Condenação de Lula

É preciso construir uma alternativa de massas ao lulismo

ANTONIO SOLER

No último dia 12, o Juiz Federal Sergio Moro proferiu sentença que condena em primeira instância Luis Inácio Lula da Silva a 9 anos e 6 meses de prisão e multa de R$ 670 mil. Essa pena é relativa ao suposto recebimento de propina no valor de R$ 2,4 milhões da empreiteira OAS na forma de um apartamento no Guarujá (litoral paulista). Lula poderá recorrer a instância superior em liberdade, mas se condenado for poderá ser preso, perder os direitos políticos por 8 anos e, evidentemente, não concorrerá nas eleições presidenciais em outubro de 2018.

Essa condenação não é um fato trivial [1]. Ou seja, mais uma em meio à avalanche de processos judiciais e condenações em torno das relações corrompidas entre capitalistas e o seu Estado, pois tem significado e repercussões políticas históricas para os trabalhadores, suas direções tradicionais e para a esquerda socialista. Assim, não podemos cair na lógica binária de defender ou não Lula diante da condenação, pois trata-se de um fato político carregado de complexidade e sobre o qual devemos tirar importantes lições.

Mesmo se não confirmada em segunda instância, a condenação significará uma derrota de proporção histórica para a estratégia reformista (gradualista). De outro lado, coloca para a esquerda socialista discussões táticas e estratégicas vitais que se mal-encaradas forem atrasarão ainda mais a necessária construção de uma alternativa política diante da debacle lulista e da imediata necessidade de resistir de forma unificada à ofensiva reacionária em curso.

Operação Lava-Jato é parte articulada da ofensiva reacionária

A recente condenação de Lula em primeira instância obedece centralmente a fatores de ordem política. No entanto, é resultado de um complexo processo que combina o projeto de modernização conservadora das relações entre público e privado – capitaneado pela Operação “Lava-Jato” – com a ofensiva reacionária que desalojou o PT do governo federal, impôs um governo títere que, mesmo em crise, avança em suas contrarreformas, vide a aprovação da contrarreforma trabalhista apenas um dia antes da sentença condenatória de Lula.

A Lava-Jato configura-se em uma unidade entre Promotoria, Justiça e Polícia Federal para investigar, processar e condenar crimes de corrupção que envolvem empresas privadas, públicas e agentes políticos. Esse setor que opera parte do Estado apoia-se politicamente em um subproduto de massa –  a classe média alta que mobilizou as ruas de todo o país pelo impeachment de Dilma – à direita da onda de descontentamento e mobilização popular aberta em Junho de 2013.

A unidade ideológico-política que costurou a Lava-Jato com os novos movimentos massivos de perfil ultraconservador, com a grande mídia e a velha direita partidária lhe permite grande liberdade de ação no sentido de fazer diligencias policiais, prisões preventivas, delações premiadas, acordos de leniência e condenações em primeira instância, muitas vezes fora da legalidade patronal.

Evidentemente que existem interesses divergentes e conflitos entre a velha oligarquia política e os jovens promotores, juízes e delegados que aparecem à frente da Operação que geram situações como a prisão de figuras importantes da direita tradicional. Porém, esse fato está longe de significar que a Lava-Jato possa cumprir um papel progressivo sem que uma profunda reforma na institucionalidade política nacional seja realizada pela luta direta dos trabalhadores. [2]

Isso é válido até mesmo no sentido da impossibilidade de punir seriamente parte significativa dessa oligarquia ou da grande burguesia, fato este plenamente demonstrável diante de vários exemplos. Recentemente tivemos a devolução do mandato de Aécio Neves pelo STF, mesmo diante de provas concretas do seu envolvimento em inúmeras falcatruas, a homologação pela PGR do acordo extremamente vantajoso de leniência dado a JBS, que além de livrar os seus proprietários da prisão, nem arranha o grosso do patrimônio dessa empresa.

Também não podemos ter ilusões de que a Lava-Jato possa realizar ações que coloquem em risco as contrarreformas em curso. Sabemos que, apesar da delação dos irmãos Batista ter aberto uma crise no governo Temer, o fator fundamental para que o governo não tenha avançado até o final na reforma da previdência foi a reação massiva da classe trabalhadora contra esse projeto. E que a derrubada definitiva desse governo depende centralmente da mobilização dos de baixo e não das denúncias da PGR.

Fazemos essas breves considerações com o objetivo de entender como a condenação de Lula por Moro se enquadra dentro de uma perspectiva política moldada pelos interesses, instituições e métodos alheios aos da classe trabalhadora e que atua de forma combinada com o conjunto da ofensiva reacionária em curso.

Trocando em miúdos, a condenação de Lula, no que pese toda a sua responsabilidade política pelo ocorrido, não está apenas a serviço de alijá-lo do processo eleitoral de 2018[3], mas de desferir um ataque ao conjunto a esquerda, de desmoralizar a perspectiva socialista – mesmo que difusa seja essa – e de enfraquecer a resistência dos trabalhadores às contrarreformas em curso. Por tudo isso, essa condenação merece da nossa parte um claro rechaço político e, para além disso, um esforço no sentido de tirar conclusões práticas para a atuação na luta de classes, nas eleições e para a construção da esquerda socialista no próximo período.

O debate estratégico ganha nova dimensão

A condenação de Lula tem repercussão política profunda para a esquerda, pois além de ser parte da ofensiva reacionária, enseja um necessário debate estratégico no interior da esquerda. Ou seja, o debate sobre a ineficiência histórica do reformismo sem reformas, encarnado pelo PT e Lula no Brasil, para solucionar os problemas fundamentais da classe trabalhadora.

O PT e Lula são corresponsáveis pela atual situação nacional, na qual predomina, até então, uma ofensiva reacionária. Ofensiva essa gerada pela aplicação da linha de colaboração de classes durante os seus sucessivos governos, resultando na perda de base social da esquerda, no acirramento da crise econômica e no fortalecimento da onda reacionária. Consequentemente, seguiu-se o impeachment de Dilma, as contrarreformas e… a atual sentença condenatória contra Lula.

O gradualismo político (preferimos reformismo sem reformas), com essa condenação, da mais um sinal de inviável para a transformação social e a defesa dos interesses imediatos e históricos dos trabalhadores. Pois, diante das crises econômicas, da polarização social e dos momentos decisivos da luta de classes, sempre demonstra a sua inviabilidade estratégica para as massas, pois atua sistematicamente para desorganizar, confundir e desmoralizar a classe trabalhadora perante os grandes desafios.

Foi exatamente essa a postura dessa corrente, e também de seus governos, diante da onda de indignação popular aberta em Junho de 2013, das lutas que se seguiram e do impeachment. O que acabou gerando as condições favoráveis para que a classe dominante retomasse a ofensiva contra os trabalhadores e pudesse aplicar as contrarreformas que estão polarizando a situação nacional. Mas, essa ofensiva também atua contra os movimentos sociais, os seus dirigentes (legítimos ou não) e a perspectiva emancipadora. Processo esse que tem como subproduto político – mesmo Lula e o PT traindo os interesses históricos dos trabalhadores e governado com e a serviço da burguesia – a atual condenação de Lula.

A superação das inércias no interior da esquerda socialista

O problema incontornável para a esquerda socialista é que, no cenário em que vivemos, o reformismo sem reformas não deixa de ser uma expressão difusa da esquerda entre amplos setores de massas, que hegemoniza e controla as principais organizações operárias, populares e estudantis.

Realidade essa que não podemos desconsiderar se quisermos, enquanto esquerda socialista, atingir setores de massa e nos constituir em um fator real na luta de classes. Desta forma, não podemos nos furtar em apresentar um posicionamento diante da condenação de Lula que leve em consideração os principais elementos da realidade, tire lições dos fatos e corrija rumos políticos.

Contraditoriamente com a imediata debacle do lulismo e com o avanço da ofensiva reacionária, a realidade política nacional coloca possibilidades estratégicas para a construção de organizações revolucionárias que tenham alcance de massas e possam ser um fator político decisivo na realidade nacional. Evidentemente que não se trata de um cenário róseo e livre de dificuldades.

Dentre elas, as imensas inércias políticas e teóricas arrastadas pelas últimas duas décadas, a fragmentação da esquerda socialista, a perspectiva economicista, os hábitos aparelhistas e o sectarismo amplamente disseminado pelas organizações da esquerda socialista[4]. Tudo isso dificultando a construção de canais políticos com setores mais amplos de massa, a disputa da direção dos principais centros operários e estudantis e a formação de figuras de massas que possam disputar com o lulismo.

O fracasso estratégico do lulismo não é capaz de por si só abrir caminho para  uma alternativa política de esquerda, requer da nossa parte uma série de táticas para enfrentar e superar esse desafio. Para aproveitarmos as oportunidades estratégicas que se abrem com a debacle do reformismo sem reformas lulista não basta nos opor à condenação de Lula, nos diferenciar da Operação Lava-Jato ou corresponsabilizar Lula e o PT pela própria desmoralização. Precisamos entender que é necessário tirar lições para devolvermos táticas e linhas políticas que nos permitam avançar na superação desse entrave para a organização independente dos trabalhadores que é o lulismo e seu partido.

Não podemos desconsiderar que nenhuma corrente da esquerda socialista pode de forma isolada se constituir hoje como alternativa ao lulismo. Pois falta a todas, a algumas mais do que as outras, balanço político, inserção nas estruturais, programas e táticas testadas na luta de classes capazes de estabelecerem liderança real sobre amplos setores de vanguarda e às demais correntes. Sabemos que todas as tentativas de hegemonizar a reorganização sindical ou política da esquerda, por essa ou aquela corrente, acabaram em fiascos por falta das condições reais de tal hegemonia. 

Por isso, não podemos, simplesmente, afirmar que a condenação de Lula é um problema alheio à esquerda socialista e, portanto, temos que nos dedicar à luta pelo “Fora Temer”, por “Eleições Gerais”, pela “Assembleia Constituinte”, a construção de “Alternativas Políticas Superadoras” e etc. Pois, para que possamos ser eficientes em meio a essa situação de ofensiva reacionária e fracasso do lulismo – que se mantém hegemônico no interior dos maiores sindicatos, movimentos e organizações políticas – é necessário em primeiro lugar, sistematicamente, aplicar a tática de unidade de ação contra o governo e suas políticas[5]

Mas essa tática de unidade de ação só pode ser aplicada de forma que polarizemos com o lulismo por uma força política superior construída por uma frente ampla de organizações que compõem o campo da esquerda socialista. Isso significa a necessidade de construirmos uma ampla frente nacional de esquerda que envolva todas as organizações independentes e que possa se apresentar como alternativa nas lutas contra Temer, suas contrarreformas e nas eleições. Na verdade, temos um enorme atraso nesse sentido, uma ausência política que se não for em breve corrigida pode fazer com que percamos a possibilidade de aproveitar o vácuo político aberto com a desmoralização histórica do lulismo.

Para finalizar, devido aos instrumentos, métodos e sentidos dessa condenação, está a serviço dos interesses mais reacionários da classe dominante na atual conjuntura. Mesmo Lula dando provas seguidas de que continua sendo o principal colaborador de classe da política nacional, a classe dominante quer um período de terra arrasada para a classe trabalhadora, ou seja, impor uma regressão histórica em suas condições de vida, desorganização político-sindical e atordoamento ideológico total.

Por isso, nos opomos veementemente a essa condenação a serviço da ofensiva reacionária em curso, das contrarreformas que atacam direitos históricos, do alijamento das massas do processo decisório e da consolidação de um governo reacionário à frente do país, com ou sem Temer, para o próximo período.

Assim, apesar de sermos inimigos políticos do lulismo e pensarmos que temos que lutar até o fim pela sua superação, não podemos nos confundir em relação à necessidade de condenar a sentença condenatória dada pela justiça burguesa à Lula, pois está a serviço da ofensiva reacionária e de esmagar toda e qualquer expressão política de esquerda dos trabalhadores em um cenário de polarização político-social que crescerá no próximo período e que marcará os próximos processos eleitorais. 

 

[1] Estamos falando da condenação de um dos maiores expoentes do reformismo – sem reformas – do mundo, um ex-chefe de Estado de origem operária e que ainda dispõe da intenção de votos de 1/3 do eleitorado. Uma condenação judicial inédita no Brasil de um ex-Presidente da República, o que teoricamente abriria precedentes para outras condenações de ex-chefes de Estado (como José Sarney, Fernando Collor de Melo e Fernando Henrique Cardoso) não fosse os limites e a perspectiva extremamente conservadora da Operação Lava-Jato. Operação essa que passa a ser denomina como “Lava-Jato” em alusão aos esquemas de lavagem de dinheiro provenientes de propinas.

[2] Sabemos que essa operação e sua base social pela composição, perspectiva e instrumentos em si limitam o alcance de suas operações ao marco da propriedade burguesa e dentro da defesa das contrarreformas que estão em curso. A “missão” de combater a corrupção endêmica instalada no Estado brasileiro a partir de dentro da própria lógica desse Estado, sem a participação das massas trabalhadoras, suas organizações e seu programa histórico -expropriar os corruptos e colocar os seus bens a serviço e sob o controle dos trabalhadores – não tem sustentação.

[3] Mesmo declarando que não irá fazer grandes alterações nas políticas que estão sendo aprovadas em um eventual novo mandato, a sua eleição certamente irá ensejar entre as massas expectativas e colocar em risco toda a ofensiva feita até agora.

[4] Terrível processo que fazem correntes políticas grandes, médias e pequenas viverem mais para as suas próprias necessidades do que para a luta de classes.

[5] Ferramenta de luta singela, mas esquecida por uma série de organizações que acreditam que podem fazer a luta contra o governo e a classe dominante sem nenhuma aliança tática.