Em outubro, circularam imagens chocantes da seca que atinge o estado do Amazonas. Os leitos dos rios caíram a níveis históricos e, em algumas áreas, o aumento da temperatura da água causou a morte em massa da fauna aquática. Isso, por sua vez, teve um forte impacto nas comunidades ribeirinhas que dependem da pesca e do turismo. Um cenário distópico que, até há poucos anos, víamos em filmes futuristas de ficção científica, mas que hoje faz parte da nova realidade provocada pelo ecocídio capitalista que varre todo o planeta. Neste artigo, passaremos pelos principais danos ambientais produzidos por esta seca, mas também analisaremos as causas que a geraram ou potencializaram os seus efeitos.

VICTOR ARTAVIA

Retrato de um ecocídio capitalista (ou quando a natureza cobra o seu preço)

A atual seca é classificada como extrema por especialistas da comunidade científica. Dados compilados pelo Porto de Manaus, pelo Serviço Geológico do Brasil (SGB) e pela Defesa Civil do estado do Amazonas indicam que a vazão dos rios da região atingiu mínimas históricas. Como consequência, os 62 municípios do Amazonas entraram em estado de emergência e, segundo estimativas oficiais, mais de 600.000 pessoas foram afetadas pelo fenômeno meteorológico.   

O caso do Rio Negro, um dos rios mais importantes da região, ilustra a magnitude da crise. Durante a terceira semana de outubro, o seu caudal diminuiu a um ritmo de 10 centímetros por dia. O ponto mais crítico ocorreu a 19 de outubro, quando registou uma profundidade de 13,29 metros: o nível mais baixo registado em 121 anos de medição!

Para além da seca e da consequente diminuição do caudal do rio, verificou-se também um aumento desmesurado da temperatura da água, que, em alguns locais, atingiu 39,1 graus Celsius (sete graus acima do normal). Nessas condições ambientais extremas, os impactos sobre a fauna nativa não tardaram a aparecer. Um fato alarmante foi a descoberta de 150 botos mortos – uma espécie de golfinho de água doce endêmica da Amazônia – nas margens do Lago Tefé. Embora as investigações estejam em andamento, os primeiros resultados indicam que eles morreram devido ao aquecimento da água, ao qual seus organismos não conseguiram resistir.

A temperatura da água também provocou a morte em massa de peixes na região, principalmente nos rios Solimões e Purus. Segundo especialistas, o aquecimento da água reduziu o oxigênio dissolvido e aumentou a frequência respiratória dos peixes, causando um desequilíbrio metabólico e a consequente morte por asfixia. Para piorar a situação, centenas de milhares de peixes de pequeno e médio porte em fase de desova morreram, e por isso serão necessários cerca de dois anos para reconstituir a população do rio.

Além disso, em torno dos rios da Amazônia existe uma constelação de “comunidades hidráulicas”, ou seja, populações cuja vida se organiza em torno destas artérias fluviais. Os rios constituem “auto-estradas de água” que permitem o transporte de mercadorias, alimentos e pessoas, bem como o acesso à educação e aos centros de saúde. São também uma fonte de emprego através da pesca e do turismo, bem como referências culturais na visão de mundo de muitos povos indígenas.

Neste sentido, a crise ecológica teve enormes consequências nas condições de vida – materiais, econômicas e culturais – de centenas de milhares de pessoas, uma vez que as suas atividades vitais foram abruptamente interrompidas pela seca. Uma relação profunda entre as pessoas e os rios foi claramente exposta por Pedrina Brito de Mendonça, que, nas suas declarações ao jornal inglês The Guardian, salientou que “para os de fora, a Amazônia é uma causa, mas para nós é a nossa casa”.

A situação mais grave é para aqueles que dependem da pesca. Na Amazônia, estima-se que 140.000 pessoas estejam diretamente envolvidas na pesca e outras 60.000 em atividades na jusante (transformação industrial, comércio, desembarque de produtos, etc.). No entanto, devido à seca, 80% dos pescadores – cerca de 112.000 pessoas – não podem pescar, uma vez que 99% da água de alguns rios desapareceu, e a morte de mais de metade dos peixes da região resultou na perda dos meios de subsistência de uma grande população.

Milhares de pescadores foram obrigados a carregar suas canoas durante muitos quilômetros, sob o calor intenso, para encontrar água em alguns lagos, a fim de gerar rendimentos e alimentos.

No caso do turismo, estima-se que as comunidades ribeirinhas tenham perdido 40.000 dólares (cerca de 200.000 reais), em receitas (até ao início de novembro).

Além disso, a região não dispõe de uma ampla cobertura de água potável, nomeadamente nas zonas mais isoladas do território. Por isso, muitas pessoas recorrem aos rios para matar a sede, cozinhar e lavar a roupa, entre outras tarefas essenciais para a subsistência cotidiana. Mas, dada a situação crítica desencadeada pela seca, durante vários dias tiveram que beber água insalubre de poços cavados na lama, o que causou problemas de saúde.

Para além das consequências ambientais e econômicas, há também possíveis efeitos sobre os povos indígenas. As áreas protegidas do Rio Negro (39 milhões de hectares), são habitadas por 106.000 pessoas, das quais 103.000 são indígenas, distribuídas por trinta e três povos que, por sua vez, falam onze línguas nativas. Há também um território de quilombolas, como remanescentes das comunidades formadas por escravizados que, entre os séculos XVI e XIX, fugiram das fazendas para se refugiar e resistir nas profundezas das selvas.

São populações historicamente oprimidas pela colonização e escravização portuguesa, condição de exclusão social que se manteve sob o capitalismo até os dias atuais. Portanto, o que sofrem hoje pode ser classificado como uma “injustiça climática”, pois são comunidades que se caracterizam pela preservação da natureza, mas hoje são duramente castigadas pela destruição do meio ambiente causada pelas grandes indústrias capitalistas.

Por isso, não há certeza sobre o futuro dessas populações e a preservação de seu patrimônio cultural, considerando que a seca não é um fenômeno isolado, mas faz parte de uma crise ecológica planetária causada pelo aquecimento global. Se a seca se prolongar por vários meses ou, pior ainda, se agravar nos próximos anos, isso poderá desestruturar o modo de vida desses povos originários e quilombolas, obrigando-os a migrar para os centros urbanos para sobreviver com empregos precários, o que poderá levar a uma quebra na cadeia de transmissão de seus conhecimentos e línguas ancestrais.

Por outro lado, o impacto da crise ecológica também foi sentido nas áreas urbanas da região. É o caso de Manaus (capital do estado do Amazonas), cujas indústrias paralisaram suas atividades por várias semanas em outubro e decretaram feriado, já que o colapso do porto fluvial da cidade impossibilitou o transporte das mercadorias produzidas ou a chegada de insumos industriais para manter as fábricas em funcionamento. Esta é uma situação preocupante para milhares de trabalhadores industriais da cidade, pois a persistência da seca coloca em risco a continuidade de seus empregos.

Além disso, o aumento da temperatura provocou a propagação de incêndios florestais que, somados aos provocados pelo agronegócio para a criação de novas áreas de cultivo ou pastagem (as chamadas “queimadas”), causaram uma nuvem de fumaça que invadiu a cidade de Manaus por vários dias, tornando seu ar um dos piores do mundo. Só em outubro, foram registrados 3,9 mil incêndios florestais na região, o maior número dos últimos 25 anos.  

O “agrosuicídio” e a cumplicidade de Bolsonaro

A seca é uma anomalia meteorológica caracterizada por uma escassez transitória de água numa região num determinado período de tempo. De um ponto de vista descritivo, é causada por uma falta de precipitação (seca meteorológica) que, por sua vez, resulta numa falta de recursos hídricos necessários para satisfazer as necessidades de uma área (seca hidrológica). Neste sentido, tem uma origem natural, mas também pode ser causada ou agravada por fatores antropogênicos.

O caso da atual seca na Amazônia é um exemplo disso. Segundo os cientistas, é em parte uma consequência do fenômeno “El Niño”, que gera um aquecimento das águas superficiais do Oceano Pacífico ao longo da latitude equatorial. Este fenómeno altera significativamente a circulação atmosférica, provocando uma diminuição da precipitação em grande parte da superfície continental da América do Sul que, no caso do Brasil, afeta particularmente o norte e o nordeste do território. Como se sabe, esse fenômeno vem atingindo a região periodicamente há milhares de anos, em intervalos irregulares que variam de três a oito anos.

Nos últimos anos, porém, seus efeitos têm sido potencializados pelo aquecimento global, que, como explicado anteriormente, leva a um maior aumento das temperaturas quando o El Niño se desenvolve.

Por esta razão, embora se soubesse de antemão que uma seca severa iria afetar a Amazónia este ano, não se esperava que fosse tão extrema.

Qual a razão para a intensificação da seca? Além do El Niño e da crise climática global, é preciso analisar também a deterioração dessa floresta tropical, submetida a um tremendo “stress ambiental” pelo agronegócio. Trata-se de uma indústria extrativista que, como o próprio nome indica, se baseia na extração ou exploração dos recursos naturais das regiões onde se instala, esgotando a fertilidade dos solos e causando enormes danos à biodiversidade e às populações humanas circundantes. Funciona segundo uma lógica de “terra arrasada”: quando os recursos de uma localidade se esgotam (o que pode demorar alguns anos ou décadas, mas acontece sempre), procura outra zona para onde se relocalizar e recomeça o ciclo extrativista. Isso explica a constante expansão da fronteira extrativista em atividades como a pecuária, o plantio de soja ou a extração de madeira, para citar alguns exemplos.

A indústria extrativista brasileira replica à risca essa lógica de “terra arrasada”. Segundo o “Relatório Anual do Desmatamento” (elaborado pelo Mapbiomas), a perda de cobertura vegetal no país cresceu 20% entre 2020 e 2021, sendo o agronegócio responsável por 97% desse desmatamento (apenas 0,87% respeitou processos legais). Essa pressão para ampliar a fronteira extrativista explica o cerco permanente às florestas brasileiras, bem como a invasão e os ataques sistemáticos aos territórios indígenas. Em suma, trata-se de uma indústria altamente lucrativa baseada na prática de crimes ambientais para a exploração de recursos naturais, como a apropriação ilegal de terras florestais para o agronegócio ou a extração ilegal de madeira e ouro.

Essa dinâmica ecocida se acelerou durante o governo de Jair Bolsonaro (2018-22). O ultradireitista se posicionou como um defensor ferrenho do agronegócio, um setor burguês que o apoiou fortemente durante seu mandato. Em troca desse apoio, Bolsonaro desmantelou o aparato institucional do Ministério do Meio Ambiente (MMA) e deixou sem efeito as normas legais contra o desmatamento. Ricardo Salles, que foi seu ministro da pasta entre 2019 e 2021, extinguiu o departamento do MMA responsável pelo combate ao desmatamento, paralisou o “Fundo Amazônia” – embora tivesse três bilhões de reais para executar – e cortou o orçamento de vários órgãos ambientais.

O Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) é um bom parâmetro para avaliar o desmonte institucional realizado durante o governo Bolsonaro. Hoje, o órgão conta com apenas 700 promotores ambientais (eram 1.200 há doze anos), dos quais 470 estão aposentados e apenas 300 têm condições de realizar trabalhos de campo. Ou seja, um país de dimensões continentais como o Brasil, cuja superfície territorial é de 8.510.417,771 quilômetros quadrados e onde se localiza a principal floresta tropical do planeta, conta com apenas trezentas pessoas para proteger as suas florestas tropicais primárias, essenciais para o combate ao aquecimento global e constantemente cercadas pelo agronegócio e por cartéis criminosos.

Além disso, o ex-presidente criticou abertamente os promotores ambientais encarregados de investigar crimes ambientais, enquanto criava espaços de “conciliação” – ou seja, de impunidade – para os infratores. Uma combinação de fatores desmoralizou os trabalhadores ambientais, cujo trabalho perdeu o sentido no contexto de um governo anti-ambientalista. Como resultado, houve uma onda de aposentadorias ou pedidos de licença no MMA e em outros órgãos ambientais, como pode ser visto em um relatório institucional: dos nove mil cargos existentes, cerca de 4,1 mil estavam sem nomeação ao final do governo Bolsonaro.

Tudo isso resultou em uma explosão de crimes ambientais durante o governo Bolsonaro. A Amazônia foi transformada em uma “terra sem lei” à disposição do agronegócio e do crime organizado. No último ano de seu governo, o desmatamento chegou a 11,6 mil quilômetros quadrados, um aumento de quase 60% em relação ao ano de sua posse. Contraditoriamente, no mesmo período, o número de multas por desmatamento caiu 38%. Não satisfeito com isso, seu governo promoveu campanhas de perseguição aos trabalhadores ambientais, como mostra o aumento de 380% nas denúncias de assédio moral no ambiente de trabalho em relação ao governo anterior.

O crescimento do desmatamento na floresta amazônica e em outros biomas do país revela a impunidade com que agiam os “fazendeiros”, bem como a cumplicidade aberta do governo Bolsonaro, durante o qual 24 árvores foram derrubadas a cada segundo. Só nos dois primeiros anos do seu governo, estima-se que o desmatamento da Amazônia tenha aumentado 80% para dar lugar a novas terras para a exploração do agronegócio. Por exemplo, a área dedicada ao cultivo de soja cresceu 68%, enquanto a área dedicada ao milho e à criação de gado cresceu 58% e 13%, respetivamente. Além disso, a exportação de madeira bruta aumentou 693%. Todos estes são dados oficiais, pelo que os números reais são provavelmente ainda mais elevados.

Este impulso desenfreado do agronegócio alterou rapidamente o comportamento da floresta tropical, cuja resiliência não conseguiu acompanhar o ritmo do desmatamento. De acordo com as medições mais recentes, a Amazônia tornou-se uma fonte líquida de emissões de carbono, uma vez que já não é capaz de absorver todas as emissões que emite. Só em 2020, as suas emissões de gases com efeito de estufa aumentaram 122 por cento em relação à medição anterior (2010-18).

Esta é uma consequência direta do desmatamento. As árvores – especialmente as florestas primárias – são uma parte fundamental da regulação da temperatura do planeta, absorvendo a água do solo e libertando-a sob a forma de vapor para a atmosfera, o que resulta num arrefecimento do ambiente. Assim, quanto mais desflorestada for uma floresta, mais quente se torna a região e mais carbono emite, acelerando as alterações climáticas e retendo mais água na atmosfera. Este fato, por sua vez, aumenta o risco de catástrofes “naturais”, uma vez que a água acumulada pode ser libertada por uma frente fria e gerar chuvas não sazonais num curto espaço de tempo, resultando em inundações ou tempestades que causam enormes prejuízos a populações inteiras, quer ceifando vidas humanas, quer afetando as atividades econômicas ou a prestação de serviços básicos.

Por todas estas razões, muitos analistas caracterizam a dinâmica extrativista na Amazônia como “agrosuicida”, porque a sua motivação de lucro provoca a destruição da floresta tropical e aumenta as secas que, a médio ou longo prazo, impedirão o desenvolvimento de qualquer tipo de cultura nas regiões circundantes.

O otimismo de Lula não vai salvar a Amazônia

Com a chegada de Lula ao governo em 2023, cresceram as esperanças de uma mudança na situação ambiental da Amazônia. A luta contra o desmatamento foi um compromisso assumido durante a sua campanha, pelo qual foi recebido com aplausos como “presidente eleito” do Brasil na última edição da “Conferência das Nações Unidas sobre o Clima” (COP 27), realizada no Egito em 2022.

Dez meses após o início do seu mandato (após sua posse em janeiro de 2023), alguns dados são encorajadores e parecem confirmar as expectativas depositadas nele como o “salvador” da Amazônia. Por exemplo, o desmatamento nesse bioma foi reduzido em 22,3% entre agosto de 2022 e julho de 2023, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. Os números melhoram substancialmente quando apenas os meses de seu governo são avaliados; entre janeiro e setembro deste ano, o desmatamento na floresta amazônica foi reduzido em 49% em comparação com o mesmo período de 2022. Da mesma forma, foi registrada uma queda de 36% nos incêndios florestais em setembro, em comparação com o mesmo mês do ano passado.

É, sem dúvida, uma boa notícia o fato de as taxas do desmatamento tenderem a diminuir. Mas basta analisar estes dados em profundidade para perceber que a realidade da Amazônia e das florestas tropicais no Brasil é menos confortável do que estes números indicam. Em primeiro lugar, porque são números relativos e, neste caso, o ponto de comparação é o último ano do governo Bolsonaro, uma administração anti-ambientalista que desmontou o aparato institucional responsável pela preservação das riquezas naturais e ambientais do país. Diante desse espelho, praticamente qualquer governo burguês que faça o mínimo esforço para reativar os órgãos de proteção ambiental terá nota positiva.

Isso fica mais claro quando se analisam os números absolutos do desmatamento. Por exemplo, entre agosto de 2022 e julho de 2023, a perda de floresta tropical foi de 9.001 km², enquanto que para janeiro-setembro deste ano foi de 4.302 km². A tendência de queda do desmatamento é real, mas isso não significa que ele tenha parado ou esteja próximo de parar, muito menos que territórios anteriormente devastados estejam sendo reflorestados.

Por isso, insistimos que a situação é alarmante, principalmente se considerarmos o quadro histórico do desmatamento na Amazônia brasileira, que, nos últimos cinquenta anos, perdeu 84 milhões de hectares (o equivalente a 20% do bioma) para o agronegócio e outras indústrias extrativistas.

TABELA  N° 1

DESFLORESTAÇÃO DA AMAZÔNIA EM KM²

Governo* Total Média anual
Sarney (1988-89) 38.820 19.410
Collor (1990-92) 38.545 12.849
Itamar (1993-95) 29.792 14.896
FHC1 (1995-98) 77.830 19.458
FHC2 (1999-2002) 75.300 18.825
Lula1 (2003-06) 86.468 21.617
Lula2 (2007-10) 39.026 9.757
Dilma 1 (2011-14) 21.892 5.473
Dilma 2 (2015-16) 14.100 7050
Temer (2017-18) 14.483 7.242
Bolsonaro (2019-2022) 45.638 11.409
Lula 3 (2023-) 9001

Fonte: com base em dados do site da Folha de São Paulo de 09 de novembro de 2023.

*Alguns governos não terminaram seus mandatos de quatro anos ou tiveram mandatos mais curtos por motivos particulares. É o caso de Collor, deposto após fortes mobilizações populares. Também se aplica ao governo Dilma 2, destituído em maio de 2016 por meio de um impeachment reacionário, pelo qual Temer assumiu a presidência para concluir seu mandato. Com relação a Sarney, a publicação da Folha contabilizou apenas esses dois anos.

Para tentar reverter essa tendência histórica, Lula apresentou em junho passado seu plano para erradicar o desmatamento na Amazônia até 2030. Na realidade, trata-se de uma reedição das medidas que implementou em 2004 e que tiveram sucesso, conseguindo uma redução de 83% do desmatamento na floresta tropical até 2012. Entre os seus objetivos, figuram a designação de três milhões de hectares para novas reservas naturais; a proteção de 230 mil quilômetros de margens de rios; a apreensão de 50% das terras ilegalmente desmatadas; o aumento da presença da polícia e do exército na região; a contratação de cerca de 1600 procuradores do ambiente até 2027; etc.

Mas as boas intenções de Lula chocam com a realidade, ou melhor, com a crescente viragem agroexportadora do capitalismo brasileiro e o carácter liberal-social do seu atual mandato. Comecemos por este último. A presidência de Lula assenta numa frente alargada do Partido dos Trabalhadores (PT) com vários dos partidos burgueses tradicionais do país, incluindo figuras com fortes ligações ao agronegócio. Por exemplo, o seu atual Ministro da Agricultura é Carlos Fávaro, um político diretamente ligado ao agronegócio no estado do Mato Grosso, onde presidiu à Associação dos Produtos de Soja e Milho entre 2012 e 2014. Fávaro argumenta que é possível desenvolver um agronegócio sustentável em harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo em que se aprova o uso de grandes quantidades de agrotóxicos para a agroindústria.

Por outro lado, até agora, em seu atual mandato, Lula tem feito importantes concessões à Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que articula e faz lobby pelos interesses do agronegócio na Câmara dos Deputados e no Senado. Essa contradição foi exposta com precisão por Márcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, que, em declarações ao jornal Folha, argumentou que “não adianta combater o crime ambiental no chão da floresta e reforçar esse mesmo crime no chão do Congresso (…) A bancada ruralista historicamente tem atuado contra a legislação ambiental, tem a benevolência dos negociadores do governo no Congresso em várias pautas”.

A bancada ruralista aumentou significativamente sua representação parlamentar nos últimos anos (ver tabela 2), tornando-se uma importante força mediadora das negociações políticas em Brasília, pois seus votos são fundamentais para a aprovação ou rejeição de projetos de lei. Na atual legislatura, conta com 300 deputados federais (de um total de 513) e 47 senadores (de um total de 81).

TABELA N° 2

A BANCADA RURALISTA EM NÚMEROS

Legislatura Senado Congresso
54° legislatura 

(2011-2015)

11 195
55° legislatura 

(2015-2019)

27 232
56° legislatura 

(2019-2023)

39 252
57° legislatura 

(2023-2027)

47 300
Fonte: elaborado a partir de dados expostos no Jornal Folha de São Paulo de 07 de junho de 2023. 

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Esse fortalecimento parlamentar permitiu que o agronegócio avançasse sua agenda na última década. Por exemplo, em 2012, conseguiram a aprovação do Código Florestal, com o qual flexibilizaram os controles ambientais e, segundo ambientalistas, foi um ponto de inflexão que impulsionou a destruição da Amazônia, revertendo muitos dos avanços conquistados nos anos anteriores. Estes parlamentares também foram uma parte fundamental do impeachment contra a presidência de Dilma em 2016, que deu lugar a uma situação reacionária que, alguns anos mais tarde, levou à chegada ao poder de Bolsonaro, cujo governo aprofundou o desmatamento da floresta amazônica.

Em grande medida, isto corresponde – embora não mecanicamente – ao crescimento econômico do setor. O Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada (Cepea-USP), estima que o agronegócio tenha respondido por 24,8% do PIB brasileiro em 2022, superando os 23,9% alcançados pela indústria de transformação no mesmo ano. Ou seja, o agronegócio conseguiu transformar seu capital econômico em força política, posicionando-se como centro dos setores mais reacionários e ultradireitistas do Brasil.  

Esta combinação de poder econômico e parlamentar torna-o um fator muito perigoso. O agronegócio não é apenas uma consequência do modelo de acumulação capitalista brasileiro das últimas décadas; é também um ator dinâmico com iniciativa própria para influenciar a situação política. De fato, vários analistas consideram que ele disputa a hegemonia cultural no país, o que se reflete na divulgação dos seus valores através da música sertaneja, em torno do qual construiu uma indústria cultural na rádio e na organização de inúmeras feiras agrícolas.

O seu projeto estratégico é resumido no slogan “Brasil, fazenda do mundo”; apostam em transformar o país numa grande plantação para exportar carne, soja, milho e qualquer outra mercadoria que tenha um bom preço no mercado mundial. Dentro desta lógica extrativista, qualquer terra não cultivada ou não explorada é um desperdício, mesmo quando se trata de uma floresta tropical essencial para regular o clima do planeta.  

Isso nos remete a Lula e seu otimismo em relação ao fim do desmatamento, meta que se torna utópica se não enfrentarmos o agronegócio, cuja fonte de riqueza é cometer impunemente todo tipo de crime ambiental.

Este fato não é uma suposição; pelo contrário, é consistente com as estatísticas gerais de desmatamento do país. Por exemplo, ao mesmo tempo em que o governo apresentava como vitória a diminuição relativa do desmatamento na Amazônia, a situação piorava significativamente na região do Cerrado, uma savana tropical cada vez mais afetada pelo avanço da pecuária e da agricultura em larga escala. Setembro registrou a maior taxa de desmatamento para o mês na região, com 679,7 km² desmatados. Isso representou um aumento de 149% em relação a setembro de 2022, e superou em muito o recorde anterior de 451,5 km² em setembro de 2018.

Situação semelhante está sendo vivida pelos remanescentes da Mata Atlântica, que, nos últimos anos, perdeu grandes extensões de floresta para o agronegócio, principalmente para o plantio de soja para exportação para a China. Cerca de 46% da soja comprada do Brasil pelo gigante asiático em 2020, foi produzida em 22,3 mil hectares de Mata Atlântica desmatados ilegalmente entre 2015 e 2019. Não há indícios de que a tendência será revertida, pois entre janeiro e outubro de 2022, outros 48,6 mil hectares desse bioma foram desmatados.

Em suma, o desmatamento causado pelo agronegócio continua avançando, mesmo que o ritmo diminua relativamente em determinados momentos e regiões. Mas, dada a natureza extrativista dessa indústria, suas fronteiras são flexíveis e estão em constante expansão por todo o território nacional, situação que o governo esconde ao concentrar a atenção apenas na Amazônia, região de enorme importância midiática e internacional (algo que Lula aproveita para se projetar como figura política internacional). Isso leva à conclusão de que, para combater o desmatamento na Amazônia e no território como um todo, é preciso enfrentar diretamente o modelo de desenvolvimento do agronegócio, ou seja, questionar o caráter predatório de um dos eixos do capitalismo brasileiro contemporâneo, perspectiva que escapa à visão liberal-social do atual governo Lula.

Socialismo ou barbárie ecológica!

“Mas não nos iludamos muito com nossas vitórias humanas sobre a natureza. Os povos que na Mesopotâmia, na Grécia, na Ásia Menor e noutros lugares arrasaram as florestas para obter terras aráveis nunca sonharam que, ao fazê-lo, estavam a lançar as bases da atual desolação desses países, privando-os, juntamente com as florestas, dos centros de acumulação e dos reservatórios de umidade (…). E assim somos lembrados a cada passo que, não dominamos a natureza como um conquistador domina um povo estrangeiro, como alguém que está afastado da natureza, mas que pertencemos a ela em carne, osso e cérebro, e estamos no meio dela, e que todo o nosso domínio sobre ela consiste em termos a vantagem sobre todas as outras criaturas de sermos capazes de reconhecer as suas leis e de as aplicar corretamente”. (“O Papel do Trabalho na Transformação do Macaco em Homem”, Friedrich Engels)

A Amazônia cobre 7% da superfície do planeta, representa um terço das florestas tropicais, contém 20% das fontes de água doce do mundo e abrigam 50% da biodiversidade da Terra. Por isso, a destruição desse bioma é um ecocídio de alcance planetário; um crime contra o meio ambiente que, além disso, tem repercussões para as gerações atuais e futuras, pois coloca em risco a existência de uma floresta fundamental para toda a humanidade.

A atual seca que atinge esse bioma é uma evidência do nível de destruição da natureza cometido pelo capitalismo, para o qual a floresta é uma “matéria-prima” a ser explorada indiscriminadamente para garantir os lucros de uma minoria social, mais especificamente da burguesia criminosa e parasitária do agronegócio. Nesse sentido, sua destruição tem um caráter de classe; é um ecocídio capitalista e não da “humanidade” como entidade abstrata. O registo histórico apoia este fato.

Durante os catorze mil anos anteriores a 1970, a Amazônia perdeu 1% das suas florestas, o que garantiu a sua conservação até o último quarto do século XX. Pesquisas recentes do arqueólogo Eduardo Góes Neves, diretor do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, mostram que essa floresta era densamente habitada por povos nativos antes da chegada dos conquistadores portugueses, com uma população de oito a dez milhões de pessoas, cujas ações ajudaram a moldar a composição arbórea que existe hoje.

Mas o desmatamento da floresta tropical deu um salto de qualidade durante a ditadura militar (1964-85). Os militares promoveram a colonização do território amazônico com a construção de rodovias a partir de 1970, alegando que se tratava de “uma terra sem gente para um povo sem terra”. Assim, ao mesmo tempo em que se negava a presença histórica e contemporânea dos povos nativos, as extensas florestas amazônicas também eram colocadas na mira do capital. Essa aliança profana entre racismo, colonização e capitalismo fez com que o agronegócio desmatasse 20% do bioma e cometesse crimes hediondos contra os povos nativos em apenas cinquenta anos.

Para piorar a situação, estima-se que outros 20% da floresta amazônica correm o risco de serem desmatados ou queimados nas próximas décadas. Isto representa um sério risco para a própria existência da Amazónia, pois conduziria a um cenário sem retorno: com 40% das suas florestas desmatadas, a floresta perderia a sua capacidade de resiliência e de autorregeneração.  

Perante o cerco do agronegócio e de outras indústrias extrativistas, as medidas paliativas do governo de Lula não serão suficientes para salvar a floresta amazônica ou os outros biomas do Brasil. O caráter burguês de seu governo, somado às suas alianças com setores políticos ligados ao agronegócio, colocam um limite estratégico às suas políticas de combate ao desmatamento.

É impossível reverter a tendência histórica do desmatamento na Amazônia sem um combate profundo ao agronegócio, para o que são necessárias medidas anticapitalistas, dentre as quais propomos (a) desapropriar todas as terras desmatadas ilegalmente desde 1970 e proceder ao seu reflorestamento; b) prender os empresários responsáveis por crimes ambientais ou por ameaça à vida e aos direitos dos povos originários; c) estabelecer o monopólio do comércio exterior para coibir o contrabando de ouro e madeira extraídos ilegalmente das selvas do país; d) realizar uma reforma agrária que garanta o acesso à terra aos milhões de camponeses despossuídos do país, a fim de desenvolver uma produção agrícola sustentável e, ao mesmo tempo, eliminar as condições de miséria que facilitam o recrutamento de trabalhadores para cometerem crimes ambientais em benefício do agronegócio; e) retomar a demarcação dos territórios indígenas, inclusive garantindo seu legítimo direito de autodefesa contra ameaças e agressões físicas dos cartéis criminosos e do agronegócio; etc.

A crise climática, embora seja um fenômeno universal, afeta mais intensamente a classe trabalhadora e outros setores explorados. Por isso, é necessário que sindicatos, movimentos indígenas e quilombolas, organizações ambientalistas e estudantis, partidos de esquerda e todos os movimentos sociais assumam como sua a luta pela defesa da Amazônia e contra o aquecimento global.

 

Fontes:

Aguilar, Marcelo. “No se puede combatir el desmonte sin enfrentar el agronegocio”. Em https://brecha.com.uy/no-se-puede-combatir-el-desmonte-sin-enfrentar-el-agronegocio/   (Acesso em 30 de outubro de 2023).

Arantes, José Tadeu. A Amazônia foi densamente povoada no passado e ação humana moldou a floresta existente hoje. Em https://agencia.fapesp.br/a-amazonia-foi-densamente-povoada-no-passado-e-a-acao-humana-moldou-a-floresta-existente-hoje/39387 (Acesso em 17 de novembro de 2023).

Artavia, Víctor. Lula, su gira a China y los límites del “Sur Global” en tiempos de disputa hegemónica. Em https://izquierdaweb.com/lula-su-gira-a-china-y-los-limites-del-sur-global-en-tiempos-de-disputa-hegemonica/ ( Acesso em 30 de outubro de 2023).

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