Hoje, após a pandemia – quando o serviço dos/as entregadores/as passou a ser essencial para garantir o abastecimento de milhões de lares no país e no mundo, diante da necessidade do isolamento social -, a categoria enfrenta uma escalada de violência que combina de maneira perversa o racismo, o elitismo e a intensa precarização do trabalho levada a cabo pelas empresas de aplicativo.

RENATO ASSAD

No dia 9 deste mês de abril, um domingo, o entregador de aplicativos, Max Ângelo dos Santos, de 36 anos, que trabalha há cerca de 1 ano e meio fazendo entregas, foi vítima de violência racista e elitista (crime inafiançável tipificado em lei nacional) por uma mulher branca de classe média na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro. O vídeo, que viralizou nas redes sociais, mostra a agressora. Sandra Mathias Correia de Sá – autointitulada cidadã de bem e bolsonarista declarada –. primeiro agredindo verbalmente a entregadora negra, Viviane Maria Teixeira, chamando-a de “filha da “put*”, perguntando se ela por ser da favela “sabia ser civilizada” e, depois, agredindo covardemente Max com uma coleira de cachorro, imagem e postura que reproduz a herança escravagista do país.

O primeiro a se destacar é que não se trata de um caso isolado de violência contra pessoas negras e trabalhadoras. Trata-se de um reflexo direto da formação social e econômica de nosso país, que, a partir da tradição escravocrata, que foi apenas parcialmente superada, combina racismo com uma estratificação social extremamente desigual. O que faz do Brasil um dos países mais desiguais do mundo, segundo o relatório elaborado pelo Laboratório das Desigualdades Mundiais da Escola de Economia de Paris, que é codirigido pelo economista francês Thomas Piketty. Para termos concretude deste cenário, hoje “os 10% mais ricos no Brasil possuem quase 80% do patrimônio privado do país. A concentração de capital é ainda maior na faixa dos ultra ricos, o 1% mais abastado da população, que possui, em 2021, praticamente a metade (48,9%) da riqueza nacional”.[1] O relatório segue e aponta, segundo reportagem da BBC News Brasil, que “as desigualdades patrimoniais são ainda maiores do que as de renda no Brasil e são uma das mais altas do mundo. Em 2021, os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira”.[2]

Onde estão os entregadores de aplicativo neste cenário?

Segundo a pesquisa “Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos”, feita pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) e pela Amobitec (Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia), os entregadores possuem uma média salarial que varia de R$ 807 a R$ 1.325, quando trabalham cerca de 20h semanais, e de R$ 1.980 a R$ 3.039, quando trabalham aproximadamente 40h semanais.[3]

Aqui vale ressaltar que a primeira impressão em relação à carga horária apresentada pela pesquisa não corresponde com a realidade sobre o tempo de ociosidade (aquele em que o/a entregador/a fica disponível, mas sem receber entregas), que é muito maior do que quantificado no cotidiano das entregas. Isso pode ser parcialmente explicado pelo fato de a pesquisa ser encomendada pela associação que representa as plataformas Ifood, 99, Uber e Zé Delivery, ou seja, de cunho patronal. Portanto, contrária ao reconhecimento de vínculo empregatício dos/as entregadores/as com as empresas de plataforma, negando-lhes uma série de direitos laborais e escondendo as relações de assalariamento do trabalho por entregas via plataformas.[4]

Voltando ao perfil étnico-social da categoria, a pesquisa aponta que a ampla maioria da categoria é de gênero masculino, 68% se declara preto ou pardo e o seu rendimento os  coloca nas classes C, D e E da estratificação social brasileira.

Max, pai de três filhos, afirma pedalar entre 12 e 16 horas por dia, podendo chegar a 18h diárias, expressa de maneira cristalina o perfil dos entregadores e as condições socioeconômicas de uma nova classe trabalhadora que surge com a plataformização do trabalho. Esse é o novo proletariado de serviços na era digital – como diz Ricardo Antunes -, sua realidade evidencia que todo e qualquer discurso sobre os/as entregadores/as serem trabalhadores autônomos não passa de uma narrativa ideológica a serviço dos interesses das grandes empresas para explorarem agudamente esse trabalho e aumentarem ainda mais suas taxas de lucro. Por outro lado, a agressora racista, Sandra, expressa o perfil de uma classe média branca – reprodutora do reacionarismo burguês – que historicamente perpetua os seus privilégios através de um Estado reprodutor e formulador de uma sociedade categoricamente desigual, econômica, social e racialmente falando. Isto é, do Estado burguês.

A responsabilidade das empresas de aplicativos

Com a eclosão da pandemia em 2020, as mais veladas das contradições sociais tornaram-se evidentes e perceptíveis diante de um patógeno igual para sujeitos em condições sociais extremamente desiguais. Relembramos que a condição social e étnica teve importante relevância no quadro daqueles que perderam a vida nesse último período sombrio. Contudo, tais contradições não ficaram apenas cristalinas, foram extremamente acentuadas: novos bilionários surgiam e milhões de pessoas eram empurradas para a extrema pobreza em um assustador intervalo de 30h no período de um ano, segundo relatório da OXFAM.[5]

Podemos, com toda a certeza do mundo, afirmar que os entregadores de aplicativo foram e seguem sendo expressão social dessas contradições e de uma nova morfologia do trabalho (ANTUNES) que combina uma tecnologia avançada, produto da indústria 4.0, com uma precarização estrutural do labor, em que as empresas de plataforma escondem a compra – o assalariamento – do tempo do trabalhador, localizado em uma extensão geográfica que potencialmente atinge os quatro pontos cardeais do globo. As empresas por plataforma expressam, sob “o escoamento de excedente de capital em uma era de taxas ultrabaixas de juros e de difíceis oportunidades de investimento”[6], a necessidade de acentuação da exploração da mão de obra disponível para atenuar a sistêmica crise do capitalismo a nível internacional, a queda na taxa de lucro. Segundo Trebor Scholz, as empresas de plataforma se apresentam como “um instrumento no processo de dissolução do emprego direto, criando, dessa forma, um futuro de baixos salários para milhões de pessoas”[7], ao que poderíamos agregar o salário pago por peça (junto à transferência total dos riscos para o entregador, o capital constante) para reduzir custos, aumentar a produtividade do trabalho e, assim, a extração de mais-valia absoluta.

É, portanto, sob resumida dinâmica, que as empresas de plataforma no Brasil e no mundo contribuem para a materialização de uma categórica regressão nas condições de vida dos trabalhadores dos grandes centros urbanos. Essa regressão que nos remete às condições de trabalho pré-tayloristas do século XIX que pulverizam ao tecido social e político a marginalização dos entregadores de aplicativo – que resgatam a concepção de que o entregador, em consoante semelhança com os operários do século XIX e começo do século XX, não merecem nada além do que trabalhar (de forma cada vez mais precarizada) para subsistir. Ou seja, por serem mão-de-obra submetida aos ditames das platamorfização do trabalho, produto direto da formação capitalista e dos novas formas de exploração, ao não possuírem direitos reconhecidos pelas empresas, passam a não serem reconhecidos como sujeito social pela sociedade.

As empresas de aplicativo não “só” precarizam as condições de trabalho e, portanto, a condição de vida dessa categoria, mas também trabalham incansavelmente para invisibilizarem o/a entregador/a. Por exemplo: os recursos de contato do motoboy/girl e bikers com os clientes nas plataformas são limitados ao máximo. As empresas, inclusive, monitoram as mensagens trocadas pelo aplicativo e indicam ao/a entregador/a que é inconveniente contatar a pessoa que fez determinado pedido. Não bastasse, as empresas não disponibilizam qualquer espaço digno de acesso a banheiros e para comer aos/as entregadores/as e, somado aos restaurantes que não permitem o uso dos banheiros pelos/as motocas e bikers, levam adiante a mais brutal precarização do trabalho de toda uma categoria. Além disso, são as empresas que estipulam o valor da gorjeta ao cliente, indicando as quantidades “devidas” do preço a ser deixado ao entregador/a – “eles/as não podem ser socializados e merecem isso”, dizem os “algoritmos”.

Ou seja, há uma posição consciente por parte das empresas nesse processo de precarização que nos faz lembrar da época da escravidão no país: escravos apenas trabalham e não acessam os espaços ou direitos de seus senhores brancos, da elite social. Se o fizessem seriam severamente punidos por essa mesma elite, mas mesmo assim nas mais difíceis condições, resistiam, construíam quilombos e  subjetividade social. Esse comportamento das empresas e do Estado se reflete diretamente no quadro psicossocial, na subjetividade social, de que os/as entregadores/as não são merecedores de dignidade e respeito, ou seja, nessa perspectiva embrutecida da classe dominante, são parte do substrato social mais baixo e marginal, cuja única função deve ser coletar e entregar os pedidos: servir as camadas sociais superiores.

Portanto, essa tentativa de apagar os/as trabalhadores/as de entregas por aplicativo, muitas vezes lembrados apenas por suas buzinas no trânsito, ou quando sucedida uma tragédia em um deslocamento – como não lembrar do entregador Yuri que morreu trabalhando na cidade do Rio de Janeiro antes de entregar um pedido e teve sua conta desativada 11 dias depois por “má conduta”-, contribui diretamente à escalada da violência social e racial contra aqueles/as que fazem entregas.

Não poderíamos deixar de ressaltar que se soma à escalada das agressões civis aos/as entregadores/as a violência estatal promovida pelas forças repressoras do Estado. Todos os dias nas grandes cidades do país centenas ou até mesmo milhares de motos – ferramenta imprescindível para o trabalho – são apreendidas de maneira arbitrária pela Polícia Militar; são cada vez mais recorrentes os motocas que ateiam fogo nas suas motos apreendidas como ato de desespero, revolta e indignação contra tamanha e permanente injustiça. Todos os dias milhares de entregadores, que se enquadram no perfil “suspeito” dessa corporação, são enquadrados, espancados e humilhados em plena luz do dia. Todos os dias esses/as trabalhadores/as são vítimas também de assalto e furto de suas motos. Costuma-se dizer entre a categoria: “de dia corremos da polícia e de noite do ladrão”.

Unificar a luta contra a violência e exploração

A violência racista sofrida por Max e Viviane se soma a outras tantas ocorridas nos últimos meses em que entregadores foram covardemente agredidos por clientes das plataformas de delivery e por donos de restaurantes. Aqui, em São Paulo, o entregador Dorivaldo Amazonas, de 58 anos, teve seu celular destruído junto com a sua moto após ter sido covardemente agredido por moradores de um condomínio do bairro da Mooca, por ter se recusado a entrar no conjunto residencial – ou seja, não fazer mais daquilo que deveria. Poderia aqui discorrer o relato de outras diversas agressões e injustiças cotidianas.

Após a agressão de Dorivaldo, cerca de 500 entregadores/as foram até a frente do condomínio se manifestar exigindo respeito, isto é, o mínimo de dignidade que lhes é negado pelo Estado, pela sociedade e pelas empresas de aplicativo. Assim, conforme cresce a violência sobre as condições de trabalho, cresce, também, a indignação da categoria e protestos espontâneos e coletivos, o que tem sido uma importante conquista coletiva da categoria que cada vez mais se reconhece como parte da classe trabalhadora que deve lutar por reconhecimento social e direitos. Essas ações coletivas têm sido cada vez mais recorrentes, indicando a necessidade/potencialidade da luta pela base contra a exploração e violência social e política.

Diante do grave cenário colocados aos/as entregadores/as de aplicativo e da reação espontânea contra a violência e exploração que assistimos em várias parte do país, nós, Entregadores Unidos Pela Base, após algumas reuniões abertas decidimos pela necessidade de construir uma nova greve da categoria: dias 1 e 2 de julho (em alusão a data do primeiro breque de apps que aconteceu em 2020). Para reunir forças e tentar unificar ao máximo a categoria, estamos também construindo cafés da manhã solidários nos principais pontos de todas as zonas da cidade de São Paulo para dialogar com a base dos/as entregadores/as sobre a necessidade de uma ampla unidade na ação e de construir espaços permanentes de democracia operária. Isto porque para o próximo período, tema que dedicaremos em outras notas, será apresentada uma falsa proposta de regulamentação já discutida de maneira antidemocrática entre a burocracia sindical, empresas de app e governo federal.

Por último, nós Entregadores Unidos Pela Base exigimos justiça para Max, Viviane e todos/as os/as entregadores/as vítimas de violência elitista e racista. Isso passa, neste momento e em primeiro lugar, pela imediata prisão da racista e agressora Sandra Mathias Correia de Sá, mas também pela responsabilização das plataformas e do Estado pela precarização da categoria, pelo atendimento das reivindicações dos entregadores e pela participação da base da categoria na discussão sobre a regulamentação do seu trabalho. Daremos os recados pelas ruas: não passarão!

[1] 4 Dados que mostram por que Brasil é um dos países mais desiguais do mundo, segundo relatório. Acessado em 18/04/2023 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-59557761#:~:text=As%20desigualdades%20patrimoniais%20s%C3%A3o%20ainda,financeiros%2C%20como%20propriedades%20imobili%C3%A1rias).

[2] Idem.

[3] Mobilidade urbana e logística de entregas: um panorama sobre o trabalho de motoristas e entregadores com aplicativos; maio de 2012 a abril de 2022.

[4] Com a completa falta de transparência das empresas de aplicativo em disponibilizarem a quantidade de contas habilitadas para o serviço de entrega e a relação de horas trabalhadas e quilômetros rodados com o valor recebido pelos/as entregadores, procuramos sempre entrelaçar e validar os dados das pesquisas com os resumos financeiros de colegas e camaradas que possuem como principal fonte de renda o trabalho de entregas.

[5] OXFAM. Lucrando com a dor: Sobre a urgência de tributar os ricos em meio a um aumento na riqueza bilionária e a uma crise de custo de vida em nível global. OXFAM – Briefing de mídia, 2022. Disponível em: <www.oxfam.org>. Acesso em 10 de dez. de 2022.

[6] Nick Srnieck, Plataform Capitalism.

[7] Trebor Scholz, Uberworked and Underpaid: How Workers Are Disrupting the Digital Economy (Cambridge/Malden, Polity, 2016).