O debate com Valerio Arcary sobre o significado do ingresso do PSOL na frente Lula-Alckmin 

É preciso construir uma alternativa de organização para os socialistas revolucionários no Brasil

ANTONIO SOLER

Somos parte das centenas de companheiros que assinaram a Carta de ruptura com o PSOL, documento político assinado por correntes, grupos políticos, figuras, ativistas e militantes independentes. Esse manifesto construído a várias mãos, em um esforço de consenso entre companheiros que anteriormente militavam no mesmo partido, porém, de tradições políticas diferentes, não foi uma conquista qualquer. E em que pese lacunas, unilateralidades e insuficiências, é um balanço inicial coletivo do processo que levou à perda da independência política do PSOL que permite dar prosseguimento a debates de concepção, programáticos, organizativos e ações comuns diante da realidade.  

O documento teve importante repercussão, foi notícia nos grandes meios e contou com a solidariedade de forças políticas, inclusive de setores que permanecem no PSOL. Já o seu presidente, Juliano Medeiros, comemorou a nossa ruptura com a frase – pretensamente atribuída a Lênin, mas originalmente escrita por Lassalle a Marx e plagiada posteriormente por Stalin – de que “o Partido se fortalece depurando-se”. Obviamente que para o projeto de partido eleitoreiro, monolitista, da ordem e burocrático que Juliano e sua corrente representam, essa ruptura é uma vitória do projeto de conciliação de classes.

Diante da nossa ruptura, o texto que mais nos chama a atenção foi o “Uma ruptura precipitada”*, de Valerio Arcary, dirigente da Resistência (corrente interna do PSOL que colaborou diretamente com o processo de ruptura do partido com a independência de classe). Já fizemos uma série de textos de polêmica honesta com Valerio e os companheiros da sua corrente sobre o seu curso de capitulação política ao lulismo que iria levar à sua própria ruptura com a independência de classe, infelizmente esses prognósticos confirmaram-se com o curso das decisões políticas no interior do PSOL e no posicionamento da Resistência.

Valério nos critica por termos feito uma ruptura apressada com o PSOL e a partir da discordância com questões táticas – não estratégicas ou de princípios -, por desproporções em nossas análises e por impaciência diante de um processo ainda não acabado dentro do partido em que a disputa política entre forças revolucionárias  e não-revolucionárias estão ainda abertas. Portanto, apesar de lamentar a nossa ruptura, a vê, como um todo, marcada pelo equívoco de interpretação e política.

Antes de prosseguirmos é importante fazer uma nota metodológica no debate. Valerio, infelizmente, como já denunciamos algumas vezes, costuma criar amálgamas, mudar o foco e esconder as suas verdadeiras posições para que apareça com razão em vez de debater a partir das suas posições reais. Provavelmente porque precisa se apresentar para a sua base como dirigente revolucionário que esgrime em nome da dialética enquanto, na verdade, defende posições reformistas com método sofista.

O PSOL é parte da conciliação de classes

Não abrindo mão desse método, Valerio começa sua crítica à nossa ruptura com o PSOL afirmando que “as decisões de apoiar Lula desde o primeiro turno, e de federação com a Rede precipitaram uma ruptura apressada de um coletivo de ativistas, que concluíram que o partido deixou de ser um instrumento útil.” Ou seja, para ele – e tudo indica que para a maior parte da sua corrente – esses são fatos menores, melhor dizendo, são questões táticas que não justificariam uma ruptura política.

Vejamos que, desde o início da sua argumentação, distorce de forma profunda um fato decisivo da ruptura, pois não foi por “apoiar Lula desde o primeiro turno” que rompemos com o PSOL, mas porque o partido ingressou na chapa Lula-Alckmin, rompendo com a independência política de classe. Chamar o voto crítico em Lula no primeiro turno para derrotar o neofascismo é uma coisa, outra tática totalmente distinta, da qual nosso antigo partido optou por fazer, é entrar em uma chapa de conciliação de classes. A primeira pode ser concebida diante da ameaça de Bolsonaro ganhar de Lula no primeiro turno ou de que taticamente é necessário derrotar já o neofascista no primeiro turno. Essa tática, com a política de diferenciação crítica com Lula e Alckmin, não seria uma ruptura de princípio/estratégia. O oposto se vê em chamar o voto no ex-presidente petista e no ex-governador tucano no primeiro turno ingressando na chapa de conciliação de classes, como foi feito pelo PSOL com o apoio de Valerio e sua corrente. 

Valerio insiste no sofisma afirmando que “a polêmica sobre a centralidade da Frente Única de Esquerda com o PT na construção de uma oposição popular a Bolsonaro desde 2019 nos dividiu”. Mais uma vez é importante trazer os termos reais da discussão política travada no interior do PSOL para a conversa. A polêmica não se deu sobre a necessidade ou não de criar uma frente com o PT, mas que precisávamos construir uma frente de esquerda com um programa que atenda as necessidades dos trabalhadores e oprimidos – anticapitalista, portanto -, uma frente sem burgueses ou seus representantes e voltada para lutar contra Bolsonaro nas ruas e nas urnas. A partir dessas condições, o PT não aceitaria qualquer acordo porque quer repetir um governo, de forma ainda mais à direita, de conciliação de classes. Porém, uma tática correta de frente de esquerda poderia abrir um diálogo a partir de uma posição classista com amplos setores que vão votar em Lula. 

Depois, podemos ler que “a Conferência Nacional do PSol deixou claro que a decisão de unir-se à campanha de Lula não significa que o PSol estará disposto a participar de um governo Lula, e até desautorizou qualquer negociação deste tipo.” Valerio tenta sistematicamente vender para a sua base e para setores da vanguarda que participar de uma frente burguesa de conciliação de classes com Lula-Alckmin à cabeça não é uma ruptura com o princípio da independência de classe, algo que só aconteceria, segundo ele, com a participação política neste governo. Por isso se agarra ao fato que a Conferência Eleitoral não votou – taticamente não interessava à direção majoritária definir isso por agora para evitar, do seu ponto de vista, conflitos desnecessários –  nada em relação à participação ou não em um futuro e, por hora, provável governo Lula-Alckmin. Essa decisão será tomada em novembro, mais uma vez a portas fechadas. 

Ao continuar nessa toada, muito provavelmente o PSOL entre no governo Lula com a mesma justificativa que está usando para coligar-se em uma chapa eleitoral burguesa de Lula-Alckmin, ou seja, “agora que derrotamos Bolsonaro, temos que derrotar o bolsonarismo e para isso temos que estar no governo para pressioná-lo à esquerda”, algo parecido dirá a direção do PSOL e, provavelmente, a Resistência. A milésima edição do governo burguês de conciliação de classes em disputa que a esquerda do PT lastimavelmente utiliza para não descolar do aparato é o que a torna totalmente estéril para cumprir qualquer papel significativo na luta de classes. 

Porém, independente de prognósticos em relação a participação do PSOL em hipotético governo Lula e da capitulação orgânica da esquerda do PT, o fato é que, da mesma forma que participar de um governo burguês – de conciliação de classes ou não – ou de uma frente burguesa, como a que o PT montou, são linhas políticas igualmente traidoras à independência de classe e a tudo o que esse princípio carrega enquanto necessidades táticas e estratégicas, lições  acumuladas historicamente pelo movimento operário. Certamente que participar de um governo burguês tem implicações ainda mais nefastas à medida que um governo desse tipo é a continuidade inevitável da exploração e opressão à classe trabalhadora. No entanto, participar de uma chapa de conciliação de classes não deixa de ser uma linha que rompe com a independência política de qualquer partido, corrente, agrupamento ou militante que faça parte disso. 

Participar de uma chapa burguesa de conciliação de classes não é algo trivial, não é como a tática de unidade de ação que possamos fazer com algum setor burguês com diferenciação permanente, colunas e bandeiras próprias e que acaba assim que termina a própria ação e não deixa nenhum compromisso com esse ou aquele setor da classe dominante. A chapa Lula-Alckmin é uma frente com setores da burguesia, uma formação política orgânica que comunga da mesma estrutura, programa político e projeto de poder com a classe dominante. Ou seja, um projeto de governo de conciliação de classes da classe dominante que se for vitorioso será mais um governo inimigo dos trabalhadores e dos oprimidos – por mais que tenha políticas de compensação ou pseudo reformas focalizadas -, como foram todos os governos do PT ou como foram todos na história. Destacamos que o malabarismo semântico de Valerio é anacrônico, pois nega, sem fundamentação alguma, conquistas teóricas obtidas a partir da experiência dos trabalhadores na luta de classes que foram sistematizadas pelo marxismo revolucionário e que conservam toda validade política.

Traição à necessidade de lutar nas ruas para derrotar o neofascimo

O ingresso em uma chapa burguesa tem implicações políticas imediatas e vão totalmente ao contrário do que se argumenta Valerio e a direção do PSOL, ou seja, de que seria uma tática necessária para derrotar Bolsonaro nas urnas e nas ruas. Bolsonaro todos os dias dá demonstrações de que não tem disposição de entregar o poder sem luta extraparlamentar. Apesar de não ter correlação de forças para isso, não dispor do apoio do imperialismo, da maioria da classe dominante e das forças armadas, diante do quietismo, imobilismo e eleitoralismo que acomete praticamente todos os aparatos do movimento social e da esquerda, como o PSOL, demonstrações de força nas ruas, ações violentas de bandos fascistóides e forte campanha são práticas que se não forem respondidas à altura pelas massas podem colocar em pânico setores da classe média, da burguesia e da mídia, colocando em questão o processo eleitoral e qualquer possibilidade de transição pacífica. Mas mesmo que recue diante do isolamento ou que seu chamado a não respeitar as decisões do STF ou do TSE não tenham respaldo em lugar nenhum, não poderemos mudar a correlação de forças apenas derrotando Bolsonaro nas urnas.  

Valerio diz que “ocorreu uma inflexão na conjuntura e estamos em um momento de transição com uma maioria social na oposição a Bolsonaro. A experiência e a prudência sugerem que sem uma vitória política não sairemos da defensiva. A vitória de Lula é, portanto, decisiva. Mas essas diferenças táticas não deviam impedir uma paciente militância em comum.” Estamos em um momento de transição política no qual o pêndulo a favor da classe trabalhadora parou no meio do caminho porque não conseguimos construir um movimento de massas que impusesse o impeachment de Bolsonaro, o que demonstra que ele tem apoio significativo de parte das massas, da classe dominante, do Congresso e das forças armadas. Além disso, como apontamos acima, uma derrota de Bolsonaro nas urnas é parte do processo, porém não é nenhuma garantia de mudança na correlação política de forças que nos permita conter a ofensiva sobre as massas. Um possível governo Lula não significa nenhuma garantia de melhora, sabemos que muito provavelmente não irá revogar nenhuma das contrarreformas, reestatizar empresas, taxar o grande capital ou fazer reformas de fato. Ao contrário, como todo governo burguês, irá garantir a exploração e opressão a serviço do lucro e dos interesses da classe dominante e, como no primeiro governo Lula, poderá fazer contrarreformas. Certamente que para derrotar o neofascismo e os perigos golpistas, é necessário chamar o voto crítico em Lula no segundo turno, mas isso não resolve o problema principal que é o da correlação de forças com a classe dominante e com o futuro governo.

Valerio tenta usar os seus dotes retóricos para manipulação de consciência quando diz que “a ideia mais poderosa do manifesto de ruptura é que a decisão de tática eleitoral equivale a uma rendição estratégica. O PSol estaria condenado como instrumento político progressivo. O giro político e ideológico que representa a adesão à candidatura Lula-Alckmin e à federação com a Rede representa um golpe irreparável ao projeto original do PSol [sublinhado do autor]. O manifesto enuncia a tese, mas não a demonstra. Por que estas decisões teriam sido fatais? A antecipação do voto em Lula do segundo turno para o primeiro é um golpe “irreparável”? Isso não é um exagero?”. Continua dizendo “o apoio a Lula é um cálculo tático diante do perigo que Bolsonaro representa. (…) E retirar uma candidatura presidencial não é, nem jurídica, nem politicamente possível depois da inscrição no TSE.”

Não podemos crer que o dirigente da Resistência não saiba das consequências políticas de princípio, estratégicas e táticas de ingressar em uma frente burguesa, o que é totalmente diferente de chamar o voto crítico em Lula – o voto crítico, mantida a independência política, não rompe estratégias e princípios. Essa tática é tão nefasta que rompe com a independência de classe, com a estratégia de mobilizar para derrotar Bolsonaro, com a necessidade de colocar as massas na ofensiva para enfrentar esse e o próximo governo e com a estratégia de construir um partido político com influência de massas à esquerda do lulismo, tudo isso em uma só tacada. 

Não é em uma operação desprovida de pressupostos histórico-políticos-práticos que se formam os princípios e eles, apesar de poucos, têm enorme valor axiomático, político, estratégico e teórico porque são construídos pelo marxismo a partir da dramática experiência da classe trabalhadora na luta de classes. Bem cedo a classe trabalhadora aprendeu que sem organização, estratégias e táticas independentes não se poderia lutar em defesa de seus interesses, da mesma forma que sem autodeterminação, democracia de base e internacionalismo não se poderia ir muito longe em sua luta de resistência, tomada do poder e transição ao socialismo. O marxismo é um sistema aberto, auto reflexivo, a ciência do novo, assim, precisa para se manter vivo formular e reformular conceitos constantemente. Contudo, no que diz respeito aos princípios políticos básicos, verdadeiras conquistas da ação histórico-prática de nossa classe que foram sistematizadas por nossa teoria, a luta de classes ontem e hoje dão demonstrações vivas de sua validade e que romper com essa tradição significa colocar tudo abaixo no que se refere à política revolucionária. 

Em outro ponto, Valerio insiste na tese afirmando que “tanto a decisão de apoio a Lula, apresentando candidaturas próprias para governador e senador em variados estados, como a federação com a Rede são decisões táticas. Pode-se defender que são erradas, mas são táticas. Foram impostas por condições objetivas adversas. Se rompemos o partido por diferenças táticas é impossível construir instrumentos políticos duradouros.” Não se pode levar tática ou estratégia socialista revolucionária alguma adiante quando se rompe com os princípios. A tática do PSOL de entrar na frente eleitoral Lula-Alckmin demonstra exatamente isso. O ingresso nessa chapa pressupõe uma política, a do PSOL, da Resistência e de todas as correntes que continuam dentro desse partido, de convivência pacífica com a burocracia lulista e sua chapa de conciliação de classes com a burguesia. Isso significa que nenhuma tática de exigência ou denúncia na base seria feita contra a sua linha desmobilizadora, nenhuma proposta de ação independente ou de comitês de luta por baixo seria montada para impulsionar a luta direta para derrotar Bolsonaro. Além dos fatores objetivos, é a política lulista que dificultou as ações de rua do ano passado e que dificultam as ações deste ano e não se pode ter uma política coerente de mobilização sem uma verdadeira campanha de exigência e denuncia desde a base no sentido de levar a luta para as ruas, unificar os processos de mobilização e lutas que têm surgido mas que não contam com uma força política que as nacionalizem. 

Por isso faz falta uma frente política de esquerda e candidaturas independentes da burguesia e da burocracia que tomem essa tarefa central hoje, que é lutar para destravar a mobilização para derrotar Bolsonaro, contrapesar a correlação de forças políticas e colocar as massas na ofensiva através da combinação de uma série de táticas que estejam a serviço das nossas estratégias e princípios. O que Valerio tenta esconder em meio aos seus sofismas, em uma pseudo batalha contra o sectarismo, é que a tática que defende é oportunista de cabo a rabo e que, na verdade, vai contra a mobilização direta porque o querem é aproveitar a popularidade de Lula para ampliar o número de parlamentares eleitos. Se fosse honesto em sua preocupação da necessidade de derrotar Bolsonaro no primeiro turno, poder-se-ia considerar uma tática de abrir mão de uma candidatura própria para chamar o voto crítico em Lula já no dia 2 de outubro de forma independente, ou seja, sem coligar-se com uma chapa burguesa, o que permitiria fazer uma ampla campanha independente para lutar por destravar as lutas nas ruas. 

Valerio, na mesma toada, considera que a federação com a Rede “foi mais do que um erro, mas a dramatização excessiva não é razoável. O acordo jurídico para proteção mútua da cláusula de barreira não impõe um sacrifício da independência política” e que “a construção de um núcleo militante exterior ao PSol é possível, mas envolve uma renúncia à intervenção no espaço institucional, um critério estranho ao marxismo. Alheio a qualquer marxismo. As pressões da “marginalidade” política, onde vicejam ideias anarco-movimentistas, podem ser devastadoras.” A indignação diante de uma federação partidária por no mínimo 4 anos com um partido burguês é chamada de “dramatização excessiva”, ou seja, para Valerio a ruptura devido à federalização com um partido burguês, que fez coro com a ofensiva reacionária aberta em 2016, e pelo ingresso na chapa burguesa Lula-Alckmin não passa de um “piti” político. Em primeiro lugar, não é verdade que sem a Rede não pudéssemos superar a cláusula de barreira – isso não está posto como condição para esse ano – e cair na marginalidade não pode servir como sustentação retórica para rifar a independência de classe e os horizontes estratégicos, uma vez que não estar na marginalidade não depende centralmente de fundo eleitoral e tempo de TV, mas de conexão política com as massas e suas lutas. Em segundo, mesmo que não se superasse a cláusula de barreira, seria preferível tal situação a uma medida que coloca o partido no mesmo balaio dos representantes da burguesia no parlamento, dilui seu programa e todos os esforços eleitorais, pois os votos conseguidos para o PSOL serão compartilhados por candidatos reacionários muitas vezes e com os quais terão que atuar de forma conjunta no parlamento alterando a nossa política.  

De partido amplo a puxadinho da conciliação de classes 

As demais polêmicas apresentadas por Valerio com nossa carta de ruptura também são importantes. Discorre sobre o fato de que o programa democrático popular não teria sido superado; que o PSOL atuou prioritariamente dentro das instituições e eleições; que a disputa política evoluiu para a disputa do aparato interno. 

Em relação à crítica de que o PSOL não superou o programa democrático popular, afirma que é justa, porém “o  PSol é um partido plural, dentro do qual se organizam correntes com variadas hipóteses estratégicas, mas dispostas a agir juntas construindo uma linha tática comum.(…) O que revelou maturidade, e até alguma sabedoria. Afinal, se a ambiguidade estratégica permaneceu sem solução durante dezoito anos, por que romper agora? Por outro lado, entre os que decidiram romper, será que existe uma visão programática amadurecida em comum?” 

O fato de o PSOL ser um partido amplo desde o seu início não é um problema em si, correntes revolucionárias em determinadas etapas da luta de classes podem atuar em partidos amplos defendendo a sua política sem que precisem romper por diferenças programáticas com os reformistas e/ou centristas. O problema é que em determinadas situações de polarização, como a que vivemos desde o processo de impeachment de Dilma, esses setores que hegemonizam esses partidos impõem linhas que significam a ruptura com a independência de classes e/ou com a democracia interna. No caso do NPA francês, por exemplo, houve uma tremenda pressão oportunista diante da candidatura de Mélenchon, porém depois de batalhas internas esse partido soube se manter no campo da independência de classes. Então não é uma verdade escrita nas estrelas que os partidos amplos derivam necessariamente à capitulação e à traição como ocorreu com o PSOL, com o apoio da Resistência que votou a favor do ingresso na chapa Lula-Alckmin e do MES que deu votos decisivos para aprovar a federação com a Rede. Sem o apoio dessas ex-correntes revolucionárias o PSOL teria se mantido independente até hoje e não precisaríamos ter optado pela ruptura – foi o Partido Socialismo e Liberdade que rompeu com o seu programa fundacional e, portanto, que impôs politicamente nossa saída.

Para o dirigente da Resistência, “avaliar que a decisão de apoiar Lula foi um “golpeque “destruiu” o PSol é uma conclusão apressada, temerária, e imprudente (…) Por que a decisão de apoiar Lula contra Bolsonaro autoriza a conclusão de que o PSol teria aderido à estratégia de conciliação de classes ou “melhorista” do PT? (…) O Psol decidiu defender um programa pela revogação do legado do golpe, e por mudanças estruturais e medidas anticapitalistas. Por isso, condenou a escolha de Alckmin. Por isso, o apoio a Lula é crítico (…) O Psol não alimenta ilusões de que um governo Lula será um governo com impulso revolucionário. Mas considera que a derrota de Bolsonaro será uma vitória política que muda a relação social de forças a favor da classe trabalhadora e dos oprimidos, abrindo uma nova situação muito mais favorável.” 

Sobre esses temas já apontamos nossa perspectiva acima e a campanha que vem fazendo o PSOL de chamada de voto na chapa Lula-Alckmin sem nenhuma crítica apenas comprova o quão grave, renegador da independência de classe e traidor da necessidade de lutar contra o aparato lulista para destravar a luta foi a decisão da direção do PSOL com o apoio de Valerio, não de chamar o voto apenas, mas de entrar na chapa burguesa de conciliação de classes, fato esse que se tenta anuviar o tempo todo. A vitória de Lula no primeiro ou segundo turno sem mobilização direta não significará em absoluto uma mudança de correlação de forças como defende Valerio em vários momentos. Apostar nisso é criar uma perigosíssima ilusão, pois além de Bolsonaro poder atentar contra o resultado das eleições, mesmo derrotado continuará representando uma poderosa força política que atuará sobre a realidade pressionando à direita permanentemente. Por outro lado não se trata apenas de que Lula “não será um governo com impulso revolucionário” – com mobilização ou sem, será um governo burguês, portanto, nosso inimigo -, mas, a questão é que sem mobilização os ataques que fará sobre a classe trabalhadora serão muito mais efetivos.

Depois, a perspectiva mais de conjunto sobre a realidade política nacional do redator – que deve ser a perspectiva majoritária em sua corrente – vai ficando mais clara quando defende que o PSOL não é hoje apenas um partido eleitoral, mas que é um instrumento de mobilização. Para Valério, “o PSol organiza campanhas políticas de apoio às lutas dos movimentos de trabalhadores, mulheres, negros, estudantes, LGBT’s, indígenas, dos direitos humanos, luta nas ruas e o enfrentamento à burocracia estão muito longe de ser a atividade principal do PSOL. E esse fato, essa característica aparelhista, cupulista e eleitoreira que foi crescendo nos últimos anos somada a tremenda polarização político-social que vivemos não deixa de ter enorme impacto e explicar o porquê a direção do PSOL pôde romper com a independência de classe sem que uma rebelião ocorresse dentro do partido. No entanto, no decorrer do mandato burguês Lula-Alckmin, se eleito for e puder tomar posse, a tendência é que muito mais setores, militantes e figuras venham à esquerda.

O fato de que as massas não superaram as expectativas reformistas, o que ocorre normalmente em momentos muito próximos das revoluções, e que a consciência das mesmas recuaram em relação aos anos 80, seria a cartografia geral para justificar porque a direção do PT – do PSOL e da Resistência – não supera o horizonte eleitoral, pois “a direção do PT e Lula não são inocentes, evidentemente. Ir além do ‘horizonte eleitoral’ não depende, somente, de um impulso voluntarista, mas da relação social de forças. Claro que, também, de uma vontade.” Na verdade, Lula, sua corrente no final da década de 70 e, depois, a direção do PT desde o início da década de 80, mesmo quando houve forte mobilização por baixo, nunca apostou em horizontes para além das eleições. O mesmo ocorre com a direção do PSOL que agora é composta por Valerio e a sua corrente, pois não se trata de não medir a temperatura das massas, de ser sectário, voluntarista ou ultra, mas de apostar permanentemente na mobilização e estar atentos para conjunturas que possibilitem mudanças de qualidade. Orientação político-histórica das correntes revolucionárias que o PT e a direção do PSOL nunca tiveram: a grande novidade é que agora correntes da tradição do marxismo revolucionário percam de vista tal orientação.

No final do texto o argumento é que “não existe, nestas eleições, em função da relação política de forças, espaço algum para uma candidatura de esquerda radical à presidência (…) Seria impossível explicar porque nossa necessidade de defender ideias revolucionárias deveria prevalecer sobre a necessidade de tirar Bolsonaro da presidência.” Como já dissemos, a motivação da ruptura não foi a ausência de uma candidatura própria, em que pese que uma pré-candidatura/candidatura teria cumprido um papel fundamental em vocalizar a linha de impulsionar a resistência nas ruas como desafio central de campanha, também não foi a necessidade atávica de “defender ideias revolucionárias” ou porque se decidiu chamar o voto em Lula no primeiro turno. O problema incontornável de princípio foi que ao entrar na chapa burguesa, na prática se auto impõe uma campanha acrítica, eleitoreira e que dilui o programa necessário para a conjuntura, o que pode se ver fartamente nos materiais de campanha do PSOL e da Resistência.

A motivação política central da Resistência e da direção do PSOL não foi a de se manter independente para contribuir com a tarefa central da luta de classes hoje, o único antídoto contra o golpismo de Bolsonaro e contra os ataques que estão em curso e que continuarão após as eleições com ou sem o neofascista no poder, que é a mobilização de massas. Mas que “o PSol precisa eleger pelo menos onze deputados federais para defender sua legalidade. Preservar a legalidade não é eleitoralismo, é uma necessidade da existência política fora da marginalidade. O PSol não sofre somente pressões de adaptação. Sofre, também, pressões sectárias que alimentam avaliações excessivamente otimistas da relação social de forças. Um mínimo de realismo e inteligência tática exige considerar as condições nas quais teremos que lutar.” 

Como já foi dito, aqui fica claro que se rifa a independência de classes, as estratégias, programas e táticas em nome de um “realismo e inteligência tática”. Nada mais longe do realismo revolucionário, esse é um pragmatismo estreito que sempre tira as massas da equação e o papel nefasto que cumpre o lulismo, estancando o seu avanço político. Na verdade, isso não passa do (bi) campismo eleitoralista que não aposta que as massas possam construir uma alternativa independente diante do neofascismo e de um setor da burguesia de um lado e da burocracia lulista de outro. É certo que o centro do processo eleitoral deste ano é derrotar Bolsonaro e isso tem um peso decisivo para a mudança da correlação de forças, porém derrotar o neofascismo nas urnas é condição necessária mas não suficiente, falta a mobilização direta. Por isso, a tática de ingressar na chapa burguesa nada tem de inteligente do ponto de vista da nossa classe, é apenas inteligente do ponto de vista do aparato, o que é extremamente  imprudente na conjuntura em que vivemos.

Por fim, Valerio faz a defesa de que o PSOL pode ser recuperado, que o partido não se resume à luta interna pelo fundo partidário, que há disputa por outra perspectiva, que o aparelho não domina o PSOL e que “o fatalismo é um mau conselheiro. O modelo de organização do PSol mimetiza a experiência do PT dos anos oitenta. Mas o aparelho interno não domina o PSol.” Parece que essa narrativa é uma tentativa de mostrar que o PSOL é similar ao PT antes do domínio efetivo do grupo de Zé Dirceu que acabou impondo coisas como o cerceamento ao direito de tendência – o que levou à expulsão da Convergência Socialista e de outras correntes -, o financiamento burguês, o caixa 2 e a retirada do socialismo do seu programa. Mas, vejamos, o PSOL aprovou uma federação com um partido burguês, que é financiado por um dos maiores bancos devedores à Previdência Social e responsável pelo endividamento abusivo de trabalhadores, federação essa que tem um programa liberal desenvolvimentista. E para coroar o processo liquidacionista, entrou em uma chapa em que o vice é um representante ilustre do capital financeiro, responsável pelo massacre à educação pública em São Paulo, pelo aumento em 96% da letalidade policial (entre tantas outras atrocidades que revelam seu caráter anti-operário) e que aparece como consolidação de um giro mais à direita do lulismo para o próximo período.

Na verdade, o que resta do PSOL é o direito formal de tendência que será cada vez mais restrito, como ocorreu com o PT. Figuras como Zé Dirceu, que representam a máquina, não faltam hoje no PSOL…Para Valerio, o PSOL tem um regime de funcionamento saudável, pois na preparação do último Congresso, algo em torno de dez mil militantes ativos moveram cinquenta mil filiados. Uma ínfima minoria desta militância, não mais do que algumas centenas, são funcionários. A esmagadora maioria são ativistas abnegados.” Em que pese a grande quantidade de militantes honestos que continuam dentro do PSOL, nem tudo é irreversível, mas estes, como os militantes honestos que ainda permanecem no PT, já não têm condições de reverter a capitulação, o oportunismo e o eleitoralismo sem que haja mudanças profundas na correlação de forças políticas. Foi exatamente o que demonstrou o Congresso do PSOL, no qual o aparato eleitoreiro e de movimentos que dirigem certas correntes acabou pesando de forma significativa para a vitória da maioria que impôs essa traição histórica que é ingressar na chapa LUla-Alckmin e compor uma federação partidária com a Rede. O PSOL é um petit PT.

Termina dizendo que “perder o sentido das proporções é, também, perigoso. O Psol não está condenado.” Infelizmente o PSOL que foi fundado para ser um instrumento democrático, pela base e de luta alternativa ao lulismo acabou. Desconsiderar a proporção que o impacto negativo que a ruptura de princípio – entrar na chapa Lula-Alckmin e federar com a Rede, com o apoio de Valerio e da Resistência e do MES – tem para a necessidade de construir uma direção alternativa ao lulismo e para mobilizar, única forma de de  derrotar Bolsonaro e de criar outra correlação de forças que permita superar os crescentes flagelos que temos, aproxima-se bastante do cinismo pela capacidade de não refletir sobre questões tão candentes para a nossa classe na atualidade. 

Nós, do Socialismo ou Barbárie, por outro lado, diante dessa derrota que foi perder o PSOL como partido independente, estamos sentidos, mas, não derrotados ou sem perspectivas. Com nossos companheiros, continuamos apostando na independência de classe, nas estratégias da mobilização permanente e na construção de partidos revolucionários vinculada à táticas que favoreçam essas orientações. Para isso, como parte dos que assinaram e elaboraram a carta de ruptura, estamos dando passos para nos organizar no Pólo Socialista Revolucionário, empolgados com a perspectiva de construir e de conformar, a partir de uma frente com grupos e militantes independentes, uma organização política nacional socialista e revolucionária e candidaturas a serviço da luta e do socialismo. Isso vale a pena companheiro!

*Leia em https://esquerdaonline.com.br/2022/06/08/uma-ruptura-precipitada-do-psol/