Ciência e Arte da Política Revolucionária

Nota do tradutor

Vivemos uma forma de recomeço histórico da luta de classes que coloca a possibilidade de novas experiências revolucionárias como as vividas durante a “era dos extremos” – isso se as novas gerações de lutadores recuperarem o socialismo revolucionário como alternativa histórica.

Hoje, apesar do giro reacionário em que se encontra a situação política mundial com a eleição de Trump e outros processos de coloração reacionária, estamos em um ciclo de rebeliões populares mundial – aberto com a crise depressiva de 2009 – que não para de provocar de forma espasmódica levantamentos de massas que, apesar de não apontarem para uma perspectiva para além do capitalismo, são insumo político fundamental para construirmos a alternativas revolucionárias.

O esforço de tradução de um “manual” de formação política básica escrito originalmente em espanhol se justifica devido à lastimável pobreza de publicações nesse campo. Os materiais disponíveis normalmente trazem uma lista de conceitos que pecam pela estreiteza teórica ou pelo esquematismo que não fustiga a reflexão. Estes, além de não contemplarem as contribuições fundamentais para a prática militante das novas gerações dos teóricos do marxismo revolucionário, não tiram nenhuma lição político-teórica da enorme experiência da luta de classe vivida no século XX.

Roberto Saénz vai exatamente no sentido oposto, estabelece paralelos e nexos entre o cabedal teórico de pensadores como Leon Trotsky, Antonio Gramsci, Rosa Luxemburgo e Lênin sem perder as especificidades da contribuição de cada um deles para a armação política dos novos militantes.

Esse trabalho é uma síntese do esforço de interpretação político-teórica da nossa corrente internacional, síntese que vai no sentido do resgate do protagonismo insubstituível da autodeterminação da classe operária para a revolução socialista e para a transição ao socialismo, protagonismo esse negado por todo um leque correntes políticas que vai do guerrilherismo ao reformismo, passando por todo o espectro de correntes centristas, autonomistas e economistas.

Assim, é na perspectiva de contribuir com a formação política das novas gerações de lutadores socialistas que temos a honra de apresentar aos leitores da Corrente Socialismo ou Barbárie – tendência do PSOL a tradução para a língua portuguesa do caderno de formação Ciência e Arte da Política Revolucionária de Roberto Sáenz.  Boa leitura!

ANTONIO SOLER

 

Ciência e Arte da Política Revolucionária

O que todo militante deve saber sobre a política revolucionária

ROBERTO SÁENZ

“O político em ação é um criador, um suscitador, porém não cria do nada e nem se move no vazio turvo de seus desejos. Funde-se com a realidade efetiva, porém, o que é esta realidade efetiva? É talvez algo estático ou imóvel? Ou é, mais corretamente, uma correlação de forças em contínuo movimento, em contínuo equilíbrio dinâmico? Aplicar a vontade à criação de um novo equilíbrio das forças realmente existentes e ativas, basear-se em determinada força que se considera progressiva a potencializando para fazê-la triunfar significa sempre se mover no terreno da realidade efetiva; mais precisamente: é a única interpretação realista e historicista da realidade, é a única história em ato, a única filosofia em ato, a única política” (Antonio Gramsci, A política e o Estado Moderno)

De tempos em tempos, as circunstâncias da luta de classes e o surgimento de novas gerações e novas condições de luta colocam para os socialistas revolucionários a necessidade de apresentar nossos posicionamentos de maneira que sejam compreensíveis para estes novos companheiros e companheiras e para que sirva, também, para estimular sua atividade. Esta tarefa deve ser encarada evitando a vulgaridade de muitos “manuais” que se transformavam em uma espécie de “receituário” que, longe de ajudar a pensar e atuar, atrapalham. Este material pretende apresentar as ferramentas elementares da ação política revolucionária; apoiamo-nos, para isso, na riquíssima tradição e atualização do marxismo revolucionário, o que passa por submeter esse legado ao crivo do balanço das lições estratégicas deixadas pelas revoluções do século passado. Isso tudo com o objetivo de contribuir para preparar a nova geração para os tempos agitados que se aproximam.

1. A vigência do marxismo revolucionário no século XXI

A crise histórica que hoje atinge a economia capitalista mundial, e o ciclo de rebeliões populares aberto internacionalmente, traz à cena uma nova geração herdeira da crise de alternativa dos anos 1990, porém que é também protagonista de um renovado despertar dos explorados e oprimidos em nível mundial. Esta nova geração está fazendo suas primeiras experiências nas ruas do Cairo, Atenas, Madri, Nova York. Londres, Santiago do Chile, Bogotá, Cidade do México, Moscou, nas cidades operárias da China e outras. Queremos transmitir elementos de política revolucionária a quem se coloca de pé depois de décadas nas quais se viveu uma espécie de “grau zero” de luta de classes que praticamente cortou o fio de continuidade com as gerações anteriores.

Para desenvolver essa tarefa é imprescindível reivindicar a vigência da tradição do marxismo revolucionário. O retorno da luta de classe abriu o debate estratégico, que em muitos aspectos tem características de um verdadeiro recomeço histórico. Por essa razão, está na ordem do dia uma espécie de retorno às fontes sobre os pontos de referência para a ação revolucionária. A partir da nossa corrente, reivindicamos a defesa da tradição do marxismo revolucionário, especialmente os ensinamentos deixados por Lenin, Trotsky, Luxemburgo (e também Gramsci, ainda que precisemos estudá-lo com mais profundidade), sobretudo no terreno em que cada um demonstrou-se mais forte. É desde essa posição que acreditamos que devemos enfrentar os desvios reformistas, autonomistas, populistas e “socialistas nacionais” hoje em voga, assim como o fechado doutrinarismo das correntes incapazes de extrair lições da riquíssima experiência, como também das frustrações e derrotas, das revoluções do século passado.     

Como subproduto do deserto político-ideológico gerado após a queda do Muro de Berlin, este recomeço da experiência histórica ocorre em condições nas quais a maioria  dos novos contingentes carece quase que completamente das ferramentas do o que fazer político mais elementar. Daí que todo tipo de falsas ideologias e atrasos conceituais os caracterizam, dentre as quais o rechaço da questão do poder e da “forma partido” são alguns dos mais comuns, para não falar da negação da centralidade da classe trabalhadora.

Como resultante das frustrações do século passado, da burocratização da Revolução Russa e da degeneração burocrática do conjunto dos Estados operários ou anticapitalistas, a tradição do marxismo revolucionário e suas lições foram questionadas. Porém, entre Lenin, Trotsky, Luxemburgo e Gramsci e o surgimento do stalinismo, o que houve não foi de nenhum modo uma “continuidade”, mas sim a maior ruptura imaginável: uma ruptura total ocorreu entre a perspectiva da livre autodeterminação da classe trabalhadora, em oposição total à dominação burocrática, e o esvaziamento de todos os objetivos emancipatórios da revolução.

Com o presente material apresentaremos noções elementares que sirvam de insumo para a educação político-prática da nova geração não apenas de nossa corrente internacional, mas do ativismo em geral. Nos centraremos na atividade política propriamente dita sob a ideia geral de que a política revolucionária, quando se faz força material e organização, partindo dos problemas e condições reais, pode mover montanhas.1

2. O que é política revolucionária

Queremos começar respondendo à questão que guia este material e que é o seu primeiro e mais geral start: o que é a política revolucionária? Em nossa visão, a política revolucionária não é outra coisa do que um ponto de apoio para a ação; um instrumento da intervenção no campo das relações sociais: a política é a afirmação dos interesses específicos como “gerais”. Sua especificidade é como se verbalizam ou traduzem a esse plano (seja mediante reivindicações, consignas, programas ou por intermédio do instrumento que seja) determinados interesses de classe. Dito de outra maneira: a política revolucionária é uma ação para impor os interesses imediatos e históricos da classe trabalhadora exatamente no campo em que esses interesses são conflituosos, o campo da política.2

Nas mais diversas circunstâncias nas quais as classes sociais ou as frações de classe se manifestam, uma simples reivindicação salarial, que a classe capitalista queira impor determinado regime de exploração de trabalho, que os burgueses agrários defendam determinado regime de propriedade da terra, que um governo legisle sobre um investimento estrangeiro, uma lei eleitoral ou o que seja, em todos os casos o que está ocorrendo é uma ação política de defesa – direta ou indireta, aberta ou camuflada – de um determinado interesse de classe (seja este interesse econômico, social, especificamente político ou, inclusive, no terreno das relações entre Estados). Porque a política é, precisamente, esse exercício: a procura de fazer valer determinados interesses sociais mediante uma intervenção no âmbito da generalização dos seus interesses particulares. 

Ressaltemos, além disso, que o campo da política tem instituições que lhes são próprias que as explicitam, “traduzem” ou defendem estes interesses das classes em luta: os partidos políticos, sejam burgueses ou não: o Estado, que defende os interesses gerais da classe capitalista através de um e outro governo; os sindicatos (ainda que apareçam circunscritos apenas às relações “econômicas” entre operários e patrões); o parlamento e a justiça; as forças armadas; os meios de comunicação, tão importantes hoje, e outras.

Estas instituições em geral defendem os interesses da classe capitalista e suas diversas frações (apesar de apontar aqui também os sindicatos, que de uma maneira ou outra são expressão ou “representação” da classe trabalhadora).      

Como digressão, recordemos que na tradição do marxismo o âmbito jurídico-político pertence a uma “superestrutura” que corresponde, de maneira nunca mecânica, a determinações que provém da estrutura econômico-social da sociedade (relações materiais que fixam, finalmente, o conteúdo e os limites de cada superestrutura), porém que devem projetar-se, manifestar-se e se impor. Na prática, ambas “esferas” do todo social se encontram “fundidas”: não existe uma sem a outra. Ainda que, todavia, esta totalidade dialética suponha uma “divisão de tarefas” que torna a política o âmbito para a afirmação e generalização dos interesses das distintas classes.

Voltando ao nosso argumento, assinalamos que a política revolucionária é, precisamente, a ferramenta utilizada por uma determinada vanguarda ou setor dos trabalhadores, organizada na maioria das vezes em partido (ou algum tipo de organização), para intervir de uma forma ou de outra nesse campo da disputa dos interesses sociais. Em última instância, a política revolucionária é impulsionadora da ação no campo político dos interesses das classes em luta através de algum coletivo dos trabalhadores, em sua maioria sob a forma partido. 

2.1 A política como economia concentrada

Esta ideia nos remete, imediatamente, à conhecida definição leninista da política como “economia concentrada”. Trata-se de uma forma brilhante e sintética de esclarecer o ponto. Lênin quer dizer que a política, como conceito, move-se entre dois limites. Por um lado, afirma que a política ou, mais precisamente, as superestruturas jurídicas, política e ideológicas, não é terreno independente que se move nas nuvens do fetichismo ou da religião; trata-se de um conceito “subordinado”, determinado dialeticamente pelas relações econômico-sociais que lhe dão o seu conteúdo material. Em última instância, todo partido político, todo governo ou inclusive, toda religião (neste último caso, de maneira muito mais complexa e indireta3), o que pensam, expressam ou defendem, são determinados interesses de classe. É a partir daí que Lênin explica a política como economia concentrada.

No entanto, nunca se pode perder de vista que a política tem a sua própria especificidade, suas próprias leis de funcionamento; se não fosse assim, não se justificaria como plano próprio da realidade social, não teria razão de ser ou existir. Porque é a própria realidade social fragmentada e fetichizada sob o capitalismo que faz da política um campo dialeticamente “separado”. Porém, um campo em que, no fundo, afirmam-se interesses sociais e de classe; onde estes interesses se traduzem e adquirem voz e generalização. Em suma, um campo que funciona mediante dinâmicas e formações complexas que não se reduzem à mera “mecânica” proveniente da economia, ainda que seja ela que, em última análise, acabe dando o conteúdo às coisas. O que não é mais do que dizer que em geral as formas políticas, os partidos, as políticas, qualquer uma de que se trate, não se apresentam em seu próprio nome (tratando  os interesses de classe que realmente defendem), mas mediante algum tipo de disfarce.

Acontece que sob o capitalismo a política é um terreno que aparece fetichizado ou invertido, dissimulando interesses particulares como se fossem gerais. Afirma, por exemplo, que “a soberania está no povo”, quando este mesmo povo não decide nada, apenas quem será o verdugo a cada tantos anos (como afirmava Lênin em O Estado e a revolução sobre as eleições na democracia burguesa).

Por isso mesmo, uma das tarefas da revolução e da autêntica transição socialista é a de acabar com está divisão, tendendo reabsorver a política, a direção dos assuntos gerais, ao corpo social como tal. Daí a conhecida frase de Engels que dizia que no comunismo se passaria do “governo das pessoas à administração das coisas”, dando a entender que a política como instância separada desaparecia no contexto de uma administração comum dos assuntos por parte de uma sociedade de iguais e auto organizada, sem uma instância separada da sociedade como é hoje o aparato do Estado.

Em todo caso, sob o capitalismo, e também na transição ao socialismo, a política opera sob uma série de leis de condensação (por oposição à dispersão) que lhes são próprias e que fazem da intervenção no terreno político uma tarefa obrigatória e imprescindível para os revolucionários. A este respeito, é importante entender que a política  refere-se, em última instância, ao Estado, que no capitalismo aparece como instância centralizadora. Essa instância tem esse poder de condensação que coloca as mais importantes questões no centro da cena, em oposição à fragmentação da miríade de conflitos no terreno estritamente econômico ou da “sociedade civil”. Daí que a intervenção no terreno político tenha a possibilidade de contribuir para formulação de reivindicações gerais, de conjunto.

A ação política deve ser entendida como intervenção no âmbito dos assuntos gerais, dos programas, das perspectivas de conjunto e o elevar-se a ela. Tal é a tarefa própria dos revolucionários, em contraste com a fragmentação e parcialidade a que estão submetidos os explorados nas lutas cotidianas (no terreno econômico). Por isso, Lênin falava da necessidade de “elevar-se à luta política de conjunto”, a um campo que transcenda a mera luta reivindicativa entre operários e patrões (que, no entanto, é o ponto de partida na maioria dos casos).   

Esta dialética coloca a necessidade prévia da classe operária elevar-se plenamente ao plano político para que, por meio da revolução socialista e da transição, possa abolir a política como âmbito separado (este aspecto nos separa dos anarquistas e das correntes “antipolíticas”). E esta elevação política revolucionária é imprescindível porque o campo político é uma esfera objetiva da realidade social, a esfera da generalização dos interesses de classe. E a classe operária deve elevar-se a este plano: lutar no plano dos “interesses gerais” para, com sua política revolucionária, impor-se e ganhar hegemonia sobre as demais camadas exploradas e oprimidas.

2.2 A política revolucionária como ciência e arte

Como a insurreição ou mesmo a guerra, a política revolucionária é, e não pode deixar de ser, uma ciência e uma arte. Como dizia Lênin e antes dele o militar prussiano hegeliano Clausewitz, toda ação humana sobre um objetivo determinado requer capacidades da ciência e da arte, de conhecimento e intuição, os dotes do cientista e do criador. E na política e na guerra ainda mais do que outras áreas.

A dimensão científica tem a ver com o estudo, a análise, os princípios elementares e as leis que regem qualquer fenômeno. Sem esta investigação, sem este estudo prévio, sem os princípios gerais da ciência particular à qual se refere, a ação seria um puro empirismo, um mero proceder “inconsciente” (e inconsistente) sobre as coisas, em geral condenado ao fracasso. Porém, ao mesmo tempo, a política tem elementos de apreciação das coisas à primeira vista. É um terreno no qual a intuição se move com certa liberdade, porque a dinâmica da realidade muitas vezes deixa pouco espaço temporal para a reflexão cuidadosa. Gramsci define a intuição como “a rapidez com que se relacionam fatos aparentemente alheios entre si”.

Nesse terreno, inevitavelmente, operam tanto o acaso como a lógica das probabilidades. Quer dizer, a dimensão “artística” e uma determinada “mecânica dos processos”. Nessa “dimensão artística” ou intuitiva, tem enorme peso a experiência anterior, o ter passado várias vezes por circunstâncias similares. A intuição não é uma iluminação mística, mas sim que se forja a partir de uma acumulação de experiências, ainda que essas experiências não estejam expressamente racionalizadas. É o subproduto de uma experiência que fica internalizada e que nem sempre se assume conscientemente, mas que se coloca na forma de reflexo.

A combinação destas características científicas e intuitivas, desta ciência e desta arte da política, faz as características do “gênio político” (Clausewitz falava, agudamente, do “gênio” guerreiro); quer dizer, a capacidade de conseguir a apreciação justa das circunstâncias. Característica que apenas se obtém mediante a combinação do estudo e a experiência, que não é outra coisa que o conceito de práxis de Marx.

Em resumo: a política revolucionária como aplicação “subjetiva” (no sentido de que é feita por um sujeito em um campo de determinações objetivas) pode mover montanhas na medida em que adquire terrenalidade, deduzindo-se logicamente de suas próprias premissas; ou, como queria Lênin em suas Notas filosóficas sobre Hegel, capturando os elos mais débeis da cadeia da realidade. Daí o lugar central que a política tem na ação dos socialistas revolucionários e que a partir da nossa corrente queremos reivindicar como central na nossa atividade: fazer política revolucionária com centro na ação para transformar a realidade tomando como referência não o nosso próprio umbigo (como fazem muitas seitas que confundem seus desejos com a realidade, um autoengano demagógico em que acabam sendo a primeira vítima(4)), mas as determinações mais profundas e objetivas das tendências sociais e políticas.

2.3 História e política

Em Gramsci é muito aguda a definição da política como momento criador, transformador; como história considerada como acontecimento que se desenvolve no mesmo momento em que se realiza. Gramsci recupera a dimensão da política não como algo meramente passivo, mas como verdadeira ação criadora da realidade histórica a partir de determinadas circunstâncias. Por isso, quando fala do Príncipe Moderno (em alusão a Maquiavel) esse vem encarnado no partido político revolucionário como agente à cabeça da classe operária que realiza essa política criadora da história. É a partir daí que considera a política como a “única história em ato, a única filosofia em ato, a única política”.

A contemporaneidade da história não deve ser vista como algo puramente “objetivo” que ocorre paralelamente aos sujeitos, mas como um que fazer que, ainda que parta de circunstâncias determinadas, herdadas das gerações anteriores, nos implica, implica às classes fundamentais e sua política, implica a ação que os sujeitos sociais realizam no campo da luta de classes e transforma, para o bem ou para o mal, a realidade das coisas.

Por isso, Gramsci tem em alta consideração a política revolucionária (e o partido político como seu instrumento por excelência) e a concebeu como o instrumento de transformação da realidade dada. Daí, também, desprendeu uma concepção particular da história, no sentido não de algo que ocorre apesar de nós ou lançada à inexorabilidade das coisas (ou mero estudo do passado), mas que se faz na história contemporânea, na história que se desenvolve sob nossos olhos, um campo para a intervenção revolucionária para transformar o curso das coisas no sentido da emancipação dos explorados e oprimidos.

3. Toda ação política começa pela análise. A relação de forças

Para avançar na compreensão dos fundamentos e condições da política revolucionária, iremos dos aspectos mais objetivos aos mais “subjetivos”: “O estudo de como se deve analisar as ‘situações’. Quer dizer, de como se deve estabelecer os diversos graus das relações de forças, pode servir para uma exposição inicial da ciência e da arte política, entendido como um conjunto de regras práticas de investigação e de observação particulares, úteis para despertar o interesse pela realidade efetiva e suscitar intuições políticas mais rigorosas e vigorosas (…) Deve-se apresentar o que entende por estratégia e tática na política, por ‘plano’ estratégico, por propaganda e agitação, por ciência da organização e da administração em política” (Gramsci, cit., p 107)

Como se vê, Gramsci coloca esses aspectos mais objetivos sob o guarda-chuvas geral das relações de forças. Coloca quatro níveis de análise: 1) as correlações de forças internacionais; 2) as “econômicas estruturais” (“as correlações sociais objetivas”), que marcam as situações mais de conjunto; 3) o plano mais propriamente político (“correlações políticas e de partidos”) e 4) o plano das relações de forças militares.

Por razões didáticas e de exposição, inverteremos aqui esta ordem e deixaremos de lado a análise das relações de forças militares.

3.1 A conjuntura política

Comecemos pela unidade da medida mais elementar na hora de fazer política, o “teatro de operações” a partir do qual se levará a cabo a ação política. Essa unidade de medida elementar é a conjuntura política e podemos colocá-la no segundo plano pontuado por Gramsci.

A conjuntura política, sendo a unidade mais elementar da análise política marxista, não é a fundante (o que corresponde ao aspecto econômico-estrutural), mas um plano derivado. No entanto, é imprescindível partir da avaliação da conjuntura para levar adiante qualquer intervenção política. Conjuntura é uma categoria temporal e espacial ao mesmo tempo. Temporal, porque diz respeito a um período determinado, e quando falamos de conjuntura, falamos de um período de tempo de curto ou médio prazo, não mais do que isso. Porém, a dimensão temporal não esgota o tema. A espacialidade diz respeito a que parte da realidade escolhemos para analisar: trata-se de um determinado lugar de trabalho, de uma faculdade, um ramo industrial, uma província, um país, ou, inclusive, uma região do mundo.

Por outra parte, as conjunturas tendem a ser totalizantes: nesse terreno sempre há que ir do mais geral ao mais particular. Em escalas espaciais menores também existem conjunturas particulares, porém estas recebem a influência, ainda que não mecânica, das conjunturas mais gerais, ou do âmbito de aplicação mais geral. A modo de exemplo, sem dúvida que uma conjuntura política nacional definirá, de uma ou outra maneira, a conjuntura de uma determinada greve. No entanto, isso não é mecânico: as circunstâncias em um lugar de trabalho, a relação com a patronal, a burocracia, o sindicato em seu conjunto, etc., nunca poderão ser diluídas na conjuntura geral; ainda que essa inevitavelmente incidirá no desenvolvimento da luta, “marcando-a com suas cores”, segundo a metáfora do arco-íris em Marx. Que afirmava que as determinações são sempre complexas e sutis, contra aqueles que o acusavam de determinista mecânico.

Para precisar a definição de conjuntura política, retornemos à apreciação de Lênin da política como economia concentrada. Sobre o cenário da vida política de um país ou região do mundo opera um conjunto de elementos da vida social de índole econômica, sociológica, das relações de forças em geral ou de caráter político geral. Na realidade, esse conjunto de elementos se apresenta como um todo, em uma espécie de síntese que configura a cada momento uma determinada conjuntura política com características próprias.

Como assinalamos acima, a política é o âmbito de condensação de um conjunto de determinações de classe, que tem como fundamento as relações materiais da sociedade (a economia). Porém, ainda que a política opere como síntese das determinações sociais no campo da política, o faz mediante uma série de movimentos que não admitem nenhuma leitura mecânica ou reducionista das coisas. Uma conjuntura política se ordena ao redor de circunstâncias de ordem econômica ou propriamente políticas (uma crise governamental, uma grande greve, o desencadeamento de uma guerra, etc.); não há nada mecânico nisso, além do fato real de que, em geral, uma modificação na econômica, cedo ou tarde, tende a operar modificações de conjunto. Isso ocorre na medida em que a economia é a base material a partir da qual se ergue todo o edifício social; se essa base sofre uma comoção, não há maneira de evitar que o resto do edifício a sinta. Porém, o que queremos destacar aqui é que as consequências políticas dessa comoção nunca serão automáticas. Pelo contrário, em muitos casos serão a resultante de suas combinações com as tendências da luta de classes precedentes, como observou agudamente Trotsky mais de uma vez.

Em todo caso, uma conjuntura política é um espaço de tempo relativamente limitado no qual os elementos que compõem a realidade econômica, política e ideológica se encontram ordenadas de determinada maneira, configurando as características proeminentes desse momento.

Daí se deriva outro aspecto: o fato de que as conjunturas podem ir variando, mesmo que não se produza uma mudança substancial dos elementos que compõem a totalidade da situação política. Apenas o fato desses elementos se ordenarem de uma maneira distinta já implica mudanças na resultante política total.

Esse mesmo alcance limitado de toda conjuntura, e o fato de que os elementos que a compõem podem variar ou não (ou varia o peso específico relativo de cada um deles em cada momento dado), é o que faz com que essa categoria de limitado alcance temporal remeta a outras escalas de tempo mais amplas: as situações, etapas, ciclos ou épocas da luta de classes das quais nos ocuparemos mais adiante.

Na hora de fazer política não apenas de conjunto, mas, como ocorre cotidianamente, em um sindicato ou fábrica, na faculdade ou em uma escola, a avaliação da circunstância que determinam o conflito deve ser parte do que fazer de todo militante. Toda ação política digna desse nome, em qualquer âmbito e de qualquer natureza, e ainda mais a ação política, opera sobre uma série de relações criadas que devem ser avaliadas da maneira mais cientifica e objetiva possível. Para esta avaliação, a compreensão da conjuntura é uma necessidade de primeira ordem para não atuar a cegas ou com uma orientação que, por não partir das determinações objetivas da realidade, impede realmente de transformar a realidade ou incidir sobre ela.

3.2 Épocas, etapas, ciclos e situações

O marxismo opera com escalas de tempo superpostas. Entre essas escalas de tempo pode-se passar das mais imediatas (como a de conjuntura) à de época, ou com outras intermediárias, como situações, etapas ou ciclos históricos. Recordemos aqui que a ordem lógica das coisas é exatamente o oposto: a definição mais geral é a de época ou período histórico, passando pela de etapa, ciclos ou situações e chegando a de conjuntura.

Não trata-se de uma apreciação mecânica ou formal dessas categorias, mas de entender como se combinam as dimensões temporais e espaciais, como se constitui uma síntese de ambas coordenadas, como se combinam as diferentes temporalidades (ou os distintos planos das relações de forças), das mais “históricas“ às mais conjunturais.

É necessário experiência para medir os distintos momentos políticos de uma maneira que não superestime suas potencialidades, aspectos e características; como se diz habitualmente na militância, não se impressionar nem em um sentido e nem em outro, por excessos ou por ausências, no que diz respeito às relações de força entre as classes.

É importante aqui ter em conta o conjunto das determinações de um período político concreto, que vai para além da conjuntura ou a manifestação mais imediata dos seus elementos. Conjunturas adversas podem ocorrer sem modificar o quadro mais de conjunto de una situação ou etapa política mais favorável e, portanto, estar chamada a se converter em um momento posterior (ainda que, no imediato, compreendê-la em toda sua especificidade é muito importante para não se equivocar na hora de formular uma política revolucionária). Isso porque as coisas adquirem concretização de conjuntura em conjuntura, as escalas temporais que determinam a realidade de longo, médio e curto prazo se superpõem, permitindo um determinado ordenamento das relações de forças.

Para além do dito anteriormente, existem transcendências (históricas, por assim dizer) em que determinada circunstância ou fator modifica o quadro de conjunto. Para medir as coisas em sua justa dimensão cabe ter presente esta superposição de temporalidades que penetra toda situação política para se compreender o real alcance da modificação ocorrida sob determinadas circunstâncias.

Marx falava de época histórica dando ao conceito um caráter fortemente estrutural vinculado ao ascenso e à agonia do capitalismo (ou qualquer outra formação econômico-social) como subproduto de determinada relação entre forças produtivas e relações de produção, onde as últimas acabavam se transformando em obstáculos ou camisa de força para o desenvolvimento das primeiras. Também  utilizou-se da categoria de “época da revolução socialista”, a partir da I Guerra Mundial em 1914, para dar conta do fato de que sob o capitalismo no último século as circunstâncias gerais estavam maduras para a luta pelo socialismo, isso vinculado ao amadurecimento do proletariado como classe. Nas circunstâncias particulares dos anos 1930, Trotsky foi ainda mais longe, afirmando que essas condições objetivas começavam a “apodrecer”.

Se temos acordo em que a categoria de época tem um peso “econômico-estrutural” maior (precisamente essa contradição entre forças produtivas e relações de produção que se coloca a partir de determinado momento em toda formação econômico-social), já quando nos remetemos a categoria de “ciclo político” ou “etapa” falamos das determinações ou do perfil político de todo um período. Por exemplo, está claro que a queda do Muro de Berlin pareceu abrir um ciclo político caracterizado pela ausência da revolução social (ainda, que ao mesmo tempo, desbloqueou historicamente seu ressurgimento no sentido socialista).

Quando falamos de ciclo político ou etapa podemos dar mais atenção a determinadas características políticas gerais de temporalidade longa e que identificam todo um período. Vejamos, a situação política ocupa um lugar intermediário entre ciclo, etapa e conjuntura. Quer dizer, a definição de situação se encontra em um lugar que não é o das determinações econômico-estruturais ou do ciclo político mais de conjunto, porém tampouco da conjuntura. Em todo caso, configura um momento fortemente marcado pelos elementos políticos de um determinado período (por relações de forças que vão marcar em um sentido ou outro um período que pode abarcar cerca de um ou dois anos, por exemplo).

Como exemplo, poderíamos falar do ciclo político que vivemos na América Latina desde o início do novo século, muito distinto ao do ciclo dos anos 1990, no qual, em vários países, suas situações nada têm a ver com as do momento de apogeu das rebeliões populares que marcaram países como Venezuela, Argentina ou Bolívia anos atrás. Ou a situação atualmente no mundo árabe, que vive um ciclo de conjunto de rebelião popular, porém os contrastes de país a país em suas cambiantes situações são profundos.

A questão, em todo caso, é não se confundir nem cair em esquematismos. Seja com essas categorias ou com outras, do que se trata é de capturar, apreciar em toda a sua determinada concretização, um momento político determinado de maneira a levar adiante uma política revolucionária adequada. E isso requer um olhar integral que capture todos os elementos em jogo e em sua interação; que consiga, em cada caso, compreender qual é o determinante principal (que não será sempre e necessariamente o econômico, pois apenas o é em última instância); e que, na hora de atuar, não perca de vista que todo recorte que fazemos de um determinado momento da realidade opera sempre em um contexto maior que fixa o limite das coisas. Porque, definitivamente, essa captura de momentos, essa caracterização da conjuntura ou situação na qual se vai atuar, é parte do ABC do que fazer político.

3.3 Crise orgânica e reabsorção das revoluções

Tentaremos agora aprofundar o tema introduzindo algumas das categorias de análise de grande riqueza, aliás, elaboradas pelo marxista italiano Antonio Gramsci. Gramsci foi um dos grandes revolucionários da tradição do marxismo revolucionário, o isolamento a que foi submetido fez com que não pudesse ter uma posição clara sobre a burocratização da ex-URSS e sobre a histórica batalha de León Trotsky contra ela (equivocadamente, tendeu a dar razão a Stalin em suas posições de “socialismo em um só pais”).5

Gramsci não compreendeu as posições de Trotsky, no que pese que no início dos anos 1930 defendeu as mesmas posições sobre a importância da frente única operária entre comunistas e socialdemocratas contra o fascismo (quando o stalinismo definia os segundos como “social-fascistas” e se negava a qualquer acordo com eles). O paradoxo do caso é que defendendo as mesmas posições que a do grande revolucionário russo, dedicou-se a polemizar erroneamente com Trotsky e sua teoria da revolução permanente, pois a via como “caduca” para os países da Europa ocidental. Para acrescentar confusões, temos que agregar a utilização e difusão reformista de seu pensamento, primeiro nas mãos do PCI (Partido Comunista Italiano) e logo depois pelos pensadores socialdemocratas. Um operativo que continua até nossos dias, agora desenvolvido pelos populistas de novo tipo que enfatizam principalmente o conceito de “nação” para cair em formulações como a de revolução por etapas.

O dito anteriormente, porém, não compromete a veia revolucionária de seu pensamento nem o valor dos seus ensinamentos. É imensa a riqueza de algumas de suas categorias de análise política e a densidade de sua elaboração sobre a política e os problemas de construção partidária. Gramsci era um dirigente de partido, o mais importante do PCI quando foi detido em 1928. A respeito disso, é interessante o estudo de sua luta para colocar em pé de guerra o PC italiano contra oportunistas, como Turani, e ultra esquerdistas, como Bordiga, e todo o arco-íris intermediário de posições.

Dentre as categorias gramscianas mais interessantes, queremos destacar principalmente duas: a de crise orgânica e a de revolução passiva, que acrescentam e contribuem para o arsenal de ferramentas de análise política do marxismo revolucionário (muitas vezes, lamentavelmente, empregadas de maneira simplista e por fora da riqueza dos processos históricos que lhe deram origem). Somam-se a elas categorias como: situação revolucionária, crise revolucionária, vazio de poder, crise de direção revolucionária, trabalhadas por Lenin, Trotsky ou Rosa Luxemburgo (essa última, em particular, contribuiu com suas categorias de greve de massas e outras relacionadas com a experiência da ação desde baixo da classe trabalhadora). Essas categorias se formaram a partir da riqueza do período histórico em que viveram, que foi marcado pela revolução socialista no sentido mais clássico do termo.

Voltando a Gramsci, com crise orgânica, referia-se a uma situação não conjuntural, na qual está colocada a questão da dominação de fato da classe exploradora. Uma crise orgânica remete ao fato de que, tal como está organizado, o regime de acumulação, o regime político e a forma do Estado que lhes são próprias, já não são suficientes, e  é necessário ir a um novo ponto de equilíbrio, em um sentido ou outro, o que se resolve apenas no marco e por intermédio de uma crise. Observa-se então que a categoria funde tanto o plano econômico estrutural como o especificamente político em apenas um. Trata-se de um “todo sintético” cujo âmbito temporal poderia se colocar dentro do de etapa ou ciclo histórico, porém, diz respeito a mais do que determinações simplesmente “políticas”, ou seja, a um ponto intermediário, político-estrutural. Exemplos que combinam uma aguda crise econômica com o fim do velho sistema de partidos (ou da forma do Estado, isso é, o regime político), poderiam ser hoje os casos do Egito, Grécia ou Espanha, ou, em 2001, a situação vivida na Argentina com o “Fora todos”.

Por outro lado, também, é própria de Gramsci a aguda categoria de revolução passiva, que se dá quando, desde cima, desde o poder do Estado ou o governo, um determinado grupo explorador se apropria das bandeiras de uma revolução ou rebelião popular para esvaziá-la de conteúdo e “resolver” as demandas de maneira distorcida. O exemplo clássico de Gramsci de revolução passiva é a que acabou levando a nunca totalmente resolvida unificação italiana entre o norte industrial e o sul camponês (Risorgimento). A isso se referia Gramsci como “pacificação” da revolução: o que na tradição de nossa corrente temos chamado, num igual sentido, reabsorção dos processos de rebelião popular.

O acima citado ilustra a riqueza das categorias de análise do marxismo, porém agregamos um alerta: estas definições nunca poderiam aportar desde fora dos processos mesmos, ou de maneira mecânica e abstrata. Devem-se encher de conteúdo e apenas podem adquirir toda a sua vitalidade quando são expressões de uma apropriação realmente substantiva e não-formal das múltiplas determinações e conexões de todo processo real. Na ausência disso, apenas são fórmulas mortas que nada podem explicar. Assim, é preferível uma descrição séria dos processos do que aplicar-lhes definições de maneira não-orgânica, desde fora, que nada podem explicar e que forçam a realidade a coincidir com o esquema prévio. 

3.4 Crise revolucionária e organismos de duplo poder

Falta desenvolver as categorias de análise vinculadas aos momentos mais extremos, quando o que se coloca em jogo é o problema do poder. Nesse caso, abre-se uma “crise revolucionária”, um momento em que há uma perda de controle da situação por parte da burguesia (ao que também se dá o nome de “vazio de poder’). Essas circunstâncias agudas dão lugar, em muitos casos, a momentos em que “o poder está nas ruas”, no sentido de que os explorados e oprimidos, com suas mobilizações, são os que dão a tônica da realidade. No entanto, isso não basta. Não basta que o poder “esteja nas ruas”, ainda que seja uma pré-condição para ir mais adiante. Porque uma situação assim, pouco orgânica, sempre acaba sendo reabsorvida se não se cristaliza em organismos ou instituições que representem realmente esse poder alternativo. Ir além é colocar, no calor do desenvolvimento da crise, a necessidade de colocar em pé organismos alternativos aos do Estado capitalista. Ocorre muitas vezes que o enfraquecimento do Estado no momento de administrar os assuntos – um subproduto da aguda crise governamental e das instituições do regime de dominação -, circunstâncias nas quais não se resolvem os problemas, dá lugar ao surgimento, empiricamente e por necessidade, de organismos populares que desde baixo tomam em suas mãos os assuntos mais graves e urgentes. Isso pode ocorrer a nível dos lugares de trabalho (comitês de greve) e a coordenação destes, e também em escala municipal, sobre uma base mais territorial. A generalização destas experiências e seu eventual amadurecimento pode dar origem a organismos que vão se centralizando regional e nacionalmente, inclusive articulando o trabalhista e o territorial. Quando isso ocorre, começa a levantar-se o duplo poder.

Este processo tem muitas vezes uma dinâmica mais ou menos objetiva. Porém, é imprescindível que os socialistas revolucionários o alentem: essa é a obrigação número um, estratégica, nas crises revolucionárias. O componente principal e decisivo da política revolucionária nessas circunstâncias é pensar como resolver o problema do poder a partir das novas organizações de massas em luta. Porque, a tarefa dos socialistas revolucionários é generalizar o que as próprias massas estão criando, porém, é necessário antecipar-se, colocando e explicando a necessidade desse tipo de organismo e tomando a iniciativa de criá-los onde haja condições.

Outro elemento central é o conteúdo de classe dessa orientação: os socialistas revolucionários tratam de dar peso central à classe operária nesses organismos. Tratamos de que o elemento estrutural, orgânico, dos lugares de trabalho, combinem-se com o territorial, amplie-se ao território, porém sem perder de vista a nossa estratégia de que a classe operária hegemonize a aliança das classes exploradas e oprimidas que disputam o poder.

Quando inicia a complexa dinâmica de construir os organismos de poder alternativos, mais do que um mero “vazio de poder”, o que começa a se configurar é realmente uma dualidade de poderes, como ocorreu classicamente em várias das revoluções da primeira metade do século passado, tratando-se, nesse caso, de organismos de poder alternativos da classe operária como foram os Sovietes na Revolução Russa, os Conselhos Operários no levantamento de 1919 e 1920 dos operários de Turin e norte da Itália, as formas soviéticas emergentes na Alemanha desses anos e tantas outras experiências desse período.

Essa “dualidade de poderes” pode se expressar por meio de organismos de duplo poder, ainda que também por meio de formações guerrilheira ou outro tipo de organizações, como ocorreu nas revoluções do segundo pós-guerra. Nesse caso, o problema foi que não tratou-se de organismos operários caracterizados por serem lugares da democracia de base ou socialista, com o agravante, então, de que não poderiam originar ditaduras proletárias, porque não tratava-se de organismos de democracia de base operária (e tampouco camponeses, coisa sobre a qual sabe-se pouco, mas do enquadramento burocrático das massas).

Para finalizar, ainda que seja obrigação intervir em todo processo revolucionário tal como é, a estratégia do socialismo revolucionário, confirmada por todos os acontecimentos do século passado, é construir organismos de poder alternativo com centralidade operária e caracterizados pela democracia socialista. Vinculado com os aspectos da estratégia revolucionária e não tanto com a mera categoria da análise, trataremos abaixo da ciência e arte da insurreição.

3.5 A importância da caracterização

Continuando com os problemas da análise política. No jargão militante, um conceito corriqueiro é o de caracterização, categoria que se nutre de todos os conceitos apontados acima, porém que é ao mesmo tempo mais geral e mais específico. Porque por caracterização se refere a qualquer análise de um fenômeno que tenha a ver com a ação política: uma caracterização é a definição que se tem sobre um determinado processo, organização ou, inclusive, pessoa. Quando se fala de caracterização, trata-se precisamente do esclarecimento do fenômeno sobre o qual refere-se. Uma caracterização é uma análise, uma definição sobre o fenômeno, e a partir dela se pode realizar, de maneira cientifica e não empírica, uma ação sobre o fenômeno dado.

A caracterização tem uma série de elementos que a determinam: poderíamos dizer que é, ao mesmo tempo, analítica e sintética. Porque, por um lado, pode originar uma descrição, uma análise dos componentes do fenômeno em questão. Porém, ao mesmo tempo, caracterização implica síntese, quer dizer, uma definição e não uma lista de elementos. Por isso que a caracterização é um instrumento chave da ação política, já que permite levá-la a cabo não de maneira empírica ou irreflexiva, mas da forma mais cientifica e precisa possível.

Em síntese: a partir das categorias apontadas acima, coloca-se a questão geral e básica da ação militante, que é partir de uma caracterização, a mais ajustada possível, do cenário ou fenômenos sobre o qual se irá atuar para melhorar a possibilidade de acertar o alvo e ganhar a batalha que se aproxima.

4. Programa, princípios e teoria da revolução socialista

Dos elementos de compreensão da realidade e das relações de força entre as classes, devemos passar agora a um plano mais vinculado à ação, deixando de lado assim a mera análise. Nos deteremos em uma série de aspectos da atividade militante que tendem a estabelecer uma espécie de ponte entre a realidade dada e os objetivos finais por meio da ação sobre ela para transformá-la (porque, como dizia Marx, os filósofos não têm feito outra coisa do que interpretar o mundo e do que se trata é de transformá-lo).

Aqui entra a questão do programa. Em termos muito gerais, um programa é um conjunto de tarefas que estão colocadas para resolver um determinado problema, de qualquer tipo que seja. Claro que um programa político é uma espécie de síntese dos objetivos que se dá uma determinada organização – um partido, movimento ou o instrumento organizativo que seja – para transformar o estado de coisas de uma sociedade.

Um programa político tem dois planos que se combinam intimamente, porém devem ser tomados em separado. Por uma parte, todo programa supõe uma análise de uma determinada realidade; não pode se formular no ar, no vazio ou arbitrariamente: necessariamente dever partir do terreno real dos problemas que queremos resolver.

Porém, o programa tem um segundo aspecto que poderíamos definir como mais “subjetivo” ou “finalista” (no sentido dos próprios fins, ainda que necessariamente se desprenda das determinações objetivas e do que é necessário para transformar a realidade), e que determina o tipo de resposta que se dá aos problemas. Claro que dá própria análise, cientificamente, se desprendera a radicalidade das respostas necessárias. Porém, isso segue estando, todavia, no plano objetivo das coisas. O elemento “subjetivo” é que assumir um programa já é uma ação: um chamado a ação sob determinados parâmetros. “Apenas o que quer fortemente identifica os elementos necessários para a realização da sua vontade”, dizia agudamente Gramsci. Porque um programa que nada tenha a ver com a ação transformadora, revolucionária sobre a realidade, não é tal, não é um ponto de apoio para a ação sobre a realidade. Em todo caso, não é um programa revolucionário: será outra coisa, reformista ou conservador.

Porém, antes de continuar com a problemática do programa, anterior a isso e relativo aos fundamentos mais gerais da política revolucionária, estão os princípios. Adiantamo-nos a dizer que os princípios são uma série de critérios, aspectos profundos, estruturais e gerais, aplicáveis à generalidade da ação política revolucionária, e que funcionam como linhas ou parâmetros mais de conjunto da ação socialista. Dizia Nahuel Moreno que os princípios são poucos, não múltiplos, e são muito claros. Desprendem-se da própria formação das classes e da sociedade e se vinculam com os pressupostos que estão necessariamente colocados para acabar com elas.

Por exemplo: é de princípio para os socialistas revolucionários que a classe operária não se misture em nenhum partido e, muito menos, governo em comum com a burguesia. É um princípio simples e se chama defesa da independência política dos trabalhadores. É um princípio socialista que estes devam se organizar politicamente com instrumentos próprios, de maneira separada da classe exploradora. É de princípio, também, o apoio incondicional a toda luta dos trabalhadores, dos explorados e oprimidos, dirija quem dirija. É de princípio que nessa luta estejamos sempre do lado dos explorados e oprimidos, nunca do lado dos exploradores e opressores.

Também é de princípio que em toda luta sempre impulsionemos a livre autodeterminação dos trabalhadores, que para além de todas as considerações táticas que se possa fazer, o que nos caracteriza é a luta pela ação cada vez mais autodeterminada da classe operária, e que estamos contra qualquer forma de substituismo social da classe operária na revolução socialista. Trata-se de algo que, depois das experiências do século passado, para nossa corrente é axiomático. Por isso mesmo, os socialistas revolucionários estão contra a burocracia sindical, agente dentro do movimento operário da burguesia.

Claro que existem alguns princípios mais; por exemplo: nossa perspectiva internacionalista, de socialismo internacional, contra o “socialismo em um só país” (ou formulações nacionalistas do tipo “socialismo americano” em voga em algumas correntes latinoamericanistas). Assim, os princípios não são muitos, mas poucos critérios gerais cuja infração compromete irremediavelmente qualquer política que se pretenda revolucionária.

Por isso mesmo, os princípios não podem ser nunca moeda de troca; desprendem-se das determinações mais gerais e históricas da luta de classes contra o capitalismo e pelo socialismo autêntico, e sua infração questiona o caráter revolucionário da política e organização que a comete, justamente porque questiona os fundamentos mesmos para que essa ação possa ser realmente transformadora. O mesmo cabe esclarecer sobre outro problema principista: a atitude em relação ao parlamentarismo. Participamos obrigatoriamente das eleições e do próprio parlamento, porque é a única maneira de desautorizá-los diante das massas. Nisso não pode haver nenhum infantilismo, sob pena de não poder disputar politicamente as grandes massas. Porém, o fazemos de maneira subordinada ao incentivo à ação direta dos trabalhadores. E trabalhamos na perspectiva da sua ação direta e organização independente, de seus próprios organismos de luta e poder, da democracia direta dos explorados e oprimidos em oposição às formas representativas da democracia burguesa. Porém, isso nos leva diretamente ao debate de reforma e revolução que iremos ver em seguida.

4.1 Reforma e revolução. O surgimento histórico da classe operária

Em primeiro lugar temos que dizer que todo programa se desprende da formulação de uma determinada teoria da revolução, que não é outra coisa do que a análise das condições necessárias para a transformação socialista da sociedade, as forças motrizes para tal efeito. Daí que formulações como “reforma ou revolução” e “revolução por etapas ou revolução permanente” tenham surgido do caldeirão dessa batalha estratégica: o debate sobre as condições e vias para transformar a sociedade capitalista.

O século XIX foi contraditório em relação as possibilidades de transformação social a partir da classe operária, porque, ainda que de maneira deformada e com uma série de inércias, a burguesia conseguiu resolver um conjunto de tarefas históricas. A ideia da “revolução desde cima” surge, justamente, sobre esse cenário histórico, ainda que esse caráter revolucionário da burguesia foi se esgotando com o desenvolvimento histórico da classe operária, o que lhe limitou cada vez mais as margens de manobra. Daí que a burguesia foi se transmutando em uma força cada vez mais conservadora e reacionária; uma classe que uma vez no poder passa a ter verdadeiro terror da classe operária. No entanto, nesse século pode-se verificar a unificação capitalista industrial dos EUA, a guerra civil sob a direção de Lincoln (que acabou em grande medida com o escravagismo e teve indícios de uma verdadeira “revolução social”) ou a unificação alemã a cargo de Bismarck. No entanto, outras tarefas históricas nas mãos da burguesia não foram resolvidas de maneira tão categórica, como foi o caso do Risorgimento italiano tão bem analisado por Gramsci, para não falar dos países coloniais ou semicoloniais que têm até hoje um conjunto de tarefas nacionais e democráticas pendentes. 

Por isso, no século XX as coisas mudam completamente. O século desponta com a Revolução de 1905 na Rússia que, como assinalou Trotsky, mostrava que o século XIX “não tinha passado em vão”, permitiu o surgimento histórico da classe operária e, portanto, da atualidade da revolução socialista. A burguesia agora feita imperialista se transmutava em uma força abertamente contrarrevolucionária, que não hesitou em provocar o banho de sangue que foi o século XX. Entre essas verdadeiras regressões históricas impostas pelo capitalismo no século passado está o caso do nazismo e as duas guerras mundiais, para não falar da bomba atômica e a parte que coube nessa história à burocratização da ex-URSS6. Hoje mesmo, a consigna de socialismo ou barbárie se atualiza em um mundo que segue armado até os dentes e não descarta a eventualidade de novos conflitos bélicos na medida em que a crise econômica mundial não se resolva.

O contexto de época ocorre porque a partir de 1914 as tendências à regressão capitalista transformavam-se em fato, e se é verdade que o desenvolvimento das forças produtivas seguiu em frente (não se verificou uma regressão absoluta das forças produtivas como muitas vezes acreditou-se, mas sim um desenvolvimento contraditório entre produtivas e regressivas), isso ocorreu como parte de uma época de decadência relativa no sentido histórico do termo: a época de crise, guerras e revoluções da qual estamos falando pode estar reabrindo-se com a atual crise mundial.

O último aspecto coloca limites ao reformismo. Não que não siga ocorrendo reformas. Porém, trata-se de um reformismo de muito mais curto alcance, sem perspectivas históricas, para não dizer que ditas reformas, quando ocorrem, são feitas em um contexto no qual a tônica global das últimas décadas do capitalismo neoliberal tem sido de regressão e não de progresso.

Foi sobre esse contexto histórico aberto pela I Guerra Mundial e a Revolução de Outubro que se baseou a teoria da revolução permanente como teoria da necessidade e possibilidade da revolução socialista para transformar a sociedade. Daí a oposição entre a revolução por etapas (reformista no que diz respeito a transformação do sistema) e a revolução permanente, que não reconhece a possibilidade de nenhuma etapa intermediária progressiva de transformação social nas condições em que a “”progressividade” do sistema está historicamente questionada há mais de um século7. Apesar do sistema se caracterizar por constantes transformações, o progressivo destas transformações, sua possibilidade de resolver os problemas estruturais em um sentido progressista para o conjunto da humanidade, já não estão na ordem do dia. Pelo contrário, a alternativa é mais do que nunca socialismo ou a barbárie, dado o perigo para o desenvolvimento das forças produtivas e a sã reprodução da natureza, manter o capitalismo mundializado.8

4.2 O programa das reivindicações transitórias

A partir do século XX se estabelece uma dialética particular em relação ao programa revolucionário. O capitalismo deixou de ser um regime progressivo e se transformou em um regime regressivo, por essa razão é muito difícil arrancar dele conquistas históricas ou que as medidas tomadas não signifiquem um passo atrás. Por essa razão, o programa deve mudar ou ser formulado de maneira diferente.

Não que exclua a luta por reformas, de maneira alguma é assim, sobretudo porque toda verdadeira reforma só pode ser subproduto de uma luta revolucionária da classe operária9. Porém, em todo caso, o problema é desde que perspectiva encaramos a luta por reformas. Porque se é muito difícil arrancar conquistas históricas da classe capitalista, e se cada conquista que obtemos na luta está submetida a uma forte provisoriedade (enquanto o sistema capitalista não tenha sido varrido), então necessariamente cada conquista deve estar conectada a outra até que possamos derrubar a ordem social. E isso coloca já outra matriz ou especificidade: a partir do século XX, em essência, sem derrubar o sistema não há como resolver de maneira consequente e duradoura nenhuma reivindicação. Daí que a perspectiva anticapitalista se coloque não por capricho, mas sim por uma profunda necessidade: não ver minadas ou esvaziadas as conquistas logo após terem sido obtidas.

É assim, então, que tem sua origem o sistema de reivindicações transitórias, vinculado de maneira orgânica a uma teoria da revolução: a teoria da revolução permanente. Quem sistematizou ambas concepções foi León Trotsky, o mais contemporâneo dos marxistas revolucionários da primeira metade do século passado, a quem coube encabeçar a batalha contra o stalinismo e que viveu o início da II Guerra Mundial.

Esse sistema de reivindicações transitórias, esse programa de transição, está presidido por uma lógica: cada reivindicação deve estar inserida em um sistema, estar logicamente ligada a uma superior, estar pensada e assumida como parte de um processo de mobilização permanente, em que a partir de uma conquista imediatamente se coloque outra superior, isso pela necessidade de não retroceder ou ser esvaziada de conteúdo a reivindicação recentemente obtida.

Nada disso permite dizer que para Trotsky apenas é válida a luta pelo objetivo final. Trata-se de uma caricatura de seu pensamento, uma vulgarização na qual caiu, lamentavelmente, o próprio Gramsci, que nunca entendeu a teoria da revolução permanente. Compreendeu-a com uma teoria da “ofensiva permanente” e que, no terreno da doutrina militar, essa doutrina de Trotsky era “inútil” e “ridícula”. Desse modo, na realidade, Gramsci estava validando sem querer uma interpretação reformista da sua própria elaboração como assinala corretamente o marxista inglês Perry Anderson. Segundo Anderson, Gramsci teorizou a ideia de que a “guerra de manobras” correspondia ao Oriente “atrasado” (o assalto ao poder do tipo Revolução Russa de 1917), no entanto, o mais “avançado” Ocidente (como Itália), correspondia mais uma “guerra de posições”. Algo que foi interpretado pelos reformistas como uma orientação que consistia na luta dentro das instituições do Estado e do regime capitalista.

Na verdade, em Trotsky o programa está intimamente vinculado à teoria da revolução. E essa teoria da revolução, a partir do século XX, afirma que a obtenção consequente das tarefas democráticas mínimas, econômicas ou nacionais não pode ser conquistada nos marcos do sistema, mas como parte da revolução socialista nacional e internacional, encabeçada pela classe operária.

Isso em hipótese alguma nega, na verdade afirma, que a luta sempre começa pelas reivindicações mais elementares: por isso se diz “sistema de reivindicações” que deve partir das mais elementares.

No entanto, no caso de conquistá-las, como estabelecer a ponte com as seguintes? No fundo, é simples, já que é algo comum entre os grandes socialistas revolucionários do começo do século XX (embora hoje, no geral, perdeu-se de vista pelo caráter estreitamente reivindicatório da esquerda): as maiores conquistas sempre são em matéria de consciência e organização independente. O suporte material são as conquistas obtidas em matéria de salário ou condições de trabalho, por exemplo. Porém, em última instância, a chave de tudo é quanto a luta deixou em matéria de politização dos trabalhadores, de sua organização sindical e política independente e democrática. Trata-se de uma chave estratégica que a maioria das correntes da esquerda revolucionária, surpreendentemente, geralmente perdem de vista, porém é uma preocupação característica da nossa corrente, que se distingue por apostar que a classe operária e sua vanguarda sejam atores reais da revolução. Essa chave estratégica inspirou todo o clássico debate de Rosa Luxemburgo com Karl Kautsky sobre a greve de massas.10

Disso advém outra conclusão, vinculada a construção do partido: intervir no conflito operário e não captar, aproximar operários, não construir o partido no calor da sua intervenção, é sindicalismo e nada mais do que sindicalismo (é como não fazer avançar a politização dos companheiros na luta). Se é instrumentalismo atender a essa construção partidária se desvinculando dos interesses gerais da luta, algo que vemos com frequência na esquerda, um erro simétrico, o que muitas vezes comete essa mesma esquerda, é intervir de maneira sindicalista, isso é, levantando apenas os interesses imediatos da luta e não colocando nunca no centro os interesses gerais da classe. Voltaremos sobre isso mais adiante. 

Essa intervenção sindicalista (este “economicismo”, como diria Lênin), é também uma das características do reformismo, do autonomismo e do populismo de “esquerda” tão em voga hoje, e que tem como uma de suas marcas que toda luta econômica seria, por si mesma, “política”. Nisso, é interessante voltar ao O que fazer?, que em muitos aspectos parece escrito para os problemas de hoje. Por sua parte, os teóricos do “o que não fazer”, autoproclamando-se “atualizadores do marxismo”, na realidade, não fazem mais do que voltar a muitas das posições economicistas que também podem observar-se, por exemplo, no Korsch dos anos 1930.11

É precisamente este enfoque que busca evitar a concepção do programa de reivindicações transitórias: apesar das relações de forças variarem, o que dá lugar a variáveis e concessões em distintos momentos, o período histórico do capitalismo em que vivemos impõe o fato de que não pode haver nenhuma resolução consequente para as tarefas colocadas se não for sobre a base de uma perspectiva anticapitalista. E, poderíamos agregar, à luz das revoluções do segundo pós-guerra, essa perspectiva anticapitalista, para dar lugar a uma resolução consequente e duradoura das tarefas, deve se concretizar como uma revolução propriamente socialista que dê poder a classe operária. Nenhuma forma de substituismo social pode resolver o problema, tal como foi demonstrado pela experiência histórica do século XX (ver a respeito a polêmica que desenvolvemos anos atrás com Valério Arcary: “O recurso ao substituismo social”. Socialismo o Babarie 21)

4.3 Forma e conteúdo das consignas

Para começar, a ação política nunca se reduz a “despejar todo programa na cabeça” dos trabalhadores. O programa apenas estabelece o critério mais geral da ação. Porém, para uma circunstância concreta não se aplica todo o programa, apenas aqueles pontos correspondentes a ela, que apesar de fazer parte de um todo orgânico com o conjunto do programa, diz respeito a uma situação específica. 

As reivindicações que dizem respeito a cada circunstância concreta são as que dão conteúdo à política. Expressam-se, em geral, sob a forma de consignas, quer dizer pontos específicos que colocam-se como resposta à situação em questão. Essas mesmas consignas, eventualmente, serão agitadas ou propagandeadas no momento da ação política.

Porém, as consignas têm outra determinação adicional. Pelo seu conteúdo, devem ter a materialidade de ser uma resposta revolucionária adequada ao problema que está posto. Porém, por sua forma, apenas podem partir do nível de consciência do setor em que se intervém. Essa forma não é secundária: se a consigna não parte do nível de consciência real, corre o risco de se transformar em uma abstração, em uma proposta incapaz de adquirir forma material, terrenalidade, de ser tomada em suas mãos pelos trabalhadores para ser levada adiante.

Inclusive, por seu próprio conteúdo, as reivindicações possuem o caráter transitório que assinalamos acima: não se pode dar a todo problema a resposta “ditadura do proletariado” (característica de algumas seitas). Atuar assim não é formular um programa de transição, mas responder aos trabalhadores com o programa máximo e de maneira incompreensível. Esse “maximalismo”, que hoje está na moda, era uma espécie de resposta mecânica ao oportunismo característico da velha socialdemocracia no final do século XIX, com sua separação do programa mínimo (para todos os dias) e máximo (para dias de festa).

Pelo contrário, o método do programa de transição é ir formulando um conjunto de consignas, uma ligada a outra, que por sua lógica devem conduzir à compreensão da necessidade da revolução socialista. Este programa de transição e suas consignas devem ser formuladas de tal maneira que partam dos problemas reais e do nível de consciência real dos trabalhadores para que possam ser compreendidos por eles.

Tampouco, trata-se da esquerda revolucionária “inventar” as consignas e as apresentar “desde fora” aos explorados e oprimidos. Na maioria das vezes as tarefas se revelam por si mesmas no desdobramento dos fatos. Não faz falta “inventar” nada a respeito, mas tomar as reivindicações, as necessidades que colocam os trabalhadores em suas lutas e, em todo caso, generalizá-las, dar-lhes uma perspectiva de conjunto; o que aportam os revolucionários, o que aporta o partido é, justamente, essa generalização e a conexão de cada reivindicação (que habitualmente aparece como isolada, separada) com a totalidade das lutas pela transformação social, ou, o que é o mesmo, como necessidade de elevá-la ao plano político. Aqui, como estabeleceu classicamente Lênin, é imprescindível o trabalho do partido revolucionário. Porque para a classe trabalhadora é habitualmente muito difícil passar do nível das reivindicações econômicas mínimas ou sindicais às reivindicações políticas de conjunto, as que, definitivamente, apontam para o poder político da classe operária.

Recapitulando, as reivindicações partem das necessidades e tarefas mais urgentes e devem se articular a um todo orgânico que aponte para o poder proletário. Porém, ao mesmo tempo, estas reivindicações devem ser formuladas de maneira que partam das reivindicações próprias das massas trabalhadoras, ou devem ser formuladas de maneira que sejam compreensíveis, de acordo com o nível de consciência real dos trabalhadores.

Sobre disso, uma confusão que deve ser evitada é dizer que o conteúdo das reivindicações deve se ajustar ao nível de consciência. Isso seria puro oportunismo, como explicava Nahuel Moreno em um folheto do começo dos anos 1980 que segue sendo atual, A traição da OCI. Porque, pelo seu conteúdo, as consignas devem significar sempre uma resposta revolucionária e real ao problema materialmente colocado; o que varia em cada caso é a maneira de se formular, e a esse aspecto, o da formulação, é que está submetido ao nível da consciência.

Vejamos um exemplo. Sob o governo de frente popular, um governo de conciliação de classe, a frente do executivo estão organizações do movimento de massas. É evidente que o movimento de massas o considerará seu governo, confiará nele, quando, na realidade, este governo não é realmente seu, mas está a serviço do poder para melhor gestar os interesses capitalistas em perigo. Desta forma, faremos reivindicações a dito governo tendo em conta as expectativas que as massas depositam nele. Pode ser pela via de exigências, ou propostas do tipo “nossa organização não confia no governo, porém como a maioria dos trabalhadores e camponeses confiam, propomos que exijam do governo tais ou quais reivindicações”. Mas, no seu conteúdo, essas reivindicações devem responder aos problemas reais e questionar a capacidade do governo – que não quer ir além do capitalismo – de resolvê-las; desta maneira, ajudamos as massas trabalhadoras a fazerem a experiência com ele.

Este é o modo revolucionário de formular o problema. A maneira reformista é não exigir do governo “coisas que não pode resolver”, “não aparecer sectários porque as massas confiam nele” ou, inclusive, porque isso “seria fazer o jogo da direita”. Trata-se de formular apenas as demandas que o governo possa satisfazer para não deixar em evidência seus limites reformistas. Mais ainda: há que “apoiar o governo de frente popular em toda medida ‘progressiva’ que tome”, com o que, definitivamente, hipoteca-se a perspectiva independente com o argumento de que outro caminho nos separaria das massas que confiam no governo.

Isso é oportunismo e nada mais, é a posição atual de todo um conjunto de correntes na América Latina diante de governos como Chávez, Morales e do Kirchenerismo. Assim, reeditam todos os pontos do “socialismo nacional” do século passado: suas posições de “apoio crítico” e “latinoamericanismos”, de renúncia à independência política, formularam-se classicamente nos governos de Perón, Cárdenas, Paz Estensoro, o movimento de Haya de la Torre no Peru, etc.

Aqui, a política, não apenas por sua forma, mas por seu conteúdo, consiste em apoiar esses governos capitalistas, quer dizer, o oposto de uma política revolucionária. E isso ocorre simplesmente em função de formular um programa, uma política e consignas que não partem das necessidades reais, e a partir delas ter em conta o nível de consciência das massas, mas pelo contrário, apenas têm em conta o nível de consciência, sacrificando a resposta materialista revolucionária necessária para resolver os problemas, e que conduz onde esses governos não querem ir: na superação do capitalismo, para a revolução socialista e o poder da classe operária. 

4.4 Teoria da revolução e teoria da transição ao socialismo

O programa da revolução socialista inclui as determinações e características da transição ao socialismo quando a classe operária toma o poder. Da mesma forma que a teoria da revolução, a da transição é profundamente internacionalista. Inevitavelmente, em qualquer país onde se faça uma revolução, as limitações e estreitezas serão imensas, e o processo de transição nesse país será parte orgânica e sempre subordinada à força da revolução internacional, do impacto sobre os principais países do globo, da tarefa de subordinar as relações de Estado à incondicional luta de classes como ponto de apoio principal do governo revolucionário.  

A teoria da transição deve ter três pontos de referência. O primeiro, já apontado, é o incentivo à luta de classes internacional. O segundo, ao poder da classe operária. Não há nenhuma possibilidade de perdurar uma ditadura “burocrática” do proletariado. A ditadura do proletariado é mais ampla democracia socialista possível em relação à classe operária e o poder dessa mesma classe operária por meio de seus organismos, programa e partidos.

O desenvolvimento do poder da classe operária como fato político (e não apenas social) enseja ao Estado o caráter de Estado operário. Isso nos leva à terceira condição. O proletariado no poder organiza a economia da transição sobre a base de três reguladores: a democracia operária, a planificação socialista e o mercado. A transição, para ir a um bom termo, implica a combinação dialética destes três reguladores, mecanismos que se diferenciam categoricamente tanto dos modelos do falso “socialismo de mercado”, como do igualmente falso caminho da “economia de comando”, onde o que manda é apenas a planificação da burocracia, depois de ter liquidado toda tentativa de democracia operária, depois busca livrar-se do necessário controle de mercado e dos consumidores.

A classe operária no poder nos remete à primeira condição: a expansão da revolução mundial, não apenas pelas óbvias razões políticas, mas inclusive pelas econômicas: a obra da transição sempre será inevitavelmente limitada (independentemente se consegue avançar) ao desenvolvimento das forças produtivas; um país atrasado e, consequentemente, isolado, sempre terá pouca margem de manobra. Esse desenvolvimento exigirá cada vez mais relação com o mercado mundial, algo que está na dialética das coisas (desde a necessidade de crescentes importações de meios de produção às exportações dos produtos internacionalmente competitivos).

A teoria da revolução e da transição liga de forma muito intima a classe operária efetivamente no poder e o desenvolvimento internacional da revolução como condições absolutas para a transição ao socialismo. Essa conclusão, por simples e contundente que pareça, não é patrimônio comum do movimento trotskista, que em geral ainda não conseguiu ajustar conta com as concepções objetivistas e substituistas que o marcaram nas décadas posteriores à II Guerra Mundial. 

5. Estratégia e tática, ou como aprender a lutar

Estabelecidos os fins e o programa, faltam os meios para chegar a eles; aqui entra em cena a estratégia – que apenas pode se estabelecer a partir de uma teoria da revolução – e as táticas que são parte funcionais a essa estratégia. Já nos referimos à relação entre a teoria da revolução e o programa. Agora nos dedicaremos a uma abordagem mais geral das relações entre estratégia e tática, a partir da definição que dava Trotsky em Uma escola de estratégia revolucionária em que a arte da tática e da estratégia é a arte da luta revolucionária, a arte de aprender a lutar e ganhar. É uma arte que não cai do céu, que pode ser aprendida apenas pela experiência, pela crítica e a autocrítica das lutas anteriores; uma arte que as novas gerações, sem experiência acumulada, dever tratar de absorver tentando queimar etapas, se possível for.

5.1 Manda a estratégia

A diferença entre estratégia e tática é simples: estratégia é a linha diretriz que rege o conjunto da ação política. No caso da guerra, a estratégia é o plano de batalha de conjunto que supõe toda uma série de batalhas específicas, porém cuja resultante deve ser ganhar a guerra destruindo o exército inimigo (ou deixando-o sem condições de continuar o combate). Disse Clausewitz: “A estratégia é a utilização da batalha para chegar ao objetivo da guerra”. No terreno da política revolucionária, a estratégia é o conjunto dos passos que iremos dar para chegar ao objetivo da revolução socialista. Este é o sentido mais geral do termo, porém também se pode falar da estratégia em âmbitos mais específicos, como, por exemplo, a estratégia que diz respeito à luta pela reorganização independente do movimento operário, etc. Nesse sentido, equivale ao temo “objetivo geral”. 

De outra forma, tática é o plano da atividade que define os passos ou medidas a serem tomadas para cumprir tal estratégia. Entre tática e estratégia há uma relação de meios e fins de maneira tal que deve haver uma confluência entre ambas.

No arsenal do marxismo revolucionário há um conjunto de critérios táticos clássicos. Por exemplo, em relação à burocracia sindical e o reformismo estão as táticas da unidade de ação, as exigências, as denúncias, que se combinam com o critério estratégico que deve presidir toda política revolucionária: a organização independente. Em breve desenvolveremos isso; agora insistamos que por tática entendemos uma série de meios da ação política que levam aos objetivos estratégicos.

Porém, voltemos ao momento da estratégia, do ordenamento dos passos que conduzam ao objetivo. No caso da política revolucionária, o sentido geral é, como dissemos, o objetivo de conduzir todas as lutas na perspectiva da revolução socialista, da transformação revolucionária da sociedade e, mais concretamente, de aprender a impor-se, de aprender a lutar e ganhar destroçando a vontade do inimigo. De certa maneira, tática e estratégia remetem ao mesmo debate de reforma ou revolução. Porque a cisão de ambos planos ou a hierarquização dos momentos puramente táticos pode apenas significar concentrar-se nos meios perdendo de vista os fins, ou fazer dos meios um fim em si (quer dizer, uma recaída oportunista). Pelo contrário, na tradição do marxismo revolucionário, os meios ou reformas obtidas são subprodutos da luta revolucionária e apenas momentos de uma luta dirigida e encaminhada estrategicamente na perspectiva da revolução social.

O que manda na política revolucionária é a estratégia da revolução. Em oposição, no reformismo o que manda são os momentos parciais (ainda que essa também seja uma estratégia, a reformista). Os momentos parciais se transformam em fins em si mesmos, de maneira fragmentada e independente uns dos outros, sem uma perspectiva transformadora revolucionária geral.

Se na guerra cada batalha dever ser inserida na perspectiva geral, essa é a “estratégia de guerra”, o mesmo ocorre na política revolucionária, na qual cada momento parcial ou “tático” dever ser inserido no teatro geral de operações da revolução.

5.2 Movimento e posição, defensiva e ofensiva. Variedade de posições e táticas

Os conceitos de estratégia e tática que se aplicam à política revolucionária provêm da arte militar. A perspectiva estratégica, então, tem presente todo o teatro da conflagração, e cada momento tático, cada batalha, cada enfrentamento, coloca-se nessa perspectiva geral que diz respeito a como ganhar a guerra. Há também outro plano de abordagem estratégica vinculado à posição no conflito. Pode-se estar estrategicamente na ofensiva ou defensiva, há também momentos táticos em que o exército se coloca na defensiva para se reabastecer para o próximo período.

O que interessa agora é dar conta das diversas táticas que permitem o combate estratégico. Na literatura marxista, desde os Escritos militares de Engels em diante, sabe-se que existem batalhas que são de manobras e outras de posição. Estes conceitos foram aplicados várias vezes na política como os que se encontra nos escritos de Gramsci (ainda que as vezes se manifeste em uma visão mecânica e unilateral, identificando “manobra” com Oriente e “posição” com Ocidente). Também León Trotsky se referiu a eles muito atentamente em seus escritos militares, de imenso valor educativo, a partir da sua experiência no comando do Exército Vermelho.

Compreende-se por tática de manobra ou movimento as que designam um movimento dinâmico, com um deslocamento rápido das forças sobre o terreno, e que tem por objetivo ganhar posições de uma só vez. Na II Guerra Mundial, um exemplo inicial deste tipo de tática de manobras foi a Blitzkrieg (guerra relâmpago) dos nazistas. No caso de Stalingrado, o Exército Vermelho impôs uma condição de desgastante guerra de posições: lutou-se edifício por edifício, casa por casa e fábrica por fábrica12. É conhecido que a II Guerra Mundial foi muito mais de movimento do que a Grande Guerra, está se caracterizou por situações majoritariamente posicionais, ainda que tenha-se que diferenciar a Frente Ocidental da Oriental, já que está caracterizou-se por batalhas de movimento e não tanto de trincheiras.  (13)

León Trotsky insistia que não deveríamos nos apegar a nenhuma forma particular de tática guerreira; toda conflagração tem inevitavelmente combinações de manobra e posições, e todo exército que se prese deve ser treinado para ambas circunstâncias. Manobras e posições devem ser entendidas como parte de uma totalidade de táticas a levar adiante em toda guerra, o que depende da primazia ou combinação de uma ou outra circunstância concreta.

Esse debate sobre a arte miliar sempre teve seu correlato no terreno político. No valioso texto As antinomias de Antonio Gramsci, o marxista inglês Perry Anderson recorda como Trotsky havia se oposto as posições infantis de esquerda no debate militar de seu tempo (inspiradas no grupo que girava em torno de Stalin, e que tinha como um dos seus principais autores Frunze, que sucedeu a Trotsky à frente do Exército Vermelho). Anderson sublinha que quando Gramsci dava grande importância às táticas de frente única entre comunistas e socialdemocratas para enfrentar o fascismo, não sabia que, na realidade, estava dando orientações no mesmo sentido das apresentadas por Trotsky. Gramsci, equivocadamente, tinha assimilado o conceito de revolução permanente a uma “guerra” ou estratégia apenas de manobra ou movimento. Uma posição  que evidentemente não estava na letra nem no espírito do revolucionário russo, que pensava que não tínhamos que nos amarrar a nenhuma das formas de ação, defensiva ou ofensiva, já que dependiam das circunstâncias concretas (algo que lembra Lênin que queria a análise concreta da situação concreta).

Clausewitz escreveu sobre a superioridade estratégica da defensiva no campo de batalha, assinalando que tem mais gastos o que sai na ofensiva do que o que se defende, sobretudo quando a luta é em um território que conhece e próximo das suas linhas de abastecimento. No entanto, Trotsky, na discussão com os ultra esquerdistas do Exército Vermelho, lembrava que a ofensiva era decisiva para obter o triunfo. Em suma, ofensiva e defensiva são parte da dialética da guerra e, como toda dialética, seria um crime prender-se rigidamente a uma de suas formas. Como resumia Trotsky, “apenas um traidor pode renunciar à ofensiva, porém apenas uma criança pode reduzir toda nossa estratégia à ofensiva”. Em todo caso, na política revolucionária, como na guerra, saber combinar guerra de movimento e guerra de posições é um ingrediente fundamental da arte política.

5.3 A frente única e a unidade de ação

As guerras estão marcadas sempre por acordos e coalizões. Se a I Guerra Mundial trouxe o enfrentamento entre a Tríplice Aliança e Tríplice Entente, na segunda o Eixo enfrentou-se com a coalizão dos Aliados. Em todo caso, as coalizões e acordos no terreno da política revolucionária são decisivos para ampliar as próprias forças: esse é, no fundo, o conceito de frente única. A frente única surge sempre das próprias necessidades da luta. É próprio da classe operária exigir sempre “unidade” para poder enfrentar em melhores condições o inimigo de classe. E a frente única de organizações tem esse objetivo.

A frente única tem suas próprias regras para funcionar. É uma instância da unidade de ação que pode dar lugar a organismos ou alguma forma de direção ou coordenação comum por um tempo determinado, já que há distintas variantes. Quando se trata de um acordo entre organizações operárias, é uma frente única operária, que também tem suas regras. Sistematizemos algumas delas.

1) A frente única deve estar a serviço de impulsionar a luta ou a organização independente do proletariado.

2) Em nenhum caso se pode constituir frente únicas políticas com organizações da burguesia (quer dizer, não se torna parte de um partido em comum ou de uma frente eleitoral de colaboração de classe, porque isso vai contra o princípio da independência de classe do proletariado). Podem-se impulsionar medidas de luta com setores patronais, porém nunca se pode estabelecer organismos políticos comuns, e no que diz respeito a acordos exclusivamente por pontos determinados, temos que estudá-los em cada caso concreto.

3) Podemos e devemos impulsionar, sempre dependendo das circunstâncias concretas, organismo de luta em comum entre setores revolucionários e reformistas; muitas vezes, são imprescindíveis para impulsionar a luta para adiante. Porém:

4) O que não se pode fazer no contexto dessa frente única é não prosseguir a luta para derrotar os reformistas e perder a liberdade e independência de crítica, que muitas vezes se faz ainda mais necessária quando entramos em coalizão com eles. Não o fazer daria lugar a uma forma oportunista de frente única: durante o acordo a crítica deve prosseguir, ou mesmo ser redobrada. Também é oportunismo estabelecer um organismo em comum não para impulsionar a mobilização, mas que sirva como disfarce “de esquerda” para suas capitulações. Isso seria um desastre e, em muitos casos, já uma traição. Um caso típico foi o famoso “Comitê anglo-russo” entre os sindicatos da URSS e da Gran Bretanha durante a segunda metade da década de 1920, serviram para cobrir pela esquerda a burocracia inglesa enquanto traia a greve geral de 1926, a maior da história desse país.

5) Esse tipo de frente única são sempre táticos ou em torno de acordos delimitados por pontos precisos. O estratégico não são eles – ainda que sejam imprescindíveis para a ação e para impulsionar a luta – mas a construção de organismos de luta e poder dos trabalhadores e o partido revolucionário.

De outra parte, há organismos de frente única mais permanentes (ainda que não tenham o caráter de acordos entre organizações políticas): trata-se dos sindicatos, que são frentes únicas de fato de tendências no sentido de que agrupam todos os trabalhadores, independentemente de sua ideologia. Um comitê de luta, uma coordenação ou um soviete são também organismos de frente única operária, ainda que, evidentemente, em uma escala superior. Voltaremos a isso mais abaixo.

A unidade de ação é muito mais simples, já que não pressupõe organismos comuns. Impulsiona-se a unidade de ação não apenas entre os setores operários e revolucionários, mas muitas vezes inclusive com setores da burguesia, sob a condição de que sirvam para impulsionar toda luta progressiva adiante. Se serve para a luta, para que ao menos dê um passo, impulsionamos a unidade de ação ainda que com setores burgueses e burocráticos, se necessário for. Trotsky dizia que a unidade de ação implicava a vontade de chegar a acordos até “com o diabo e sua avó”.

Isso contribui com a educação dos setores mais jovens que, seguramente, pela sua inexperiência, podem ter desvios infantis e rechaçar todo acordo com os reformistas, os burocratas ou os burgueses, inclusive se estes acordos são em determinados momentos imprescindíveis para impulsionar a luta ou para nos defender de um mal maior (o fascismo, por exemplo).

No marxismo revolucionário temos um caso exemplar, o chamado “terceiro período” do stalinismo, quando no final dos anos 1920 Stalin faz um giro ultraesquerdista para cobrir seus desastres oportunistas. Esse terceiro período se caracterizou por uma orientação que rechaçou a frente única com a socialdemocracia contra o nazismo (dentre muitos desastres de alcance histórico), o que levou ao fortalecimento das formações nazistas e fascistas e, como consequência, a derrota histórica do proletariado alemão (que não se recuperou até hoje, sendo Alemanha um dos países mais estáveis do imperialismo). 

Assim, a unidade de ação e a frente única são táticas imprescindíveis para impulsionar as lutas, mas precisam estar submetidas a determinados critérios para impedir que se percam e sirvam, de fato, para avançar as lutas e a independência de classe do proletariado, objetivos pelos quais lutam os socialistas revolucionários.

5.4 Exigências, denúncias e organização independente

Outras táticas do arsenal do marxismo revolucionário são as exigências e as denúncias, ambas no sentido de uma estratégia para impulsionar a organização independente da classe operária (sindical e política). Tudo parte do fato de que, em geral, as organizações burocráticas, reformistas ou burguesas são de massa, e os revolucionários não. São essas organizações inimigas as que dirigem amplos setores e têm a confiança das amplas camadas dos trabalhadores e seria infantil e ultimatista desconhecê-lo.

Não se pode formular uma política revolucionária para um determinado setor dos trabalhadores que não parta de reconhecer que tem uma direção, e que a única forma de conseguir que os próprios trabalhadores em sua luta os superem é ajudá-los a fazer uma experiência com essa mesma direção. E para conseguir que as massas façam suas experiências, não desconhecemos suas direções, mas, pelo contrário, devemos colocá-las diante dos seus próprios limites.

A partir daí surgem duas táticas. Por um lado, fazer exigências em relação às tarefas que deveriam levar em frente para que a luta avance. Nessa ação nunca se deve despertar expectativas sobre a direção, e devemos inclusive  colocar claramente que os revolucionários não depositam confiança nela. Porém, dado que amplos setores as têm, exigimos-lhes medidas.

É provável que essa direção pegue algumas dessas exigências e as cumpra. Muito bem, então devemos exigir que vá mais longe. Seguramente, em algum ponto do caminho, como se trata de direção integrada e subordinada ao regime capitalista, trairão a luta. É aí que entra em campo a denúncia, que parte de reconhecer o lugar que ocupa determinada direção, porém que a aproveita para frear, trair ou entregar os objetivos da luta, é aí acontece a denúncia.

Não há nada de mecânico no ordenamento das exigências e denúncias. Se as exigências nunca devem ser formuladas criando expectativas na direção reformista, as denúncias podem ocorrer após uma política anterior de exigências ou no começo e no fim de uma política quando, por exemplo, o fato de fazer exigência serve para abrir questionamentos, porque não há nenhuma possibilidade de que a direção burocrática tome medidas, por limitadas que sejam, no sentido de mobilizar. Nesses casos, repetimos, ocorre a denúncia diretamente e, em geral, não há maneira de fazer política revolucionária sem algum plano de denúncia sobre o governo, os partidos patronais e a burocracia, quer dizer, as forças sociais inimigas da classe operária. 

Porém, acrescentemos uma condição sine qua non de toda política de exigências e denúncias, assim como nos casos de frente única e unidade de ação: em todos os casos, é obrigatório que impulsione a organização independente da classe operária, tanto no terreno sindical como no político.

Os revolucionários não podem ficar no terreno da exigência ou da denúncia, que não são mais do que táticas para impulsionar a mobilização dos trabalhadores e a luta estratégica para que se dotem de uma direção independente, classista e, se possível revolucionária, varrendo burocratas e reformistas. Ao mesmo tempo, impulsionamos não apenas a organização sindical independente, mas também a independência política da classe operária; em todos os casos lutamos para que a classe operária não se subordine a nenhum setor patronal. Daí desprende-se que outra obrigação principista é que em todos os casos devemos impulsionar a construção do partido revolucionário, e convidamos a se somar ao partido os melhores ativistas que produziu a luta. Como já afirmamos, renunciar a esta tarefa implica cair no mais puro sindicalismo (por mais lutador que se apresente).

Em suma, para que estejamos diante de uma política revolucionária as táticas devem se combinar em cada caso de maneira imprescindível com a estratégia da organização independente de classe do proletariado, trata-se da difícil arte de administrar a dose certa de cada um destes elementos e adaptá-los a cada situação concreta.

5.5 Concessões e manobras

Outras táticas imprescindíveis na ação política revolucionária são as concessões e as manobras. Se uma organização abre mão de ambas não pode fazer avançar os objetivos revolucionários nem um centímetro. No geral, quando  trata-se de organizações jovens, tende-se a pensar que tudo é “de princípio”, que nunca se pode fazer concessões, que sempre se deve “ir para frente” sem se importar com as consequências, e que tampouco se pode estabelecer compromissos, independentemente do tipo. Porém, este ponto de vista está mais próximo do romantismo adolescente do que marxismo.

Concessões são feitas o tempo todo na política revolucionária; impõem-se devido determinadas relações de força e circunstâncias concretas. Precisamos é saber com que critério as medir; no geral jamais devem ser feitas contra a causa do proletariado, da luta pela sua independência de classe e da estratégia pelo socialismo. Lênin dedica parte importante do O Esquerdismo, doença infantil do comunismo à questão das concessões. Estabelece um critério claro: qualquer concessão deve ser analisada concretamente e a regra a observar é que a concessão evite um problema maior em troca de um menor dentro do marco dos princípios do marxismo. Lênin dá o conhecido exemplo de que para salvar a vida se entrega a carteira; ninguém poder reprovar tal atitude. Ou, em outro plano, o acordo de Brest-Litovsk, no qual a Rússia Soviética cedeu a Alemanha os territórios da Ucrânia e os países bálticos, em troca da sobrevivência da revolução.

As concessões se impõem sempre por razões objetivas e há que saber apreciar as circunstâncias para conseguir defender um valor maior em troca de um menor. Por essa razão, as concessões se diferenciam tangentemente das capitulações (ou a afronta dos princípios), que são o caso inverso: faz-se uma justificação para entregar os princípios da luta do proletariado. Nesse critério a lógica é inversa às concessões revolucionárias: não se aceita um mal menor para evitar um maior, mas o contrário. Por exemplo, o governo provisório originado da Revolução de Fevereiro de 1917 na Rússia decidiu continuar com a guerra em virtude dos acordos com os Aliados estabelecidos pelo Estado russo anterior (sob o czar) e em “defesa da pátria”, sacrificando no caminho os princípios do internacionalismo proletário. Fizeram isso quando as massas clamavam pelo fim da guerra imperialista, pela paz. Tratou-se de um critério inverso ao dos bolcheviques, que assinando a paz em separado com a Alemanha salvaram a revolução.

Uma questão derivada do tema das concessões é a dos compromissos. Sobre as inibições psicológicas da resistência a fazê-los, Gramsci tinha uma formulação profunda: “Um elemento a extrair das chamadas teorias da intransigência é que a rígida aversão de princípio aos chamados compromissos, cuja manifestação é subordinada ao que se pode chamar de ‘medo dos perigos” (A política e o Estado modernos, p. 102). No que diz respeito aos compromissos sob determinadas relações de forças, trata-se de acordos nos quais em troca de comprometer-se a fazer ou não fazer algo, possibilita-se fazer outra coisa.

Um exemplo clássico foi o acordo feito por Lênin com o governo da Alemanha durante a guerra para chegar a Rússia por este país. O interesse de Lênin era chegar a Rússia, e o da Alemanha, sabendo que os bolcheviques defendiam a paz, facilitar que seu dirigente chegasse ao país para que pudesse desenvolver essa campanha sem que colocasse o pé na Alemanha nem realizasse nesse país atividade alguma. Durante as Jornadas de Julho, quando o governo reformista lança uma contraofensiva reacionária e persegue os bolcheviques, abre uma furiosa campanha reacionária o denunciando falsamente de “agentes do império Alemão”. Porém, a realidade é que o acordo entre Lênin e o Kaiser havia sido um compromisso estritamente técnico por meio do qual Lênin pode chegar ao seu país e nada mais. Inclusive, quando Lênin sobe a bordo no famoso “trem blindado” na Suíça, faz um pronunciamento público que afirma sua independência do governo alemão e chama os trabalhadores e soldados de dito país a se mobilizarem pelos seus próprios objetivos. Em suma, tratou-se de um mero compromisso cujo objetivo de fundo acabava sendo contra o próprio Kaiser, o desenvolvimento da revolução socialista não apenas na Rússia, mas na Europa, incluída a própria Alemanha, questão frente a qual o tema da guerra estava subordinado.

Outro exemplo de compromisso é o acordo que fez Trotsky com o governo de Cárdenas quando esse lhe deu exílio político no México. Aqui também está claro que Trotsky se comprometeu a não se envolver com a política mexicana, porém, em troca disso, pôde ganhar alguns anos de vida e atividade estratégicos para a causa do proletariado internacional (além do que Trotsky clandestinamente burlou o seu compromisso público de “não intervir nos assuntos políticos do México”.

Já quando falamos de manobras entramos em outro terreno, o das relações gerais entre os meios e fins na política revolucionária. Aqui também o infantilismo poder fazer estragos. Não há maneira de fazer avançar os objetivos da classe operária em geral e do partido em particular se não se apela às manobras políticas ou aos ardis, que se impõem como subproduto da lógica da luta contra os inimigos de classe, a burguesia, seus partidos e a burocracia. E também, ainda que de outro caráter, porém imprescindível também, são os ardis que utilizamos, respeitando determinados parâmetros, no âmbito da luta de partidos e tendências no interior da esquerda. Trotsky dizia ilustrativamente que em toda luta, “as duas partes se esforçam para transmitir uma ideia exagerada de sua disposição de luta e de seus recursos materiais”. 

Em geral, as manobras obedecem à necessidade de enfrentar um inimigo ou adversário mais forte. Isso é obvio quando se trata da burocracia ou organizações traidoras de massas; a outro nível, também a luta de partido ou tendências socialistas tem suas próprias leis de sobrevivência do mais apto (e que funcionam de maneira implacável mediante a exclusão do mais débil14). Não há como sobreviver em um meio hostil sem se impor mediante manobras funcionais aos objetivos da política revolucionária e sem fazer valer os interesses do partido sem dissolvê-los em interesses supostamente “gerais”. Saber encontrar esse limite é também outra arte do combate político de tendências.

Em Sua moral e a nossa, Trotsky reiterava que é idiota se privar antecipadamente de fazer manobras: “a mentira e coisas piores ainda constituem parte inseparável da luta de classes, até em sua forma mais embrionária” assinalava naquele texto em referência aos ardis e mentiras em relação ao inimigo de classe.

Não é  assim em relação a classe operária: um dos nossos princípios é dizer sempre a verdade, por mais amarga que seja. Mentir para a base operária, por exemplo, sobre o verdadeiro resultado de uma luta, é característica típica da burocracia sindical, que sempre apresenta derrotas como se fossem grandes vitórias15. O mesmo afirmava Lênin no O Esquerdismo… sobre a burocracia sindical que perseguia os revolucionários dentro dos sindicatos: “há que saber fazer frente a tudo isso, estar disposto a todos os sacrifícios, e inclusive – no caso de necessidade – recorrer a diversas estratagemas, astúcias, procedimentos ilegais, evasivas e subterfúgios para entrar nos sindicatos, permanecer neles e realizar ali, custe o que custar, um trabalho comunista” (cit., p. 160). Para os companheiros que entram ou trabalham em fábricas, que se proletarizam ou que se tornam socialistas revolucionários nelas, estes conselhos de Lênin são o pão de cada dia.

No entanto, há manobras e manobras, e em todos os casos o limite de princípio é que não devem desmoralizar nem enganar a classe operária (e os setores explorados e oprimidos) nem reduzir sua confiança em si mesma. As manobras devem servir aos objetivos da luta do proletariado, e não ao contrário; nem todos os meios são permitidos. No interior da esquerda, como temos dito, manobras e ardis também são admissíveis, com o limite de não violentar os princípios básicos do livre debate e a liberdade de tendências socialista, que devem se manter como conteúdo inquebrantável da democracia operária (assim como não violentar a educação política e a politização da militância e da base operária).

A questão das concessões e manobras se vinculam com a problemática mais geral dos meios e fins da política revolucionária (que veremos mais abaixo) precisamente porque não há maneira de se privar dos ardis para fazer avançar a perspectiva revolucionária. Em certas circunstâncias concretas muitas vezes não há outra maneira de provocar esse avanço, mas, ao mesmo tempo, o limite de toda manobra é que não deve fazer retroceder a educação política da vanguarda e das massas; devem se afirmar em base a critérios objetivos e que se imponham pelo seu próprio peso político.

Aqui entra o problema do instrumentalismo, tão característico das forças da esquerda que não tem sabido tirar uma só conclusão da experiência passada. Há instrumentalização da classe operária ou suas lutas quando uma força se apoia nelas, porém, para conquistar objetivos ou resultados alheios à luta mesma. Um exemplo disso é quando uma corrente de esquerda intervém em determinada luta não para que a luta triunfe e, no calor desse triunfo, avance na imprescindível construção partidária, mas quando esse último objetivo se antepõe e inclusive se separa completamente das necessidades da luta para se transformar em um fim em si mesmo. Nesse caso, não há “razão de partido” que se justifique e o meio prejudica o fim: o que acaba se constituindo é qualquer coisa (no geral, uma seita) menos uma organização revolucionária a serviço da classe operária.

Em todo caso, não há política revolucionária sem concessões e ardis: apenas há que saber levar adiante sua aplicação, evitando o mal maior e aprendendo a leva adiante manobras contra o inimigo de classe e, inclusive, no interior da luta de tendências socialistas de tal maneira que nunca sacrifique a educação política da classe operária e de sua vanguarda. Como resume Trotsky: “o partido bolchevique foi o mais honrado da história: quando pode, claro que enganou as classes inimigas, porém disse a verdade aos trabalhadores e apenas a verdade. Unicamente graças a isso foi que conquistou sua confiança, muito mais do que qualquer outro partido do mundo” (Sua moral e a nossa, p. 62). 

6. Sindicatos, luta de massas e participação eleitoral. O problema do poder

6.1 Sindicatos, Comitês de Greve e organismos de poder

Como apontamos acima, os sindicatos constituem uma espécie de frente única de tendências que agrupam o conjunto dos trabalhadores de um setor por sua situação específica, independentemente de suas concepções ideológicas e políticas. A priori, os sindicatos, na divisão do trabalho político estabelecido, caracterizam-se por um programa reformista que aponta para a melhoria das condições de existência e trabalho da classe operária, porém não para a emancipação da condição de explorados (não questionam a condição assalariada da classe trabalhadora).

No entanto, isso se refere ao “tipo ideal” de sindicato clássico. Há outros “modelos” ou circunstâncias que permitem o desenvolvimento de um sindicalismo revolucionário, que une a luta pelas reivindicações mínimas com a perspectiva de transformação social. Este processo pode ocorrer de maneira artificial, dando lugar a um equivocado “sindicalismo vermelho” que separa os elementos mais avançados do conjunto dos trabalhadores, algo que o socialismo revolucionário rechaça (ver Trotsky em Os sindicatos na época do imperialismo). Porém, pode também corresponder a uma evolução real da experiência que os eleva como organização mais de conjunto com objetivos políticos, o que pode ocorrer em situações radicalizadas. Exemplos históricos característicos foram a CNT na Guerra Civil Espanhola, apesar da inconsequência da sua direção anarquista. Em contrapartida, no caso da Revolução Russa é sabido que os sindicatos cumpriram um papel mais conservador.

Em todo caso, a lição universal é que os revolucionários militam nos sindicatos de massa, no seu interior constroem correntes classistas e revolucionárias, porém nunca se separam do local em que estão as massas trabalhadoras, sob pena de cair em um “sindicalismo vermelho” alheio à nossa tradição, e que mil vezes foi condenado como estéril.

Quando falamos de organismos de luta estamos no geral em outro terreno. Organismos de luta podem ser Comitês de Greve ou qualquer organismo ad hoc formado no calor da luta que agrupa o melhor do ativismo, e que expressa as modificações no estado de ânimo e a radicalização que vem desde baixo de maneira mais direta e dinâmica. Podem substituir os organismos do sindicato tradicional em determinado lugar de trabalho, ou muitas vezes aparecem paralelamente, estabelecendo uma espécie de “duplo poder” que só é solucionado na luta.

Parte desse mesmo tipo de organismos são as Coordenações de Trabalhadores, onde por intermédio dos organismos forjados na luta superamos as barreiras sindicalistas que dividem as fábricas ou ramos de trabalhadores para agrupá-los em uma zona ou região de conjunto, ou inclusive dentro de um sindicato determinado, porém fazem isso passando por cima das fronteiras de cada fábrica, dos “corpos orgânicos” do sindicato.

Já os organismos de poder são outra coisa. Trata-se de organismos de luta que também surgem ad hoc durante a luta, nesse caso uma profunda crise nacional, porém que adquire um caráter que, de fato ou de direito, já estão muito além das reivindicações elementares para passar a cumprir um papel político de conjunto, trabalhando em paralelo às instituições de poder do Estado em descrédito e decadência. Daí que uma das suas características seja a capacidade – pouco habitual nos organismos operários – de ascender às perspectivas mais gerais, superando os estreitos limites de cada sindicato e elevando-se aos interesses de conjunto da classe operária e dos outros explorados e oprimidos, como vimos acima no caso dos sovietes. 

6.2 A participação nas organizações de massas

Os revolucionários participam das organizações onde estão as massas, dirija quem as dirija. Essa lição elementar é cada dia mais relevante. As correntes não-operárias e pequeno-burguesas têm como desculpa para dar as costas às reivindicações operárias o rechaço à sua direção. Porém, a não ser em momentos revolucionários, o mais natural é que as grandes organizações operárias sejam dirigidas por direções burocráticas ou reformistas. Além do peso da estatização dos sindicatos na época do imperialismo, em geral os trabalhadores têm a ilusão que alguém vai lhes resolver os problemas, não compreendem que podem confiar apenas naqueles que lhes prometem uma luta consequente (a esquerda revolucionária), não é o caso dos burocratas e reformistas que conscientemente alimentam todo tipo de expectativas no sistema e seus mecanismos de conciliação de classes.

Tendo em conta essa realidade, colocar como condição para apoiar uma luta que a ruptura dos trabalhadores com a burocracia que os dirige é de um ultimatismo antioperário da pior espécie. As coisas funcionam exatamente ao contrário. É no calor da luta que a base operária vai fazendo a experiência com a direção e cria as condições para derrubá-la.

Em todo caso, a estratégia permanente é que os socialistas revolucionários incentivem de maneira sistemática a ruptura, lutando por uma nova direção para os trabalhadores. Porém, essa estratégia somente será levada adiante, partindo do lugar em que realmente os trabalhadores estão, que, habitualmente, são as organizações sindicais tradicionais. Isso é o que verificamos ao menos na classe operária com trabalho formal, ainda que não tenha sido assim entre os componentes jovens da classe operária precarizada ou do movimento de trabalhadores desocupados. Nesses casos observamos mundialmente o desenvolvimento de novos movimentos.

Essa participação nas organizações operárias de massas é condição sine qua non para a estratégia de recuperação dos organismos e da recomposição da direção da classe operária, apoiando-nos materialmente para isso em uma nova geração operária que ingressou nas estruturas laborais nos últimos anos.

6.3 Participação eleitoral e ação direta

Vejamos agora as relações gerais entre a luta de massas, ação direta e participação eleitoral. Os revolucionários incentivam e defendem como método essencial dos trabalhadores a ação direta, não o “banho Maria” do parlamento burguês. No entanto, as instituições parlamentares e o regime democrático burguês existem, e não podemos ignorá-los. Além do mais, sua existência significa que independentemente de quanto desprestigiadas estejam estas instituições aos olhos das massas, normalmente são uma importante mediação.

Se para os revolucionários, as instituições, o direito e demais instâncias da administração do Estado, assim como as hierarquias em geral, estão recobertas de um formalismo evidente, aos olhos das massas populares tem seu peso e importância como instâncias de decisão. E mais: a política eleitoral, a participação nas eleições e o voto, costumam ser a única verdadeira instância propriamente política que interessa às massas. A política no sentido amplo, como a preocupação pelas questões gerais, adquire normalmente apenas essa existência deformada. Isso muda apenas em períodos revolucionários, ou, episodicamente, em determinadas crises ou lutas que afetam setores dos trabalhadores. Ai sim as massas se põem a tomar as questões em suas mãos. Porém, quando funciona o mecanismo regular da política e da representação, expressam-se por meio do voto e, apesar de todas suas limitações, as instituições parlamentares aparecem como lugar próprio de decisão dos assuntos, como única forma de “democracia”.

Sendo assim, a participação eleitoral não apenas é obrigatória, mas muitas vezes a única oportunidade de entrar em contato com amplos setores que normalmente estão fora do raio de ação das organizações revolucionárias. O objetivo desta participação é utilizar a campanha eleitoral para ajudar a mobilização das massas, para dar maior alcance e expressão às suas reivindicações e, elegendo parlamentares, trabalhar para denunciar às massas desde dentro toda mentira, perfídia e corrupção das instituições parlamentares.

Esse debate foi parte das discussões de Lenin e Trotsky na III Internacional contra as correntes ultra esquerdistas nascidas como subproduto da Revolução Russa, porém imaturas e que deram lugar ao texto de Lênin já citado. Na frente dos intelectuais revolucionários, esse debate se substanciou com Gyorgy Lukács ultra esquerdista que tirou conclusões unilaterais dos erros oportunistas do efêmero governo soviético da Hungria sob Bela Kun (publicava uma conhecida revista da intelectualidade marxista da Europa ocidental). Essas conclusões davam-se ao redor da falsa ideia de que os sovietes tinham deixado “caducas” as instituições parlamentares, ao que classicamente Lênin lhes respondeu que se essas instituições poderiam ser consideradas caducas desde o ponto de vista histórico, mas desde o ponto de vista político, das experiências das massas com elas fora da Rússia soviética, isso não era assim, e se impunha trabalhar pacientemente para que as grandes massas completassem essa experiência.

Agora, se a participação eleitoral é em regra geral obrigatória, nunca é mais dizer que do ponto de vista da ação revolucionária é um apoio secundário, jamais a ação fundamental. Fazer da participação eleitoral a atividade principal do partido implica um sério desvio oportunista e pode levar à mudança de perfil da organização, que deixa de ser revolucionária. Da mesma forma, é puro oportunismo se apresentar nas eleições com o objetivo único ou fundamental de eleger parlamentares. Claro que os revolucionários querem os eleger pelas razões já observadas, porém este objetivo deve ser sempre derivado da formulação de uma política revolucionária e não um operativo oportunista pelo qual diluímos nossas reivindicações para não assustar os eleitores.

O terreno eleitoral nos obriga a levar adiante um diálogo político que não é habitual para as correntes revolucionárias, ao menos em sua etapa de vanguarda. Com a ampliação do nosso auditório, devemos fazer uso das formas pedagógicas, de expressar a política de maneira acessível aos amplos setores. É uma arte a qual não estão habituadas as organizações, sobretudo quando são pequenas, porém isso é completamente diferente de uma política eleitoralista, porque aí não se trata de uma forma, mas sim de conteúdo: a adaptação total da política revolucionária e a adaptação ao mecanismo eleitoral. Nesse caso, tudo se inverte: o objetivo estratégico passa ser conseguir votos ou eleger parlamentares de qualquer forma, diante do qual todo o resto é tático; algo habitual nas correntes que vão ao oportunismo.

Em resumo, se por um lado a participação eleitoral é, na maioria dos casos, uma obrigação dos revolucionários, nunca se pode perder de vista que é um ponto de apoio secundário da política revolucionária, que tem sempre como estratégia incentivar a mobilização e a ação direta dos trabalhadores e demais setores explorados e oprimidos.

7. Guerra e política

Desde Clausewitz, guerra e política são esferas estreitamente relacionadas. Lênin e Trotsky tomaram esta definição do grande estrategista militar alemão no começo do século XIX ao longo de sua obra. Apoiaram-se em Engels, que já no meio do século XIX havia comentado com Marx o profundo “sentido comum” dos escritos de Clausewitz. Também Franz Mehring, historiador da socialdemocracia alemã e um dos aliados de Rosa Luxemburgo, havia em dado momento se interessado pela história militar e reivindicava Clausewitz. De outra parte, no final da II Guerra Mundial, no auge do seu prestigio, Stalin rechaçou Clausewitz com o argumento de que a opinião favorável de Lênin, devia-se a que ele “não era especialista em temas militares”. Pierre Naville diz em uma introdução aos textos do teórico militar alemão que a Frente Oriental e o triunfo do Exército Vermelho sobre Wehrmacht tinha confirmado a tese contrária: a validade de Clausewitz e o central de suas intuições militares (entre outras, a importância das estratégias defensivas na guerra).

7.1 A guerra como continuidade da política por outros meios (e o contrário)

Segundo sua famosa definição, para Clausewitz a guerra era a continuação da política por outros meios; meios violentos, precisava Lênin. Ficava assim estabelecida uma relação entre guerra e política que o marxismo fez sua. A guerra é uma das formas da relação social, cuja lógica ou conteúdo está inserida nas relações entre os Estados, porém que o marxismo incluiu, pelo caráter transitivo, na formação de classe da sociedade. A guerra, dizia Clausewitz, deve ser vista como parte de um todo, esse todo é a política, cujo conteúdo, para o marxismo, é a luta de classes. Com profundidade, o teórico militar alemão sustentava que a guerra devia ser vista como um “elemento do contexto social”, que é outra forma de designar um conflito de interesses solucionado de maneira sangrenta, diferentemente dos demais conflitos.

Isso não quer dizer que a guerra não tenha suas próprias especificidades, suas próprias leis, que requer uma análise cientifica de suas determinações e características. Desde a Revolução Francesa, passando pelas duas guerras mundiais e pelas revoluções do século XX, a ciência e a arte da guerra se enriqueceram enormemente. Temos em mente as guerras sob o capitalismo industrializado ou sociedades pós-capitalistas, como a ex-URSS, e o constante revolucionamento da ciência e técnica guerreira. As relações entre técnica e guerra são de grande importância16; já Marx tinha dito que muitos dos desenvolvimentos das forças produtivas ocorrem primeiro no terreno da guerra e se generalizam depois à economia civil.

As duas guerras mundiais foram subproduto do capitalismo industrial contemporâneo, colocou em marcha meios de destruição massivos, envolveu as grandes massas, aplicou os últimos desenvolvimentos da ciência e da técnica à produção industrial e às estratégias de combate. Deram lugar a toda variedade de guerra de posição e de manobras. Com mudanças permanentes de frente e de magnitude, com a aparição da aviação, os meios encouraçados, os submarinos, a guerra química e nuclear e um longo etc., do que queremos destacar a experiência da Frente Oriental na II Guerra Mundial. E como conclusão, cabe recordar o dito por Trotsky a partir de sua experiência na guerra civil: não há que se prender a nenhuma tática, a ofensiva e a defensiva dependem das circunstâncias e, em sua generalidade, a experiência da guerra consagrou a vigência dos ensinamentos de Clausewitz nessa matéria, que merecem um estudo profundo da nova geração militante.

Vejamos bem, se a guerra é a continuidade da política por outros meios, a esta fórmula cabe certa reversibilidade. Daí que muitos dos conceitos da guerra se apliquem à política, já que essa é, como a guerra, um campo para impor determinadas relações de força. Sem dúvida, as relações de força políticas se impõem mediante um complexo de relações maior e mais rico do que a violência pura, porém no fundo, no terreno político, também temos que quebrar a resistência do oponente.

Em todo caso, a política como arte oferece mais detalhes, sutilezas e complexidades do que a guerra, como assinalava Trotsky, que além do mais denunciava o anti-humanismo da guerra em geral17. Daí que possamos definir metaforicamente a política como continuidade da guerra cotidiana entre as classes sociais explorada e exploradora. Assim, a política é uma manifestação da guerra de classes que percorre de cima abaixo a realidade social sob a exploração capitalista. Essa imagem pode ajudar a apreciar a densidade do que está em jogo, superando o olhar muitas vezes ingênuo das novas gerações.

Nada disso significa que tenhamos uma concepção militarista das coisas. Ao contrário: o militarismo é uma concepção reducionista que perde de vista toda a espessura da política revolucionária e que deixa de lado as grandes massas (substituídas pela técnica e ferramental de guerra) diante dos eventos históricos. É característica do militarismo fazer predominar a guerra sobre a política, algo comum tanto às políticas das potências imperialistas como às formações guerrilheiras pequeno-burguesas típicas dos anos 1970 na América Latina: perdem de vista as grandes massas como atores e protagonistas da história.

Tal era, por exemplo, a posição do famoso general alemão da I Guerra Mundial Erich Von Ludendorff, autor da Guerra Total, no qual que criticava Clausewitz a partir de uma posição reducionista que colocava no centro das determinações a categoria de “guerra total”, que a tornava independente da política e negava o conceito de Clausewitz de “guerra absoluta”, que necessariamente se via limitado pelas determinações políticas. Para Ludendorff e os posteriores teóricos do nazismo, o “originário” era o “estado de guerra permanente” e a política apenas um dos seus instrumentos; daí se considerava a paz apenas como “momento transitório entre duas guerras”.

Nesse apelo à “guerra total”, as massas (o Volk) eram vistas apenas como um instrumento passivo, pura carne de canhão na contenda, apenas isso. Porém, o certo é o contrário: se a guerra não é mais do que a continuidade da política por meios violentos, a segunda fixa os objetivos da primeira: “no século XVIII ainda predominava a concepção primitiva segundo a qual a guerra é algo independente, sem vinculação alguma com a política, e inclusive se concebia a guerra como o inicial, considerando a política mais como um meio da guerra; tal é o caso de um estadista e chefe de campo como foi o rei Federico II da Prússia. E no que se refere aos epígonos do militarismo alemão, os Ludendorff e Hitler, com suas concepções de ‘guerra total’, simplesmente inverteram a teoria de Clausewitz no seu antagônico contrário” (AA.VV., Clausewitz en el pensamiento marxista, p. 44).

Nessa espécie de “analogia” entre a política e a guerra, buscamos dar conta da conflitualidade interna da ação política, superando toda visão ingênua ou parlamentarista. A política é um terreno de disputa excludente onde se afirmam os interesses da burguesia ou da classe operária. Não há conciliação possível entre as classes em última instância, e isso se refere às características da guerra implacável e da luta política.

A política revolucionária, não a reformista e eleitoralista, tem essa base material: a oposição irreconciliável entre as classes, como destacava Lênin. O que não anula que os revolucionários tenham a obrigação de utilizar a fala parlamentar, fazer concessões e estabelecer compromissos, como já vimos antes. Porém, a utilização do parlamento, ou o uso das manobras, deve estar dirigida por uma concepção clara sobre esse caráter irreconciliável dos interesses de classe, sob pena de adquirir uma visão adocicada da política, ligada não às experiências das grandes revoluções históricas, mas com os tempos pós-modernos e líquidos da democracia burguesa e o “fim da história” das últimas décadas.  

7.2 Substituismo, luta de massas e balanço das revoluções do século XX

O critério principista do tipo estratégico é que todas as táticas e estratégias devem estar a serviço da autodeterminação revolucionária da classe operária, de sua emancipação. Nesse sentido, e sobre a base das lições do século XX, deve ser condenado o substituismo social da classe operária como estratégia e método para conseguir os objetivos emancipatórios do proletariado. O substituismo como estratégia simplesmente não é admissível para os socialistas revolucionários. Toda a experiência do século XX atesta que se não está presente a classe operaria, sua vanguarda, seus organismos de luta e poder, seus programas e partidos, se não é a classe operária com suas organizações que toma o poder, a revolução não pode avançar de maneira socialista, nem a transição ao socialismo consegue progredir realmente; fica congelada no estado de estatização dos meios de produção, o que, no final, não serve aos objetivos da acumulação socialista, mas sim da burocracia.

Um exemplo vivido pelos bolcheviques no início dos anos de 1920 foi a resposta ao ataque da  Polônia à revolução – no marco da guerra civil – que abriu uma contraofensiva do poder vermelho tão poderosa que atravessou a fronteira russa e chegou até Varsóvia. Durante umas semanas dominou o entusiasmo de que “desde cima”, militarmente, podia-se estender a revolução. Um dos principais atores deste empuxe era o talentoso general Tujachevsky, assassinado por Stalin nas purgas dos anos 1930. No entanto, essa ação foi vista e explorada pela ditadura polonesa de Pilsudsky como “avassalamento dos direitos nacionais poloneses” e não conseguiu ganhar o apoio das massas operárias e muito menos camponeses, o que acabou em um tremendo fracasso. Trotsky, que com bom tino tinha se colocado contra essa ação, tirou a conclusão de que em todo caso uma intervenção militar em um mais estrangeiro desde um Estado operário só pode ser um ponto de apoio secundário a um processo de revolucionamento real desse país por parte das suas massas exploradas e oprimidas, nunca o instrumento transformador fundamental: “na grande guerra de classes atual, a intervenção militar desde fora pode cumprir um papel concomitante, cooperativo, secundário. A intervenção militar pode acelerar o desenlace e fazer mais fácil a vitória, porém apenas quando as condições sociais e a consciência política estão maduras para a revolução. A intervenção militar tem o mesmo efeito que o fórceps de um médico; se usado em momento indicado, pode acabar com as dores do parto, porém se usado de forma prematura, simplesmente provoca um aborto” (em E. Wollenberg, El Ejército Rojo, p. 103). Daí que toda a política, a estratégia e as táticas dos revolucionários devem estar a serviço da organização, politização e elevação da classe operária como classe dominante, e que não é admissível sua substituição na revolução social por outras camadas exploradas e oprimidas (outra coisa são as alianças das classes exploradas e oprimidas imprescindíveis para tal empresa). O critério principal para todas as táticas dos revolucionários é o da independência de classe dos trabalhadores e sua organização independente; o critério da autodeterminação e centralidade da classe operária na revolução é o princípio inegociável. E não apenas um princípio: é a própria estratégia dos socialistas revolucionários em toda sua ação.

Outra coisa é que as relações entre massas, partidos e vanguarda são complexas e não toleram mecanicismos. Normalmente os fatores ativos são a ampla vanguarda e as correntes políticas, enquanto as grandes massas se mantêm no geral passivas, e apenas entram em cena quando se produzem grandes comoções, algo que, como dizia Trotsky, era sinal inequívoco de toda verdadeira revolução.

Existe uma inevitável dialética entre setores avançados e atrasados no interior da classe operária, e os revolucionários, na sua ação política, não devem procurar um denominador comum mínimo para se adaptar aos setores mais atrasados, mas, pelo contrário, ganhar a confiança dos setores mais avançados da classe operária para empurrar juntos os mais atrasados. Ainda: pode haver circunstâncias de descenso nas lutas do proletariado e o partido (ainda mais se estiver no poder) se ver obrigado a uma espécie de nexo entre o momento atual de passividade e um eventual ressurgimento das lutas da classe operária em um período próximo. Nesse momento não terá outra alternativa do que “substitui” transitoriamente a ação da classe operária na defesa dos interesses imediatos e históricos. Algo sobre Trotsky dizia que havia acontecido com o bolchevismo no começo dos anos 1920, depois que a classe operária e as massas estavam exaustas após a guerra civil. Porém, em todo caso, aqui o critério é que ainda que a “substituindo”, é necessário defender os interesses imediatos e históricos da classe operária, e essa “substituição” apenas pode ser uma situação imposta pelas circunstâncias, nunca escolhida e por um período relativamente breve e transitório, sob pena de se transformar quase que imediatamente em outro processo.  

A teorização do substituismo social da classe operária na revolução socialista coloca as coisas em outro plano: é uma justificação da ação de uma direção burocrática ou pequeno-burguesa que, apesar de poder ter ido mais longe do que ela mesma previa no caminho do anticapitalismo, nunca poderá substituir a classe operária à frente do poder, sob pena de que acabe impondo (como ocorreu na segunda metade do século XX) os interesses dessa burocracia e não os da classe operária.

Com esse balanço na mão, a luta contra o substituismo social da classe operária é absolutamente estratégica e de princípio, uma das grandes linhas mestras dos revolucionários, centro fundamental da nossa teoria da revolução socialista a partir dos ensinamentos do século passado e que nos delimita praticamente de todas as demais correntes trotskistas que carecem desse balanço.

7.3 O armamento popular

Daí se desprende outra questão: o apelo aos métodos de luta da classe operária contra o terrorismo individual, ou das minorias que empunham as armas em uma falsa representação do conjunto dos explorados e oprimidos. A partir desse ponto de vista, no século passado houve muitas experiências: o caso das formações guerrilheiras latino-americanas e do próprio Che Guevara, que excluía, por definição, os métodos de luta de massas em benefício das “balas”, ferramenta central da revolução, porque a classe operária estava supostamente “aburguesada”. Um caso similar foi o do PCCh sob a direção de Mao.

A luta contra o substituismo social também revela que os revolucionários não inventam nada, não pretendemos criar artificialmente os métodos de luta e os organismos que as próprias massas constroem para si. Na verdade, ocorre o contrário: partimos de suas experiências de luta, de seus métodos e organismos e, sempre, buscamos tornar consciente sua ação, generalizar estas experiências e as incorporar ao conjunto dos ensinamentos da classe operária em luta. Essa era a preocupação característica de Rosa Luxemburgo, que insistia na necessidade de aprender da experiência real de luta da classe operária, contra o conservadorismo pedante e aparatista da velha socialdemocracia18. Também é valiosa a posição de Lênin diante da criação dos sovietes pelas massas. Os “bolcheviques de comitê”, muito habituados a práticas sectárias e até conservadoras, negam-se a entrar no Soviete de Petrogrado porque este “não se declarava bolchevique”…Lênin insiste que a orientação devia ser “Soviete e partido”, e não contrapor de maneira pedante e ultimatista uns aos outros. 

Sobre a questão do armamento popular, rechaçamos tanto as formações militares que atuam substituindo a classe operária e os métodos de luta das massas como o terrorismo individual, pelas mesmas razões. Porém, devemos valorizar não apenas formações de exércitos revolucionários, como o Exército Vermelho, mas inclusive experiências de formação de milícias operárias e populares, ou as ligadas às organizações revolucionárias. Tal foi a experiência do POUM e dos anarquistas na Guerra Civil Espanhola, apesar do centrismo e oportunismo de sua política; poderiam ocorrer circunstâncias similares no futuro que coloquem a possibilidade do armamento popular, que se hoje parece uma realidade distante, pode se colocar na ordem do dia no caso de reingressarmos efetivamente em uma época de crise, guerras e revoluções.

Incluamos algo mais em relação à guerra de guerrilhas. Na América Latina, na década de 1970, as formações foquistas ou guerrilheiras, rurais ou urbanas, substituíram com suas “ações” a luta política revolucionária, as ações de massa e a construção de partidos da classe operária. No entanto, este rechaço à guerra de guerrilhas como estratégia política não significa descartá-la como tática militar. Se é verdade que, habitualmente, trata-se de um método de luta vinculado aos setores provenientes do campesinato ou mais ou menos desclassados, sob condições extremas de ocupação de um país por forças imperialistas ou estrangeiras não podemos descartar a eventualidade de colocar de pé formações desse tipo, mas em todo caso devem estar vinculadas à classe trabalhadora, com um caráter de força auxiliar similar a uma espécie de milícia operária, e sempre subordinadas ao método principal de luta, que é a luta de massas.  

Em resumo, o século XX deu lugar a inúmeras e ricas experiências militares no terreno da revolução que requerem um estudo posterior.

7.4 A ciência e a arte da insurreição

Passemos agora às alianças de classes e a hegemonia que deve obter a classe operária no momento da revolução. Se a centralidade social da revolução é da classe operária, deve construir pontes com o restante dos setores explorados e oprimidos. Para que a revolução triunfe, deve se transformar em uma acachapante maioria social. E isso ocorre quando a classe operária consegue elevar-se aos interesses gerais e a tomar em suas mãos as necessidades dos demais setores explorados e oprimidos. É aqui que o conceito de aliança de classes exploradas e oprimidas se transforma em um conceito análogo: hegemonia. A hegemonia da classe operária na revolução socialista diz respeito ao convencimento dos setores mais atrasados (inclusive da própria classe operária), das camadas médias e do campesinato, de que a saída da crise da sociedade já não pode vir da mão da burguesia, mas somente do proletariado.

Esse problema é clássico a toda grande revolução. Se a revolução francesa de 1789 conseguiu triunfar é porque desde seu centro principal, Paris, conseguiu arrastar atrás de si o resto do país. Algo que não conseguiu a Comuna de Paris quase cem anos depois, o que levou a sua derrota. O mesmo ocorreu no levantamento espartaquista de janeiro de 1919, derrotado a sangue e fogo porque o interior do campesinato na Alemanha não foi arrastado. Multitudinárias mobilizações de massa aconteciam em Berlin, efervescendo os seus dirigentes (principalmente Karl Liebknecht; Rosa era consciente de que se armava um desastre), enquanto isso o exército alemão era reforçado e fortalecido com o apoio do campesinato e dos demais setores conservadores.19

Precisamente nessa apreciação que Lênin baseava a ciência e a arte da insurreição: em uma previsão que deveria corresponder a uma análise mais científica possível. Porém, também, inevitavelmente, há elementos intuitivos sobre o que aconteceria com o proletariado se se levantasse nas cidades. O proletariado se coloca em pé e toma o poder na capital. Porém, a chave da insurreição, e da revolução mesma nesse momento, reside em conseguir arrastar ativamente, ou, ao menos, conseguir o apoio passivo, tácito ou, inclusive, a “neutralidade amistosa” (Trotsky) das outras classes exploradas e oprimidas do interior do país, sempre mais atrasado de todo ponto de vista que o centro e as grandes urbes. Daí que aliança de classes, hegemonia e ciência e arte da insurreição tenham como objetivo a conquista da maioria social pela classe operária, suas organizações e partidos para a tomada do poder. Uma apreciação que requer todas as capacidades da organização revolucionária no momento decisivo é a maior prova a que pode ser submetido um partido revolucionário digno desse nome.

8. Os fins e os meios, a luta de classes como lei suprema

Sobre as complexas relações entre os meios e os fins da ação política revolucionária há uma extensa elaboração não apenas do marxismo, mas da filosofia política em geral. Não serve aos interesses deste folheto tomar a questão com essa amplitude, dessa forma nos limitaremos a dizer o que consiste a ação política revolucionária; o essencial é a dialética de três elementos: os fins, os meios e o terreno material em que vai ocorrer a luta, temas que analisaremos a seguir. 

8.1 O finalismo do marxismo

Recordemos que o marxismo tem uma tensão “finalista” no sentido de que é transpassado por uma perspectiva: a auto emancipação do proletariado e uma sociedade realmente humana sob o comunismo, livre de todas as relações de exploração e opressão características das sociedades de classes.

O debate dos fins coloca o dos meios para alcançá-los, a congruência entre uns e outros, a relação entre meios e fins e o critério que preside essa relação. Quais são os meios lícitos que a classe operária pode e deve empregar para conseguir sua emancipação? Um longo debate cruza o marxismo revolucionário durante o século XX, entre outras coisas porque muitas vezes os meios que supostamente levam a um fim acabam levando a outro bem diferente.

Por exemplo, o processo de industrialização forçada nos anos 1930 sob o stalinismo, que apesar de ter desenvolvido de certo modo as forças produtivas do país, o fez de maneira tão unilateral que deu lugar a um processo de acumulação burocrática que não serviu a um progresso real no sentido da transição ao socialismo (que, na verdade, acabou bloqueadas a partir de então). Quer dizer: essa industrialização, como meio, não correspondeu ao objetivo da socialização da produção e deu lugar a outro resultado.

Outro exemplo que já foi dito é que o substituismo social da classe operária na revolução socialista; empreendimento que fracassou e que todos conhecemos. Historicamente foi demonstrado que a revolução socialista e a transição autêntica ao socialismo apenas pode ser levada adiante pela classe operária por intermédio de suas organizações, programas e partidos, ou não será revolução socialista (o mesmo ocorre no processo de transição logo após a tomada do poder). Sem classe operária não há socialismo: considerada a primeira como um “meio”, a segunda como o “fim” e vice-versa: a transição é o meio para a emancipação da classe operária. Repetimos para que se grave em todas as cabeças teimosas do movimento trotskista internacional, que veem “estados operários” com a classe operária fora do poder: se não há classe operária, se a classe operária não está realmente no poder, não chegamos ao socialismo. Do anterior se desprende a necessária congruência entre meios e fins, que dá o forte conteúdo finalista do marxismo revolucionário.

8.2 A classe operária não pode eleger o terreno da sua luta

Essa tensão finalista do marxismo não pode esquecer outra discussão concreta: quais são os meios a serem implementados pela classe operária e pelos revolucionários em sua luta? Aí é bem conhecida a discussão de León Trotsky com Victor Serge em defesa dos métodos empregados pelos bolcheviques no poder durante a guerra civil, Em Sua moral e a nossa Trotsky reitera uma e outra vez que a lei suprema para apreciar os meios é a luta de classes. A experiência e reflexão dos últimos anos nos tem convencido que Trotsky tem razão. Os meios não apenas têm relação com os fins, mas com o terreno material em que se leva a luta. É verdade que não é o mesmo uma circunstância de guerra civil do que uma de luta política “pacifica”. No entanto, e como já vimos, a luta de classes não deixa de ser sempre uma guerra de classes, em todo caso de menor intensidade. A classe operária, e os revolucionários com ela, não pode eleger os meios que mais gostariam; atuamos sob condições determinadas objetivamente que não são eleitas por nós, regidas pelas suas próprias leis, e que no geral não passam a mão na cabeça de ninguém, mas são implacáveis, sob pena de fracassarmos na luta. Os meios se relacionam dialeticamente tanto com os fins que perseguimos como com as leis do terreno material que atuamos; essa dialética deve ser apreciada em cada caso concreto de uma maneira que, definitivamente, sirva aos objetivos da luta do proletariado.

Em condições de guerra civil, partir da realidade e suas leis tal como são é uma condição de vida ou morte: não há guerra que se possa estar livre de fazer reféns, fuzilamentos, elementos de justiça coletiva ou social. É contraditório isso com o fim comunista? De maneira alguma: parafraseando Sartre, o comunismo é um humanismo. Porém, esse humanismo não pode perder de vista o terreno material das coisas, a lógica mesma da guerra de classes na qual estamos imersos. Não podemos nos dar o luxo de perder a batalha em função não de critérios do humanismo comunista, mas de um falso humanismo abstrato que apenas servirá aos nossos inimigos. No caso da luta de classes, essa dialética entre fins, meios e terreno material da luta deve ser compreendida e assumida, sob pena de cair na ingenuidade e, o que é mais grave, colocar a luta em perigo ou ser vencida pelo inimigo de classe.

Em Sua moral e a nossa, Trotsky parece dar duas definições contrapostas das relações gerais entre meios e fins. Em uma parte, aponta que os fins justificam os meios; em outra, afirma o contrário: que os fins não justificam os meios. No entanto, trata-se de uma contradição puramente formal, não de conteúdo20. Porque nos casos de luta de classes mais extrema, o proletariado não pode eleger seus meios livremente. Por isso diz Trotsky que a lei suprema para avaliar meios e fins é a luta de classes. E uma luta de classe redobrada não permite a imposição de leis morais abstratas por cima da natureza da luta sangrenta.

Precisamente, Trotsky insiste em rebater a ideia de que possa existir uma moral por cima da história e da luta de classes: sustenta que a moral está sempre historicamente determinada, que é um subproduto de determinada sociedade de classes e não um valor “universal”. Por outro lado, a perspectiva do socialismo e do comunismo tem uma ética própria, que se estabelece com a conquista de uma sociedade que imperem a igualdade, a liberdade e a fraternidade entre todos os seres humanos. Porém, estas “leis éticas” também são historicamente determinadas e as classes em luta se apoiam nos elementos da moral ou ética que se desprendem do sistema social pelo qual lutam. Por exemplo, o egoísmo destilado da liberdade de mercado contra a solidariedade da luta operária.  

8.3 Necessidade e virtude na guerra civil

No entanto, não seria o anterior cair em uma concepção maquiavélica ou jacobina, em uma forma de política burguesa? (21) Trotsky responde a isso de duas maneiras. Por um lado, é decisiva a natureza social real dos contendentes; isso é, se determinados meios são utilizados em função da emancipação social da classe operaria ou não. Para Trotsky, a natureza social diferenciada dos contendentes era o que importava. Inclusive, assinalava que as medidas duríssimas de repressão dos bolcheviques no poder sobre elementos burgueses (ou influenciado pelos burgueses) no fundo apenas servem para salvar vidas proletárias, e nesse sentido o fim justifica os meios. Não outra coisa dizia Gramsci quando rechaçava um exame abstrato do problema e assinalava que tudo dependia do fim efetivo a que conduzia um meio.

Além disso, as circunstâncias da guerra civil são de exceção muito extremas que obrigam, por necessidade, aplicar determinados métodos e não outros: ”A revolução clássica introduziu o terrorismo clássico. Kautsky está disposto a desculpar o terror dos jacobinos reconhecendo que nenhuma outra medida lhes permitiria salvar a República. Porém, de forma alguma é suficiente essa justificação do ocorrido. Para os Kaustsky do final do século XVIII (os chefes dos Girondinos franceses), os jacobinos personificavam o mal” (Terrorismo e comunismo, p. 55).

Claro que falamos sempre dos inimigos de classe, da burguesia, nunca de métodos de ditadura do proletariado em relação à própria classe operária, o que já é evidentemente outra coisa e nos colocaria em outra discussão, a crítica ao jacobinismo pela esquerda. Sobre isso, nos remetemos a nossa crítica ao texto de Nahuel Moreno A ditadura revolucionária do proletariado. Ali assinalamos que em condições normais de ditadura proletária deve reger amplamente os métodos característicos da democracia operária (se sempre é uma ditadura do proletariado sobre a burguesia). Os métodos de guerra civil devem ser empregados contra os inimigos de classe e seus agentes, nunca contra a classe operária e os partidos que a representam legitimamente. Acrescentamos que Trotsky tinha introduzido uma confusão na segunda parte do Terrorismo e comunismo ao se deixar levar pelo “lado administrativo das coisas” (como assinala oportunamente Lênin), pregando o partido único, transformar os sindicatos em apêndices do Estado, a militarização do trabalho e coisas pelo estilo. Trata-se da parte desse livro dedicada à proposta de “trabalho obrigatório” e “militarização” do trabalho que evidentemente implicava repressão sobre os trabalhadores que não se disciplinavam e convertia os sindicatos durante a transição ao socialismo em simples apêndices ou órgãos a serviço da produção do Estado proletário, algo que rechaçamos completamente. Nas condições de devastação econômica após a guerra civil, Trotsky acreditava ser possível a aplicação dos métodos utilizados para organizar o Exército Vermelho, coisa que se tivesse sido levado adiante simplesmente teria colocado em questão as bases do Estado operário. Militarizar a classe operária deixaria sem nenhuma base real a democracia soviética. Lenin, como é sabido, optou pelo oposto: a liberdade para os sindicatos fazer reivindicações operárias e a introdução limitada do mercado por meio da NEP. 

Os métodos de implacável luta de classes, de guerra civil sobre as classes inimigas, aplicam-se sempre pelas necessidades da própria ditadura proletária, porém nunca devem ser transformados em virtude: são características próprias de um período de guerra civil que se impõem aos revolucionários. Porém, a norma é trabalhar sempre pela crescente ampliação das margens da democracia socialista.

Para última análise, como dizia Clausewitz sobre a guerra, o pior erro que se pode cometer nela é ser ingênuo: há uma série de regras objetivas que lhes são próprias e que não podemos desconhecer, sob pena de sermos aplastados. A tensão finalistas do marxismo deve ser sustentada firmemente ao longo da guerra civil e dos enfrentamentos. Porém, isso não significa se mover com critérios abstratos e por cima das determinações concretas que fixam as regras do jogo e os meios a serem utilizados para combater e vencer. Já o sangue operário derramado no massacre da Comuna de Paris demonstrava que a classe operária não poderia ser ingênua. Trotsky insistia especificamente nisso no seu balanço da Comuna.

Os rios de sangue que tem corrido ao longo do século XX não fizeram mais do que confirmar, a escala corrigida e aumentada, essa lição. Apenas resta dizer uma vez mais que esse combate implacável dever estar realmente nas mãos da classe operária, suas organizações e partidos, e não de uma burocracia que a submete e aplica essa violência contra a classe operária e não contra o inimigo de classe. 

8.4 Gramsci e Maquiavel

As reflexões de Gramsci sobre Maquiavel são particularmente instrutivas em relação a esse tema. O marxista revolucionário italiano assinala que, contra o que pode se supor, O Príncipe de Maquiavel era um texto pensado não para conservar o poder, para defender as forças conservadoras (como o Leviatã de Hobbes) mas, pelo contrário, para transmitir ensinamentos da arte da política aos setores progressistas ascendentes. Gramsci insiste que é necessário tratar O Príncipe como um texto cientifico que dá conta das regras de toda política; em todo caso, de toda política na qual exista o conjunto das condições que caracterizam a política burguesa. Por isso, Gramsci assinala que seria um erro analisar Maquiavel por fora das condições do seu tempo histórico, no qual era impossível pensar em termos de autodeterminação das grandes massas.   

Entre O Príncipe Moderno de Gramsci e Sua Moral e a Nossa de Trotsky parece haver vasos comunicantes, no que diz respeito a abordagem de O Príncipe como um texto de ciência política no sentido das condições ou leis objetivas que marcam a atuação da política nas sociedades de classe. O mesmo dizia Trotsky quando assinalava que a luta de classes era a lei suprema; quer dizer, quando definia que os métodos de luta na guerra civil não podem ser determinados por nenhuma forma de humanismo abstrato, mas pelas realidades materiais da própria luta, sob pena de sucumbir nela. Algo que faz parte do próprio Maquiavel que em O Príncipe lembra que este, ao se dirigir aos seus amigos e súditos, deve se comportar de acordo com a “verdade real e não os desvarios da imaginação”.  

Gramsci também se refere nesses textos, ainda que de forma mais tangencial, ao jacobinismo. Muitas vezes se esquece que os jacobinos não eram os “guerrilheiros” da revolução, lugar que correspondia aos girondinos.22 No entanto, os jacobinos ficaram historicamente identificados com a ala revolucionária que se viu obrigada a tomar medidas extremas no momento mais difícil da revolução. Tais medidas já são parte do acervo revolucionário. Gramsci insiste no caráter necessariamente violento de todo ato criador de uma nova sociedade e reivindica esse aspecto dos jacobinos, uma vez que observa que a crítica a eles (no seu tempo e também hoje) é em geral conservadora.23 Trotsky sustentava o mesmo ao afirmar que não se poderia chegar a uma sociedade emancipada apenas por meio dos métodos revolucionários, os métodos violentos (jacobinos): “a ditadura de ferro dos jacobinos tinha sido imposta pela situação extremamente crítica da França revolucionária (…) Os exércitos estrangeiros tinham entrado no território francês por quatro lados de uma vez (…) A isso há que agregar os inimigos do interior, os inumeráveis defensores ocultos da velha ordem das coisas, prestes a ajudar ao inimigo por todos os meios (Comunismo e terrorismo, p. 56)

Em todo caso, cabe a crítica aos jacobinos enquanto “bonapartistas revolucionários”, já que não apenas tomaram duras medidas de repressão sobre a direita, mas também sobre a esquerda. Assim, executaram dirigentes dos enragés como Jean Roux e tantos outros, sem entender que ao fazer isso cavavam sua própria cova. Desde já rechaçamos essa violência contra as massas revolucionárias em função dos limitados objetivos de uma revolução burguesa: nossa posição está vinculada ao caráter da ditadura revolucionária que defendemos (ditadura do proletariado) como a ditadura mais enérgica contra a classe inimiga, porém ao mesmo tempo deve ser a mais ampla democracia para a classe revolucionaria.24

Assim, maquiavelismo e jacobinismo são, dentro de determinados parâmetros, necessidades inevitáveis em meio da agudização da revolução e da guerra civil, das quais nenhum partido revolucionário pode prescindir, porque dizem respeito as características ou leis da lógica de toda revolução.

O que é injustificável e contrário aos princípios da autodeterminação da classe operária é que os mesmos métodos sejam voltados contra os explorados e oprimidos. Nisso a revolução proletária se diferencia tangencialmente das precedentes, especialmente da revolução burguesa. Esse limite não se pode ceder: não se pode acompanhar, muito menos acriticamente, o “substituismo revolucionário” que campeou sobre toda a segunda metade do século passado. O balanço das revoluções demonstra que a libertação dos trabalhadores deve ser obra dos próprios trabalhadores ou não haverá emancipação possível. Como dizia Rosa Luxemburgo, a revolução socialista é a primeira em que as maiorias fazem a revolução no interesse dessas mesmas maiorias. Ou, segundo a definição de Lênin no mesmo sentido, a primeira revolução realmente popular.

8.5 O balanço da Comuna e as regras de exceção que estabelece toda guerra civil

Se Marx e Lênin preferiram centrar sua atenção nos ensinamentos positivos da Comuna, Trotsky estava preocupado em sublinhar as ingenuidades e limitações da experiência, o que lhes custou a própria vida. A Comuna investiu demasiado tempo em levar em frente uma eleição municipal no final de março de 1871, nos momentos em que estava cercada e ameaçada. Organizar uma eleição em semelhantes condições é considerado por Trotsky uma dispersão de esforços inaceitável dadas as circunstâncias. Trotsky também discute qual era o verdadeiro órgão de representação da Comuna, seu organismo de poder. E conclui que o expressava o Comitê Central das milícias populares encarregadas da defesa da Comuna diante do assédio dos exércitos da França e da Alemanha (ainda que esse comitê, dirigido aparentemente por diletantes, nunca acabou de se assumir como tal).

Trotsky polemizou com Kautsky, que tinha uma apreciação abstrata (e, no fundo, reacionária) da democracia revolucionária, como se pudesse se colocar por cima das determinações concretas da luta de classes, perdia de vista o conteúdo de classe e revolucionário que necessariamente tem a ditadura proletária. Contra Kaustsky, Trotsky diz que quando o proletariado se encontra um uma fortaleza sitiada deve hierarquizar as armas e colocar tudo a serviço de ganhar a batalha, sem dar lugar a “romantismos” que apenas podem impedir o triunfo da classe operária. Isso geralmente se paga caríssimo: dezenas de milhares de communards foram fuzilados imediatamente depois da derrota, lição histórica que quis dar a burguesia francesa à classe trabalhadora não apenas de seu país, mas da Europa e do mundo.

Contudo, um dos aspectos nos quais se ressente da visão de Trotsky é ter aceito os términos do debate colocado por Kautsky. Quer dizer, discutiu em termos da abstrata contraposição entre “ditadura” e “democracia”, sem assinalar que a ditadura do proletariado é uma democracia de novo tipo em relação aos explorados e oprimidos, para além das medidas de exceção que vê obrigada a tomar em meio da guerra civil contra o inimigo de classe. Nessa discussão perdia de vista que a ditadura proletária é por sua vez uma democracia socialista, sob pena da classe operária ser desalojada do poder, como ocorreu posteriormente  na ex-URSS.25

9. O partido como força permanentemente organizada

A crise mundial em curso e a extensão universal de um ciclo de rebeliões populares estão criando melhores condições para a construção de partidos revolucionários internacionalmente. Aqui nos referimos apenas a um aspecto do problema: aprender a fazer valer os interesses do partido como fator permanentemente organizado.

O partido não agrupa os trabalhadores por sua condição como tal, mas apenas aqueles que avançaram a uma compreensão de que a solução dos problemas passa pela revolução socialista: o partido agrupa os revolucionários e não os trabalhadores enquanto membros da classe operária (cuja a grande maioria é de ideologia burguesa, reformista e não revolucionária). Quem se agrupa sob o mesmo programa constitui o partido. Porém, se seus militantes não constroem o partido, não o constrói ninguém: o partido é o menos objetivo e espontâneo que existe em relação as formas de organização operária. Ao contrário: requer um esforço consciente, adicional e que tem leis próprias. 

Um problema importante é o da combinação dos interesses do movimento em geral e os do partido em particular na intervenção política. Um erro habitual é sacrificar uns no altar dos outros. No caso das tendências mais burocráticas (ou as seitas), o que se sacrifica são os interesses mais gerais dos trabalhadores em função dos do próprio aparato (já Marx sustentava que os comunistas apenas se diferenciam por ser os que, em cada caso, fazem valer os interesses gerais do movimento).

Porém, é também uma concepção falsa acreditar que os interesses do partido nunca valem, que apenas vale o interesse supostamente “geral”, sacrificando ingenuamente os interesses do partido por causa dos “interesses comuns”. Assim, torna-se impossível construir o partido, cuja mecânica de construção é a menos “natural”. Precisamente por isso, há que aprender a sustentar ambos interesses: as condições gerais da luta e a construção do partido a partir delas.

Também, há que saber avaliar que interesse é o que está em jogo em cada caso. Nunca se pode correr atrás da luta, de todo acontecimento; não há partido que possa fazer isso, salvo que realmente seja de massas (e talvez nem nesse caso). Desta forma, quando trata-se de organizações de propaganda, ou inclusive de vanguarda, é necessário eleger. Ha que hierarquizar considerando a cada momento o peso do fato objetivo e também as possibilidades reais do partido em responder e construir-se nessa experiência.

Isso significa que nem sempre a agenda partidária é ordenada ao redor da agenda “objetiva” da realidade. Também há que considerar a agenda da própria organização para construir suas próprias iniciativas. Evidentemente que isso tem determinados parâmetros, uma organização que fixe sua agenda exclusiva ou essencialmente em função de suas próprias necessidades e independentemente da realidade não seria um partido, mas uma seita (e existem em montes). Porém, tampouco será um partido (isso é, nunca conseguirá o ser) se em cada caso, ao lado dos interesses gerais, não consegue impor também seus imperativos construtivos. 

Como dizemos, esta construção é o menos “objetivo” que existe, e, no entanto, é o mais essencial para produzir os acontecimentos históricos. Explica Gramsci: “a observação mais importante a fazer a propósito de toda análise concreta da correlação de forças é que estas análises não podem nem devem ser análises em si mesmas (a menos que se escreva um capítulo da história do passado), mas que apenas adquirem significado se servem para justificar uma atividade prática, uma iniciativa de vontade. Mostram quais são os pontos de menor resistência em que pode se aplicar com mais retorno a força da vontade; surgem as operações táticas imediatas; indicam como melhor fazer uma campanha de agitação política, que linguagem melhor entenderam as multidões, etc. O elemento decisivo de toda situação é a força permanentemente organizada e disposta a avançar quando uma situação é favorável (e apenas é favorável na medida em que esta força exista e esteja cheia de ardor combativo); por isso, a tarefa essencial é a de procurar sistematicamente e pacientemente formar, desenvolver, fazer cada vez mais homogênea, mais compacta e mais consciente de si mesma essa força [quer dizer, o partido]” (Gramsci, cit,. Pp. 116-117).

Fica cada vez mais evidente que vem tempos de uma luta de classes quente, mas dura e polarizada. Para esse cenário concebemos o presente folheto, que colocamos a disposição da formação de novas gerações. Porque o que está no horizonte é a reaparição da época de crise, guerras e revoluções, e a lenta, porém sistemática, acumulação de condições para o relançamento da luta pela revolução socialista no século XXI.

Bibliografía:

AA.VV.: Clausewitz en el pensamiento marxista. Pasado y Presente 75, México, 1979.

Anderson, Perry: Antinomias de Antonio Gramsci. Estado y revolución en Occidente. Fontamara, Barcelona, 1981.

Clausewitz, Karl von: De la guerra. Varias ediciones.

Gramsci, Antonio: La política y el Estado moderno, Planeta-Agostini, Barcelona, 1985.

Lenin, Vladimir I.: El “izquierdismo”, enfermedad infantil del comunismo, Obras Completas, tomo 33, Cartago, Buenos Aires, 1971.

– ¿Qué hacer?, ídem.

– La ciencia y el arte de la insurrección, ídem.

Luxemburgo, Rosa: Debate sobre la huelga de masas, Pasado y Presente 62, México, 1978.

Traverso, Enzo: A sangre y fuego, De la guerra civil europea 1914-1945. Prometeo, Buenos Aires, 2009.

Trotsky, León: Su moral y la nuestra, Yunque, Buenos Aires, 1973.

-Terrorismo y comunismo. Heresiarca, Buenos Aires, 1972.

– Escritos militares

– Sobre los sindicatos en la época del imperialismo. Pluma, Buenos Aires, 1975.

Wollenberg, Erich: El Ejército Rojo. Antídoto, Buenos Aires, 1991.

Notas:

1) Sobre os problemas de organização mais específicos, indicamos “A cem anos do Que fazer”, principalmente a parte dedicada às leis de construção das organizações revolucionárias e www.socialismo-o-barbarie.org. e revista Socialismo o Barbárie 23/24.

2) A política, por definição, é um terreno de representação de interesses sociais, mas como esta representação nem sempre fala em seu próprio nome senão de maneira disfarçada, Marx sempre comparava o terreno da política a um teatro. 

3) Exemplo típico a respeito é o movimento da Reforma na Europa, que foi funcional ao desenvolvimento do capitalismo com a passagem a uma concepção de moral cristã mais adequada à nova ordem social que a da Igreja Católica. A ética protestante e o espírito do capitalismo, o clássico de Max Weber, segue sendo, ainda em sua matriz relativamente idealista, uma das mais brilhantes explicações para o fenômeno.

4) “Os próprios desejos e as próprias paixões baixas e imediatas são a causa do erro, na medida em que substituem a análise objetiva e imparcial, e isso não como “meio” consciente para estimular a ação, mas como autoengano. Também nesse caso a serpente morde o charlatão, ou seja, que o demagogo é a primeira vítima da sua demagogia” (Gramsci, cit., p. 110. )

5) Gramsci foi encarcerado por Mussolini de 1928 até 1935. Como disse seu juiz de instrução do estado fascista, Gramsci era uma cabeça que “não deveria deixar pensar por 20 anos”. Quando foi libertado, seu estado de extrema enfermidade lhe possibilitou viver apenas por mais seis meses. Nessas penosas condições, foi capaz de sem dúvida elaborar uma obra de grande riqueza política conhecida como os Cadernos do cárcere.

6) Ver também “lãs huellas de la historia” em WWW.socialismo-o-barbarie.org 

7) Um exemplo atual é como o trotskismo francês em geral acreditou ver na União Europeia a realização, ainda parcial, da “unificação europeia” e não o que realmente é: um projeto das burguesias do Velho Continente para melhor enfrentar a competição no contexto da mundialização capitalista. Um esquema que se transformou em uma camisa de forças que explora e oprime às classes trabalhadoras e as nações mais atrasadas da Europa.

8) Sobre essa discussão, que deve ser abordada sem perder determinados parâmetros e com uma perspectiva histórica de conjunto, ver nosso trabalho “As perspectivas do capitalismo no começo do século XXI” in revista Socialismo o Barbarie 26.

9) Esse foi o caso das conquistas obtidas nos processos socialistas ou anticapitalistas do século XX, por mais deformados ou distorcidos que tenham acabado por imposição da burocracia. Porém, as massas trabalhadoras na Europa Ocidental foram beneficiadas com grandes concessões provenientes do Estado europeu como subproduto do terror dos capitalistas à revolução social. A ausência desse temor depois da queda do Muro de Berlin explica a regressão que tem significado o capitalismo neoliberal nessa matéria.

 10) A respeito, recomendamos ler os artigos de Luxemburgo “Desmoralização ou luta?” e “A teoria e a práxis”, altamente educativos sobre o critério que queremos afirmar aqui. Lenin disse que Rosa tinha sido uma “águia que soube ver ante de todos em que pântano tinha caído a socialdemocracia alemã desde o início do século XX. Trotsky reivindica ela e a Karl Liebknecht no mesmo sentido. Em sua juventude, Trotsky compartilhou com Rosa um pensamento “débil” sobre a questão do partido e uma apreciação equivocada da batalha de Lenin no seio da socialdemocracia russa, porém também, uma mesma concepção de “revolução permanente” com centro na classe operária.

11) Karl Korsch tem obras importantes como A concepção materialista da história ou Marxismo e filosofia, de grande valor metodológico. Politicamente, foi primeiro um certo ultraesquerdismo (como o de Lukács de História e consciência de classe, outra grande obra de filosofia marxista). Também são valorosos certos trabalhos sobre a socialização da produção e, posteriormente, sobre as experiências comunais da revolução espanhola. No entanto, sua evolução foi para posições cada vez mais antileninistas e, por extensão, “antitrotskistas” (militou durante os anos 1930 no “marxismo conselhista”, não sem passar antes por um stalinismo acendrado), e em seus últimos anos evoluiu para posições quase antimarxistas.

12) Quando Wehrmacht ficou na ofensiva, quem passou de uma tática de posições a de manobras foi o próprio Exército Vermelho, o que estreitou o cerco sobre a parte da cidade ocupada pelos nazistas e os aplastou (a sexta divisão de Von Paulus foi liquidada e o exército alemão perdeu 600 mil soldados). E em seguida passou a uma impressionante posição ofensiva de manobras que levou a um triunfo após o outro: Kursk. Bagration, a Batalha de Berlin, ainda houve caos “defensivos”, como o rechaço à ultima ofensiva nazista na Frente Oriental (a fracassada operação Citadel).

13) Sobre alguns aspectos do caráter da II Guerra Mundial e, principalmente, da Frente Oriental e sua relação com a evolução mais de conjunto da ex-URSS, estamos preparando um trabalho que esperarmos publicar em breve.

14) Ver a respeito nossas notas sobre o funcionamento do partido de vanguarda. Apesar de defendermos decididamente a liberdade de tendências socialistas, não é por isso que tenhamos alguma ingenuidade sobre que o terreno dessa mesma liberdade é a da luta implacável, onde cada organização persegue seus próprios interesses, e que está caracterizada por uma lógica de exclusão das tendências que se demonstram mais débeis. Daí a forma aguda que muitas vezes toma essa luta: uma verdadeira “guerra de guerrilhas” como a tinha caracterizado em seu momento o menchevique de esquerda Martov.

15) Isso também tem sido característico de setores do trotskismo quando está a frente de algum sindicato ou conflito. É o caso do trotskismo brasileiro, que dirige vários sindicatos que na maioria das vezes parecem cascas vazias.

16) Entre muitos outros, em suas Memórias, Albert Speer, ministro de indústria militar nos últimos anos do governo de Hitler, remarca o próprio repetidas vezes.

17) Trotsky dizia que a guerra, e, principalmente, a guerra civil (onde se suspendem os laços morais entre as classes), como sua forma mais crua, devia ser lutada se ajustando a suas próprias leis sob pena de sucumbir, como veremos logo. Em todo caso, assinalava que a guerra é o mais anti-humano que existe, independentemente de que existem guerras justas e injustas. As que se originam nas necessidades e interesses dos explorados e oprimidos são guerras justas, inevitáveis se se quer acabar com a exploração do homem pelo homem. Daí que o socialismo revolucionário não predique o pacifismo abstrato.

18) A respeito se pode ver o conhecido folheto, Greve de massas, sindicatos e partido, que se pode colocar em interessante dialogo como o texto de Trotsky Classe, partido e direção. Se Rosa enfatizava o valor criativo da ação de massas contra o conservadorismo da socialdemocracia, Trotsky destacava como na guerra civil das massas exploradas espanholas não tinham dado tudo de si, e a responsabilidade recaia inteiramente sobre a traição da direção.

19) Ambos protagonizaram um feito heroico, apesar de que Rosa teve mais profundidade ao perceber que as condições não davam, enquanto Liebknecht se deixava levar pelos acontecimentos. Ambos foram assassinados em janeiro de 1919 por um governo da socialdemocracia, quando Luxemburgo se negou em abandonar Berlin para não deixar a sua própria sorte os trabalhadores derrotados.

20) O filosofo positivista estadunidense Dewey, que foi juiz em um processo que organizou Trotsky para defender se das acusações dos julgamentos de Moscou, afirmava, com argumento puramente formal, que o texto de Trotsky estava a contradição que colocava como um fim um elemento que, em definitiva, era um meio: a luta de classe. Não entendeu que Trotsky falava de outra coisa: do caráter da luta de classes como critério supremo na hora de analisar a correspondências entre fins e meios na revolução social.

21) Sobre o jacobinismo, recordemos que foi o ponto mais extremo da revolução França, e correspondeu a algo universal de toda verdadeira revolução, burguesa ou proletária: a necessidade de aplicar métodos de exceção em duras condições. Não tanto no caso dos jacobinos, não deixarão de ser medidas extremas, mas da revolução burguesa, e, portanto, por sua própria natureza, com forte conteúdo de subtituismo social, razão pela qual foram criticadas por Marx (como apontara o marxista estadunidense Hal Draper, reivindicava outras correntes da revolução). Também recordamos o clássico trabalho do marxista trotskista Frances Daniel Guerin, a luta de classes em apogeu da revolução francesa, em que aponta que os jacobinos não somente foram para a direita senão para esquerda, aos fanáticos que reclamaram pelo alto custo de vida e falta de concessões para as massas trabalhadoras.

22) Como análises histórico extremamente afiada e resumido as vicissitudes do poder jacobina em particular, e da Revolução Francesa em geral e tom ilustrativo recomendamos “La revolicion francesa y El império (1787-1815), Georges Lefebvre.

23) De muitas das criticas conservadoras podemos citar as do ex militante comunista e critico liberal das revoluções francesa e russa, François Furet, por não citar a de uma das suas inspiradora, que de ultima liberal Hannah Arendt.

24) Um tema polêmico a este respeito, que aflora na crítica de Victor Serge a Trotsky, é o da repressão ao levantamento de Kronstadt em 1921. Já assinalamos em outra parte que a justificativa para sua repressão, votada por unanimidade no Congresso do Partido Bolchevique por todas as tendências, compreendeu-se sempre como um caso de extrema necessidade, de salvação da revolução, uma desgraça inevitável e não com uma lei ou virtude. Por outra parte, esses marinheiros de 1921 já não eram os de 1917 (tinham maior composição camponesa), e lamentavelmente foram instrumentalizados pela contrarrevolução.

25) Corrigindo uma asseveração equivocada que fizemos anos atrás, em O Renegado Kautsky Lênin era muito mais cuidadoso que Trotsky ao abordar este tema, e se referia explicitamente à contraposição entre democracia burguesa e democracia proletária. Quer dizer, evitava a mecânica oposição entre “ditadura e democracia” que tinha colocado Kautsky como pano de fundo do debate.