É preciso ir para além da política de conciliação de classes e garantir a partir da luta efetiva pela base o direito democrático da maioria decidir o resultado das eleições. 

DEBORAH LORENZO

O primeiro turno das eleições gerais de 2022 coloca mais uma vez em perspectiva as lições históricas que, ao que parece, uma parte significativa da esquerda insiste em ignorar. Esse é um momento crucial para fazermos um balanço crítico e tomarmos iniciativas emergenciais para frear e reverter o avanço das forças bolsonaristas. Parte desse balanço e alteração da estratégia campista de conciliação de classes passa por apontar os atores que contribuíram para a reincidência em tais concepções e formular as melhores táticas para impedir ainda mais retrocessos civilizatórios e de direitos de nossa classe.

Ao capitular com os protagonistas históricos da traição da luta de classes no Brasil – a burocracia lulista -, com partidos da ordem e setores burgueses, o PSOL não apenas abriu mão de ser uma alternativa de luta pela esquerda com um programa independente como também assumiu um papel central na desmobilização da vanguarda, no desarmamento do enfrentamento pelas ruas e no completo imobilismo que culminaram na ofensiva e recuperação eleitoral bolsonarista.

Sob a lógica do campismo, o PSOL, que originalmente pretendia ser uma alternativa à esquerda do PT, mentiu para toda sua base, tendo como orientação malabarismos eleitoreiros e negociatas de cargos – aquilo que Marx, Engels e posteriormente Lenin caracterizavam como cretinismo parlamentar. 

Campismo e porque combatê-lo 

A narrativa campista parte do pressuposto de que diante de “grandes perigos” é necessário fazer frentes políticas e/ou governos com representantes da burguesia e da classe trabalhadora, a fim de enfraquecer um inimigo em comum ao invés de edificar uma frente entre as classes e setores explorados e oprimidos da sociedade, como entre a classe operária, com os camponeses sem terra e com as classes médias baixas. 

Tal lógica teve origem entre uma fração dos socialistas franceses em meados do século XIX, foi aprofundada com a  corrente  menchevique (reformista) na Rússia e ganhou status de teoria/estratégia com o Stalinismo. Essa estratégia resultou na degeneração burocrática da Revolução Russa, na derrota da revolução chinesa do final dos anos 20, em centenas de milhares de camponeses mortos pela coletivização forçada do campo, na dura repressão de rebeliões populares, na derrota da Revolução Espanhola e em uma série de outras derrotas históricas e liquidação de partidos operários pelo século XX e XXI. Em síntese, trata-se de uma força contrarrevolucionária que impediu e impede a construção histórica e estratégica da luta pela emancipação do proletariado. 

Em todas as suas representações e experiências históricas o campismo atua como freio à luta independente dos trabalhadores que leva a formações políticas e governos regressivos e repressivos. Aí está a sua maior contradição, pois em nome da luta contra o fascismo, das reformas e até mesmo do socialismo são feitas alianças com setores que perpetuarão um sistema de exploração e desigualdade. O parlamento termina sendo tudo, uma ferramenta omnipotente e nossa classe e sua autoatividade nada. 

Não se trata de negar a necessidade da unidade de ação com até mesmo setores da classe dominante e do reformismo para derrotar o neofascismo, ao contrário, a tática de unidade de ação é fundamental nessas situações em que a extrema direita ascende. Mas, o problema é  que fazer frentes/governos com setores da burguesia acaba invariavelmente em tragédias políticas, em governos burgueses opressores e em desmoralização dos partidos que fazem parte dele, uma vez que não atuam de forma independente para impulsionar a luta, não fazem exigências, não apresentam um programa que atenda a necessidade dos explorados. Estão limitados pelas alianças políticas e dependentes diretos da aritmética parlamentar.

Ao ingressar e aderir ao programa da chapa Lula-Alckmin e federar-se com a Rede Sustentabilidade, o PSOL concordou em abrir mão do arsenal tático-estratégico de combate ao neofascismo – e que hoje cobra seu preço – um programa independente, a organização e as mobilizações de rua. Embora toda a movimentação política em torno dessa aliança eleitoral tenha sido pretensamente justificada pela necessidade de derrotar Bolsonaro, uma mentira deslavada com intuito de inebriar as bases do partido, tal posição culminou com o fim da independência política do partido, da utilização das táticas de exigência e denúncia e, portanto, da incapacidade do PSOL de impulsionar a mobilização e ser sujeito construtor na necessidade de um horizonte socialista que inevitavelmente se apresente como alternativa concreta às massas ao lulismo.

Vale ressaltar que existe um abismo de diferença entre chamar voto crítico em Lula – algo que entendemos e apoiamos como tática eleitoral para este segundo turno – e entrar numa coligação política com estes setores. A primeira, de natureza tática não compromete os princípios, estratégias e táticas de luta da nossa classe; já a segunda, de natureza estratégica, fere a coluna vertebral dos princípios da política revolucionária – do axioma do movimento operário na história – e tem repercussões extremamente regressivas na luta concreta, na organização e na consciência política das massas.

O papel traidor do PSOL 

A verdade que a alta cúpula do PSOL quer encobrir é que suas tratativas e acordos com estes setores – lulismo e representantes diretos da burguesia – resumem-se a um caminho oportunista para ampliar sem critérios sua bancada, seus recursos financeiros, chegar ao governo e servir ao poder burguês. É fato, porém ainda não assimilado integralmente pelas bases das organizações de nosso antigo partido que este leiloou sua independência de classe, a estratégia de superar o lulismo e impulsionar organizações independentes em nome de ascensão política através dos atalhos do possibilismo campista. E o fez às custas de um discurso mentiroso e contrário à ciência e à arte do marxismo revolucionário para seus militantes mais bem intencionados, o mesmo caminho que seguiu o PT abertamente a partir dos anos 90 fazendo acordos de caixa dois com a grande burguesia, capitulando ao governo Collor e expulsando corrente revolucionárias do seu interior. 

O efeito catastrófico dessa capciosa manobra política foi a completa passividade da militância de esquerda, que contribuiu para a construção irresponsável de uma certeza ilusória da vitória de Lula logo no primeiro turno – apesar das alianças do PT e de Lula e independente daquilo que a vanguarda pudesse fazer, o destino vitorioso estava definido segundo o PSOL e sua direção. Ao final da apuração vimos um cenário totalmente diferente com a eleição de uma maioria de extrema-direita no parlamento e o bolsonarismo em ofensiva. Ou seja, uma capitulação em sua ampla totalidade, do princípio da independência de classe às táticas e passando pelo abandono das estratégias fundamentais, o que contribuiu imensamente para manter a esquerda em uma posição defensiva e aquém do que deveria e deve ser colocado em prática para a derrota categórica do neofascismo. Em uma eleição atípica – extraordinária -, com uma força de extrema-direita inédita que ameaça nossas liberdades democráticas, a adaptação e orientação política do PSOL pode ser encarada como uma das maiores traições na história da esquerda socialista do país. 

O bolsonarismo, por sua vez, foi capaz de capturar as insatisfações populares onde combinou o uso de forma eleitoreira a máquina do estado para atingir a população mais empobrecida e a classe média baixa com a tomada das ruas por toda sua militância regressiva, violenta e conservadora para impor sua manutenção no poder e o seu projeto. Ao apropriar-se dos métodos da própria esquerda revolucionária, o bolsonarismo pode, efetivamente, gerar uma situação extremamente perigosa para a maioria dos votantes que tendem, apesar de uma ligeira vantagem, a eleger Lula no dia 30 de outubro. 

Ao deixar esse “vácuo” nas ruas, a esquerda presenteou ao bolsonarismo um espaço de vitalidade para que este pudesse se recuperar e se fortalecer politicamente. Os resultados das urnas no primeiro turno são um reflexo disso. O bolsonarismo sai vitorioso em diversas instâncias de poder, em diversas localidades do país e com o apoio de boa parte da classe média e da maior parte da classe dominante, principalmente a rural. Uma demonstração da consolidação dessa força política que estará ativa para o próximo período mesmo que perca no segundo turno. 

Essa realidade agora cala fundo no coração da militância e bases da esquerda adaptada, que sente o sonho do “Brasil feliz de novo” e a figura hercúlea de Lula patinando em meio à incerteza do cenário eleitoral. Tamanha traição está na conta das direções majoritárias do movimento de massas – majoritariamente lulistas – e também da direção do PSOL que liquidou toda a capacidade do partido de lutar contra essa estratégia ao ingressar na frente Lula-Alckmin.

É pelas ruas que o fascismo recua 

É com um cenário extremamente perigoso e preocupante, no qual o bolsonarismo já é uma força consolidada a ser enfrentada no próximo período, e que pode virar o jogo eleitoral pela força ao acionar a sua base neofascista se não tomarmos efetivamente as ruas, que reivindicamos mais uma vez a necessidade da organização e mobilização da luta direta nessa reta final de campanha.

Por toda a responsabilidade que carrega o lulismo e sua burocracia, é urgente que Lula, o PT, as centrais sindicais, o movimento estudantil, os movimentos sociais e todo o bloco político em torno da candidatura do petista, para derrotar Bolsonaro, se empenhem em convocar a militância para a luta e o enfrentamento do neofascismo pelas ruas antes, durante e depois do dia 30 de outubro.

Temos que ir para além da política passivista (conhecida também como quietista) e possibilista do PT e do PSOL se quisermos sair vitoriosos desse processo. Esse é o momento de organizar Comitês Unificados de Luta Anti-golpista em todas as regiões do país, em todas as estruturas, cujas tarefas prioritárias sejam chamar voto crítico em Lula e Haddad e formular um calendário nacional de mobilização. Desta forma, não permitir que as ameaças golpistas de impedir que os eleitores de Lula possam votar livremente se concretizem. Isso se faz com a mais ampla unidade de ação e com um programa que atenda às necessidades mais urgentes e concretas da população. 

Vamos à luta, que o fascismo se derrota pelas ruas!