Vermelhas: coronavírus e as mulheres na quarentena

O isolamento social contra o aumento do contágio da pandemia do novo coronavírus acende alerta sobre aumento da violência de gênero. O confinamento doméstico sempre foi um facilitador da violência contra a mulher, e causa mais preocupação nesse momento no qual as mulheres estão duplamente vulneráveis.

Carta aberta Viver sem violência é um direto

Por um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero

Rosi Santos – Vermelhas São Paulo

Inicialmente queremos destacar que as medidas de confinamento, corretamente orientadas pelo Ministério da Saúde e Organização Mundial de Saúde (OMS), não são as responsáveis pelo aumento da violência gênero, mas sim o descaso institucional do Governo machista, misógino e genocida de Jair Bolsonaro. Redobrando a preocupação no interior do movimento feminista sobre a segurança das mulheres nesse momento de isolamento social.

Hoje, os casos de contaminação já ultrapassaram os 752.263 casos de corona vírus a nível mundial e mais de 36.205 pessoas já perderam suas vidas. E a situação de vulneráveis, que se complica imensamente nesses momentos, é ainda mais ignorada pelo poder público. Estima-se que hoje, na capital paulista, existam entre 20 mil a 25 mil pessoas em situação de rua, entre elas crianças e idosos que pertencem ao grupo de risco.

Embora as mulheres e trans sejam a minoria em situação de rua, representando de 15 a 20% dessa população, são as que mais sofrem violências.
Diferentemente de outros países, após a orientação de confinamento do Ministério da Saúde brasileiro, em nenhum momento foi pensado a especificidade da realidade das mulheres em nosso país, hoje por volta de 51,7% da população e com taxas altíssimas de diversos tipos de violência, principalmente feminicídios.

Bolsonaro e Damares Alves, sua pretensa ministra responsável por essa temática, não pensaram nos milhares de processos de violência em andamento, na situação dos lares monoparentais liderados exclusivamente por mulheres que necessitam de apoio econômico nesse momento, e que hoje muitas delas estão sendo efetivamente obrigadas a conviver com seus agressores.
O confinamento mal planejado, como vem sendo feito, favorece o agressor que mantém proximidade e domínio sobre a vítima. Além disso, existem outros agravantes como o aumento do consumo de álcool e uso de outras substancias, fatores que não justificam, mas que estão presentes e potencializam o inferno que deve ser conviver com uma pessoa violenta.

A pandemia colocou em evidencia a profunda crise da saúde pública a nível mundial, causada pela sistemática falta de investimento e avanço da privatização aos serviços públicos. E em tempos de pandemia notamos que o descaso intencional dos governos serve à rearticulação do setor financeiro para perder o mínimo possível de seus lucros nesse momento de crise. Há poucos dias, no auge da pandemia, os bancos tiveram a audácia de elevar os juros, e a falta de controle estatal demonstra mais uma vez o quanto governos neoliberais – como o nosso – são verdadeiros inimigos das mulheres e dos trabalhadores.

Nesse sentido, se eles não descansam, nós mulheres também não podemos descansar. Precisamos dobrar a aposta, exigindo imediatamente um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero. Um plano sério de defesa às mulheres e LGBTQIA+, amplamente discutido com todos os setores sociais, entre eles o movimento feminista, como já é presente em outros países.

Não é possível avançar no combate a violência de gênero, principalmente em nosso país, com tantas diferenças regionais e de desigualdades sociais tão profundas, onde a maioria dos casos de agressões de gênero ocorre dentro da própria casa, sem que uma medida totalizadora como essa seja tomada. A opressão e a vulnerabilidade feminina devem ser enfocadas como uma categoria de análise central no aspecto das políticas públicas, não só para a compreensão de sua dinâmica, mas como única possibilidade de ser enfrentada de frente.

Por essas razões, é fundamental estarmos atentas e construirmos laços comunitários e de solidariedade às vítimas, apesar do isolamento. Tratar do assunto nesse momento e exigir intervenção do Estado, imediatamente, é premente para que muitas saibam que não estão sozinhas.

Um descaso e abandono institucional sem precedentes

O aumento da violência machista está sustentado em um tripé. Primeiro, o grau de vulnerabilidade das vítimas. Segundo, a dificuldade para acessar a políticas já existentes de combate e prevenção. Por último, a impunidade. E neste exato momento, milhares de mulheres trabalhadoras vivem exatamente esse drama. Totalmente desassistidas pelo Governo que, além de incentivar o fim do isolamento de maneira irresponsável, já demonstrou que está de costas virada para essa realidade.

É estarrecedor constatar que em alguns Estados, além do fechamento das Delegacias da Mulher, a recomendação durante a pandemia é que antes do deslocamento as delegacias, as eventuais vítimas, façam contato telefônico para a verificação da efetiva necessidade e urgência do atendimento, sendo o próprio atendimento pessoal realizado em horários especificados por cada unidade. E sem esquema de plantão e nem sequer informação as mulheres estão à própria sorte.

A lei Maria da Penha (Lei n.º 11.340) que completa 14 anos em 2020 representou um avanço na medida em que reconheceu e instituiu como crime de gênero à violência doméstica, e foi pioneira ao estabelecer medidas protetivas as vítimas e punitivas ao agressor. Mas ela ainda está longe de significar um avanço a ser comemorado pelas feministas. Nessa quase uma década e meia da lei, ela se encontra estancada e as mulheres vivem de promessas de melhoramento.

A maior delas foi ainda no Governo Lula, chamado de Pacto de Enfrentamento à Violência contra a Mulheres, na qual a população feminina e o movimento não sabem o que é e nem quem o escreveu, porquê jamais foram consultadas. Temos uma em que, a Medida Protetiva não protege, o 180 – telefone de emergência – não atende, as informações não circulam e o desrespeito e desumanização da vítima, até mesmo aquelas com sinais visíveis de violência, é o que predomina.

Nos momentos de crise como os que estamos enfrentando é quando mais se evidencia a frágil condição das mulheres. Por isso, diversas companheiras vêm se organizando e denunciando o machismo estrutural do nosso país, a misoginia e o abandono institucional do Governo, que vem colocando cada vez mais dificuldades a toda classe trabalhadora e particularmente às mulheres que são duplamente exploradas, entre elas as mulheres negras que são as mais precarizadas.

Nesse sentido, exigimos de imediato que o funcionamento das Delegacias da Mulher seja normalizado e que sejam redobrados os esforços de combate e prevenção a violência por meios de rondas, acolhimento e afastamento do agressor às vítimas. Pois à medida que se estende os dias de confinamento em meio à pandemia, aumentam-se todos os tipos de tensões nos lares de muitas mulheres pobres e a violência não pode ser mais uma delas.

Pela criação de um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero

O Coronavírus não pode potencializar o abandono, das vidas negras, das mulheres e das LGBTQIA+. Em momentos de crise, seja econômica ou como essa que estamos vivendo, os mais pobres são os primeiros a terem seus direitos violados. A crise econômica de 2008, que ainda causa impactos na realidade de vários países, levou centenas de mulheres pobres a não terem alternativa para sobreviver a não ser a prostituição na Europa. No Brasil, vimos esse fenômeno de maneira mais sentida durante a realização dos jogos da Copa do Mundo de 2014.

Mas em um cenário em que trabalhadores e juventude periférica estão se arriscando a contaminação do vírus, seja nos serviços de Delivery ou em outras exposições para continuar sobrevivendo, algumas mulheres – muitas delas do grupo de risco – não interromperam a prostituição no centro da cidade, um fenômeno que tende a aumentar quando as primeiras a perderem seus postos de trabalho são da massa feminina.

Muitíssimas mulheres trabalham na área da saúde, educação, serviços e outros setores de atenção, compondo 70% dos profissionais de saúde no mundo inteiro e até mesmo as que estão em isolamento em suas casas demonstram um emprenho extra no controle da doença.
Ou seja, a preocupação do governo deveria ser a de cuidar daquelas que sempre cuidou de todos. Mas a realidade é o oposto disso. Realizamos uma rápida pesquisa sobre o enfrentamento a violência e políticas de gênero específicas nesse momento na América Latina, e vimos uma diferença espantosa comparada ao nosso país.

Países como Chile, por exemplo, que ainda vive uma crise política que levou milhares de mulheres a ocuparem as ruas contra o autoritarismo do governo machista de Sebastián Piñera, publicou um plano específico de contingência e tem reforçado o atendimento as vítimas. Também redobrou as campanhas publicitárias sobre o tema e, durante todo o período da pandemia, seguirá todos os operativos nos centros de ajuda e nas casas de acolhimento às vítimas com normalidade. Ministério de Desenvolvimento Social do Uruguai publicou em sua página oficial: “sabemos que esses dias em que se permanece mais tempo em casa aumentam-se as situações de risco para as mulheres…”. E também tem tratado o tema de maneira particular.

A Argentina por sua vez, além de medidas similares, aprovou em seu pacote econômico de combate ao coronavírus, uma renda mínima para as mulheres desempregadas, medida que consideramos importantíssima, pois a dependência econômica é um dos principais fatores que encorajam homens a oprimir e violentar suas companheiras.
Sabemos que essas politicas estão longe de resolver o problema da violência machista, mas são importantes para impactarem positivamente na sociedade. A luta contra a violência machista deve ser feita de diversas formas, e no Brasil, as mulheres não contam sequer com campanhas de conscientização.

Hoje as mulheres e LGBTQIA+ vivem em estado de constante alerta e já não podem esperar pelas promessas de governos, que não garantem os direitos já previstos em lei, e em alguns inclusive, querem retroceder nos direitos já conquistados, como o governo atual. Por isso, é necessário que o governo central estabeleça um compromisso real em defesa da segurança desses setores oprimidos nesse momento.
Por isso, fazemos um chamado aberto a todas as entidades, sindicatos, movimento, órgãos de proteção à mulher e organismos internacionais, a denunciar e exigir a responsabilidade do governo brasileiro com as milhares de brasileiras nesse momento.

O isolamento não pode ser político durante a pandemia

Também fazemos um apelo às, mesmo que poucas, mulheres que ocupam cargos públicos, legislativos e de administração pública. Para que as parlamentares de esquerda e do campo progressista se manifestem enfaticamente para que o Governo resguarde as mulheres durante essa crise. De uma vez por todas a pauta do feminismo não pode ser apenas lobby político para as eleições.

De nossa parte, temos sido enfáticas na importância da centralidade da pauta de gênero, e do combate à violência nos diversos âmbitos da politica e da sociedade, e damos especial peso a necessidade de um movimento feminista de luta nas ruas.

O momento em que estamos extrapola o aceitável, pois além da insegurança econômica, do estresse emocional com as exigências de cuidados que recaem centralmente sobre elas, e das bizarras declarações de Bolsonaro, as mulheres trabalhadoras também têm que se submeter ao risco da perda de sua integridade física e de suas vidas.

As Vermelhas partem de um balanço político não só internacional, mas histórico do movimento de mulheres, e temos absoluta convicção que as ondas feministas ocorridas na América Latina e importantes ebulições de mulheres ao redor mundo, impactaram positivamente as mulheres e as novas gerações de lutadoras de nosso país. Além disso, o inaceitável aumento dos números de feminicídios e a brutalidade à LGBTQIA+ impõem darmos um passo a mais como organizações e militantes e exigirmos do Governo Federal a criação de um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero com uma política abrangente para enfrentar esse momento de crise que tende a se aprofundar ainda mais.

Nossas vidas importam

A comunidade Trans grande beneficiária de tratamentos específicos no sistema público de saúde, como tratamentos hormonais, por exemplo, não podem ser prejudicadas pelo caos que vai se instalar na saúde, pois sofrer a interrupção desse atendimento pode gerar consequência física e psicológica graves a pessoas dessa comunidade, políticas como essas devem ser defendidas nesse momento, por os mais vulneráveis não podem esperar.

As Vermelhas é um coletivo feminista e socialista, em construção, presente em diversos países. Surge no Brasil em 2019, e hoje, apesar das enormes dificuldades que é a organização da vida das mulheres trabalhadoras e militantes, está agregando diversas companheiras independentes, autonomistas, de outros movimentos, partidárias e não partidárias, em torno da bandeira do Feminismo Socialista que tem realizado um esforço militante e de elaboração no interior do feminismo.

Por um feminismo que possui raça e classe e entende que o capitalismo é braço direito do patriarcado e de qualquer possibilidade de diversidade humana. Uma caracterização política que coloca no centro as demandas especificas das mulheres e a necessidade de um movimento massivo e organizado nas ruas é hoje o que nos leva a dialogar com um número cada vez maior de companheiras, e a publicar essa carta.

Pois com o descaramento da misoginia, o Governo Bolsonaro tende a aumentar percepção social sobre violência, por isso é fundamental que o movimento feminista saia das pautas abstratas, e atinja cada vez mais as mulheres na periferia sendo essas as mais afetadas com a violência machista e institucional e as violações de direitos básicos. E construa uma proposta de políticas públicas unificada e que considere a realidade das opressões de gênero em um país racista, LGBTfóbico e elitista.

Assim, enfatizamos novamente, a urgência de caminharmos todas em direção da construção de um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero, estudado, debatido e decidido democraticamente no interior movimento feminista, por meios de reuniões, encontros estaduais e assembleias regionais, para colocarmos nas ruas uma disputa unificada contra os governos que seguidas vezes traem e abandonam as mulheres principalmente no momento em que elas mais necessitam do auxilio estatal.

Lançamo-nos com nossas poucas forças a esse desafio e chamamos a todas as companheiras independentes, autonomistas, coletivos independentes, coletivos de partidos de esquerda como PSOL, PSTU, PCB, PCdoB e principalmente as direções de mulheres do PT, que hoje dirigem e controlam a agenda do movimento feminista a nos acompanhar nessa grande campanha.

É pela vida das mulheres!


Lutar por um Protocolo Nacional de Segurança de Gênero!

Com feminismo na rua o machismo recua!

Por um movimento feminista independente dos governos e aparatos que priorize a organização e disputa política das mulheres nas ruas

Foto: Anônimo. intervenção inspirada na conhecida instalação Zapatos Rojos, que trouxe reflexão contemporânea da violência de gênero na Espanha em 2015

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