Entre o anti-comunismo e o populismo reformista (Parte I)

Para compreender a luta de classes na América Latina, reproduzimos aqui a primeira parte de um artigo do qual já publicamos a terceira parte (por questões de urgência em colocar o tema ali tratado). Seguimos pois em nosso trabalho de exposição das elaborações teóricas de nossa Corrente SoB, em busca da análise concreta dos fatos concretos, para armarmos corretamente nossa militância e estabelecer um debate no campo do socialismo revolucionário, com vistas a que, conjuntamente, reintroduzamos a perspectiva da revolução socialista no século XXI entre a classe trabalhadora, os explorados e os oprimidos.

Redação

VICTOR ARTÁVIA, SoB Costa Rica

O século XXI trouxe um aprofundamento da luta de classes em diferentes partes do mundo, principalmente com o desenvolvimento do atual ciclo de rebeliões populares contra os governos neoliberais e/ou ditatoriais. No caso da América Latina, durante a primeira década do século, várias dessas rebeliões ocorreram, principalmente nos países do Cone Sul, resultado do qual muitos presidentes relacionados ao “Consenso de Washington” caíram e surgiram governos populistas e/ou nacionalistas-burgueses como Chávez na Venezuela, Lula no Brasil, Morales na Bolívia, Kirchner na Argentina, etc.

Esse novo contexto político internacional, aliado ao fortalecimento dos chamados movimentos sociais da região (indigenismo/zapatismo, feminismo, ecologismo, desempregados), levou ao desenvolvimento de vários projetos teórico-políticos que questionavam o “consenso neoliberal” predominante nos anos oitenta e noventa, embora sem considerar uma perspectiva de luta pelo socialismo. Pelo contrário, eles se limitaram a fazer uma crítica antineoliberal em uma chave reformista, cuja ênfase é fazer mudanças parciais no capitalismo dentro dos limites institucionais do próprio Estado burguês.

O chamado “projeto” ou “giro” decolonial faz parte dessa rede de perspectivas “críticas” e de “libertação”. Suas origens podem ser datadas no final dos anos setenta e no início dos anos oitenta, quando algumas de suas referências teóricas atuais [1] delinearam suas categorias fundantes e análises históricas com suporte na teoria da dependência. Mas até alguns anos atrás, tornou-se a nova “moda intelectual” que percorre os corredores de muitas universidades latino-americanas, servindo como um corpus teórico para o ativismo do autonomismo … faz parte da lógica do Fórum Social Mundial (FSM) e sua proposta de “outro mundo é possível”, combinando características reformistas e anticomunistas.

No presente trabalho, realizaremos um debate a fundo com o giro decolonial, que assumimos como parte das lutas teóricas inscritas no atual recomeço histórico das lutas dos explorados e oprimidos, produto do qual importantes discussões estratégicas estão sendo reabertas entre a vanguarda e o conjunto das correntes de esquerda. Nesse sentido, daremos ênfase particular a refutar os ataques infundados contra o marxismo por autores como Aníbal Quijano, Walter Mignolo e Ramón Grosfoguel, aproveitando para apresentar às novas gerações militantes aspectos centrais das elaborações teóricas dos principais autores do materialismo histórico (Marx Lenin, Engels, Trotsky) e as de nossa Corrente Socialismo ou Barbárie (SoB), na esperança de contribuir com seu processo de formação política diante do grande desafio colocado pela luta de classes hoje: reintroduzir a perspectiva da revolução socialista no século XXI entre a classe trabalhadora, os explorados e oprimidos.

Parte 1

A historiografia decolonial: uma interpretação essencialista do processo histórico

Para entender e debater as categorias centrais do giro decolonial, é necessário começar com a interpretação histórica que eles fazem sobre a constituição do capitalismo, a configuração da “matriz colonial do poder” e a colonização da América. Este é um ponto nodal de sua proposta de direcionar seus ataques contra a modernidade e, especialmente, de se engajar em um debate intelectualmente desonesto contra o marxismo e sua interpretação materialista da história, culpando-o por posições exclusivas do stalinismo soviético e tornando invisíveis outras perspectivas teóricas da tradição do socialismo revolucionário, em particular as elaborações do trotskismo.

A “matriz colonial do poder” na historiografia decolonial

Para os decolonialistas, entende-se desenvolvimento histórico a partir da “colonialidade”, que “consiste em revelar a lógica secreta que impõe controle, dominação e exploração, lógica oculta por trás do discurso da salvação, progresso, modernização e o bem comum” (Mignolo, 2007: 32). Esta se encontra relacionada à modernidade, que eles associam organicamente ao processo histórico pelo qual a Europa se constituiu como região hegemônica, de modo que eles têm uma conclusão peculiar: não se pode ser moderno sem ser colonial!

Produto da dialética “modernidade/colonialidade”, eles argumentam que se configurou uma “matriz colonial de poder”, uma chave estratégica para compreender as relações políticas mundiais estabelecidas pela Europa desde a conquista da América no século XVI, o que explica o “componente colonial da modernidade” (Mignolo, 2007). Assim, o ângulo central para a compreensão do desenvolvimento histórico são as relações/contradições de poder entre o “centro” e a “periferia” (noções retiradas da teoria da dependência) e o capitalismo é assumido como um sistema já totalmente constituído pelo Século 16, embora se reconheça que “derivou momentos históricos” com o Iluminismo, a Revolução Industrial e, mais recentemente, a Segunda Guerra Mundial e a ascensão dos Estados Unidos como potência hegemônica.

Trata-se de uma interpretação abstrata e sem densidade histórica, uma vez que a centralidade da análise gira em torno de noções geopolíticas sem âncora de classe, incorrendo em caracterizações com acentuados preconceitos essencialistas para explicar o desenvolvimento histórico. Por um lado, eles nos apresentam uma versão monolítica da Europa/Ocidente capitalista, eurocêntrica e racista, e, por outro, uma versão romântica de regiões não europeias/ocidentais, colonizadas e saqueadas pela modernidade. Ramón Grosfoguel reproduz com precisão essa deriva essencialista decolonial, colocando a assimetria entre as “populações ocidentais” e as “não ocidentais” como a contradição central do processo histórico mundial: “O sistema mundial é muito mais que um sistema econômico, é uma matriz colonial de poder composta por um complexo sistema de rede de relações múltiplas e heterogêneas de poder emaranhadas entre si, que privilegiam as populações ocidentais (euro-norte-americanas, euro-mexicanas, euro-colombianas etc.) sobre as populações não-ocidentais ”(Grosfoguel, 2008: 25).

A partir disso, os decolonialistas empreendem ataques contra a modernidade como um todo, mas com maior ênfase contra a perspectiva materialista da história, que eles censuram por não romper com a “colonialidade do poder” e sustentar um projeto de “emancipação universal” emoldurado no paradigma da modernidade eurocêntrica, semelhante ao cristianismo e ao liberalismo. Na verdade, os argumentos decoloniais contra o materialismo histórico são de um nível teórico muito baixo, baseado principalmente em postulados pós-modernistas e em muitos “lugares comuns” do anticomunismo da “Guerra Fria” [2].

Isso pode ser visto desde o início de suas críticas, porque, de maneira totalmente abusiva, elas incluem o materialismo histórico na mesma “modernidade” do cristianismo e do liberalismo. Essa falsa ideia de uma “modernidade homogênea” é muito típica do pós-modernismo, quando na verdade deve ser considerada um fenômeno altamente contraditório (ou uma “dupla modernidade” nas palavras de Alan Rush), sendo capaz de encontrar “modernistas afirmativos” que reivindicam valores hegemônicos do pensamento racionalista burguês, mas também os “modernistas críticos” que questionam as sociedades modernas burguesas e enfatizam as contradições sociais, como o marxismo e a perspectiva materialista da história (García, 2007).

Por outro lado, os decolonialistas argumentam que o marxismo segue uma abordagem eurocêntrica, economicista e teleológica da história, com base nas categorias “a-históricas” de “modos de produção” e “luta de classes”. Segundo Aníbal Quijano, no materialismo histórico (e em outras visões eurocêntricas) “está subjacente a ideia de que, de alguma forma, as relações entre os componentes de uma estrutura social são dadas, a-históricas, isto é, são o produto da performance de algum agente anterior à história das relações entre as pessoas (…) Se Marx também envolve ações humanas na origem das ‘relações de produção’, para o materialismo histórico isso ocorre fora de toda subjetividade ”(Quijano, 2007 : 97).

Na verdade, o materialismo histórico está muitíssimo longe dessa “caricatura” que Quijano e outros decolonialistas nos oferecem. Marx e Engels dedicaram grandes esforços à pesquisa econômica, pois era decisivo decifrar o funcionamento real da acumulação capitalista para consolidar uma nova economia política dos interesses da classe trabalhadora e dos oprimidos. Mas isso nunca foi feito de uma perspectiva econômica, pelo contrário, sempre buscou esclarecer o funcionamento histórico das sociedades.

Isso pode ser visto na ideologia alemã, onde Marx começa a desenvolver várias categorias centrais do materialismo histórico, fazendo uma abordagem da história a partir da “ciência real” e analisando o “processo prático de desenvolvimento dos homens”. Ali, Marx estabelece uma relação dialética entre as formas de produção social e a história das sociedades humanas, destacando que o “primeiro fato histórico” é a produção de meios para atender às necessidades dos seres humanos.

Seguindo esse raciocínio, Marx analisa que a produção é a chave para entender o funcionamento das formações sociais, uma vez que “já representa uma certa forma de atividade desses indivíduos, um modo estabelecido de manifestar sua vida, um modo de vida fixado. A maneira pela qual os indivíduos manifestam sua vida reflete exatamente o que são. O que eles são, então, coincide com sua produção, tanto com o que eles produzem quanto com a forma na qual eles produzem. O que os indivíduos são, então, depende das condições materiais de sua produção” (Marx, sem data: 26).

Em Marx, as relações sociais de produção são a chave para entender as formações sociais, que, insistimos, não se reduzem a um “economicismo vulgar”, mas abrangem toda a vida social, incluindo o plano das ideias. É por isso que Marx argumenta que as relações materiais na sociedade são a “linguagem da vida real”, rejeitando qualquer interpretação fetichista da realidade. É por isso que Marx e Engels iniciam o Manifesto Comunista com a famosa frase “A história de todas as sociedades que existem até hoje é a história das lutas de classes“, estabelecendo um critério central para entender o processo histórico, tanto em sua permanência e em suas rupturas, algo decisivo para o marxismo como um projeto de emancipação social.

O exposto acima também nega qualquer indicação de “teleologia” no materialismo histórico, uma vez que a luta de classes apresenta um cenário aberto de possibilidades históricas, em que o fator de prático dos sujeitos participa do processo histórico. Callinicos ressalta que “o materialismo histórico não é uma teoria teleológica da evolução social, e não apenas nega que o capitalismo seja o último estágio do desenvolvimento histórico, mas que o comunismo, a sociedade sem classes (…) não é a consequência inevitável das contradições do capitalismo, porque existe outra alternativa, o que Marx chamou de “destruição mútua das classes em conflito” e Rosa Luxemburgo de “barbárie”(Callinicos, 2011: 98).

Capitalismo, colonização e exploração do trabalho

Por outro lado, Ramón Grosfoguel empreende ataques contra Marx, a quem ele acusa de etapista porque separa a acumulação original da acumulação ampliada do capital, que visa “liberar de responsabilidade” aos europeus das formas de exploração colonial: “Esta negação da coexistência no tempo é típica das formulações eurocêntricas que conceituam o tempo em estágios da história e expulsam para o passado as formas de produção da periferia não europeia para libertar de responsabilidade aos centros europeu/euro-norte-americanos da exploração ontem e hoje” (Grosfoguel, 2008: 20).

Essa acusação de Grosfoguel é uma vulgarização das posições de Marx que não resiste à menor análise. Marx e Engels constituíram uma equipe de trabalho intelectual e político que produziu elaborações monumentais, que ainda se destacam por sua riqueza estratégica. Mas não se deve esquecer que também foi um trabalho pioneiro, estabelecendo os fundamentos do comunismo científico e do materialismo histórico. Assim, algumas de suas elaborações apresentam desigualdades, pois sua agenda de trabalho estava muito saturada em grande número de assuntos e deixou outros pontos de sua elaboração teórica inacabados [3]. É o caso de posições sobre o colonialismo, que variaram bastante durante a segunda metade do século XIX. Apesar disso, Marx legou hipóteses de trabalho significativas para entender o desenvolvimento do capitalismo e as relações sociais de produção nas colônias (que serão aprofundadas por Trotsky), em particular suas apreciações gerais das formas combinadas de exploração capitalista.

Em seus escritos sobre o colonialismo no O Capital, Marx retoma sua definição de capital como uma relação social dinâmica, afirmando que “os meios de produção e subsistência pertencentes ao produtor imediato, ao próprio trabalhador, não são capital. Somente se convertem nele quando servem como meio de explorar e dominar o trabalho” (Marx, 973: 746). Note que Marx não enfatiza nenhum sistema específico de extração do plustrabajo, apenas aponta que a relação capitalista é estabelecida a partir da exploração e dominação do trabalho, cuja base é a “expropriação do trabalhador”.

Isso se complementa por suas elaborações em Trabalho assalariado e capital (citado nesta seção de O Capital), onde levanta em detalhes a natureza combinada da exploração capitalista: “Um negro é um negro. Somente sob certas condições ele se torna escravo. Uma fiação de algodão é uma fiação de algodão. Somente sob certas condições ela se torna capital. Separado dessas condições, é tão pouco capital quanto o próprio ouro é dinheiro ou o açúcar preço do açúcar. O capital também representa relações sociais. Trata-se das relações de produção burguesas, das relações de produção da sociedade burguesa” (Marx, 1973: 745).

Diante do exposto, fica claro que em Marx a exploração capitalista poderia incorporar diferentes formas de exploração ao trabalho assalariado, embora essa continuasse sendo a relação social predominante no capitalismo industrial, tese que nas últimas décadas foi totalmente confirmada, porque atualmente o mundo é majoritariamente urbano e proletário, sendo a relação salarial determinante no capitalismo do século XXI.

Capitalismo e Imperialismo

Como explicamos anteriormente, para os decolonialistas “modernidade” e “colonialidade do poder” são as categorias estratégicas para entender o processo histórico, cuja inter-relação gera a “matriz colonial de poder”. Dessa maneira, todas as especificidades nas relações sociais de produção e as variações substantivas nos regimes de acumulação capitalista se diluem em uma abstração a-histórica. “Capitalismo eurocentral” e sua “matriz colonial de poder” é a definição determinante, estabelecendo quase que uma linha direta entre a conquista espanhola e as guerras mundiais do século XX: fazem parte da mesma “colonialidade do poder” Isabel de Castilla, Stalin e Roosevelt!

A partir disso, os decolonialistas refutam a definição de imperialismo sintetizada por Lenin em seu texto Imperialismo, fase superior do capitalismo. De acordo com Grosfoguel a “caracterização leninista que tanto tem influenciado a discussão do imperialismo no século XX a partir de uma visão eurocêntrica do capitalismo com o seu design linear e etapista do tempo histórico, o capitalismo comercial correspondente, ‘capitalismo agrário’, ‘capitalismo industrial’ e ‘capitalismo financeiro’ são as quatro fases sucessivas de capitalismo (…) Esta posição assume linearidade nas formas anteriores de trabalho são substituídos por formas mais tarde e em que capitalismo é identificado como sendo o equivalente do trabalho assalariado. Outros trabalhos (semi-feudal, escravista, mercantil simples, etc.) são lançados ao passado ao ser conceituada como ‘pré-capitalista’, quando, na verdade, sempre coexistiram na periferia colonial articulada para a acumulação de capital em escala mundial ” (Grosfoguel, 2008: 18-19).

Tem sentido estas críticas decoloniais da categoria leninista de “imperialismo”? Lenin escreve o Imperialismo, fase ... em 1916, com o objetivo de fornecer uma resposta teórica a um fenômeno inteiramente novo de enorme importância para o movimento socialista revolucionário: explicar o caráter social e as perspectivas abertas pela Primeira Guerra Mundial. Nesse sentido, a contribuição de Lenin com esse trabalho foi gigantesca, pois demonstrou a transformação da economia mundial capitalista e suas implicações nas relações internacionais no início do século XX: “O capitalismo se transformou em um sistema universal de subjugação colonial e estrangulamento financeiro da grande maioria da população do planeta por um punhado de países “avançados”. A distribuição desse ‘espólio’ é realizada entre duas ou três potências vorazes e armadas até os dentes (América do Norte, Inglaterra, Japão), que dominam o mundo e arrastam sua guerra, pela divisão de seus saques, a todo o planeta” (Lenin, 1970: 696).

Por causa dessa análise, Lenin imediatamente entendeu o caráter imperialista da Primeira Guerra Mundial, que ele justamente definiu como uma “guerra de conquista, banditismo e de rapina”. Mais importante, ele conseguiu caracterizar que a guerra mundial não era mais um confronto bélico, mas representou um “ponto de ruptura” na história contemporânea ao gerar uma crise irreversível da ordem política europeia [4]. Isso foi capturado por Lenin em tempo real (demonstrando a sensibilidade política que o distinguia) e, portanto, ele descreveu o imperialismo como o “prelúdio da revolução socialista”, uma perspectiva que se mostraria historicamente correta com o triunfo da revolução russa em 1917 (um ano depois de escrever Imperialismo, fase …)

Isso pode parecer um tanto insignificante para nós hoje, mas temos a vantagem de já sabermos o “fim do filme”. Mas no tempo de Lenin era uma conclusão nova nas tendas do socialismo revolucionário. Para ilustrar isso, basta rever algumas passagens da correspondência entre Marx e Engels sobre o colonialismo em 1858, em que refletem suas “dúvidas” sobre as chances de triunfo da revolução socialista na Europa, porque o capitalismo ainda apresentava um papel ascendente ao universalizar as relações sociais de produção: “A verdadeira missão da sociedade burguesa é criar o mercado mundial, pelo menos em termos gerais, bem como uma produção baseada nele (…) Para nós, a questão difícil é esta: no continente está prestes a explodir a revolução, que em breve adquirirá um caráter socialista; não será inevitavelmente esmagada neste pequeno rincão, já que, em um campo muito mais amplo, o movimento da sociedade burguesa ainda está em ascensão?” (Marx, 1970: 93)

Com Imperialismo, fase ... Lenin demonstra que o capitalismo entrou em “uma fase particular do seu desenvolvimento” ao atingir um certo grau de maturidade, onde suas características fundamentais foram transformadas em sua “antítese”. Em outras palavras, a sociedade burguesa havia superado seu movimento “ascendente”, estabelecendo as condições para uma mudança histórica na história universal: a perspectiva da revolução socialista no horizonte político da classe trabalhadora!

O que precede invalida as acusações de Grofoguel sobre o “etapismo” de Lenin em sua compreensão do tempo histórico. Pelo contrário, com sua caracterização do imperialismo como a fase superior do capitalismo, ele deu uma nova contribuição à compreensão materialista da história universal. Mas também conquistou uma ferramenta estratégica para entender a profundidade da revolução de fevereiro contra o czarismo e a nova situação política que se abriu na Rússia a partir desse momento, superando a formulação bolchevique clássica de que a revolução russa seria por seus fins burguesa, mas liderada pela classe trabalhadora em unidade com o campesinato, resumida no slogan da “ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses“.

Nesse sentido, Lenin manteve uma visão etapista da revolução russa por muitos anos, mas, diferentemente do que Grosfoguel aponta, não se originou de uma avaliação esquemática nas formas de exploração do trabalho, mas se baseou em relações políticas entre classes sociais e a necessidade de revolucionar a propriedade agrária. Para Lenin, a burguesia liberal russa era extremamente fraca e incapaz de liderar uma completa revolução democrática contra o czarismo, enquanto havia uma comunidade de interesses democrático-populares entre o proletariado e o campesinato que os capacitava a lutar completamente contra o regime autocrático. Assim, de acordo com a concepção de Lenin, a revolução contra o czarismo seria um ponto de apoio para fortalecer a luta do proletariado pelo socialismo e não a dominação da burguesia russa, um aspecto que o diferenciava das outras concepções etapistas de Plejanov e dos mencheviques, os quais sempre sustentaram que a revolução deveria ser liderada pela burguesia e não pela classe trabalhadora.

O exposto acima é confirmado pelas posições de Lenin em Duas táticas da social-democracia na revolução democrática (escrita em 1905), onde, ao defender o caráter “burguês” da próxima revolução russa, também deixa claro que seria um processo. onde “elementos do passado e do futuro” se entrelaçariam: “Naturalmente, em uma situação histórica concreta, elementos do passado e do futuro se entrelaçam, se confundem um e outro caminho. O trabalho assalariado e sua luta contra a propriedade privada também existem sob a autocracia, nascidos inclusive no regime feudal. Mas isso não nos impede de distinguir de maneira lógica e histórica as grandes fases do desenvolvimento. Pois, todos nós contrapomos à revolução burguesa a socialista (…), mas pode-se negar que elementos isolados, particulares de uma e de outra revolução, estão entrelaçados na história? A era das revoluções democráticas na Europa não registra uma série de movimentos socialistas e tentativas socialistas?” (Lenin, 1970b: 538).

Essa citação nega as acusações de Grosfoguel sobre a “narrativa linear eurocêntrica do leninismo”, como Lenin tinha em mente, mesmo que fosse muito geral e sem abandonar sua perspectiva etapista, que nas revoluções combinavam-se “elementos isolados particulares” de diferentes fases do desenvolvimento histórico, aspecto que alcançaria seu pico de lucidez com as elaborações de Trotsky.

Assim, a revolução democrática adquire com Lenin uma “dialética de classe” específica, estabelecendo uma tensão permanente entre os fins burgueses e os sujeitos sociais da revolução. Trotsky criticou essa perspectiva bolchevique, pois caracterizou que resolveu o problema do poder de maneira “algébrica”, embora tenha resgatado que também incorporava um aspecto forte ao propor uma colaboração entre as classes para a revolução: “Lenin levantou a questão de uma aliança de operários e camponeses, irreconciliavelmente oposta à burguesia liberal. A história nunca havia testemunhado tal aliança. Foi uma experiência nova por seus métodos de colaboração das classes oprimidas da cidade e do campo. Por essa mesma razão, o problema das formas políticas de colaboração também foi levantado como uma novidade” (Trotsky, 2000: 453). Portanto, sem negligenciar os limites etapistas dessa concepção, Lenin sempre procurou incorporar outras classes sociais exploradas e oprimidas à revolução, particularmente o campesinato que era uma grande maioria na Rússia [5].

Essa concepção particular da revolução, baseada na ação direta da classe trabalhadora e dos camponeses, tornou mais fácil para Lenin repensar suas posições com as Teses de abril (1917), onde ele rompe com seu etapismo anterior e se posiciona para avançar a uma segunda fase da revolução “que deve colocar o poder nas mãos do proletariado e das camadas pobres do campesinato“, isto é, estabelecer uma “sintonia fina” entre os fins e os sujeitos da revolução. Isso gerou um intenso debate dentro do Partido Bolchevique, quando Lenin foi atacado pelos “velhos bolcheviques” porque estava se distanciando das posições históricas do partido. Diante disso, Lenin insistiu na necessidade de saber apreciar os momentos políticos e, demonstrando uma compreensão muito rica do marxismo distante de todo dogmatismo, disse que “os slogans e ideias bolcheviques foram, em geral, totalmente confirmados pela história, mas especificamente, as coisas aconteceram de maneira diferente do que se esperava (a quem quer que fosse); elas aconteceram de uma maneira mais original, mais peculiar e mais variada ”(Lenin, sem dados: 11).

Finalmente, é verdade que O imperialismo, fase… de Lenin se concentra nos aspectos econômicos do processo, o que é explicado pela necessidade de fundamentar com dados sólidos seus debates sobre a guerra mundial com a social democracia europeia, que se posicionou a favor do guerra, mas, também, porque, como o próprio Lenin aponta em vários prólogos do texto, era uma medida consciente contornar a censura do czarismo [6], enfatizando os debates teóricos em detrimento de outros mais políticos. Infelizmente, a honestidade intelectual de Grosfoguel não é suficiente para apontar isso quando ele o acusa de “reducionista econômico”, demonstrando a pequenez do “debate” que realiza.

Em resumo, o debate de Lenin sobre o imperialismo sempre esteve tensionado em torno de sua perspectiva da revolução socialista, concentrando-se em discussões estratégicas por sobre as situações de curto prazo. Essa é uma característica comum de todas as elaborações dos grandes socialistas revolucionários (Marx, Engels, Luxemburgo, Trotsky). É por isso que afirmamos que sua caracterização do imperialismo não é um reflexo do “etapismo” que Grosfoguel o acusa, pelo contrário, foi um ponto de partida para Lenin repensar a perspectiva da revolução socialista no século XX a partir dos desenvolvimentos da luta de classes, porque, como ele próprio afirmou nas Teses de abril, “o marxismo deve levar em conta a própria vida, os fatos exatos da realidade, e não continuar apegado à teoria de ontem, que, como qualquer teoria, apenas rastreia, no melhor dos casos, o fundamental, o geral e, de maneira aproximada, abrange toda a complexidade da vida” (Lenin, sem data: 12). Assim, o verdadeiro Lenin raciocinava e fazia política, muito distante da vulgar caricatura dogmática que Grosfoguel nos apresenta.

O imperialismo e a “dialética das etapas históricas”

Ao longo deste capítulo, insistimos que os ataques decoloniais ao materialismo histórico são infundados, o que sustentamos nos parágrafos anteriores com referência às discussões sobre as posições de Marx e Lenin. Mas onde não há dúvida sobre a insuficiência dos debates decoloniais está em relação a uma “pequena” omissão: Trotsky e a teoria do desenvolvimento desigual e combinado! Aqui as coisas já passam para outro nível, pois Trotsky é o grande pensador estratégico do marxismo revolucionário no século XX e que deu as maiores contribuições para a atualização da abordagem materialista da história [7]. Portanto, evitar a riqueza de seu trabalho é sinal de um debate intelectualmente desonesto.

Segundo Quijano, “o materialismo histórico reconheceu, após a Segunda Guerra Mundial, que em sua visão evolutiva e unidirecional das classes sociais e das sociedades de classe, problemas complicados estão pendentes. Em primeiro lugar, devido à repetida verificação de que, mesmo nos ‘centros’, algumas ‘classes pré-capitalistas’, em particular os camponeses, não deixaram, nem pareciam dispostos a deixar o cenário histórico do ‘capitalismo’, enquanto outras, as classes médias, tendiam a crescer à medida que o capitalismo se desenvolvia. Segundo, porque não era suficiente a visão dualista da passagem entre ‘pré-capitalismo’ e ‘capitalismo’ em relação às experiências do ‘Terceiro Mundo’, onde configurações de poder muito complexas e heterogêneas não correspondem às sequências e etapas esperadas na teoria eurocêntrica do capitalismo. Mas não conseguiu encontrar uma saída teórica apoiada na experiência histórica e chegou apenas à proposta de ‘articulação dos modos de produção’, sem abandonar a ideia da sequência entre eles. Ou seja, essas ‘articulações’ não deixam de ser conjunturas da transição entre os modos ‘pré-capitalista’ e o ‘capitalismo’. Em outras palavras, eles consistem na coexistência – transitória, é claro – do passado e do presente de sua visão histórica! ” (Quijano, 2007: 97).

Pedimos desculpas pela extensão da citação, mas achamos necessário reproduzi-la completamente para refletir a natureza insubstancial da crítica decolonial ao materialismo histórico. Para nossos leitores mais experientes e leitores da obra de Trotsky, já ficará claro que a abordagem de Quijano tem a “solidez” de um castelo de cartas, uma vez que todas essas questões do materialismo histórico foram dialeticamente problematizadas pelo grande revolucionário russo desde o início do século XX (não depois da Segunda Guerra Mundial!), quando ele delineou sua teoria da revolução permanente na Rússia que, mais tarde, universalizaria a partir dos ensinamentos da revolução chinesa de 1927.

Anteriormente, explicamos que Trotsky era crítico da teoria etapista da revolução leninista, considerando que ele não vinculava a fase democrática à perspectiva socialista no mesmo processo, ao mesmo tempo em que resolvia a questão do poder com a abordagem da “ditadura democrática revolucionária do proletariado e dos camponeses”. Para Trotsky, era necessário acrescentar o campesinato à revolução, mas estabelecendo um papel de liderança do proletariado, pois era a única maneira de garantir que passasse para uma perspectiva socialista e não se detivesse na fase democrático-burguesa. Como explicará mais adiante, sua formulação colaboracionista entre a classe trabalhadora e o campesinato foi realizada com base em uma “mecânica política” diferente, apoiada em outro programa, formas partidárias e métodos políticos (Trotsky, 2000). Por isso, ele não compartilhava a consigna bolchevique da revolução que, embora garantisse independência política frente a burguesia liberal, estabelecia desde o início um “dique estratégico” que impedia o aprofundamento do processo revolucionário. Essa diferença se resolveu nos eventos de 1917, quando Lenin avançou para uma perspectiva semelhante às das Teses de abril, ante da qual Trotsky se juntou posteriormente ao Partido Bolchevique porque as diferenças passaram a ser meramente táticas [8].

Trotsky apoiava sua teoria da revolução permanente em uma interpretação peculiar e nova do processo histórico, que ele chamou de “lei do desenvolvimento desigual e combinado”, que explicou da seguinte maneira em seu primeiro capítulo da História da Revolução Russa: “As leis da história não têm nada em comum com o esquematismo pedante. O desenvolvimento desigual, que é a lei mais geral do processo histórico, não nos é revelado de forma alguma com as evidências e a complexidade com as quais o destino dos países atrasados ​​o patenteia. Atingidos pelas necessidades materiais, os países atrasados ​​são forçados a avançar. Dessa lei universal do desenvolvimento desigual da cultura deriva outra que, na ausência de um nome mais apropriado, chamaremos lei do desenvolvimento combinado, referindo-se à aproximação dos diferentes estágios do caminho e da confusão de distintas, ao amálgama de formas. arcaicas e modernas” (Trotsky, 2012: 33).

A partir dessa concepção, Trotsky atualizou o andaime estratégico do materialismo histórico, incorporando o imperialismo na compreensão do desenvolvimento histórico-social universal. Anteriormente, Marx e Engels haviam apontado o papel revolucionário da burguesia no processo histórico, à medida que o capitalismo moldava o caráter universal/cosmopolita da produção e consumo das sociedades humanas. Isso lhes permitiu entender o caráter internacionalista da revolução socialista, mas não chegaram a delinear uma estratégia revolucionária verdadeiramente universal que englobasse os países coloniais e semicoloniais.

Trotsky analisa em 90 anos do Manifesto Comunista que isso se baseava em uma hipótese de trabalho de Marx e Engels, porque “eles consideravam que a revolução social, “ao menos nos principais países civilizados” era coisa de poucos anos, a questão colonial resultava para eles, automaticamente resolvido, não como consequência de um movimento independente das nacionalidades oprimidas, senão da vitória do proletariado nos centros metropolitanos do capitalismo. A questão da estratégia revolucionária nos países coloniais e semicoloniais não é, portanto, abordada no Manifesto. Essas questões continuam a exigir uma solução independente” (Prefácio em Marx e Engels, sem data: 49).

Essa hipótese não se cumpriu, o que ficou claro no final do século XIX e no início do século XX, quando Trotsky iniciou sua trajetória militante. Isso explica a riqueza de seu trabalho teórico e estratégico, pois ele teve que buscar uma resposta para os desafios políticos impostos pela luta de classes em um país como a Rússia, onde o capitalismo se desenvolveu no quadro de um estado absolutista autocrático e a classe social majoritária era o campesinato, mas que contava com uma jovem e dinâmica classe trabalhadora produto dos investimentos industriais do capital imperialista europeu, que, ademais, mostrava um alto nível de politização e combatividade social.

Essas peculiaridades do desenvolvimento capitalista na Rússia e as experiências de luta da sua jovem classe trabalhadora contra o czarismo foram o terreno fértil para Trotsky captasse a “dialética das etapas históricas”, identificando os elementos desiguais e combinados no processo histórico: “Os países atrasados ​​se assimilam das conquistas materiais e ideológicas das nações avançadas. Mas isso não significa que sigam a estas últimas de maneira servil, reproduzindo todas as etapas do passado (…) O capitalismo prepara e, até certo ponto, realiza a universalidade e a permanência na evolução da humanidade. Com isso, se exclui a possibilidade de repetir formas evolutivas nas diferentes nações. Forçado a seguir os países avançados, o país atrasado não se ajusta em seu desenvolvimento à concatenação das etapas sucessivas” (Trotsky, 2012: 32).

Assim, para Trotsky, o capitalismo em sua fase imperialista foi um fator-chave que alterou as relações entre classes sociais nos países coloniais e semicoloniais, às quais se impôs o salto de etapas em seu desenvolvimento histórico e as formações sociais foram combinadas totalmente novas, impedindo um desenvolvimento sequencial na história.

Essa abordagem desigual e combinada da história está muito longe da “articulação dos modos de produção” sustentada pelo estruturalismo na segunda metade do século XX, uma vez que não representa a “coexistência” temporal dos modos de produção nem a “sequência” linear entre os mesmos. Para Trotsky, essas formações sociais combinadas são algo novo que rompe com qualquer “esquematismo pedante”, dando origem a realidades sociais muito complexas: “O desenvolvimento de uma nação historicamente atrasada faz forçosamente que se confundam nela, de uma maneira característica. As distintas fases do processo histórico. Aqui, o ciclo apresenta, focado em sua totalidade, um caráter confuso, intrincado e misto” (Trotsky, 2012: 32).

Diante do exposto, fica claro que os debates decoloniais contra o materialismo histórico não têm pé nem cabeça. Na realidade, seus argumentos são direcionados contra o “marxismo” vulgar e esquemático do stalinismo, mas de uma maneira muito desonesta eles generalizam que é contra o materialismo histórico. Isso explica por que Quijano não se refere ao trabalho de Trotsky quando denuncia a interpretação do desenvolvimento histórico eurocêntrico e sequencial do “marxismo”, uma vez que o impediria de sustentar o grande número de sandices com as quais forma seu projeto decolonial. Esse mesmo método de discussão é reproduzido no debate historiográfico central dos decolonialistas: a colonização da América.

A colonização da América: feudal ou capitalista?

A historiografia decolonial argumenta que a colonização da América foi um produto da expansão comercial mercantilista, que determinou o caráter capitalista das sociedades coloniais. Além dessa interpretação, os decolonialistas novamente enfrentam um falso debate contra o marxismo, generalizando que, a partir da abordagem “sequencial” do materialismo histórico, a colonização do continente foi assumida como feudal.

Com base nesse preconceito intelectual, Quijano caracteriza que o materialismo histórico é uma “teoria de uma sequência histórica unilinear e universalmente válida entre as formas conhecidas de trabalho e controle do trabalho”, o que suscita a necessidade de reabrir o debate sobre o colonização da América como umaquestão principal do debate científico-social contemporâneo“: “Do ponto de vista eurocêntrico, reciprocidade, escravidão, servidão e produção mercantil independente, são todas percebidas como uma sequência histórica anterior à mercantilização da força de trabalho. (…) Na América, a escravidão foi deliberadamente estabelecida e organizada como mercadoria para produzir mercadorias para o mercado mundial e, assim, servir aos propósitos e necessidades do capitalismo” (Quijano, 2000: 219).

Esta citação de Quijano demonstra sua total ignorância das elaborações do marxismo sobre a colonização da América. Embora Marx não tenha realizado um estudo detalhado da natureza social da colonização na América, nos legou apontamentos de trabalho sobre as formas combinadas de exploração do trabalho nas colônias, entre as quais figuram suas avaliações sobre as plantações americanas e da exploração capitalista por meio de trabalho escravo Isso é retomado por Henryk Grossmann [9] em sua obra A lei da acumulação e colapso do sistema capitalista: “Desde o início (…) se trata, no que diz respeito a esses territórios (…) de acordo com a expressão de Marx, de ‘uma segunda classe de colônias, as plantações, que são desde o momento mesmo de criarem-se especulações comerciais, centro de produção do capitalismo mundial ‘(Teorias da mais-valia, volume II). Poderia ser questionado seu caráter capitalista, dado que aqui se empregam escravos e não trabalhadores assalariados. Marx responde a isso que ‘aqui existe um regime de produção capitalista, embora apenas de maneira formal, uma vez que a escravidão dos negros exclui o trabalho assalariado (…) São, no entanto, os capitalistas que dirigem o negócio do tráfico dos negros” (Citado em Yunes, 2009: 215).

Diante do exposto, as afirmações de Quijano sobre o “sequencialismo” do materialismo histórico em torno das formas de controle do trabalho não se aplicam, pelo contrário, como Grossmann demonstra, uma vez que Marx já tem clareza das formas combinadas que poderiam assumir a exploração capitalista em contextos sociais específicos, como aconteceu nas colônias americanas.

O mesmo tipo de sinalização “crítica” é presente nas obras de Grosfoguel. Em suas críticas ao materialismo histórico, ele argumenta que “Apenas a partir de uma geopolítica do conhecimento eurocentral é possível concluir que o que aconteceu na Europa como uma sucessão linear de modos de produção também aconteceu em todo o planeta. Nunca houve feudalismo na África, Ásia e América Latina. O que houve foi a exportação de várias formas coercitivas de trabalho da Europa para as periferias coloniais sob o controle do capitalismo monopolista financeiro em escala mundial” (Grosfoguel, 2008: 20-21).

Seja por ignorância ou desonestidade intelectual, essas notas “críticas” de Grosfoguel estão totalmente erradas. Desde meados do século XX, vários autores do trotskismo latino-americano caracterizaram que a colonização da América se realizou com fins capitalistas! Em particular, o trabalho de Milcíades Peña, que com base nas ferramentas teóricas da lei do desenvolvimento desigual e combinado, desenvolveu uma análise aprofundada sobre esse assunto, que foi publicada através de artigos em revistas da Argentina entre as décadas de 1950 e 1970 (e mais recentemente reunidos na Historia del Pueblo Argentino).

Peña defende que, tanto pelo conteúdo, os móveis e os objetivos desenvolvidos, a colonização espanhola do continente americano era capitalista, o qual explicava que a economia colonial estava orientada desde o início para o mercado mundial. Para ilustrar isso, tomava como exemplo Potosí, cuja indústria de mineração possuía todas as características de uma atividade capitalista, porque além da produção em larga escala de metais preciosos para exportação, nada mais foi produzido na região, tendo que importar alimentos e outros produtos de outras áreas do continente (Peña, 2012).

Aprofundando esta tese, Peña destaca que se tratou de uma variante específica do capitalismo, que ele chamou de “capitalismo colonial”, caracterizada por empregar uma forma peculiar de exploração do trabalho, o “salário corrompido” [10]: “É um capitalismo de estabelecimento de comércio, ‘capitalismo colonial’, que, diferentemente do feudalismo, não produz em pequena escala e muito menos para consumo local, mas em larga escala, usando grandes massas de trabalhadores e de olho no mercado; geralmente o mercado mundial ou, na sua falta, o mercado local estruturado em torno dos estabelecimentos que produzem para exportação. Essas são características decisivamente capitalistas, embora não sejam do capitalismo industrial caracterizado pelo salário livre” (Peña, 2012: 67).

O exposto é de extrema importância, porque, embora em primeira instância exista certa semelhança entre a caracterização da colonização da América entre os decolonialistas e a perspectiva do trotskismo que Peña reflete, quando nos aproximamos mais da definição da forma específica da economia colonial as diferenças começam a surgir. Por exemplo, para Grosfoguel, a economia colonial foi a primeira manifestação do capitalismo industrial na história, um aspecto que passa despercebido pelo materialismo histórico devido à sua concepção etapista do capitalismo eurocêntrico, em particular pela visão de Lenin sobre o imperialismo (Grosfoguel, 2008). Na realidade, essa formulação de Grosfoguel é derivada da noção decolonial de “matriz colonial de poder”, onde as especificidades nas formas de acumulação capitalista são diluídas e o desenvolvimento histórico é analisado a partir de uma categoria a-histórica.

Ao contrário, com Peña, a caracterização da colonização capitalista da América é formulada a partir da lei do desenvolvimento desigual e combinado, devido à qual enfatiza a identificação do surgimento de uma nova formação social combinada: “Os espanhóis que chegaram à América encontraram uma nova realidade, inexistente na Espanha; e o resultado foi que, mesmo que subjetivamente quisessem reproduzir a estrutura da sociedade espanhola, eles objetivamente construíram algo diferente. A Espanha feudal criou uma sociedade basicamente capitalista na América – um capitalismo colonial, bem entendido, do mesmo modo que, inversamente, na era do imperialismo, o capital financeiro construiu estruturas capitalistas em suas colônias, cobertas de reminiscências feudais e escravistas. Essa é precisamente a natureza combinada do desenvolvimento histórico. O pensamento formal não captura isso e, portanto, em geral, não captura absolutamente nada do essencial” (Peña, 2012: 70).

Em resumo, a elaboração de Peña sobre a colonização na América Latina é um exemplo claro da riqueza do materialismo histórico, que não tem relação com a versão esquemática apresentada a nós pelos decolonialistas. O próprio Peña nos lembra disso afirmando que “nada é mais estranho ao marxismo que o cretinismo jurídico, e nada mais revelador de um cretinismo jurídico impenitente do que caracterizar a colonização espanhola como feudal, não pela estrutura de suas relações de produção, mas pela forma legal que assume a ligação entre as colônias e a Coroa espanhola ”(Peña, 2012: 69-70).

Então, contra quem Quijano, Grosfoguel e os autores decoloniais argumentam? Na esquerda que afirma ser marxista, reconhecemos duas tradições ou correntes de peso que caracterizaram como feudal a colonização da América: José Mariátegui e os partidos comunistas da região ligados ao stalinismo soviético. Quanto a Mariategui, em sete ensaios sobre a interpretação da realidade peruana (publicado em 1928), ele tentou realizar um estudo pioneiro sobre a América Latina a partir do materialismo histórico, que contém contribuições significativas (por exemplo, sua abordagem “anti-romântica” do problema indígena relacionado a um problema estrutural da posse da terra), embora também apresente grandes limitações ligadas a uma determinada sequência nos estágios do desenvolvimento histórico, o que leva a caracterizar a economia latino-americana como feudal. Além desses déficits, seu trabalho teórico corresponde ao de um pensamento revolucionário sobre a teoria da revolução na América Latina. Muito diferente é nossa avaliação do stalinismo “crioulo”, que adaptou uma interpretação da colonização da América para justificar sua política de alianças com a “burguesia progressista”, ao sustentar que o caráter da revolução na região era anti-feudal e cujo objetivo era aprofundar o desenvolvimento do capitalismo [11].

Lamentavelmente, os decolonialistas são incapazes de fazer esse tipo de esclarecimento e, pelo contrário, desenvolvem um método de discussão profundamente desleal, onde confundem as perspectivas historiográficas das correntes esquerdistas sob o rótulo de “materialismo histórico”, embora haja profundas diferenças de concepção estratégica e programática entre elas.

[1] Alguns de seus principais autores são Walter Mignolo, Anibal Quijano, Ramón Grosfoguel, etc., os quais também se apoiam nas elaborações de Enrique Dussel y Frantz Fanon.

[2] Sem dúvida, Ramón Grsofoguel brilha através de seu anticomunismo, chegando a realizar uma análise disparatada do leninismo como um exemplo de “messianismo cristão”, onde o mensageiro é mais importante que a mensagem. Vamos aprofundar isso na seção de proposta programática e organizacional do giro decolonial.

[3] Engels dá conta disso em uma carta endereçada a Bloch em 1890: “Marx e eu somos parcialmente culpados de que jovens escritores, às vezes atribuindo ao aspecto econômico maior importância que o devido. Tivemos que sublinhar esse princípio fundamental em relação aos nossos adversários, que o negaram, e nem sempre tivemos tempo, lugar ou oportunidade de fazer justiça aos outros elementos envolvidos na interação. ”

[4] Em História do século XX, Eric Hobsbawm caracteriza que a Primeira Guerra Mundial e a revolução russa marcaram o final do “longo século XIX”.

[5] Lenin também incorporou outras demandas democráticas ao programa bolchevique, como o direito à autodeterminação das nações, essenciais para que os bolcheviques se posicionassem como a liderança política da classe trabalhadora e do campesinato na Rússia.

[6] No prólogo da edição russa de 1917, Lenin destaca que “o livreto foi escrito com vistas à censura czarista. Por esse motivo, eu não apenas precisei me limitar estritamente a uma análise exclusivamente teórica – especialmente econômica -, mas também tive que fazer as indispensáveis e poucas numerosas observações políticas com a maior prudência, usando alusões, de linguagem aos Esopo, aquela maldita linguagem que os tsarimos forçaram a recorrer a todos os revolucionários quando pegaram a caneta ”(Lenin, 1970: 694)

[7] Nos debates sobre estratégia no marxismo, sugerimos a leitura do artigo “Cuestiones de estrategia” de Roberto Sáenz, publicado na 28ª edição da revista Socialismo o Barbarie.

[8] Por outro lado, Trotsky também fez progressos em termos de seus critérios centristas em relação à organização, assumindo a teoria de Lenin do centralismo democrático.

[9] Sobre este autor, sugerimos a leitura do artigo “Henryk Grossmann e a função econômica do imperialismo”, publicado por Marcelo Yunes na revista Socialismo ou Barbarie nº 23-24.

[10] Esta categoria foi cunhada por Sergio Bagú, Silvio Zabala e também reconhecida por Mariátegui, embora para este último a colonização da América tenha sido feudal.

[11] Isso já foi advertido por Peña desde os anos 1960: “determinar o caráter exato da colonização espanhola não tem importância acadêmica. Basta dizer que a teoria bem conhecida sobre o caráter “feudal” da colonização serviu por muito tempo os moscovitas crioulos como pano de fundo (…) para enrolar o novelo de uma revolução fantasmagórica “anti-feudal” que abriria o caminho para um suposto ‘etapa capitalista’” Peña, 2012: 64).

Bibliografía:

Artavia, Víctor. “Rebeliones populares y tareas estratégicas”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 27), 127-180Buenos Aires, Argentina: febrero 2013.

“México 1910: una historia que contar, una herencia que reivindicar”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 23-24), p. 273-306. Buenos Aires, Argentina: diciembre 2009.

Blanco, Juan. Cartografía del pensamiento latinoamericano contemporáneo. Una introducción. Universidad Rafael Landívar, Guatemala: 2009.

Bonefeld, Werner y Tischler, Sergio (compiladores). A 100 años del ¿QUÉ HACER? Leninismo, crítica marxista y la cuestión de la revolución hoy”. Ediciones Herramienta. Buenos Aires, Argentina: 2003.

Callinicos, Alex. Contra el posmodernismo. Ediciones Razón y Revolución. Buenos Aires, Argentina: 2011.

Engels, Federico y Marx, Carlos. Manifiesto Comunista. Centro Internacional del Trotskismo Ortodoxo. Sin pie de imprenta y sin data.

La Sagrada Familia. Crítica de la Crítica. Editorial Claridad. Buenos Aires, Argentina: 2008.

Engels, Federico. El origen de la familia, la propiedad privado y el Estado. Editorial Progreso. Moscú, URSS: 1976.

El papel del trabajo en la transformación del mono en hombre. Ediciones Distribuidora Cultura. Sin pie de imprenta.

Fanon, Frantz. Los condenados de la tierra. Editorial Txalaparta. Tafalla, España: 1999.

García, George. La posmodernidad y sus modernidades: una introducción (Cuadernos de Historia de la Cultura nº 19). Editorial Universidad de Costa Rica. San José, Costa Rica: 2011.

«Sobre Marx y América Latina (otra vez). A propósito de un artículo de Hermann Güendel». En Praxis (nº 70), p. 11-30. Heredia, Costa Rica: enero – junio de 2013.

Grosfoguel, Ramón. “Del imperialismo de Lenin al imperio de Hardt y Negri: «Fases superiores» del eurocentrismo”. En Universitas Humanística (nº 65), p. 14-26. Bogotá, Colombia: enero-junio de 2008.

“Diálogos descoloniales con Ramón Grosfoguel: transmodernizar los feminismos”. En Tabula Rasa (nº 7), p. 323-340. Bogotá, Colombia: julio-diciembre 2007.

“Descolonizando los universalismos occidentales: el pluri-versalimso transmoderno decolonial desde Aimé Cesaire hasta los zapatistas”. En: El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, p. 63-77. Siglo del Hombre Editores. Bogotá, Colombia: 2007b.

Gruzinski, Serge. La colonización de lo imaginario. Sociedades indígenas y occidentalización en el México español. Siglos XVI-XVIII. Fondo de Cultura Económica. México D.F.: 2004.

Lenin, Vladimir. “El imperialismo, fase superior del capitalismo”. En Obras escogidas (tres tomos), p. 689-798. Editorial Progreso. Moscú, URSS (Rusia): 1970.

“Dos tácticas de la socialdemocracia en la revolución democrática”. En Obras escogidas (tres tomos), p. 477-584. Editorial Progreso. Moscú, URSS (Rusia): 1970 (b).

“¿Qué hacer? Problemas candentes de nuestro movimiento”. En Obras escogidas (tres tomos), p. 117-278. Editorial Progreso. Moscú, URSS (Rusia): 1970 (b).

La Tesis de Abril. Editorial Progreso. Moscú, URSS (Rusia): sin data.

¿Por dónde empezar? En: La teoría de la organización leninista, p. 2-6. Editado por Nuevo Partido Socialista. San José, Costa Rica: 2015.

Mariátegui, José Carlos. Siete ensayos de interpretación de la realidad peruana. Editorial Casa de las Américas. La Habana, Cuba: 1975.

Marx, Carlos. El Capital (tomo I). Editorial Ciencias del Hombre. Buenos Aires, Argentina: 1973.

El colonialismo (recopilación). Editorial Grijalbo. México, D.F.: 1970.

La ideología alemana. Editorial Nueva Década. San José, Costa Rica: sin data.

Mignolo, Walter. La idea de América Latina. La herida colonial y la opción decolonial. Gedisa Editorial. Barcelona, España: 2007.

“La idea de América Latina (la derecha, la izquierda y la opción decolonial)”. Crítica y Emancipación, (2): 251-276, primer semestre 2009.

“El pensamiento decolonial: desprendimiento y apertura. Un manifiesto”. En: El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, p. 25-46. Siglo del Hombre Editores. Bogotá, Colombia: 2007b.

Paredes, Luis. “Ensayo de interpretación del modernismo”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 28), p. 269-304. Buenos Aires, Argentina: abril 2014.

Peña, Milcíades. Historia del pueblo argentino. Grupo Editorial Planeta (sello Emecé). Buenos Aires, Argentina: 2012.

Quijano, Aníbal. “Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina”. En: Edgardo Lander (comp.), Colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas latinoamericanas, Buenos Aires, Clacso/Unesco, pp. 201-246, 2000.

“Colonialidad del poder y clasificación social”. En: Santiago Castro-Gómez y Ramón Grosfoguel (editores), El giro decolonial. Reflexiones para una diversidad epistémica más allá del capitalismo global, p. 93-126. Siglo del Hombre Editores. Bogotá, Colombia: 2007.

Rojo, José Luis. “Tras las huellas del ‘socialismo nacional’. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 21), p. 15-59. Buenos Aires, Argentina: noviembre 2007.

Sáenz, Roberto. “Perspectivas del capitalismo a comienzos del siglo XXI”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 26), p. 43-95. Buenos Aires, Argentina: febrero 2012.

“Crítica del romanticismo «anticapitalista»”. En Rebeliones en América Latina, p. 15-59. Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: 2005.

“Lenin en el siglo XXI”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 23-24), p. 307-344. Buenos Aires, Argentina: diciembre 2009.

“Cuestiones de estrategia”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 28), p. 13-64. Buenos Aires, Argentina: abril 2014.

“Crítica a la concepción de las revoluciones ‘socialistas objetivas’. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 17-18), p. 25-70. Buenos Aires, Argentina: noviembre 2004.

Ciencia y arte de la política revolucionaria. Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: sin data.

Una vez más sobre la alternativa “socialismo o barbarie”. En www.socialismo-o-barbarie.org, 19/12/2014.

Saénz, Roberto y Bernal, Isidoro. “Los impulsos del Argentinazo”. En Rebeliones en América Latina, p. 251-266. Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: 2005.

Rojo, José Luis. “Un ciclo de rebeliones populares conmueve al mundo”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 26), 5-26Buenos Aires, Argentina: febrero 2012.

Trotsky, León. Historia de la Revolución Ruso (tomo I). Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: 2012.

“La revolución permanente”. En: La teoría de la revolución permanente (compilación), p. 400-523. Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky. Buenos Aires, Argentina: 2000.

___ . “Tres concepciones de la Revolución Rusa”. En: La teoría de la revolución permanente (compilación), p. 161-177. Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky. Buenos Aires, Argentina: 2000b.

“La industria nacionalizada y la administración obrera”. En: Escritos Latinoamericanos (compilación), p. 163-167. Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky. Buenos Aires, Argentina: 2000c.

“Las tendencias filosóficas del burocratismo”. En: Escritos Filosóficos (compilación), p. 157-177Centro de Estudios, Investigaciones y Publicaciones León Trotsky. Buenos Aires, Argentina: 2004.

“El ultimatismo burocrático”. En: Revolución y fascismo en Alemania Escritos 1930-1933. p. 97-103Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: sin data.

“La agonía del capitalismo y las tareas de la IV Internacional”. En: Acerca de la revolución socialista p. 209-270. Ediciones Estrategia. Bogotá, Colombia: 1971.

Yunes, Marcelo. “Imperialismo y teoría marxista en América Latina”. En: Revista Socialismo o Barbarie (nº 23-24), p. 213-253Buenos Aires, Argentina: diciembre 2009.

“La Patria mais Grande do mundo”. Socialismo o Barbarie periódico (nº 299), Argentina. 07 de agosto de 2014, p. 5, Política Nacional, col. 2-4.

“Presentación”. En Rebeliones en América Latina, p. 7-13. Editorial Antídoto. Buenos Aires, Argentina: 2005.

Zamora, Daniel. «When exclusion replaces explotaition. The condition of the surplus-population under neoliberalism». En nonsite.org, Issue #10, 2013.

Tradução: José Roberto Silva