Debates na esquerda argentina

Por Juan Cruz Ramat

A dramática crise do capitalismo argentino tem sua expressão na economia que concentra níveis históricos de inflação e tendência recessiva, somados à desacumulação em termos de infraestrutura; na degradação da sociedade e das condições de vida das amplas camadas de trabalhadores, além da queda dos salários; e também na política com um governo que por momentos perde o controle da situação (mas não do movimento sindical através da burocracia sindical) e vive seus últimos meses submerso na luta do “dia a dia” para chegar a agosto e dezembro. No campo político é evidente que a força do fracasso do capitalismo atravessa as coalizões políticas do sistema que governaram o país com diferentes orientações nos últimos 20 anos. Sobre o Kirchnerismo, Juntos por El Cambio, Macri e o Frente de Todos, pesa a memória, as queixas e as demandas das maiorias da sociedade que no marco de um ano eleitoral se manifesta a partir do fim das grandes coalizões cuja capacidade de atração se partiu. O surgimento de uma nova ala da extrema direita também é expressão dessa crise, como no caso de Milei.

Nesse quadro, a esquerda agrupada na FITU (Frente de Izquierda de los Trabajadores – Unidad) aparece arrastada para sua própria crise, onde se combinam elementos de adaptação eleitoral e rotineirismo, com uma evidente transformação da base social da mesma que pretende ser usada como artifício político para acertar a divisão do bolo dentro da frente.

A FITU passa por uma crise real, em que o PO acusa o PTS de “adaptação política ao kirchnerismo”, “salto nas posições reacionárias do PTS em relação à luta piqueteira”, e pela boca do próprio Gabriel Solano (parlamentar pela  FITU, representante da Cidade Autônoma de Buenos Aires e dirigente do PO) de “esquerda light (…) que nos coloca não apenas como uma variante esquerdista do kirchnerismo, mas (…) que coloca a esquerda lutando para conquistar mais alguns deputados como se fosse parte da casta”, em claro flerte com as definições de Milei (algo que se repete no título de seu “livro”, e que obriga sua militância a esclarecer que “não nos tornamos golpistas”). Por fim, que “está claro que temos uma crise na FITU. Foi em consequência desta crise de posições políticas que decidimos promover as nossas próprias candidaturas em Fevereiro e propor um congresso da Frente de Unidade de Esquerda”[1].

Por sua vez, o PTS em carta pública reclama desses ataques que também começam a ter significado midiático superando o debate dos portais e da ultra vanguarda. Nessa carta citam uma entrevista de “Chiche” Gelblum em que Belliboni acusa Bregman de ser uma “neokirchnerista”, denunciam que “a campanha promovida pelo PO também se realiza em diferentes cenários de rua, como as marchas e concentrações do movimento piquetero onde os nossos referentes são na maioria dos casos maltratados pela direção nacional do PO” e exigem que esta corrente “explique porque continua a manter uma coligação política com um um partido que, segundo seus líderes na imprensa burguesa, teria quebrado os princípios da independência política”. [2]

Nada disso significa que estamos diante de uma possível ruptura de uma Frente entre correntes que souberam engolir as palavras e acusações repetidas vezes para obter uma série de cargos. O programa de independência política que essa frente mantém até hoje não resolveu a permanente incapacidade de estabelecer posições unificadas ao longo de uma década de existência. Mas a possibilidade de alcançar a representação parlamentar tem servido (juntamente com um programa genérico de independência política) como escape e substituto para a falta de critérios comuns diante de vários fatos da luta de classes. Mesmo assim, é evidente que se abriu uma crise na FITU ligada à perda da hegemonia política do PTS dentro dela e à tentativa da força piqueteira de prejudicar a centralidade do Partido dos Trabalhadores Socialistas.

A “Piqueterização” da Frente de Esquerda

2015 foi o ano em que o PTS, com Del Caño como candidato a presidente, derrotou o PO de Altamira, colocou uma crise que terminou na ruptura deste partido, e alcançou por 6 anos uma hegemonia inquestionável dentro da frente. Mas os dias de hegemonia acabaram.

O P) conseguiu superar parcialmente a crise de ruptura com uma reafirmação unilateral de sua orientação política e construtiva em torno dos movimentos sociais. Sob o lema de “movimento popular com bandeiras socialistas”, enveredou por um caminho piqueterista, abandonando ao longo do caminho a estratégia de construção partidária em termos leninistas (de consciência de classe e socialista) para uma orientação construtiva populista. E a mudança de rumo de uma estratégia de revolução social (cuja classe privilegiada é a classe operária e os trabalhadores que lideram todos os oprimidos) para uma estratégia de rebelião popular (em que o sujeito é difuso e cujo programa não é o de um governo dos trabalhadores).

Enquanto essa orientação do PO se desenvolvia, o PTS como dono da FIT sonhava em ser eternamente hegemônico. A oposição crônica dessa organização ao Nuevo MAS se expressou novamente em 2019 na rejeição de nossa incorporação e na admissão do MST, outra corrente piqueteira cuja independência de classe é questionada por seu próprio rumo: o apoio às patronais do campo em 2008, a frente eleitoral com Luis Juez, sua solidariedade com várias propostas das Forças Armadas em reivindicação por melhores condições para suas reacionárias tarefas, e um longo etc. Uma corrente que poderia facilmente terminar compondo uma frente popular com figuras como Grabois (Frente Pátria Grande), no caso de forças maiores abandonarem a Frente de Todos (por exemplo, se não houvesse eleições internas no Peronismo e toda a tropa direitista de Massa se reagrupasse). No momento, o perigo se encontra latente. Enquanto isso, Grabbois aspira interpretar o papel de contenção à esquerda na FdT como uma via auxiliar do Super Ministro Massa.

O 1º de Maio ofereceu um panorama da renovada composição e também da proporção política da Frente. Com o PO e o MST lotando o centro da Plaza de Mayo com milhares de piqueteiros, e o PTS, como um borrão, isolado em uma margem da praça. A contraofensiva do PO no interior do FITU e a exigência de levar a discussão das candidaturas a uma “plenária de lutadores” abriram uma ruptura real na Frente eleitoral. Os longos debates entre suas principais organizações, estão marcados por uma disputa na redistribuição de cargos, exposição midiática e etc. Mas, apesar do desgaste, não é possível saber mais do que o status quo nos oferece. Tampouco ficou claro se o PO de fato apresenta capacidade de alcançar todas suas demandas, ou que realmente esteja disposto a disputar as internas.

A julgar pelo largo precedente pós 2015, é possível encontrar semelhanças com o blá blá blá de sempre. Ao menos, é o que demonstra as movimentações em Córdoba, onde concederam ao resto das forças políticas as posições que lhe foram atribuídas (vice-governatura). Terão a determinação de lutar pelo lugar que tanto pretendem ocupar, inclusive, disputando as PASO (Primarias, Abiertas, Simultáneas y Obligatorias), ou tudo não vai passar de palavras jogadas ao vento, como costuma acontecer com a “esquerda light”?

Queremos convocar a reflexão sobre o perigo representado pela tentativa do PO e do MST de unilateralizar tanto a construção das próprias organizações, quanto no que se refere à tentativa de impor uma mudança na representação da FITU e da esquerda em geral em termos de organizações da classe trabalhadora e do movimento sindical, trocando o sujeito social por outro, o movimento piqueteiro. E também da representação política que a esquerda vermelha supõe. Uma profunda tentativa de modificar a base social da esquerda, desviando-se das perspectivas estratégicas que privilegiam a classe trabalhadora como sujeito da revolução socialista. Dessa forma, tendem a isolar e compartimentar os movimentos piqueteiros e separá-los da própria classe trabalhadora, da juventude e do movimento de mulheres, entre outros. Pelo contrário, as organizações que se dizem socialistas e revolucionárias devem aspirar a representar (política e socialmente) as forças motrizes mais estruturais dos explorados e oprimidos, a começar pela classe trabalhadora e pela juventude, e, ao mesmo tempo, satisfazer as demandas dos mais excluídos, como os setores de desempregados.

As concessões do PTS por um posicionamento mais estreito e sectário pouco ajudaram a diminuir os efeitos dessa tendência. Ainda que conserve uma posição favorável no interior da frente, no que toca à superestrutura midiática e o peso no parlamento, esse partido sofre os efeitos da pressão que lhe é imposta pelo restante das forças políticas. Como um boomerang, o taticismo por parte do PTS, que por vezes optou por correntes de trajetória duvidosa, agora, está se voltando contra o próprio partido. Pagando o oposicionismo crônico em relação à nossa organização, que mantém uma conduta de princípios impecável.

Em sua origem (2011), a conformação da frente se deu explicitamente a partir do bloqueio do ingresso de nosso partido. Uma política sectária dirigida (a qual se mantém até hoje) expressamente pelo PTS a fim de “esmagar” nossa organização, objetivo que fracassou completamente. Obviamente, uma organização com horizontes estratégicos e temperança revolucionária não se repreende ante bloqueios eleitorais, questão que, pelo contrário, se mostram motivo de inquietude entre forças de esquerda débeis em perspectiva.

Sendo assim, de acordo com o conjunto das forças que integravam a frente, utilizaram as PASO como mecanismo proscritivo, uma manobra de adaptação sem princípios, marca registrada das auréolas da FITU, a qual segue rendendo frutos, em termos de cargos. Sem se alongar, há poucos meses, quando o atual governo insinuou a possibilidade de não realizar as PASO frente as eleições presidenciais, foram Bregman e Del Caño os primeiros a se pronunciarem contra tal medida, em uma defesa aberta do mecanismo proscritivo. Contra todas as probabilidades conquistamos uma proporção de 4 para 1 em relação à frente e uma das figuras mais reconhecidas da esquerda: Manuela Castañeira, que juntamente com Del Caño e Miriam Bregman, ou na época Altamira e Zamora, são as referências mais difundidas no país.

É preciso unificar a esquerda em uma PASO

Nosso partido e suas figuras públicas se caracterizam pela defesa incondicional e “desinteressada” (sem instrumentalismo ou especulações) dos movimentos sociais independentes frente cada ataque dos governos, da direita e da burguesia. Nossa participação em diversos acampamentos, greves, piquetes e mobilizações convocados pela Unidad Piquetera, durante semanas inteiras de ocupação em Guernica, inclusive, onde Manuela Castañeira foi a única figura entre toda a esquerda presente desde a desocupação, demonstra de forma ampla e clara esse caráter.

Mas, como já apontamos em diversas ocasiões, há uma tentativa de algumas correntes da FITU de impor uma relação de força entre correntes não resolvidas na realidade, colocando em pé de igualdade a organização dos movimentos sociais à da militância orgânica dos partidos políticos. Quando é óbvio que o método dos movimentos sociais implica a obrigatoriedade de comparecimento às mobilizações e atos, enquanto o método histórico das organizações e da militância revolucionária orgânica é o de atendimento voluntário e consciente às atividades. O movimento social também não é comparável ao movimento operário onde as relações são diferentes e que, estando sob o regime salarial e sob o patrão, realiza suas ações (sindicais ou políticas) muitas vezes ao custo de perder parte do salário e até mesmo eventualmente colocar sua subsistência em risco. Isso resulta em ação voluntária e consciente (além da maior ou menor consciência de classe que possa existir).

O debate que estamos desenvolvendo não diminui o fato de que hoje a FITU continua sendo uma frente de independência de classe, embora se acentue sua tendência a representar um único setor da vanguarda em detrimento do núcleo da classe trabalhadora e da juventude. Por isso, a partir do Nuevo MAS fazemos um novo apelo a todas as forças que compõem a frente para que se unam através de um PASO que possa facilitar a incorporação de outras organizações de esquerda, e para superar tanto o sectarismo quanto a tentativa de impor uma relação de forças que não se estabelece no orgânico real entre nossos partidos. A esquerda tem a responsabilidade de apresentar diante das eleições uma alternativa conjunta para milhões de trabalhadores que querem expressar sua raiva e aspirações com uma opção anticapitalista.

TRADUÇÃO: JOÃO PEDRO

[1]  “Resposta ao PTS: em defesa da Frente de Unidade de Esquerda e seu programa”, Prensa Obrera.

[2]  “Por fazer campanha contra o nosso partido. Carta do PTS à direção nacional do Partido Obrero”, Izquierda diario.