar mecanicamente a eles a fim de tentar transformá-los).

Albamonte assinala que nas últimas décadas a acumulação militante tem sido muito lenta para todos nós que acumulamos forças (há também as correntes que se desacumularam), o que é um fato; mas ele não dá uma explicação materialista para o fenômeno. Na verdade, ele aponta para o baixo nível da luta de classes, bem como para o domínio do neoliberalismo, o que está bem. Mas lhe escapa completamente a laboriosa reconstrução da consciência socialista da classe trabalhadora; classe trabalhadora que deve “digerir” o balanço das primeiras experiências socialistas e/ou anticapitalistas especialmente nos países onde estas ocorreram e que ainda são de alguma forma um “buraco negro” do ponto de vista estratégico revolucionário (especialmente a ex-URSS e os países do Leste Europeu; a China é mais dinâmica).

Albamonte pode evitar isso porque o núcleo de sua corrente está na Argentina… Mas seu informe carece da sensibilidade e das nuances de análise necessárias para realmente fincar pé na Europa, sem mencionar os países do Leste Europeu, a ex-URSS ou mesmo a China (Sobre a China recomendamos a leitura de Au Loong Yu, um marxista de Hong Kong que é um ponto de referência fundamental como porta de entrada para entender o que está acontecendo no gigante oriental).

Ou seja: um balanço dedicado não apenas à evolução do capitalismo, mas também, e estrategicamente, a experiências fracassadas não capitalistas, sem as quais a luta pelo socialismo não pode realmente ser relançada.

Pode ser que um relato apologético da história seja mais prático para empolgar; também pode ser que mostrar uma ilusão (supostamente a ex-URSS da segunda metade do século passado) seja uma espécie de placebo para dizer “pode ser feito”; mas isso é puro pragmatismo: é inútil se não for mediado por uma avaliação radical dos eventos históricos, algo que Albamonte não parece disposto a enfrentar.

O PTS elaborou sobre estratégia e outros tópicos que têm seu valor além das nuances e/ou diferenças que temos com eles. Mas o que sempre lhe faltou foi sua própria elaboração real sobre o balanço do estalinismo, atualizada, aliás, de acordo com os aspectos mais sérios da historiografia marxista das últimas décadas; e o que estamos dizendo é um fato, não uma afirmação arbitrária6.

Albamonte apresenta um relato mecânico das etapas da luta de classes; eles se sucedem como que “um atrás da outra”; elas se “sobre imprimem” esquematicamente, por assim dizer, mas nunca de forma dialética: no novo, o velho não subsiste. Nisso ele se parece com a marxista-estalinista Louise Althusser, que não reconheceu a diacronia, ou seja, a análise histórica dos processos, mas apenas a sobreposição de novas “sincronicidades” (ou seja, ele não foi capaz de explicar o surgimento do novo). Mas a história real não funciona assim. Toda nova etapa contém desenvolvimentos parciais da anterior (o conhecido conceito hegeliano, tomado por Marx, de Aufhebung, para superar a conservação, refere-se a isto; às heranças do passado no presente – ao que podemos acrescentar as potencialidades do futuro7).

A etapa revolucionária socialista de 1920 a 1940, mais ou menos falando, teve que lidar com a “resistência dos materiais” da etapa anterior: o atraso das forças produtivas e o isolamento da revolução na URSS, um movimento operário no Ocidente dominado pela socialdemocracia, e assim por diante. A etapa revolucionária, mas não socialista, do segundo pós-guerra teve que se medir, por sua vez, contra o legado das derrotas do fascismo e do estalinismo em termos da atomização das maiores classes trabalhadoras e da burocratização da maior revolução da história da humanidade; a revolução social acabou sendo deslocada para o Leste com todas as consequências estratégicas que este fato teve, o que, de certa forma, foi um subproduto dos acordos de Yalta e Potsdam onde Stalin acordou, de forma traidora, em ficar com a periferia em troca de deixar o centro do mundo para o imperialismo norte-americano. Mas este elemento clássico da análise do trotskismo do pós-guerra também não aparece no relato de Albamonte.

A realidade é maior, de fato. E é por isso que, apesar de tudo, houve imensas revoluções anticapitalistas sob a pressão de grandes guerras e catástrofes econômicas e sociais como subproduto da Segunda Guerra Mundial. Mas o legado do período anterior impediu a classe trabalhadora de tomar o poder. Este é um fato material que nenhuma sociologia vulgar pode resolver: as revoluções do pós-guerra – e atenção que nem todos os processos consistiam em revoluções – eram anticapitalistas, mas não socialistas.9

Mesmo o período neoliberal tem suas contradições: os burgueses avançaram na restauração capitalista em um terço do globo, impuseram reveses nas condições de exploração dos trabalhadores mas, contraditoriamente, mesmo sem radicalização, é verdade, também, que conseguiram conquistar direitos democráticos que só um analfabeto poderia ver como meras concessões burguesas…

Grosso modo, a primeira metade do século XX foi a das maiores revoluções e contrarrevoluções da história da humanidade; a segunda metade expressou tanto a consolidação da hegemonia americana quanto o surgimento de revoluções anticapitalistas sem socialismo (para ser justo, a segunda revolução histórica do século foi a Revolução Chinesa de 1949, apesar de não a considerarmos socialista), e a coexistência pacífica entre o estalinismo e o imperialismo, que acabaria fazendo a burocracia ajoelhar-se e perder na competição puramente econômica e, agora, o período em que o capitalismo neoliberal parece estar atingindo seus limites… Mas toda essa análise admite nuances que, se não forem apreciadas, permanecem vulgares; pelo menos vulgar do ponto de vista do marxismo revolucionário.

O estalinismo o fez

O texto de Albamonte tem vários problemas factuais para não mencionar erros – e horrores – teóricos e estratégicos que só podemos abordar aqui alguns pontos mais grossos10. Albamonte vê a URSS estalinista dos anos 40 como um aríete da revolução socialista; a mera extensão de suas fronteiras seria um “vetor revolucionário”, esquecendo que isto aconteceu sem qualquer revolução, mas pisando os direitos nacionais das massas da Europa Oriental e da ex-URSS (esta não é uma mera avaliação nossa, mas uma reflexão que nos deixaria nada mais ou menos que Ernest Mandel, um líder trotskista belga que foi ortodoxo em sua análise da ex-URSS como um Estado operário11). Albamonte também parece esquecer que a divisão da Alemanha foi uma derrota histórica para a classe trabalhadora daquele país, uma das classes trabalhadoras mais poderosas da época (outra ortodoxa em termos de análise da ex-URSS como Nahuel Moreno, ele latino-americano, seria, no entanto, mais sensível a estes fatos do que Albamonte12). Albamonte fala de uma espécie de “unidade de ação entre a URSS e a China”, que está apenas em sua cabeça. Porque logo começaram as desavenças entre ambas as burocracias. Havia uma razão para serem burocracias nacionais que defendiam o “socialismo em um país”; só se tivessem sido internacionalistas é que teriam feito esforços comuns; mas para isso não poderiam ser burocracias!

É verdade que um terço da humanidade foi deixada fora da valorização direta do capital; um fato progressivo sem dúvida. Mas é falso que a URSS tenha crescido “sustentadamente” após a segunda guerra…os limites insalubres do planejamento burocrático foram logo apreciados, e logo o planejamento nas mãos da burocracia também seria desacreditado. Em vez de desenvolver esses eventos, Albamonte evade qualquer análise materialista do colapso da URSS e se agarra à ideia simplista de que os capitalistas “compraram a burocracia” como se a da ex-URSS ou da China fosse uma burocracia semelhante à do sindicato nos países capitalistas…

Enfim: é muito longo seguir Albamonte em todos os seus desdobramentos, mas pensamos ter tomado alguns de seus principais problemas. A questão aqui se refere, em suma, às dificuldades de construir uma sólida corrente internacional sem o esforço de construir um balanço estratégico; não um balanço acabado, que seria pedante, não apenas devido à natureza fragmentada do movimento trotskista, mas também, e fundamentalmente, porque ainda precisamos tirar nosso movimento da marginalidade em que ele se encontra há décadas – principalmente por razões objetivas, mas também subjetivas. Além disso, e ainda mais fundamentalmente, precisamos de novas revoluções socialistas no século XXI que nos permitam “arredondar” mais as conclusões gerais sobre seus contrastes.

Marx e Engels eram muito cuidadosos com as antecipações. Eles preferiram se agarrar ao movimento real. É claro que, por outro lado, eles não tinham um século de experiência anticapitalista como nós temos. Mas em todo caso, é claro que faz falta que “falem” as novas revoluções socialistas que estão por vir – e para as quais devemos trabalhar muito! – a fim de superar a atual parcialidade em termos de elaboração programático-estratégica, um problema que nenhuma corrente será capaz de resolver por si só até que alcancemos uma ampla influência orgânica entre as massas e reais funções de liderança.

Isto só pode ser feito colados à luta de classe e construindo nossos partidos revolucionários e nossas correntes internacionais com a visão mais ampla possível; organização revolucionária e corrente internacional que concebemos como intimamente ligada à nossa classe, às suas vivências e experiências, a fim de aprender com elas e, também, para contribuir com nossa bagagem estratégica.

1 À análise das inter-relações entre economia, estados e luta de classes talvez devêssemos acrescentar a ecologia: a relação entre as sociedades humanas e a natureza.

2 “Democracias populares e resistência dos trabalhadores: uma abordagem histórica dos estados burocráticos da Glacis (1945/1956), Victor Artavia, izquierdaweb.

3 Nossa definição da URSS a partir da consolidação da contrarrevolução estalinista é tirada de Cristian Rakovsky, que a define como “um estado burocrático com restos proletários e comunistas da revolução de 1917”. Importante dizer que reivindicamos a figura de Rakovsky contra uma parte muito importante do trotskismo que o tem esquecido. No Comunistas contra Stalin e Um Revolucionário de Todos os Países, Pierre Broue faz uma justa reivindicação de sua figura.

4 Mesmo sob o governo bolchevique de Lenin e Trotsky no início da década de 1920, as revoluções conduzidas à mão armada pelo próprio revolucionário Exército Vermelho e não com base em uma verdadeira ascensão dos trabalhadores no país, como foi o caso da marcha em Varsóvia em 1920, foram frustradas. A lição: não há substituto para as massas trabalhadoras e populares e sua ação com seus partidos e organizações na revolução socialista.

5 Uma conquista que só nos primeiros anos resultou em vitórias para os trabalhadores e camponeses e depois se esgotou rapidamente dando origem a desastres burocráticos como “O Grande Salto à Frente” que gerou uma fome na China (início dos anos 60) ou ” Os 10 Milhões vão” (para a colheita fracassada no início dos anos 70 em Cuba; um fracasso que foi seguido pela adaptação completa à monocultura imposta na ilha pela URSS).

6 Eles publicaram notas de vários historiadores trotskistas ou revolucionários marxistas, mas isto não parece estar incorporado em seu relato estratégico.

7 O princípio esperança, de Ernest Bloch, é um trabalho brilhante que apresenta de uma forma muito mais dialética, na verdade, como o novo sempre bate o velho.

8 Aqui ocorre um paradoxo: sua corrente passa o tempo vociferando contra o “trotskismo de Yalta”, mas não apenas assumiu todos os seus pressupostos, mas muitas vezes, como nesta palestra, está à sua direita …

9 A propriedade nacionalizada deve ser afirmada não apenas negativamente contra os capitalistas, como fizeram tais revoluções (é uma expropriação e, portanto, uma conquista popular), mas também positivamente. Isto é: para realizar todas as suas potencialidades e não se tornar uma fonte de novos privilégios e desigualdades, ela deve estar nas mãos da classe operária e de sua ditadura proletária (ver nosso ensaio “Cem anos da Revolução Russa”, izquierdaweb, especialmente o capítulo dedicado aos problemas da propriedade estatizada).

10 Temos concepções tão diferentes que todo um “tratado” teria que ser escrito para prestar contas delas. Em qualquer caso, um erro factual em sua fala – um erro factual estalinófilo também – é o surgimento da Resistência na França em 1943/4. Robert Paxton, um conhecido especialista da França de Vichy, assinala que, acima de tudo, a juventude francesa se voltou para a Resistência quando o governo fascista do Marechal Petain começou a enviar jovens como trabalhadores forçados para a Alemanha; uma medida eminentemente antipopular. Além do mais, o PC francês nunca conseguiu organizar uma resistência de massa. Era antes uma vanguarda de massa, o que não é exatamente a mesma coisa.

11 Poder e dinheiro é, por assim dizer, sua madura obra de balanço do estalinismo.

12 Moreno realizou uma síntese objetivista da teoria da revolução que ajudou a quebrar sua corrente política. No entanto, nos anos 80 e em relação aos desastres do planejamento burocrático, ele demonstraria uma enorme sensibilidade. Nós o citamos a este respeito em nosso ensaio “Dialética da transição”. Plano, mercado e democracia dos trabalhadores”, izquierdaweb.

Publicado originalmente em http://izquierdaweb.com/un-relato-apologetico-del-estalinismo/

Tradução: Antonio Soler