A FORMAÇÃO DE UM LATIFÚNDIO NA AMAZÔNIA

(Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Ricardo D’Addio (escrito em novembro de 2020)

Não sou especialista nas questões amazônicas e nem mesmo um morador dessa enorme região, sou um biólogo viajante e atento, que em várias visitas à Amazônia colecionou relatos e observações sobre seus diversos problemas que, muitas vezes, são desconhecidos por grande parte da população brasileira que vive em outras regiões e, especialmente, pela população urbana.
Em meus relatos, por razões absolutamente óbvias, nomes de pessoas e até de cidades e vilas serão omitidos.

No início dos anos 2000 eu me dirigi à Rondônia, onde passei muitos dias
em pequenas cidades e vilas. Em uma pequenina cidade eu estabeleci contato com moradores e com eles fui conhecendo a região, acompanhando seus trabalhos e aprendendo.
Grande parte das estradas de terra por onde se locomoviam cruzavam propriedades particulares onde não havia qualquer vestígio da outrora exuberante floresta amazônica, a não ser as esparsas e isoladas castanheiras, já morrendo, com seus troncos carbonizados a delatar as queimadas que as afetaram ao longo dos anos, além delas alguns babaçus cercados por um mar de braquiária amarelada, em pastos de baixa produtividade.
Rodávamos dezenas de quilômetros quase diariamente por essa paisagem desoladora, empobrecida, onde o gado nelore, com sua pelagem branca, praticamente não encontrava abrigo contra o sol inclemente.
Nas conversas descobri que aquela área enorme, na qual circulávamos por muitas dezenas de quilômetros, pertencia a um único proprietário que era bem conhecido na região.
Quando falavam do sujeito sempre o faziam com certo cuidado e observações que pareciam se referir a uma figura lendária até que, certo dia, presenciei o seguinte diálogo entre dois moradores:

  • Outro dia vi o ….. na beira da estrada. Estava lá, tranquilão, ao lado do carro quebrado, disse um.
  • Sério? Respondeu o outro.
  • Sim, a coisa mais fácil seria matá-lo ali, qualquer um que passasse de carro podia acertá-lo.
  • Mas era ele mesmo?
  • Claro. Não vou conhecer o ….? Estava lá com seu chapelão e com camisa branca! Só com o motorista e mais um mexendo no carro.
  • Verdade? Não tava com seu pessoal?
  • Não, respondeu o outro, até estranhei de vê-lo daquele jeito tão desprotegido ali na estrada.
  • Um homem desses dando mole assim! Estranho mesmo.
    Já havia ouvido falar muito naquele sujeito e agora mais próximo dos moradores tomei a liberdade de perguntar sobre a figura que parecia respeitada, temida e odiada e obtive como resposta:
  • Moço, ele é dono de quase todas as terras por aqui, é tudo dele, esse pasto sem fim, esses bois é tudo dele.
  • Mas porque tem gente que quer matá-lo? Perguntei.
  • Moço, essas terras ele não comprou não, isso aí foi tudo tomado na bala! Conforme foram abrindo as estradas, anos atrás, o povo foi chegando, cada um pegando um pedacinho de chão pra fazer sua casinha, sua roça e manter a família. Quando ele chegou começou a pegar muita terra só pra ele, mas sempre queria mais.
  • Sabe como ele fazia? Perguntou um deles para mim e antes que eu respondesse continuou.
  • Ele mandava seus jagunços chegar na casa do posseiro e avisar que tinham que se mudar, que no dia seguinte um caminhão os pegaria com suas tralhas e faria a mudança deles, os levaria para onde quisessem nas redondezas.
  • Assim? Intimava o pessoal a deixar suas casas, suas roças, suas pequenas terras, de uma hora para a outra?
  • É! Assim mesmo! E se o caboclo dissesse não, eles matavam o cabra, sem dó. Ele é ruim, não tem dó não, não tem quem peite ele e fique vivo!
  • Quer dizer que o cara apenas tomou essas terras dos outros e quem não concordasse morria?
  • É isso mesmo, morava gente por tudo isso aí, agora é tudo dele, só braquiária e nelore.
    Não havia como não se indignar com os relatos sobre aquele sujeito cruel e ganancioso, que era apenas um, dentre tantos outros espalhados pelo país, que fizeram e fazem o mesmo em diferentes épocas e regiões do Brasil.
    E assim construímos um país violento, cruel e desigual.
    Cerca de 5 anos depois de minha visita à região o sujeito foi assassinado, mas seus descendentes desfrutam tranquilamente da riqueza que usurpou do país e de uma população pobre e sofrida.