Entrevista com Tamás Krausz, professor de história da Rússia na Universidade de Budapeste.
Entrevista de Alex Anfruns

Autor de uma biografia intelectual sobre Lênin, obra de referência à qual se dedica quase uma década, o professor de história da Rússia na Universidade de Budapeste Tamás Krausz é também membro do comitê editorial da revista “Consciência”, fundada por György Lukacs, e um ativista político que denuncia os excessos autoritários na Hungria de Viktor Orban. Nesta entrevista, Krausz traça um retrato da Revolução de Outubro e do início da experiência soviética, mostrando com rigor a atualidade da análise de Lênin, bem como seus limites, sem ceder às simplificações e “teorias superficiais” que nos impedem de compreender esse evento fundador.

Alex Anfruns: Seu livro “Reconstruindo Lênin” defende o postulado de que o legado teórico e político de Lênin continua a ser de real interesse para as forças políticas de esquerda, e que somente após o desaparecimento da URSS podemos entender melhor seu pensamento e sua ação, que teria sofrido muitas “deformações”. Como sua pesquisa lança luz sobre essa questão?

Tamás Krausz:  Entre 1895 e 1916, Lênin analisou as características fundamentais do capitalismo russo e mundial a nível histórico e teórico. Quanto à essência de sua análise histórica, ele entendeu – e de uma forma que é válida até hoje – as principais características do desenvolvimento histórico russo como – usando o termo de G. Arrighi – a semiperiferia do sistema mundial. A Rússia incorporava ao mesmo tempo quase todas as contradições desta última.

Simplificando e em resumo: a manifestação do capitalismo feudal russo é que a burguesia russa não desempenha um papel político independente, mas que se subordina ao autoritarismo czarista. Lênin chegou à conclusão de que as perspectivas revolucionárias que se abriram para a burguesia do Ocidente em períodos anteriores, agora se abrem para o movimento operário. Essas tarefas revolucionárias só podem ser realizadas pelo movimento do proletariado e pelas camadas de camponeses sem terra. É possível realizar tanto as tarefas burguesas quanto as socialistas, não em cooperação com a burguesia, mas em luta com ela. A propósito, foi isso que separou Lenin de Plekhanov e dos mencheviques que ainda acreditavam na revolução democrático burguesa.

Hoje podemos ver como Lênin estava certo: 30 anos após o desmantelamento da União Soviética, nenhuma burguesia democrática se estabeleceu na Rússia. Mas Lênin também viu que, se a Rússia estivesse sozinha, a facilidade com que os soviéticos tomaram o poder poderia se transformar em seu oposto: poderia se tornar uma fonte de dificuldades sem fim, porque 80% da população não sabia ler nem escrever.

As análises de Lênin são instrutivas também para a semiperiferia de nosso tempo: não há outra alternativa senão o segundo tipo de socialismo, aquele baseado na democracia social. Não é por acaso que muitas pessoas odeiam e falsificam a atuação política e teórica de Lenin. Utilizando seu método analítico, ainda hoje chegamos à conclusão de que o pretenso capitalismo liberal e democrático, que se opõe ao sistema capitalista oligárquico tão difundido na atualidade, nada mais é do que uma visão puramente políticaFora do socialismo não há alternativa ao sistema. Hoje esta mensagem adquiriu validade global.

A.A.: Após a revolução de fevereiro de 1917, os fatos refutaram o avanço da revolução “por etapas”. A esse respeito, você afirma que Lênin “só gradualmente compreendeu o significado dos aspectos intrínsecos e práticos da efervescência do movimento revolucionário”…

T.K.: Lênin reconheceu mesmo antes da guerra que a democracia burguesa não tinha apoio na Rússia: a luta pelos direitos democráticos era responsabilidade do movimento operário. Depois de fevereiro de 1917, analisando a constelação concreta e suas rápidas mudanças, Lênin logo percebeu que as forças motrizes da revolução haviam se organizado dentro dos sovietes de operários, soldados e camponeses, ocupando e expropriando fábricas e terras, ou desertando do front. Foi em meio ao colapso da guerra que as forças revolucionárias descobriram a ferramenta da “guerra de classe” como um sistema.

A.A.: Lênin chamou as aspirações de ter uma Assembleia Constituinte de “ilusões”. Que tipo de governo ele tinha em mente então?

T.K.: Ao invés da constitucionalização burguesa e da declaração da igualdade puramente política, eles avançaram para o estabelecimento da igualdade social. Lênin e o partido bolchevique estavam na vanguarda desse movimento quando se dirigiu a todas as forças interessadas. Vendo a situação revolucionária, ele se recusou a cooperar com os partidos políticos que apoiavam a dominação baseada na propriedade privada capitalista. Em vez disso, ele pretendia – antes e depois do Segundo Congresso Pan Russo dos Sovietes – que todas as organizações verdadeiramente socialistas entrassem no governo dos sovietes.

O fato de apenas os Socialistas Revolucionários (SR) de esquerda terem se juntado aos bolcheviques mostra que, para as massas reunidas nos sovietes, a questão da terra, da nacionalização, da organização da produção e do consumo era o mais importante. A sensibilidade jurídica das forças sociais da revolução “única” na Rússia (segundo a fórmula de György Lukács) não pôde se desenvolver plenamente nos séculos anteriores. Por que a revolução socialista teria sido apoiada pelos partidos capitalistas? A Revolução finalmente os venceu

A.A.: A proibição do Partido Bolchevique e a revolta de Kornilov levaram à conclusão de que “a guerra civil já começou”. Assim, durante semanas, Lênin tentou convencer seu próprio partido de que o momento decisivo para a tomada do poder havia chegado e que não deveria envolver muitos riscos. No entanto, o trágico resultado da Comuna na França e as lições que Marx aprendeu com ela foram estudados por Lenin. O que motivou sua confiança?

T.K.: Lênin já sabia em 1905 que aos olhos das massas camponesas a “legitimidade” do poder despótico havia enfraquecido. Em 1917, o Governo Provisório também já não tinha mais legitimidade, pois se mostrara incapaz de sair da guerra e de resolver sequer uma única questão importante. Não conseguiram nem prender Lênin… Frente ao general czarista Kornilov, o predomínio da “democracia pequeno-burguesa” e do campo operário-camponês revolucionário era evidente.

Em setembro de 1917, na clandestinidade, Lenin refletiu sobre a experiência da Comuna de Paris e da teoria do socialismo, e escreveu sua obra “O Estado e a Revolução”. A atualidade do socialismo decorria do fato de que o capitalismo entrara em colapso como consequência da guerra mundial e parecia incapaz de resistir às iniciativas revolucionárias globais ou pelo menos europeias. Para ele, a questão fundamental era como iria estourar a “revolução mundial”. O nó górdio foi cortado por ele mesmo, quer dizer, pela revolução russa. A análise de Lênin sobre a Rússia como “o elo mais fraco do imperialismo” estava certa: no outono de 1917, as relações de poder de classe mudariam enormemente em favor das classes oprimidas, já que todo o poder tradicional estava completamente paralisado.

O fim imediato da guerra, as reivindicações de distribuição de terras, nacionalização, “terra, pão e liberdade” só poderiam ser resolvidas de forma revolucionária. E finalmente: a arma estava nas mãos das massas revolucionárias e suas organizações… Era “agora ou nunca”.

A.A.: Nos livros de história, a descrição de um “Lênin criminoso” é amplamente enfatizada. Apresenta-se também como defensor da violência vista como método revolucionário, sintetizada na noção de “ditadura do proletariado”. No entanto, do ponto de vista historiográfico, você questiona os exemplos que vão nesse sentido, destacando particularmente a sua luta contra os pogroms e pela educação do povo. Você pode nos falar mais a respeito disso?

T.K.: Os livros didáticos oficiais mentem há muitas décadas. Lênin não tinha uma teoria particular de terror e violência. Uma coisa ele sempre insistiu depois de 1907, depois que a primeira revolução russa foi afogada em sangue: se uma revolução não pode se defender, ela está condenada à morte. Supor que a organização do Exército Vermelho e do poder soviético – em meio ao ressurgimento da contrarrevolução e aos ataques da intervenção estrangeira – poderia ter sido realizada pacificamente é uma ideia absurda.

Antes de outubro, Lênin havia acabado de chamar a atenção para a possibilidade de um “caminho pacífico”, mas a história o retirou da pauta. O que teria acontecido se os revolucionários tivessem cedido o poder à contrarrevolução? A experiência do século XX demonstrou suficientemente que as forças do capitalismo – de Hitler a Pinochet, do neocolonialismo ao bombardeio do Iraque e da Iugoslávia, e as duas guerras mundiais – infligiram centenas de vezes mais violência aos povos do mundo do que a revolução russa durante a vida de Lênin.

Tampouco pode ser reduzido à violência o principal problema do “período de transição” após a revolução, embora seja claro que qualquer organização estatal em “solo russo” pressupõe o recurso generalizado da força. O principal problema no princípio não foi, em certo sentido, a reorganização da produção e distribuição, mas a erradicação do analfabetismo, a elevação cultural de mais de uma centena de povos e nacionalidades.

Esses problemas foram a principal fonte de violência nos estágios iniciais do desenvolvimento soviético. À medida que se construía a nova hierarquia burocrática, agudizavam-se os novos conflitos de interesses entre as instituições, as autoridades e os aparelhos locais e centrais, o que justificava os temores de Lênin: se a revolução russa fica sozinha, as perspectivas do socialismo se reduzem.

A.A.: Uma das ideias preconcebidas que você destrói em seu livro é que as decisões de Lênin teriam lançado as bases que permitiram ao Partido Comunista restringir a vida democrática dentro dele, o que permite a alguns estabelecer uma continuidade entre Lenin e a noção de “totalitarismo”. Que argumentos você apresenta?

T.K.: Em primeiro lugar, a chamada “teoria do totalitarismo” é uma linha de pensamento primitiva concebida pelos propagandistas provincianos do sistema capitalista. Se forçarmos Lênin e o desenvolvimento soviético ao “leito de Procusto” dessa teoria, surge uma narrativa de totalitarismo que nos priva até mesmo do respeito pelos fatos históricos relevantes. A tese de que “todas as ditaduras são iguais” é uma impossibilidade conceitual e política. Além disso, durante o período leninista, a ditadura do Partido Comunista foi acompanhada por um amplo “pluralismo” institucional, por exemplo: cada corrente literária tinha também organizações independentes. Mesmo dentro do Partido Comunista, diferentes tendências existiam e lutavam entre si.

A confusão entre as eras leninista e stalinista é um erro tão grande quanto confundir a ditadura jacobina com o império de Napoleão, ou a de Stalin com o regime autoritário de Brejnev. Lênin, como se adivinhasse a manipulação burguesa subsequente, enfatizou que nenhum sistema pode ser descrito por conceitos puramente políticos. Em “O Estado e a Revolução”, ele projeta diretamente tempos para os quais só se expressam hipóteses humanistas. A consideração de que as revoluções devem poder se defender é muito reveladora à luz dos regimes terroristas das ditaduras dos oficiais da Guarda Branca. O liberalismo russo de 1918 a 1921 juntou-se a esses sistemas militares terroristas. O ex amigo da juventude de Lênin, P. Struve, que passou de um “marxista jurídico” a um liberal  e se converteu em “assessor político” de Danikin, ocupou uma posição de primeiro plano no sistema terrorista

A.A.: Depois de enfrentar desafios gigantescos como a fome, a guerra civil e a agressão de uma coalizão internacional de países, algumas questões são urgentemente colocadas em pauta para a sobrevivência da Revolução. Por um lado, Lênin elabora as bases da NEP e, por outro lado, desenvolve uma visão da necessidade de realizar uma “Revolução Cultural”. Que precauções Lênin tomou em consideração?

T.K.: A NEP, a nova política econômica de março de 1921, tal como a formulou Lênin, era “uma restauração parcial do capitalismo”, porque a maioria camponesa e pequeno-burguesa da população “não poderia existir sem comprar e vender”. A sociedade russa não estava pronta para o socialismo, para alcançar a autogestão social. A população, os milhões de trabalhadores tiveram que dominar muitos elementos da cultura cívica para criar uma nova cultura. Na ausência de costumes, métodos e tradições sociais democráticas, a questão fundamental era como manter a hegemonia dos objetivos e planos culturais socialistas coletivos na sociedade soviética.

Baseando-se na experiência de Lênin, Gramsci escreveu extensamente sobre esta questão. O ponto de partida de Lênin era que após a vitória militar, a “hegemonia cultural” só poderia ser mantida se as massas sociais que não estavam interessadas na restauração do capitalismo assumissem a direção dos negócios. Esta foi uma contradição fundamental do sistema revolucionário, uma vez que as diversas possibilidades de violência estavam arraigadas no solo da Rússia contemporânea. Era um regime de democracia social direta o que poderia ter minimizado a importância da violência, como se lê em “O Estado e a Revolução”.

Houve muitas tentativas nesta direção na Rússia soviética: comunas, cooperativas, artistas, uma rede de teatros de trabalhadores e círculos de autoeducação, para não mencionar muitas outras manifestações de energias populares revolucionárias. Lênin “constitucionalizou” o sistema soviético, a União Soviética, de acordo com princípios políticos antirracistas e antinacionalistas visando a igualdade jurídica e social de todos os povos, e zombou do comportamento hipócrita dos sistemas burgueses que, embora rejeitando formalmente a exclusão jurídica e racial (que nunca eliminaram), reproduziam a exclusão social a cada dia. O desenvolvimento histórico soviético no final dos anos 1920 desviou-se desta trajetória por várias razões históricas, que também não podem ser explicadas por “teorias” superficiais.

No sistema soviético, não é a falta de democracia burguesa/civil que deve ser reclamada; isto não faz sentido, pois nem seus líderes nem seus partidários quiseram se conformar a ela. Neste (estes) sistema(s), são as formas democráticas e socialistas autônomas que foram seriamente deficientes, e é neste espírito que as transgressões podem ser criticadas: a era da democracia econômica e social está ainda à nossa frente, não atrás de nós.

Traduzido por Jose Roberto Silva do espanhol em https://izquierdaweb.com/tamas-krausz-reconstruir-a-lenin-mas-alla-de-las-mentiras-y-distorsiones/