Nota dos tradutores

Temos o prazer de publicar o ensaio bibliográfico-teórico Um Marx para o século XXI de Roberto Sáenz, escrito em 2018 por ocasião dos 200 anos do nascimento de Karl Marx. Esse é um esforço de tradução militante que visa contribuir com a formação política e teórica da juventude e dos novos setores da classe trabalhadora, que estão fazendo as suas primeiras experiências de organização no movimento sindical e na vida partidária no interior da esquerda socialista revolucionária.

Sáenz, nesta “interessada” – no sentido da recuperação e atualização do gigantesco legado deixado pelo pensador alemão para a revolução social – tomada sobre a vida e a obra de Marx e Engels (parceiro fundamental), traz elementos centrais do esforço teórico, da militância e da vida daqueles que foram capazes realizar uma crítica radical de todo o edifício da sociedade capitalista do seu tempo, mas que deixou também indicações de desenvolvimentos futuros do modo de produção dedicado à produção de mercadorias.

Em que pese que Marx e Engels não tenham podido viver a “aventura” da revolução social em seu tempo de forma plena, pois as grandes aventuras da revolução tiveram oportunidade de viver apenas as gerações seguintes, foram homens extraordinários não apenas em sua monumental elaboração teórica. Neste sentido, Sáenz nos mostra que eles foram um exemplo de dedicação, de consequência política e de sacrifícios pessoais que os colocam como figuras de primeiro valor ético e referência para todas as gerações de revolucionários e revolucionárias que os seguiram. 

A partir da crítica materialista dialética do legado de outras gerações de pensadores da filosofia, história, política e econômica, foram capazes de elaborar uma síntese teórica original sobre a realidade do capitalismo que permanece fundamental para compreender o mundo hoje. O campo de imanência histórico-social do capitalismo e as categorias econômicas, políticas e históricas (alienação, fetiche, luta de classes, mais-valia, capital, luta de classes, autoemancipação e etc) que foram formulados por Marx e por Engels através do seu materialismo dialético seguem como síntese de determinações centrais da realidade. 

Assim, se as suas contribuições não forem apropriadas criticamente – como nos ensinaram – não se pode ter sucesso na compreensão dos nosso tempo e, muito menos, como transformá-lo. Construíram assim uma teoria que pode ser atualizada, mas enquanto houver capitalismo – o mesmo se aplica às sociedades não-capitalistas conforme demonstra a experiência do século XX -, o marxismo, como outras filosofias do passado que foram capazes de sintetizar uma determinado mundo, é a filosofia insuperável do nosso tempo (Jean-Paul Sartre).

Sáenz em sua vida e obra de Marx (e Engels), Um Marx para o século XXI, e em outros trabalhos anteriores e que estão sendo gestados no exato momento em que publicamos esse texto de 2018, não traça um painel escolástico dos pioneiros do socialismo científico, mas sim uma apropriação crítica e interessada que visa, a partir do balanço rigoroso das revoluções do século XX, das condições do capitalismo na atualidade e das tarefas colocadas para as atuais gerações de lutadores em meio a um capitalismo cada vez mais destrutivo, contribuir com o rearme teórico-político para a luta cada vez mais urgente para colocar de pé um poderoso movimento pela revolução socialista no século XXI. Boa leitura!

Um Marx para o século XXI

(Ou a atualidade de sua crítica implacável a tudo o que existe)

140 anos após a morte do grande teórico e político revolucionário da classe trabalhadora, Karl Marx

Marx foi, acima de tudo, um revolucionário. Cooperar, desta ou daquela forma, com a derrocada da sociedade capitalista e das instituições políticas criadas por ela, para contribuir para a emancipação do proletariado moderno, a quem ele havia incutido pela primeira vez a consciência de sua própria situação e de suas necessidades, a consciência das condições de sua emancipação: tal era a verdadeira missão de sua vida. A luta era seu elemento.”

(Engels, “Discurso diante do túmulo de Marx”, Cemitério Highgate, Londres, 17/03/1883)

ROBERTO SÁENZ

Este ano marcou o 200º aniversário do nascimento de Karl Marx. O ano passado foi o 150º aniversário da primeira edição do primeiro volume de “O Capital”, sua obra máxima, a única publicada pelo próprio Marx.[1]

Em um contexto em que os aniversários estão na ordem do dia, há uma proliferação de atividades em torno de Marx: painéis, conferências, publicações, biografias, e assim por diante. Em suma, uma boa oportunidade para revisitar sua vida e sua obra. Em nosso caso, a ocorrência do aniversário de seu nascimento nos levou a produzir este livreto como revisão dos aspectos biográficos, bem como a visitar alguns textos cardeais de Marx e Engels e a destacar considerações teóricas e metodológicas básicas dos fundadores do marxismo.

No texto a seguir tentaremos abordar esta tarefa a partir do ângulo de uma “atualização” de Marx para o século XXI: materialista, dialético, antiteleológico, revolucionário e crítico do substitucionismo da classe trabalhadora.[2]

Porque um Marx do século XXI é aquele que atualiza a crítica do capitalismo combinada com o balanço das revoluções frustradas do século passado; uma tarefa, esta última, para a qual, a maioria das correntes revolucionárias fogem como da peste.[3]

Assim, colocamos à disposição da militância um ensaio que procura transmitir aspectos fundamentais da vida e da obra de Marx e Engels para a formação de novas gerações; uma atualização do pensamento marxista que serve para enfrentar os desafios deste novo século.

  1. Breve biografia

Vamos começar com uma breve biografia de Marx[4]. Marx, o “Mouro”, ” Velho Nick”, o “Motor a Vapor” (apelido pelo qual era chamado ou pelo qual se identificou[5]), nasceu em 5 de maio de 1818 em Trier, cidade da Prússia Renana, que no início do século XIX foi ocupada pelos franceses, que lhe deram uma marca modernizadora.

Seu pai era um advogado de origem judaica que se converteu ao protestantismo por razões de trabalho em 1824. Chefiava uma família relativamente abastada e culta. Suas ideias eram moderadamente progressistas[6].

Depois de concluir seus estudos secundários em Trier (estudos que tinham uma forte tendência humanista), Marx foi para a universidade, estudando primeiro em Bonn e depois em Berlim. Em 1841 ele terminou a universidade com uma tese sobre a “Diferença entre as filosofias da natureza de Demócrito e de Epicuro”, conhecidos filósofos gregos pós-aristotélicos.

Marx mudou-se posteriormente para Bonn com a intenção de se tornar professor. No entanto, as ideias radicais que ele já professava – ainda as de um Hegeliano de esquerda que fazia campanha pela democratização do Estado – o impediram de entrar na vida acadêmica. Paralelamente a estes acontecimentos, no início de 1842, os burgueses renanos fundaram um jornal de oposição chamado “Gazeta de Renânia”. Marx foi o editor-chefe deste jornal nos últimos meses daquele ano, o governo o obrigou a renunciar do seu cargo no início de 1843 e, finalmente, fechou o jornal em março daquele ano.

Em 1843, Marx casou-se com Jenny von Westaphalen, quatro anos mais velha e sua companheira de toda a vida. A discriminação contra as mulheres que prevalecia na época a impedia de frequentar a universidade. Entretanto, todos aqueles que a conheceram pessoalmente, assim como suas cartas, testemunham a inteligência, educação e coragem de uma mulher que se manteve firme na mesma luta que seu marido; com a mesma inteireza comunista. Isto é ainda mais enfatizado quando se observa que Jenny veio de uma família de linhagem aristocrática, sendo um de seus irmãos um Ministro do Interior prussiano nos anos 50, que não estava nada feliz com seu casamento com Marx. O pai de Jenny, por outro lado, era muito querido por Marx, uma apreciação que era retribuída. Marx se dirige a ele como um “mestre” na dedicação de sua tese de doutorado.

No outono de 1843, Marx mudou-se para Paris com o objetivo de editar uma revista de tendências radicais em colaboração com Arnold Ruge (1802-1880), um hegeliano de esquerda que mais tarde evoluiu para posições reacionárias. A revista tinha o título de Anais franco-alemães, e somente o primeiro número da revista chegou à luz do dia. Em agosto de 1844, Friedrich Engels chegou a Paris e a partir daquele momento tornou-se o amigo mais próximo de Marx. Assim, formou-se uma comunidade de ideias e lutas que está entre as mais importantes da história.

O impacto de Paris sobre Marx foi imenso. Era uma metrópole de 1 milhão de habitantes que deixava qualquer cidade na Alemanha parecendo uma província e rivalizava em tamanho apenas com Londres (a maior cidade da Alemanha na época, Berlim, tinha uma população de apenas 300.000 habitantes).

Paris foi a capital da Revolução Francesa, uma revolução que fez da França um “país político” por excelência. Já o maior estado absolutista da Europa e uma meca cultural e artística, podemos até lembrar como Benjamin identificaria Paris como a “capital do século 19”. Além disso, na época da chegada de Marx à cidade, ela possuía condições democráticas básicas para a expressão de tendências políticas e socialistas; a maior diversidade de tendências encontrou expressão na cidade (tanto Sperber como Louça enfatizam este fato). Foi em Paris que se realizou o segundo encontro entre Marx e Engels no Café de la Régence, um encontro que selaria sua amizade para o resto de suas vidas.

Em 1845 Marx foi expulso de Paris como um “revolucionário perigoso” e mudou-se para Bruxelas. Lá ele entrou para a sociedade secreta de propaganda Liga dos Comunistas (setembro de 1847), e foi encarregado de redigir o “Manifesto do Partido Comunista”, que após algum atraso finalmente apareceu em fevereiro de 1848.

Com o início da revolução de 1848, Marx foi expulso da Bélgica. Ele voltou para Paris, e de lá partiu para a Alemanha quando a revolução eclodiu lá em março do mesmo ano. De 1 de junho de 1848 a 19 de maio de 1849, a Nova Gazeta Renana foi publicada em Colônia, da qual Marx era editor-chefe. A partir desta posição, Marx desempenhou um papel importante na revolução, embora ainda com uma estratégia democrática radical. Após o fracasso e a derrota da revolução devido à covardia da burguesia e da pequena burguesia, ocorreu a primeira intuição permanentista de Marx, consagrada na famosa Circular do Comitê Central da Liga Comunista (1850)[7].

Uma vez derrotada a revolução, Marx foi obrigado a se exilar em Londres (depois de passar por Paris), onde permaneceu até o final de sua vida. Durante os anos 50 e 60, Marx se dedicou ao estudo da economia; ele trabalhou nos vários esboços deO Capital” (“Grundrisse”, “Crítica da Economia Política”, “Teorias da mais-valia” e “O Capital” propriamente dito), a maioria dos quais estavam em um estado fragmentário, ou seja, sem terminar. Isto salvo a primeira parte da “Crítica de Economia Política” (publicada em 1859), cujo impacto foi pequeno[8] e a publicação do primeiro volume de “O Capital” em 1867, que foi relativamente bem-sucedida, dando-lhe grande prestígio em tempo real.

A título de digressão, observemos que três versões do primeiro volume de “O Capital” foram publicadas durante a vida de Marx. A primeira, em alemão, em 1867. A segunda, no mesmo idioma, em 1872/1873. E uma terceira, chamada “versão popular”, simplificada pelo próprio Marx para o francês (1872/75). Acrescentando as edições posteriores, bem como os volumes II e III publicados por Engels, formou-se assim todo um “emaranhado” para uma edição crítica do Capital: “O Volume I do Capital – conclui Scaron, [o mais consagrado tradutor para o espanhol da maior obra de Marx até os dias de hoje] – começa a se tornar algo como um enorme pergaminho no qual camadas de redação geralmente (nem sempre) mais ricas cobrem uma boa parte da redação original” (Tarcus; 2018; 84). Tarcus enfatiza que a mudança mais significativa na tradução de Scaron para o Editorial XXI foi substituir o conceito de mais-valia por sobre valor (Wert/Valor; Mehwer/Plusvalor): “Em espanhol“, comentou Scaron ironicamente, “as mercadorias têm valor e não valia” (Tarcus, idem). Retornaremos à elaboração econômica de Marx abaixo.

Durante a segunda metade da década de 1860, Marx deveria inspirar a Primeira Internacional: a Associação Internacional dos Trabalhadores, com seus famosos slogans: “proletários de todos os países, uni-vos” e “a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores“. De Londres, ele viveu a experiência da Comuna de Paris, a primeira experiência histórica de ditadura do proletariado, cujos ensinamentos ele consagraria em A Guerra Civil na França.

Marx finalmente morreu em 14 de março de 1883, sofrendo de doenças respiratórias. Sua morte foi precedida pela de Jenny, que morreu de câncer de fígado em 2 de dezembro de 1881, um evento que foi obviamente extremamente doloroso para Marx. Apenas onze pessoas vão ao cemitério onde Engels prestou sua famosa homenagem: “É completamente impossível calcular o que o proletariado militante da Europa e da América e a ciência histórica perderam com este homem. O vazio aberto pela morte desta figura gigantesca logo será sentido.”

O que se seguiria testemunharia a exatidão das palavras de Engels: menos de 40 anos após a morte de Marx, a Revolução Russa daria forma à revolução social mais profunda da história da humanidade; uma revolução inspirada nas ideias teóricas e políticas de Marx[9].

  1. A vida “comum” de um homem extraordinário

Depois deste breve esboço biográfico, passemos a algumas características da vida de Marx. Chamamos a atenção para o caráter dela. Sua vida não pode ser comparada com os aspectos mais “românticos” (extremos) que cercaram a existência de Lenin, Trotsky, Luxemburgo e Gramsci. Exceto em seus primeiros anos, quando se tornou uma personalidade em Colônia e em vários países europeus (foi expulso como “extremista” da França, Bélgica etc.), a partir dos anos 50 ele teve uma existência dura, mas “tranquila” em Londres (alterada, no entanto, por suas extensas responsabilidades na Primeira Internacional e pelos ataques a que foi submetido internacionalmente durante a experiência da Comuna de Paris).

A vida adulta de Marx não teve, portanto, os mesmos extremos que a vida dos bolcheviques espartaquistas, embora caiba recordar que ele viveu como um apátrida na Inglaterra[10], em condições de miséria. Em qualquer caso, é claro que sua vida não teve a mesma dimensão histórico-imediata que a dos grandes dirigentes socialistas revolucionários do século passado. E, no entanto, configurou uma vida extraordinária.

A vida de Marx teve vários marcos importantes. Uma vida universitária caracterizada por hábitos semelhantes aos de outros estudantes da época; envolvimento político desde muito jovem; sua participação proeminente na revolução de 1848; seu exílio precoce em Londres a partir de 1849; seu trabalho teórico em Londres; sua participação decisiva na fundação da Primeira Internacional em 1864. Tudo somado, uma vida de sacrifício, muitas vezes lidando com a miséria: renunciando ao bem-estar em favor de seu compromisso com a humanidade[11].

Mas se sua vida foi a de um esforçado militante quando ainda a revolução socialista não estava na ordem do dia (nem tinha sido revelado o “mistério” da construção dos partidos revolucionários[12]), Marx chegaria ao mais alto nível do pensamento humano; uma tarefa que ele colocou a serviço da emancipação dos explorados e oprimidos. A riqueza e a força teórico-política e estratégica da obra de Marx é inigualável. Resumindo criticamente o pensamento universal e a experiência sociopolítica até seus dias, ele lançou as bases para o movimento socialista moderno.

A força e a fecundidade de uma obra realizada em meados do século XIX, um trabalho de vigência incomensurável à medida que nos aproximamos da terceira década do século XXI, é expressão da “proeza” realizada: uma abordagem inigualável dos problemas que dizem respeito à emancipação da humanidade das cadeias da exploração e da necessidade; “uma crítica implacável a tudo o que existe; implacável no sentido de que a crítica não teme seus próprios resultados, nem teme conflitos com forças vigentes(…) [a] implacabilidade [é] a primeira condição de qualquer crítica” (Marx, Anais franco-alemães, citado por Heinrich; 2018; 363).

Daí o caráter extraordinário da vida “comum” de Marx. E dizemos isto porque quando nos aproximamos de sua biografia não encontramos, como já dissemos, os “extremos” encontrados nos socialistas revolucionários do século passado. As condições eram outras[13]. E, no entanto, qualquer clivagem em sua existência, qualquer detalhe a priori “ordinário”, tem um significado transcendente, implica em alguma contribuição, algum ensinamento, porque se trata de Marx.

O contraste com a vida dos bolcheviques, por exemplo: vidas onde o cruzamento entre sua própria existência e a revolução social lhes exaltaram em tempo real até os mais altos picos, é evidente; suas biografias também são mais “floridas”. Mas também é verdade, repetimos, que, no caso de Marx, cada detalhe da vida “comum” deste homem extraordinário tem um valor inigualável: um enorme significado, porque é Marx. A profundidade de sua abordagem das questões; o caráter “antecipatório” de muitos de seus insights, fazem seu caráter de personagem extraordinário; isto se soma ao seu caráter de revolucionário, contra a maré, o qual aprofundaremos mais adiante. Isto não significa cair em nenhuma abordagem idealista: as bases materiais do capitalismo estavam suficientemente desenvolvidas (ao menos em certos países) para que Marx fosse capaz de fazer uma análise crítica e “projetar” certas tendências[14].

No terreno político, a maior revolução social até aquela época, a Revolução Francesa, já havia acontecido. Revolução que, combinada com as de 1830, 1848, a Comuna de Paris, a Guerra Civil Americana e uma série de outros eventos políticos e sociais do capitalismo crescente, forneceu a base para projetar a elaboração de Marx à contemporaneidade: seus problemas são nossos problemas[15].

  1. Marx & Engels

A segunda coisa que queremos salientar é que o trabalho de Marx é inseparável do de Friedrich Engels. Marx foi o primeiro violino nesta relação de camaradagem, luta e pesquisa. No entanto, pensar que o marxismo clássico foi obra exclusiva de Marx seria um erro tremendo. Os dois formaram uma equipe de trabalho inigualável[16]. Durante muitos anos, eles tiveram um ao outro e mais ninguém. Eles formaram uma equipe de trabalho, bem como uma relação de solidariedade humana que pode ser vista de forma viva, por exemplo, nas cartas trocadas entre eles, que tratam de quase todos os aspectos da existência humana e da natureza[17].

Se estabeleceu uma “divisão de trabalho” entre Marx e Engels. Marx sempre assinalou que Engels o antecipava nas problemáticas (“você sabe que tudo vem até mim muito tarde; que eu sempre sigo seus passos”[18]). Ao mesmo tempo, Marx era mais profundo na abordagem delas. Engels assumiu os problemas militares e as ciências naturais[19]. Marx se dedicou à crítica da economia. E eles tratavam conjuntamente de questões históricas, filosóficas e políticas, muitas vezes escritas de forma indistintamente por ambos ou mesmo em comum.

Marx tinha uma formação acadêmica densa[20]; Engels era um autodidata[21]. Marx escrevia difícil; Engels tinha uma caneta fluente. Cada um tinha seus próprios traços de personalidade, é claro. A oposição que muitas vezes se tentava fazer entre os dois não se sustenta. Está suposta “oposição” foi estabelecida, entre outros, por Georg Lukács, que, em um trabalho valioso como História e Consciência de Classe, separou mecanicamente a dialética da história da natureza. Outro autor de oposições mecânicas foi Louis Althusser: ele opôs o “maduro” Marx ao “jovem” Marx; ele separou Marx de Hegel.

Althusser ainda está presente na academia, embora esteja cada vez mais desprestigiado dentro do marxismo: ele mesmo admitiu que não tinha estudado seriamente “O Capital”. Teórico tardio do stalinismo, ele se caracterizava por um anti-humanismo radical. Como se a revolução socialista nada tivesse a ver com o ser humano: “os Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844 foram considerados por Althusser ‘o texto mais distante, em sentido teórico, do amanhecer que estava prestes a surgir’ (…) A conclusão extravagante de Althusser foi a impossibilidade absoluta de sustentar que a ‘juventude de Marx pertence ao marxismo” (Marcello Musto, “O mito do ‘jovem Marx’ nas interpretações dos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 1844“).

Mas nenhuma dessas abordagens mecânicas se mantém: a dialética da história e da natureza têm pontos em comum. O trabalho de Marx deve ser visto como um trabalho integral, em qualquer caso, procedendo por superações dialéticas: “(…) Ainda estou lendo este Darwin, que é algo verdadeiramente sensacional. Havia ainda um aspecto no qual a teleologia ainda não havia sido demolida: agora é coisa feita. Além disso, nunca antes foi feita uma tentativa tão ampla para mostrar que existe um desenvolvimento histórico na natureza, ao menos nunca com tanto sucesso” (Carta de Engels a Marx, Manchester, 11 ou 12 de dezembro de 1859; Anagram; 21).

Como digressão, Draper afirma que o próprio Marx tinha esta apreciação de seu trabalho. E na mesma linha está um comentário agudo de Henry Lefebvre citado por Musto: “(…) nas obras juvenis de Marx, e para ser mais preciso, nos Manuscritos Econômico-Filosóficos, o pensamento de Marx ainda está em germinação, no caminho, no vir a ser (…) Não aparece (…) tudo de uma vez, através de uma descontinuidade absoluta, após uma ruptura, no instante X (…) Uma novidade radical tem que aparecer no instante X (…) Uma novidade radical tem que nascer, crescer, tomar forma, justamente porque é uma nova realidade (…) A tese que atribui uma data ao marxismo ou que tenta datá-la, corre um alto risco de torná-la árida, de interpretá-la unilateralmente. O erro, a falsa escolha a evitar, é superestimar ou subestimar as obras juvenis de Marx (“O mito do ‘jovem Marx’ nas interpretações dos Manuscritos Económico-Filosóficos de 1844”).

Voltando a Darwin, Marx o elogiou nos mesmos termos, afirmando que nele se encontrava “o fundamento histórico-natural” de sua concepção materialista da história. Já com relação ao tributário que é o marxismo da dialética de Hegel, da dialética como lei geral do desenvolvimento, Marx faria questão de observar que “tudo o que ele tinha feito era colocar a dialética sobre seus pés”. É a existência que determina a consciência, e não o contrário: “(…) Quando eu tiver me livrado de meu fardo econômico, escreverei uma ‘Dialética’. As leis corretas da dialética já estão contidas em Hegel, embora de uma forma mística. É uma questão de tirá-las dessa forma (…)” (Carta de Marx a Joseph Dietzgen, 9 de maio de 1868; Anagram; 65). E também: “Dühring sabe perfeitamente que meu método de exposição não é o mesmo de Hegel, pois sou um materialista e Hegel um idealista. A dialética de Hegel é a forma fundamental de qualquer dialética, mas somente quando conseguimos despi-la de seu traje místico, e isto é precisamente o que distingue meu método (…)” (Marx para Ludwig Kugelmann, Londres, 6 de março de 1868; Anagram; 61/2). Engels afirmava o mesmo: “(…) A propósito. Envie-me a Filosofia da Natureza de Hegel, como você prometeu (…) Estou muito curioso para ver se o velho Hegel não intuiu algumas delas [Engels se refere a algumas descobertas científicas recentes, R.S.]. Uma coisa é certa: se ele escrevesse hoje uma filosofia da natureza, os fatos voariam para suas mãos de todos os lados” (Marx e Engels; Anagram; 19). E na mesma linha: “É evidente que não sou mais um hegeliano, mas sempre senti um profundo senso de respeito e atração por aquele velho colosso” (Carta de Engels a Friedrich Albert Lange, Manchester, 29 de março de 1865; Anagram; 36). “Engels havia diferenciado o método dialético – que começava a partir do processo ininterrupto do vir-a-ser [Werden], que dissolve ‘todas as representações da verdade absoluta última e seus correspondentes estados absolutos da humanidade’, que teriam assim um caráter revolucionário – do sistema, que ‘de acordo com as exigências tradicionais, tem que acabar com qualquer tipo de verdade absoluta, que seria assim conservadora e sufocaria o aspecto revolucionário’” (Engels, Ludwig Feuerbach e o Fim da Filosofia Clássica Alemã, em Heinrich; 2018; 337)[22].

Marx e Engels formariam uma equipe de trabalho inigualável. E o que emergiu de ambos, teórica e politicamente, fazia parte daquele frutífero intercâmbio: uma obra conjunta. Tem sido dito que Engels tinha tendências “mecanicistas”, “evolucionistas”, “positivistas”. Mas quando se estuda textos como “A Dialética da Natureza”, mesmo que seja uma obra inacabada[23], a acusação não tem fundamento: “Com o homem entramos na história (…) quanto mais os seres humanos se distanciam dos animais no sentido restrito da palavra, mais eles mesmos fazem conscientemente sua história (…)” (“Dialética da Natureza”, pp. 37, Editorial Cartago México, 1983). Considerando o trabalho de Darwin, “A Origem das Espécies”, ele argumenta contra a ideia de uma causalidade mecânica ou metafísica: “Linhas duras e rígidas são incompatíveis com a teoria da evolução (…) A ideia anterior da necessidade desmorona. Retê-la significa impor ditatorialmente à natureza, como lei, uma determinação humana arbitrária que contradiz a si mesma e a realidade (…)” (Engels, idem, pp. 177).

E na mesma linha de Engels, vem à mente uma citação verdadeiramente brilhante de Lênin, uma citação que nos lembra a teoria de Stephen Jay Gould de “desenvolvimento pontuado”: “Em nosso tempo, a ideia de desenvolvimento, de evolução, penetrou quase na sua totalidade na consciência social, mas não através da filosofia de Hegel, mas por outros meios. Entretanto, esta ideia, tal como formulada por Marx e Engels com base em Hegel, é muito mais completa e rica em conteúdo do que a teoria habitual da evolução. É um desenvolvimento que, ao que parece, repete etapas já percorridas, mas de outra forma, numa base superior (“negação da negação”), um desenvolvimento, por assim dizer, em espiral e não em linha reta; um desenvolvimento que opera na forma de saltos, através de cataclismos e revoluções, que significam “interrupções de gradualidade” (“Karl Marx”, julho/novembro de 1914). Não se pode deixar de perguntar se Gould não leu este texto de Lenin, porque sua formulação, sua crítica ponto por ponto ao evolucionismo de Darwin, parece seguir a avaliação de Lenin. E note que este texto de Lenin sobre Marx está escrito em comparação de suas leituras da “Ciência da Lógica” de Hegel, ao contrário das anteriores[24].

Voltando a Engels, Louça enfatiza que ele “entendeu Darwin e o Darwinismo melhor do que Marx; ele conseguiu distingui-lo das versões vulgares então correntes“. A este respeito, sua carta a Pyotr Lavrov, físico russo e um dos principais teóricos do movimento Narodniky, é brilhante, onde ele valoriza a teoria da seleção natural, a “guerra de todos contra todos pela sobrevivência”, apenas como um primeiro passo na pesquisa, enfatizando que nas relações entre corpos naturais – mortos ou vivos – “há tanto harmonia quanto enfrentamento” (Marx & Engels, “Cartas sobre as Ciências da Natureza e da Matemática”); um ângulo semelhante será retomado mais tarde por Kropotkin (“O apoio Mútuo”).

De Engels a Marx, Marcello Musto aponta agudamente que: “[Marx] rejeitou as rígidas representações que ligavam as mudanças sociais unicamente às transformações econômicas. Ele defendeu ao invés disso a especificidade das condições históricas, as múltiplas possibilidades que o decorrer do tempo oferecia à centralidade da intervenção humana na modificação da realidade e na realização de mudanças. Estes foram os traços salientes da elaboração teórica do final de Marx” (Musto; 2018; 40/1), aspectos também contidos no trabalho de Engels.

O determinismo mecânico foi questionado por Marx já em sua tese de doutorado, onde ele estabelece as nuances entre o pensamento de Demócrito, um determinista de ferro, e Epicuro, aberto ao acaso e à autodeterminação humana: “Enquanto para Demócrito o mundo seria dominado pela necessidade – ele nega o acaso, considerado como uma ficção humana – Epicuro rejeita a necessidade dos acontecimentos e salienta que algumas coisas são fruto do acaso e outras dependem de nossa arbitrariedade (…) ‘Em todos os lugares há caminhos abertos à liberdade‘ [Epicuro afirma]” (Heinrich; 2018; 377/8).

Substantivamente, o trabalho de Marx não pode ser compreendido sem levar em conta Engels. Uma questão distinta sublinhada por Hal Draper, é que Engels tendo uma caneta mais “fácil”, ao eventualmente abordar questões com menos profundidade e sistemática, tende a dar definições mais resumidas: “O simples fato de Engels ter sido um escritor rápido e versátil, o coloca longe de Marx, que sempre é visto como se despedaçando em formulações e conceitos extraídos das profundezas do esforço convulsivo. A facilidade literária de Engels era muito conveniente; sua penalidade era sua grande capacidade de cometer erros (…) Outra falha era a frequente superficialidade de sua argumentação em comparação com a de Marx. Ele estava menos inibido em fazer grandes generalizações, nem todas apropriadas; Marx, por outro lado, parecia sempre mais feliz em estabelecer definições sem se comprometer com generalidades. Seu temperamento se rebelou contra as definições “acabadas”: é “minha característica (ele escreveu a um amigo) que, se eu vejo algo que acabei de escrever há quatro semanas, eu o considero inadequado e o submeto a uma reformulação completa” (Draper; 1977; 26). Marx escreveu e estudou simultaneamente. E ele nunca ficou satisfeito: “Quanto a este livro ‘amaldiçoado’ (…) a discussão da renda da terra, o penúltimo capítulo, ocupa quase um livro [ele se refere ao volume III do Capital que só seria publicado por Engels em 1894, R.S.]. Ia ao  Museum de dia e escrevia à noite. Tive que absorver a nova química agrícola na Alemanha, especialmente Liebig e Schönbein (…)” (“Marx para Engels”, Londres, 13 de fevereiro de 1866; Anagram; 45).

Assim, em resumo, que o método de investigação correto seja o da crítica: “heterodoxia” e atualização permanente; tomar a experiência histórica como “laboratório teórico/político”; o método crítico-prático ligado à experiência; o engajamento ativo na transformação do mundo; com a luta revolucionária de classes; um método que o próprio Marx proclamará em suas “Teses sobre Feuerbach”: “Os filósofos nada mais fizeram do que interpretar o mundo; do que se trata é de transformá-lo”.

  1. Uma vida contra a corrente

A vida dos dois revolucionários foi de esforço no sentido das difíceis condições de vida que eles tiveram que enfrentar, especialmente Marx. Vindo de uma família relativamente próspera, foi se empobrecendo irremediavelmente. Ele passava fome às vezes. Ele perdeu vários de seus filhos. Ele viveu nos subúrbios mais pobres de Londres na década de 1850. Sua relativa fama em certos círculos ajudou-o a vender notas semanais para o New York Tribune (o jornal mais difundido da época) por vários anos. Draper registra esta elaboração política dispersa, não visitada com frequência, em seu trabalho sobre Marx.

Entretanto, isto não foi suficiente para sustentar sua família: esposa, filhos e sua empregada doméstica, Helen Demuth[25].

Em seu 50º aniversário, Marx escreveu a Engels: “Meio século às minhas costas e ainda pobre! Minha mãe tinha razão! Se Karell tivesse levantado um capital, ao invés de etcetc” (Heinrich; 2018; 71[26]). Engels tinha melhor contexto econômico. Empregado em uma posição gerencial na empresa de seu pai em Manchester desde 1842 (fábrica de fiação Ermen & Engels), ele sustentava economicamente tanto Marx quanto sua família (Engels não se casou nem teve filhos; ele não acreditava no casamento [27]. Marx se casou, e não somente no civil, mas também na igreja!). O emprego de Engels foi um sacrifício pessoal na medida em que ele não podia se dedicar inteiramente à militância e à pesquisa, como Marx faria. Em 1869 ele se aposentou feliz por se livrar do jugo do trabalho.

Um olhar sobre a biografia de Marx revela uma vida de sacrifícios, dedicada a seus próprios objetivos, mas sob condições muito difíceis. Atingido por uma doença pulmonar (ele fumava tabaco torrencialmente enquanto escrevia até altas horas da madrugada), sua vida nos últimos anos foi marcada por recaídas na cama, dores de cabeça insuportáveis e outras enfermidades: “[Em seus últimos anos] (…) ele estava frequentemente doente [durante os invernos], exausto e fraco. A velhice começava a limitar seu vigor habitual, e a preocupação com o estado de saúde de sua esposa o afligia cada vez mais. E mesmo assim ele permaneceu quem ele era: Karl Marx. Com o mesmo entusiasmo, ele permaneceu comprometido com a causa da emancipação das classes trabalhadoras. Seu método foi o mesmo de sempre, adotado desde a época de seus primeiros estudos universitários: incrivelmente rigoroso e inflexivelmente crítico” (Musto; 2018; 19/20).

A perda de vários filhos/as para doenças da pobreza, ou sua delirante viagem solitária pela Argélia no início de 1882 (de acordo com Engels, para “se recuperar” da doença pulmonar), são a expressão da falta de uma “retaguarda” para se recuperar (além do que o próprio Engels poderia proporcionar[28]). Louça dá um relato vívido disto sem esquecer de assinalar, também, que duas das filhas de Marx acabariam cometendo suicídio; Jenny por razões emocionais pouco antes da própria morte de Marx[29]. E Laura com seu marido Paul Lafarge, em um pacto para evitar a velhice.

As vidas de Marx e Engels retratam o que significa viver contra a corrente, um aspecto destacado por Draper que também sublinha sua paixão, intelecto aliado à paixão e a integridade para não se adaptar às tendências do momento. E mesmo que nem sempre seja necessário ir a tais extremos, a militância revolucionária significa sempre algum nível de sacrifício. Deve-se ter em mente também que nem Marx nem Engels tiveram lugar na academia. Marx foi rejeitado ainda muito jovem pelas ideias que professava. Engels era autodidata, como já dissemos.

Em qualquer caso, eles expressaram as condições de “uma vida de vanguarda”: à frente de seu tempo. À frente da ordem estabelecida, que frequentemente os deixava em condições de isolamento, realizando seu trabalho contra a corrente: “Esta diferença de caráter ou temperamento tem um ‘rótulo’, geralmente derivado da experiência do movimento revolucionário russo: a divisão entre ‘Hards’ e ‘Lights’ (pesados e leves) (…) A diferença diz respeito ao grau em que um indivíduo considera o ‘oposicionismo revolucionário’ congenital ou superficial, não simplesmente como um gesto ocasional ou simbólico, mas como uma relação com as correntes estabelecidas da sociedade na qual ele constrói sua vida. O motor disso aparece como “energia revolucionária” (Draper; 1977; 194). Digamos o óbvio: Marx e Engels possuíam tal energia em boas “doses”. O próprio Marx definiu a luta como “seu elemento natural”.

Uma questão de importância ligada ao acima mencionado é a relação de Marx e Engels com o movimento socialista da época (nos referimos às relações com o movimento organizado “marxista”; abaixo nos referiremos às relações com os socialistas pré-marxistas). Como fundadores de nosso movimento, eles são corretamente colocados como uma expressão do “marxismo clássico”: eles lançaram as bases do marxismo revolucionário quando a atualidade da revolução socialista ainda não era vivida.

Mas há aqui uma nuance importante. Embora não tenham liderado revoluções – ainda que tenham participado plenamente da revolução de 1848 – seu comportamento e sua atividade, sua marginalização do “mundo oficial”, suas ideias e posições, fizeram deles revolucionários marxistas profundos. Sua localização, o caráter de sua elaboração teórica/estratégica, seu caráter “vanguardista/modernista”[30], a análise científica de que o sistema capitalista é afetado desde suas raízes, de que ele não pode ser “remendado”; toda sua concepção teórica, política, estratégica e de vida era a de revolucionários, de cabo a rabo. Isto podia ser visto mesmo nas menores coisas: na zombaria com que Marx falava da política oficial; em sua apreciação não só dos desenvolvimentos em geral, mas também dos vários personagens que povoavam a vida política; no fato de que seu ponto de referência era sempre as massas exploradas e oprimidas, a luta de classes. “A história de toda a humanidade até os dias de hoje não tem sido senão a história da luta de classes“, ele escreveria em “O Manifesto Comunista”.

Salientemos a ruptura que significou a geração imediatamente após os fundadores; aquela geração que liderou os partidos socialistas de massa, os partidos da Segunda Internacional; os partidos que, como afirma Trotsky, cumpriram inicialmente um grande papel educacional, antes de entrar em um processo degenerativo. A geração que liderou estas organizações foi uma geração reformista: líderes e intelectuais que se adaptaram às condições da época: que se deixaram impressionar (pois esta é uma das bases do “reformismo político” além das questões materiais, é claro); que se deixaram arrastar pela corrente.

Referimo-nos a alguns dos discípulos diretos de Marx e Engels, tais como Eduard Bernstein, apreciado pelo primeiro, ou Karl Kautsky, mais bem considerado pelo segundo. Outros líderes socialistas dessa geração tinham um ponto de vista revolucionário geral, como August Bebel (um grande líder da socialdemocracia alemã de origem operária, que não foi testado pelo início da Primeira Guerra Mundial, porque morreu antes), ou o pai de Karl Liebknecht, Wilhelm Liebknecht, um dos fundadores do partido do lado da ala marxista (o PSD foi o subproduto de uma fusão entre uma ala majoritária “socialista de estado” lassaliana e a ala minoritária marxista propriamente dita).

Seria a terceira geração do marxismo que encarnaria as bandeiras do socialismo revolucionário: Rosa Luxemburgo, Karl Liebkneck, Franz Mehring e Leo Jeogiches por parte do espartaquismo alemão e, acima de tudo, claro, Lenin, Trotsky, Christian Rakovsky e muitos outros dirigentes bolcheviques russos (sem esquecer Gramsci na Itália, entre outros); uma geração que deu origem ao socialismo revolucionário propriamente dito, e da qual o movimento trotskista é o continuador em nossos dias[31].

Marx e Engels eram revolucionários, o que era evidente em todos os poros: sua ação política, sua elaboração teórica materialista e dialética, mesmo suas posições na vida cotidiana, sua marginalização da cena oficial. Seus sucessores diretos foram os bolcheviques, que, passando com sucesso pela experiência mais revolucionária da humanidade, elevaram o marxismo aos seus picos mais altos.

Se Marx e Engels foram os fundadores, aqueles que lançaram as bases do marxismo como movimento teórico e social; Lênin, Trotsky, Luxemburgo, Gramsci e Rakovsky, dentre outros, expressaram a mais alta experiência da revolução socialista e da construção do partido revolucionário. Foram também eles que proporcionaram o ponto de partida para a compreensão do fenômeno sem precedentes da burocratização do movimento operário: as lições da contrarrevolução burocrática (estalinista e socialdemocrata).

Após a segunda guerra veio uma quarta geração revolucionária socialista: as várias correntes do trotskismo, que, em condições difíceis de isolamento das massas, e com uma elaboração fragmentada, mas valiosa (que precisa ser estudada criticamente), cumpriram “a missão de ligação” com as atuais gerações revolucionárias.

Como digressão, vamos ressaltar que, devido à luta de tendências e à necessidade que esta luta muitas vezes apresenta de “excomungar” as outras correntes, a apropriação do legado teórico das diferentes correntes do trotskismo do pós-guerra tornou-se muito difícil. No entanto, a soma de valiosos autores e/ou dirigentes, como Hal Draper, Ernest Mandel, Tony Cliff, Daniel Bensaïd, Chris Harman, Nahuel Moreno, etc., é grande demais para ser negligenciada. É uma obra que deve ser estudada criticamente, pois mesmo em seu estado fragmentado e representando uma corrente minoritária, tem grande valor como continuação do desenvolvimento teórico do marxismo militante.

Uma experiência que, no todo, tomando os quase dois séculos do movimento socialista no conjunto, nos mostra a luta pela emancipação dos explorados e oprimidos como a maior obra coletiva da humanidade. Porque, em última análise, assim é: a luta pelo socialismo é, e não pode deixar de ser, uma luta coletiva. E não há luta mais importante para a humanidade do que pôr um fim ao capitalismo, para abrir o caminho para a perspectiva socialista. O século XX nos mostrou claramente que a alternativa do “socialismo ou barbárie” não pode ser tomada de maneira leviana. E os vários problemas que o mundo enfrenta hoje, como a dramática crise ecológica, entre outros, são um alerta na mesma direção.

  1. Jovem, adulto e velho

Um clássico na biografia de Marx é a divisão “teórico-etária” de sua vida. Haveria um “jovem Marx” distinto do “Marx adulto”, e Musto acrescenta um “velho Marx “. De nossa parte, preferimos evitar contraposições mecânicas. É evidente que houve uma progressão no trabalho de Marx. Uma modificação em suas preocupações, assim como uma experiência de vida e um desenvolvimento contemporâneo à sua existência, que introduziu ensinamentos, conclusões e mesmo “rupturas” temáticas e/ou analíticas: “[nós] partimos de uma visão que assume uma profunda unidade de matriz conceitual entre o chamado “Marx jovem” (antes da Ideologia Alemã de 1846) e o “Marx maduro” (as obras após 1857 são geralmente consideradas como pertencendo a este período). Isto não significa, naturalmente, que a temática e o nível de elaboração conceitual tenham sido semelhantes ao longo destes anos. Trata-se de algo bastante diferente: trabalhar sobre a hipótese de que a obra de Marx como um todo não reconhece ‘hiatos’ ou becos sem saída, mas que deve ser considerada como uma teoria e reflexão abrangente e crítica sobre o homem e a sociedade, uma teoria que, no decorrer de sua construção, adquire cada vez mais determinações, tornando-se cada vez mais complexa e abrangente, mas sem nunca perder aquela unidade que está na base de uma crítica global da ordem capitalista” (Yunes, idem).

5.1 Paris e os Manuscritos de 1844

Vejamos a questão em detalhes. Após a biografia detalhada de Heinrich dos primeiros anos de Marx, parece claro que o jovem Marx estava processando uma mudança de temas e perspectivas. Os temas característicos do primeiro Marx podem ser colocados no campo da filosofia e da crítica do Estado. Isto não é acidental: coincide tanto com sua formação acadêmica quanto com os problemas políticos colocados na Prússia quando Marx tinha cerca de 23 anos de idade, ligados ao – definitivamente, frustrados – processo de democratização do estado prussiano. Marx era, no início da sua trajetória, um democrata radical.

Filosoficamente, esta primeira etapa seria marcada por sua tese de doutorado. Em um estágio mais avançado está a Crítica à Filosofia do Direito de Hegel. Embora este seja um texto inacabado, e a posterior mudança de perspectiva de Marx (em 1846 ele mesmo se tornou um marxista), ele apresenta aspectos universais da crítica do Estado que serão integrados em seu pensamento posterior.

Draper ressalta que a concepção predominante sobre o Estado na época deriva da interpretação de Hegel. Foram as condições materiais na Prússia na época que pareceram fazer do Estado uma espécie de “encarnação da sociedade” em oposição à sociedade civil egoísta marcada pela ascensão da propriedade privada: o Estado era visto como uma espécie de “veículo do interesse coletivo” nas mãos de uma burocracia estatal que refletia o antigo regime.[32] No “A ideologia alemã”, Marx se voltaria para uma compreensão materialista profunda do Estado como agente dos interesses da classe dominante. No entanto, a apreciação da separação entre a sociedade explorada e oprimida e o Estado, a necessidade de que ela se aproprie deste, se manteria em sua reflexão posterior.

Voltando ao nosso ponto, observemos que é em seu trabalho na Gazeta Renana” que os primeiros elementos de crítica social começam a surgir em Marx. Isto se expressa em “Os debates sobre a lei do furto de lenha, seu primeiro artigo com preocupações sociais. Outros textos de igual preocupação se seguiram, como o sobre os viticultores do vale do Mosela e a luta dos tecelões silesianos, a primeira greve na Alemanha de um setor assalariado explorado diretamente pela burguesia[33].

O ponto de inflexão fundamental, no entanto, é sua chegada a Paris no início de 1844: uma experiência que marcará o primeiro impacto da classe trabalhadora sobre Marx, sem a qual seria impossível conceber os “Manuscritos Econômicos Filosóficos” do mesmo ano; um texto brilhante de enorme importância para seu posterior desenvolvimento. Trata-se de um ensaio que, sem perder um ângulo genérico, ainda “filosófico”, estabelece uma forte crítica à alienação do trabalho explorado, sua característica distintiva: “A economia política parte do fato da propriedade privada. Mas não a explica. Codifica o processo material da propriedade privada, o processo pelo qual ela ocorre na realidade, em geral e em fórmulas abstratas, que então considera como leis. Mas não compreende estas leis, ou, em outras palavras, não mostra como elas derivam da essência da propriedade privada. A economia política não nos diz qual é a razão da divisão entre trabalho e capital, capital e terra” (Marx; 1968; 73)[34].

Marx estabelece a oposição irreconciliável entre o trabalhador e o capitalista, uma avaliação revolucionária para a época, de acordo com Draper.

Ele assemelha o tratamento do capitalista para com o trabalhador ao de um animal: “igual a qualquer cavalo”. O burguês só se preocupa com a reprodução fisiológica deste último para retornar ao trabalho no dia seguinte (ele e sua família): “(…) para a economia política, o trabalhador existe apenas enquanto um animal de trabalho, como uma cabeça de gado, reduzida às mais estritas necessidades físicas” (Marx; 1968; 25).

Marx passa então à crítica do capital, da renda da terra e chega à propriedade privada para mergulhar na análise do caráter alienado do trabalho, a contribuição mais profunda dos Manuscritos: “(…) o trabalho é algo externo ao trabalhador, ou seja, algo que não faz parte de sua essência, no qual, portanto, o trabalhador não se afirma, mas se nega em seu trabalho, não se sente bem, mas descontente, não desenvolve suas energias físicas e espirituais livres, mas mortifica seu corpo e arruína seu espírito. Assim, o trabalhador só se sente fora de seu trabalho, e em seu trabalho ele se sente fora de si mesmo. Quando ele trabalha, ele não é ele mesmo, e só recupera sua personalidade quando deixa de trabalhar. Ele não trabalha, portanto, voluntariamente, mas pela força, seu trabalho é um trabalho forçado” (Marx; 1968; 78).

Com as desculpas ao leitor, gostaríamos de citar outro longo parágrafo que mostra como estava abrindo passagem em Marx a abordagem materialista das questões (numa forma, talvez, “antropológica” ainda): “A universalidade do homem se revela de um modo prático precisamente na universalidade que faz de toda a natureza seu corpo inorgânico, na medida em que é tanto 1) um meio direto de vida quanto 2) a matéria, o objeto e o instrumento de sua atividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem; isto é, a natureza, na medida em que não é o próprio corpo humano (…) o trabalho, a atividade vital, a vida produtiva em si, apresenta-se ao homem como um meio para a satisfação de uma necessidade, a necessidade de conservação da existência física. Mas a vida produtiva é a vida da espécie. É a vida que engendra a vida. O tipo de atividade vital traz dentro de si o caráter de uma “spécies”, seu caráter genérico e a atividade livre e consciente é o caráter genérico do homem. A própria vida aparece apenas como um meio de vida.

O animal forma uma unidade imediata com sua atividade vital. Ele não distingue a atividade de si mesmo. Ele é sua atividade. O homem, porém, faz de sua atividade vital um objeto de sua vontade e consciência. Desenvolve uma atividade vital consciente. Não é uma esfera determinada. A atividade vital consciente distingue o homem diretamente da atividade vital dos animais. E ele é precisamente o que faz dele um ser genérico. Ou antes, só é um ser consciente, isto é, que tem como objeto sua própria vida, precisamente porque é um ser genérico. Só por isso, a sua atividade é atividade livre. O trabalho alienado inverte a relação, pois o homem, sendo um ser consciente, faz de sua atividade vital, de seu ser, unicamente um meio para sua existência.

A construção prática de um mundo objetivo, a elaboração da natureza inorgânica, é obra do homem como um ser consciente de sua espécie (…) Sem dúvida, os animais também produzem. Eles constroem ninhos e habitações, como no caso das abelhas, castores, formigas, etc. Porém, só produzem o estritamente indispensável a si mesmos ou aos filhotes; produzem de um modo unilateral, enquanto a produção do homem é universal. Só produzem sob a compulsão de necessidade física imediata, ao passo que o homem produz quando também livre de necessidade física, e quando se acha livre dela é quando verdadeiramente produz (…) É somente e precisamente na transformação do mundo objetivo, em que o homem, portanto, começa a manifestar-se realmente como um ser genérico. Esta produção constitui sua vida genérica laboriosa. Através dela a natureza aparece como obra sua, como sua realidade (…) o comunismo, como a superação positiva da propriedade privada, como autoalienação humana e, portanto, como a apropriação real da essência humana pelo e para o homem; portanto, como o retorno total, consciente e realizado dentro de toda a riqueza do desenvolvimento anterior, do homem para si como um homem social, isto é, humano. Este comunismo é, como naturalismo acabado igual humanismo, e como humanismo acabado igual naturalismo; é a verdadeira solução do conflito entre homem e natureza e homem contra homem, a verdadeira solução da luta entre existência e essência, entre objetivação e a afirmação de si mesmo, entre liberdade e necessidade, entre o indivíduo e a espécie. É o segredo revelado da história e tem a consciência de ser esta solução. (…) A história é em si mesma uma parte real da história natural, da transformação da natureza em homem. As ciências naturais acabaram se tornando a ciência do homem, assim como a ciência do homem englobará as ciências naturais e então haverá apenas uma ciência (…) Veja-se como, ao invés da riqueza e da miséria econômicas, aparecem o homem rico e a rica necessidade humana. O homem rico é, ao mesmo tempo, o homem necessitado de uma totalidade de manifestações de vidas humanas. O homem no qual existe sua própria realização, como uma necessidade interior, como necessidade. Não apenas a riqueza, também a pobreza do homem cobra igualmente – sob a premissa do socialismo – uma significação humana e, portanto, social” (Marx; 1968; 80, 81,82, 114,124).

Em resumo: o ser genérico do homem, o que o distingue do animal, é sua capacidade e possibilidade de realização universal e consciente; sua emancipação do reino da necessidade e o livre desenvolvimento de todas as suas potencialidades, sua transformação em um “homem rico”: o comunismo.

Como se pode ver, este é um texto extremamente importante na produção de Marx, sobre o qual não podemos nos expandir mais, mas que chamamos a atenção – se estiver fazendo falta – a ser estudado: um de seus textos de maior riqueza filosófica.

5.2 “Leis do desenvolvimento” e história

 “A Sagrada Família” é, talvez, o último texto ligado aos laços políticos e intelectuais juvenis de Marx, os Jovens Hegelianos, um texto crítico no qual ele se distancia explicitamente deles para entrar imediatamente na mudança de perspectivas significada pela “A Ideologia Alemã”, o primeiro texto autenticamente marxista de Marx, “O Manifesto do Partido Comunista” e a “Miséria da Filosofia”, já abertamente materialistas (1846/7).

É claro que há “rupturas” neste desenvolvimento. Mas parece-nos mais dialético falar de uma progressão que requer, por outro lado, retomar as lições deixadas da perspectiva anterior: um pensador que abandona a esfera idealista para passar a uma posição decididamente materialista, mas sem perder o ângulo dialético como visto em outro texto central da época, epigramático, as “Teses de Feuerbach” (1846), que também devem ser revisitadas.

Estudando Marx, pode-se ver como ele vai “abordando” os problemas; como os problemas estão em sua cabeça; como ele encontra uma formulação mais adequada do problema, muda a perspectiva, preenche as lacunas lógicas e conceituais em um processo que é, insistimos, mais uma progressão do que uma “ruptura” (embora a lei do salto da quantidade para a qualidade também se aplique a ele): “(…) Marx nunca escreveu nem nos deixou entender a presença de qualquer “ruptura” dentro de seu trabalho” (Musto).

Francisco Louça mostra como os conceitos de alienação dos “Manuscritos” e de fetichismo de “O Capital” são complementares. No primeiro, o processo de perda de controle sobre suas realizações é visto desde o trabalhador (desde sua subjetividade); no segundo, a reificação das coisas (o conceito se refere a como tais coisas assumem uma vida própria), das mercadorias, é visto como um efeito objetivo das relações sociais capitalistas: as relações entre as pessoas aparecem como relações entre as coisas.

A indagação baseia-se no esforço para desvendar o mistério que encerra o trabalho humano, uma preocupação que estará presente em Marx a partir de 1844. Contra qualquer abordagem positivista, Louça salienta que suas investigações econômicas foram inspiradas filosoficamente; o conceito de alienação é retirado de suas leituras críticas de Feuerbach. Em “A Essência do Cristianismo”, este último colocava a alienação na atribuição a Deus das características humanas: “Essa apropriação das especificidades humanas, que veio a ser representada em uma entidade mítica, define a substância da perda, e essa perda é a alienação” (Louça; 2018; esquerda online).

Esta progressão pode ser interpretada como a de um jovem Marx que, ao chegar a Londres em 1849 (aos 31 anos), recebe o impacto do país capitalista mais avançado. O desafio era absorver a economia política inglesa; voltar totalmente a compreender “a anatomia da sociedade civil”, como o próprio Marx definiu a economia. Acaba-se operando uma mudança de perspectivas concentrando-se na crítica da economia política.

O Marx das próximas décadas é o das várias redações de sua obra econômico: a “Crítica de Economia Política”, os “Grundrisse (Elementos Fundamentais para uma Crítica de Economia Política)”, as “Teorias da Mais Valia” e, finalmente, o volume I do “O Capital” publicado pelo próprio Marx em 1867. Já assinalamos que os volumes II e III foram publicados por Engels em 1885 e 1894.

E, claro, também o “Marx político” com textos brilhantes como “O 18º de Brumário de Louis Bonaparte”, “A Luta de Classes na França”, “A Guerra Civil na França” e as centenas de contribuições sobre política internacional para o New York Journal (um dos jornais de circulação mais ampla da época). Uma contribuição para a qual ele teve a colaboração de Engels. Engels escreveu muitos dos artigos, embora tenham sido assinados por Marx, uma forma de ajudá-lo a se concentrar em sua elaboração teórica.

O Marx dos textos econômicos inclinava-se para a “cientificidade”. Por isso, a ideia-força da “lei do desenvolvimento” aparece mais explicitamente em seus textos econômicos do que em seus textos históricos e/ou políticos, que estavam mais próximos do desdobramento concreto dos acontecimentos. Lembremos que Marx se considerava, e era, um cientista; em todo caso, um cientista social[35]. E a profundidade com que ele abordou os problemas, a sistemática de seu trabalho, o fato de forjar ferramentas analíticas e/ou conceituais, categorias fundadoras, abrangendo não apenas a conjuntura, mas também a “estrutura” dos eventos, as determinações mais fundamentais, explicam esta tensão.

Em seus últimos anos, Marx se envolveria em novas tarefas: aprende russo, escreve suas famosas cartas sobre a comuna rural russa, critica a alegação de que sua elaboração era um “esquema histórico-universal” aplicável a todas as sociedades. Marx afirma que se trata de uma análise historicamente determinada, preocupada com a Europa Ocidental e a América do Norte. De forma alguma uma “teleologia histórica“: “Em nítido contraste com Hegel, tanto Marx como Engels sustentavam que a forma dialética era limitada precisamente pelo fato de que o fechamento completo era impossível; que as relações dialéticas tinham que ser concebidas dentro de uma totalidade que era aberta, nunca redutível a um círculo pré-concebido ou a uma lógica supra-histórica. Portanto, a análise dialética não podia fornecer nenhuma resposta significativa, independente da investigação empírico-histórica. Da mesma forma, como Marx foi um dos primeiros a descobrir, o materialismo exigia uma perspectiva de teoria de sistemas abertos, evitando qualquer simples fechamento ou leis universais abrangentes. Para Marx, a própria história era inerentemente aberta: “Toda a história não é nada além de uma transformação contínua da natureza humana“” (John Bellamy Foster, “Marx: Um Pensador Crítico Aberto”) [36].

A partir desta ênfase muito atual frente ao “teleologismo histórico” característico da esquerda revolucionária no século passado, Musto tira a conclusão errônea de que existe um “velho Marx”; uma ideia que nos parece um tanto forçada. Obviamente havia um velho Marx no sentido dos últimos anos de sua vida. Mas a inflexão de Marx naqueles anos nos parece ser principalmente metodológica. Não vemos uma mudança de perspectiva como quando Marx era jovem: quando ele fundou a concepção materialista da história. Nos textos destacados por Musto (“O Velho Marx”), vemos uma “inflexão historicista“. Ele introduz uma tensão dialética que mostra isso, enfatizando o caráter historicamente determinado das análises; a necessidade de especificar a investigação (o que Lenin chamaria de “a análise concreta da situação concreta“): “A profunda historicidade da análise de Marx é evidente também em outras esferas (…) não há nada em Marx e Engels que não seja histórico e, portanto, suas análises são abertas. Em sua introdução a uma edição do início da década de 1890 de “A condição da classe trabalhadora na Inglaterra” (publicada pela primeira vez em 1845) (…) Engels introduziu vários postulados completamente novos (…), argumentando que as condições tinham mudado e, portanto, novas análises eram obrigatórias. Marx e Engels nunca hesitaram em modificar suas opiniões em resposta às mudanças históricas” (John Bellamy Foster, idem).

A preocupação de Musto é justa. Como Traverso e outros autores críticos de um certo marxismo mecanicista, eles se inclinam para o lado dialético e antiteleológico: contra a ideia que a história faz a si mesma; por fora da luta de classes. Ou seja: procuram restabelecer a perspectiva de que são os homens e as mulheres, as classes sociais, os explorados e oprimidos, que fazem a história; só que isto acontece sob determinadas condições, condições que eles não escolhem, legadas a eles pelos esforços das gerações anteriores. Marx insistiria que a história é simplesmente o que tem sido feito pelas gerações anteriores.

Musto retoma a crítica de Marx sobre a ideia de que a história poderia acontecer por si mesma: espontânea ou automaticamente como “sujeito aparente” (“A Ideologia Alemã”). E isto não é para falar especificamente da história contemporânea, caracterizada por maior intervenção consciente do que em qualquer outro período histórico. Uma lição reafirmada “em sangue” pela experiência do século passado, no sentido de que a revolução socialista é, deve ser, a revolução mais consciente da história humana[37].

Marx não é o teórico da substituição desse esforço humano, dessa luta, pelas “leis da história”. Ele é o teórico, o crítico, que nos ensina que a luta ocorre sob determinadas condições: condições que nos são objetivas e das quais devemos nos apropriar para transformá-las

Entre o Marx jovem e o adulto há uma mudança real de perspectivas. No caso do adulto e do velho, o que existe é uma acentuação metodológica: um ângulo “historicista”, negando qualquer interpretação teleológica que nos desobrigue do trabalho da revolução.

  1. Uma obra “total”

O trabalho teórico-estratégico de Marx e Engels foi uma obra integral. Longe dos compartimentos estanques da academia, a obra deles é uma obra total. Isso é ilustrado por uma declaração provocativa do marxista ianque Hal Draper no início de seu monumental estudo crítico “Karl Marx Theory of Revolution”: “Acredita-se que a obra mais importante de Marx seja sua economia; falso: sua obra mais importante é sua crítica política“. Draper deliberadamente inclina a balança. Ele não ignora que os principais esforços sistemáticos de Marx são aqueles expressos nas várias redações de “O Capital”, fundamento material da luta emancipatória do proletariado. No entanto, mesmo com desenvolvimentos fragmentários em outras áreas, o trabalho de Marx e Engels foi uma obra total, tratando de forma abrangente a economia, a história, a política, a filosofia e até mesmo as ciências naturais. Se Marx desenvolveu seu trabalho mais sistemático no campo da economia, isso se deveu à necessidade de estabelecer os fundamentos materiais de sua crítica: “Assim como Darwin descobriu a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx descobriu a lei do desenvolvimento da história humana: o fato, tão simples, mas escondido sob a daninha vegetação ideológica de que o homem precisa, antes de tudo, comer, beber, ter um teto sobre a cabeça e vestir-se antes de poder fazer política, ciência, arte, religião e assim por diante; que, portanto, a produção dos meios imediatos de vida, materiais, e portanto, o estágio econômico correspondente de desenvolvimento de um povo ou de uma época, é a base a partir da qual se desenvolveram as instituições políticas, as concepções jurídicas, as ideias artísticas e até mesmo as ideias religiosas dos homens, e de acordo com a qual elas devem, portanto, ser explicadas, e não o contrário, como até então se vinha fazendo” (Engels, “Discurso ante o túmulo de Marx”).

No entanto, é importante enfatizar que sua crítica foi global: não se reduziu a uma mera crítica econômica, como amiúde se afirma na academia. Marx e Engels nos dão ferramentas para lidar com todas as áreas da vida social: economia, política, a generalização e abstração da experiência expressa na filosofia, dialética, história e até mesmo traços de antropologia e insights nas ciências naturais: (…) sua mente enciclopédica, guiada por uma curiosidade intelectual inesgotável, instigou-o a atualizar constantemente seu conhecimento e a manter-se bem-informado sobre os últimos desenvolvimentos científicos. Foi por essa razão que, nos últimos anos de sua vida [como ao longo de toda a sua existência, R.S.], Marx desenvolveu dezenas de cadernos de anotações e sínteses de um enorme número de volumes sobre matemática, fisiologia, geologia, mineralogia, agronomia, química e física (…)” (Musto; 2018; 26); uma amplitude impressionante de assuntos.

Mas, além de ser uma obra total, a obra de Marx foi uma obra aberta. O que queremos dizer com isso? Que era uma obra em desenvolvimento, com permanentes reformulações, em diálogo contínuo com a experiência histórica, com a luta de classes, com as últimas descobertas das outras ciências. Uma obra cuja principal característica é seu ângulo crítico. Que não pode ser abordada com o critério da “ortodoxia”, do doutrinarismo, mas com uma abertura radical aos novos desenvolvimentos; à experiência real: “Argumentarei que a ‘grandeza’ e a ‘vitalidade’ das ciências sociais marxianas observadas por Schumpeter derivam principalmente de sua lógica interna como forma de investigação científica aberta (…) Seus estudos foram tais que indicavam a necessidade de transformar constantemente suas hipóteses provisórias à luz de evidências mutáveis (…) Em contraste com Hegel, o método de Marx – de acordo com o filósofo crítico Roy Bhaskar – [é] que “as boas totalidades são…abertas; as más totalidades são fechadas… exatamente o oposto da visão de Hegel” (…) Como Marx escreveu certa vez, ‘a forma dialética é justa quando conhece seus próprios limites’“. (John Bellamy Foster, idem).

Marx impressiona por sua rigorosidade: obsessivamente meticuloso em suas elaborações, ele reescreveu várias vezes – e à mão (não existia o computador) – sua principal obra, “O Capital”. Ele nunca estava satisfeito: sempre havia um novo trabalho a ser revisado antes de enviar um texto para a gráfica. Marx dava importância ao estilo e à estrutura de suas obras. A forma vulgar, a construção incerta e os erros gramaticais, a falta de lógica nas formulações, sempre despertaram o desdém de Marx (Musto). Marx apresentava “O Capital” como “um todo artístico“. E o era: sempre nos pareceu uma obra “arquitetônica”, colocada tijolo por tijolo. Uma obra com uma estrutura interna “total”, no estilo da “Ciência da Lógica de Hegel”, e não uma soma de artigos independentes, como a maioria dos livros[38].

Marx teve crises intelectuais semelhantes às de outros pensadores. Por exemplo, Darwin, que só se “animou” a publicar “A Origem das Espécies” forçado por Wallace, que estava prestes a publicar primeiro argumentos semelhantes, embora menos elaborados. Dúvidas ligadas à correção de um determinado ponto de vista: a necessidade de demonstrar suas afirmações repetidas vezes; algo que deve caracterizar a todo pesquisador sério.

A obra de Marx era aberta e até mesmo fragmentária em certa medida: algo inevitável quando se tenta apreender o real, sempre em movimento: “(…) não se pode desconsiderar o fato de que a obra de Marx é bastante fragmentária; a maioria das obras fundamentais permaneceu inacabada, algumas delas sendo manuscritos não publicados (…) A obra de Marx não é apenas fragmentária, é uma sucessão de fragmentos. É composta de uma série permanente de tentativas interrompidas, de recomeços que não são continuados ou que são, mas de uma forma diferente da originalmente planejada (…) Só é possível entender tudo isso se estivermos preparados para conceber as obras de Marx como a expressão de um processo de aprendizado aberto, permanente e de nenhum modo linear, em vez de vê-las como formulações – bem ou malsucedidas – de verdades atemporais” (Heinrich; 2108; 32).

  1. Bases teóricas

Cabe-nos agora expor sumariamente os fundamentos teóricos do marxismo; uma espécie de “resumo” deles. Engels apontou diante do túmulo de Marx que ele havia descoberto a “lei geral do desenvolvimento humano. Essa lei afirma que as condições materiais de existência, a relação da humanidade com a natureza, as relações estabelecidas entre as pessoas para a produção, a satisfação de suas necessidades básicas, são os principais determinantes do desenvolvimento histórico. Isso é o que se chama de concepção materialista da história. Marx e Engels lançaram as bases para ela em textos clássicos como “A Ideologia Alemã” (um texto a serviço do esclarecimento de suas próprias ideias[39]), “Teses sobre Feuerbach” de Marx, “A Miséria da Filosofia” (a crítica de Marx a Proudhon, em que ele avança pela primeira vez mais especificamente no campo econômico), “O Manifesto do Partido Comunista” (talvez o texto mais famoso da humanidade depois da Bíblia), entre outros.

Uma nota de tom “premonitório” de sua concepção materialista é dada por uma observação incisiva do adolescente Marx sobre “escolha profissional”: “Nem sempre podemos assumir a profissão para a qual acreditamos ter vocação; nossas relações com a sociedade já começam, até certo ponto, antes mesmo de estarmos em posição de determiná-las” (Heinrich; 2018; 124)[40].

7.1 A concepção materialista da história

Vamos nos deter em A Ideologia Alemã, o texto fundador da nova concepção materialista[41]. Draper insiste que esse é o primeiro trabalho propriamente marxista de Marx e Engels (um trabalho, na época, escrito em conjunto por eles). Ele enfatiza a necessidade de compreender a relação entre o processo de concepção e gestação e o parto da “coisa” em si: a progressão na obra de Marx e não a apreciação de rupturas mecânicas. Reforça a ideia de que, nessa obra, em certo sentido, “tudo já é Marx“, com exceção do que diz respeito à crítica da economia política, que nas próximas três décadas terá um desenvolvimento colossal com seu ponto culminante nos vários esboços de “O capital”.

De qualquer forma, “A Ideologia Alemã” é um texto extremamente rico, no qual a concepção materialista da história é explicitada: “Conhecemos apenas uma ciência, a ciência da história. A história pode ser abordada de dois ângulos, pode ser dividida em história da natureza e história do homem. No entanto, as duas são inseparáveis; enquanto existirem homens, a história da natureza e as histórias dos homens se condicionarão mutuamente” (Marx e Engels; 2010; 15). É claro que, ao colocar a história de tudo o que existe como uma única história, Marx já está lançando um fundamento material para os acontecimentos; pois no substrato da história humana só pode estar a história natural; história natural que, a partir do surgimento dos humanos, também é modificada (como vimos Marx insistir nos “Manuscritos Econômicos Filosóficos”). O ser humano procede da natureza e se eleva, de certa forma, “acima dela”: abre a porta para a história como evento humano. E, no entanto, a natureza também tem história, e é por isso que Marx e Engels afirmam que “conhecem apenas uma ciência: a ciência da história”; como se reafirmassem que tudo é histórico; que nada é eterno; nada está por fora dela. Aliás, eles defendem, ao mesmo tempo, um critério de radical unidade das ciências humanas: uma única ciência, natural e histórica ao mesmo tempo.

Dito isso, em “Premissas sobre as quais se baseia a concepção materialista da história” [NT.: item 2 do cap. 1 de “Ideologia Alemâ”], Marx e Engels declararam: “A primeira premissa de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a ser verificado é, portanto, a organização corpórea desses indivíduos e, como consequência disso, sua relação com o resto da natureza (…) Toda historiografia deve necessariamente partir desses fundamentos naturais e da modificação que eles sofrem no curso da história pela ação dos homens” (Marx e Engels; idem; 19). Observando o desenvolvimento acima da obra de Marx, o contexto intelectual em que ela surgiu, dominado pela filosofia idealista alemã e o debate sobre religião, fica claro o quanto os dois autores progrediram na elaboração desta sentença materialista elementar que hoje, talvez, nos pareça tão “normal”.

E a partir daqui Marx e Engels iniciam todo uma fundamentação lógico-material no qual vão se estabelecendo as relações sociais mais elementares: seu indispensável e eterno metabolismo com a natureza em matéria de produção de seus meios de vida, a divisão do trabalho entre si para a produção, o surgimento das formas históricas da propriedade e do Estado, a determinação das formas de consciência social pelo ser social, pelas formas de existência social, bem como a ação humana que modifica essa mesma natureza; uma natureza já transformada pelo próprio homem; uma natureza que deixa de ser meramente “natural” e tende (pode tender) a se transformar em uma “natureza humanizada”, como ele também afirmaria nos “Manuscritos...” e repete em “A Ideologia Alemã”: O homem sempre tem diante de si uma natureza histórica e uma história natural.

No desenvolvimento do texto, Marx e Engels nos entregam sentenças de enorme profundidade, além de nos ensinarem a pensar como materialistas dialéticos, porque também é disso que se trata o texto: um encadeamento do “curso de desenvolvimento” de uma forma tão concreta e terrena que impressiona por sua “simplicidade” lógica. “O primeiro ato histórico desses indivíduos, pelo qual eles se distinguem dos animais, não é que pensam, mas que comecem a produzir os meios indispensáveis de subsistência” (Marx e Engels, idem, 19), o que estabelece uma certa nuance com os “Manuscritos Econômicos Filosóficos”, onde se enfatizava mais a distinção pela consciência, ao passo que aqui, de forma mais materialista, o primeiro ato histórico é a produção dos meios de subsistência, que é uma relação transformadora com a natureza, e é nessa relação com o meio ambiente e com os outros seres humanos que surge tanto a consciência quanto a própria linguagem, sendo esta última a relação social por excelência. A esse respeito, vale a pena citar o brilhante texto de Engels “O papel do trabalho na transformação do macaco em homem“, que coloca o desenvolvimento da mão a partir da atividade prática, a partir do trabalho, como um precedente, ao mesmo tempo, para o desenvolvimento da consciência humana: “Vemos, então, que a mão não é apenas o órgão do trabalho; é também o produto dele. É somente pelo trabalho, pela adaptação a novas e novas funções, pela transmissão hereditária do aperfeiçoamento especial assim adquirida pelos músculos, ligamentos e, em um período mais longo, também pelos ossos, e pela aplicação sempre renovada dessas habilidades herdadas a funções novas e cada vez mais complexas, que a mão do homem alcançou aquele grau de aperfeiçoamento que a tornou capaz de dar vida, como que por mágica, às pinturas de Rafael, às estátuas de Thorwaldsen e à música de Paganini”[42].

Marx nos diz mais adiante que “o primeiro fato histórico é a criação de novas necessidades”; e ele também nos diz que os próprios sentidos, o refinamento dos sentidos, da audição, do paladar, do olfato, da fala, são fatos históricos, construções sociais: o gosto grosseiro daqueles que comem com as mãos não é o mesmo daqueles que comem com garfo e faca. “Os indivíduos são como manifestam suas vidas. O que eles são, portanto, coincide com sua produção, tanto com o que eles produzem quanto com a forma como produzem. O que os indivíduos são depende, portanto, das condições materiais de sua produção” (Marx e Engels; idem; 20), o que é lógico porque, em última análise, a “externalização” do que eles são, o que fazem e como fazem, mostra como eles são (assim como o caráter de uma revolução, que é mostrado no que ela faz, como faz e quem a faz; a única maneira de ter uma apreciação materialista dela).

“A produção de ideias, representações e consciência aparece, a princípio, diretamente entrelaçada com a atividade material e as relações materiais dos homens, como a linguagem da vida real” (Marx e Engels; idem; 26), o que é outra maneira de dizer que a consciência “traduz” – embora nunca mecanicamente – as condições materiais de existência; é “a linguagem” da vida real (um pouco como poderíamos dizer que o marxismo é a linguagem mais adequada para o fenômeno material da luta de classes, parafraseando o próprio Marx[43]).

“Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. Do primeiro ponto de vista, parte-se da consciência como se ela fosse um indivíduo vivo; do segundo ponto de vista, que corresponde à vida real, parte-se do mesmo indivíduo vivo real e considera-se a consciência apenas como sua consciência. E essa maneira de ver as coisas tem suas premissas. Ela parte das condições reais e não as perde de vista nem por um momento. Suas premissas são os seres humanos, mas não tomados em seu fantástico isolamento e rigidez, mas em seu processo de desenvolvimento real e empiricamente verificável sob a ação de certas condições. Assim que esse processo ativo de vida é exposto, a história deixa de ser uma coleção de fatos mortos, como é para os empiristas ainda abstratos, ou uma ação imaginária de sujeitos imaginários, como é para os idealistas (idem; 28), pelo que Marx e Engels descartam ambas as tendências reducionistas de pensamento em uma linha e nos apresentam a história como um processo material vivo (dialético): “‘Libertação’ é um ato histórico e não mental, e as relações históricas levarão a ela (…)” (idem; 29). Esse é outra genialidade a que Marx e Engels nos conduzem, e coloca diante de nós, desde o início, o significado final do marxismo: a emancipação da humanidade de todas as relações de exploração e opressão, da necessidade, subproduto da atividade sensorial humana, de um contínuo trabalhar e criar sentidos, de um processo contínuo de transformação da natureza e do próprio homem, da revolução. Marx não questiona a prioridade material da natureza, é claro, mas argumenta que, com o surgimento da humanidade e o desenvolvimento das forças produtivas, uma natureza já está transformada pela ação humana, o que é uma crítica ao materialismo contemplativo de Feuerbach e um chamado para que a ação humana mude a história: “o materialismo e a história estão completamente divorciados nele”, crítica de Marx a Feuerbach.

Em suma, todo o texto é marcado pela ideia de que “a produção da vida” pressupõe uma “dupla relação”: por um lado, como “uma relação natural” (metabolismo eterno e indispensável entre o homem e a natureza) e, por outro lado, “como uma relação social”; social, no sentido de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos: um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial sempre implica “um determinado modo de cooperação ou uma determinada etapa social”, um modo de cooperação que é, por sua vez, “uma força produtiva”; que a soma das forças produtivas (que são precisamente aquelas que estabelecem a relação entre a sociedade e a natureza) acessíveis ao homem condiciona o estado social e que, portanto, “a história da humanidade” deve sempre ser estudada e elaborada em conexão com a história da indústria e do intercâmbio.

Então Marx chega, como vimos, a uma abordagem materialista da linguagem que é brilhante, uma abordagem materialista que é a da consciência, a linguagem como consciência prática sem a qual ela não poderia se expressar nem existir: “O ‘espírito’ já lidou com a maldição de estar ‘grávido’ de matéria, que aqui se manifesta na forma de camadas de ar em movimento, de sons, em uma palavra, na forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência; a linguagem é a consciência prática, a consciência real, que também existe para outras pessoas e que, portanto, também começa a existir para mim mesmo; e a linguagem nasce, como a consciência, da necessidade, das obrigações de se relacionar com outras pessoas (…) A consciência, portanto, já é de antemão um produto social” (idem; 37). A linguagem surge, em suma, da obrigação do relacionamento com outras pessoas; é uma relação social.

Marx e Engels voltam-se, então, para o plano da política e do Estado, para toda a complexidade de suas formas, sem jamais perder de vista o fato de que “a sociedade civil é o verdadeiro habitat e palco de toda a história” e não, simples e mecanicamente, idealisticamente, “as ações e feitos retumbantes do Estado”: “Precisamente em virtude dessa contradição entre o interesse particular e o interesse comum, este último, como Estado, assume sua própria forma independente, separada dos reais interesses particulares e coletivos e, ao mesmo tempo, uma forma ilusória de comunidade, mas sempre na base real dos laços existentes (…) Daí se segue que todas as lutas travadas dentro do Estado (…) não passam de formas ilusórias sob as quais se ventilam as lutas reais entre as várias classes (…) toda classe que aspira a estabelecer sua dominação (…) deve começar pela conquista do poder político, a fim de poder apresentar seu interesse, por sua vez, como o interesse geral, o que em um primeiro momento se vê obrigada a fazer ” (idem; 41). E então eles apresentam uma genialidade que dá conta do que a forma política significa: “Precisamente porque os indivíduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles não coincide com o interesse comum, e porque o geral é sempre a forma ilusória da comunidade, isso é afirmado diante de sua representação como algo ‘estranho’ a eles e ‘independente’ deles, como um interesse ‘geral’ que é ao mesmo tempo especial e peculiar, ou eles mesmos têm necessariamente que se mover nessa divisão, como na democracia. Por outro lado, a luta prática desses interesses particulares que constantemente e de forma real se opõem aos interesses comuns ou que ilusoriamente acreditam ser tais, impõe como algo necessário a interposição prática e o refinamento pelo interesse ‘geral’ ilusório sob a forma do Estado” (idem, 41).

Porque, de qualquer forma, a política, a política revolucionária, é precisamente a capacidade de representar coletivamente a classe explorada, de representar seus interesses gerais como uma classe, em oposição à mera disputa de cada interesse particular de cada trabalhador isolado, e de elevá-la à arena política, que é, finalmente, a arena na qual os interesses particulares de classe são afirmados como gerais e que tem, no Estado determinado pela classe, sua forma consagrada.

7.2 Dialética e luta de classes  

Em seguida, Marx e Engels retornam à história, insistindo que a história nada mais é do que “a sucessão de diferentes gerações” e que a transformação da história em história universal é um fato histórico subproduto da criação do mercado mundial. E onde a riqueza espiritual do homem dependerá da riqueza de suas relações reais, condições reais que serão alteradas apenas por meio de uma revolução (uma revolução que pode ser concebida como “a interferência realmente histórica da política na história”), onde a classe explorada conseguirá “levantar-se do lamaçal em que está afundada e tornar-se capaz de fundar a sociedade em novas bases”, ou seja, transformar-se em uma classe histórica.

Classe potencialmente histórica que é constituída na forja da luta de classes: “O início da manufatura trouxe consigo, além disso, um período de vagabundagem, provocado pela supressão dos contingentes armados feudais (…) Tão numerosos eram esses vagabundos que Henrique VIII da Inglaterra, para citar apenas esse monarca, mandou enforcar 70.000. Foi necessário superar enormes dificuldades e uma resistência muito longa antes que essas grandes massas de pessoas, levadas à extrema miséria, decidissem trabalhar” (idem; 74), acrescentando Marx que: “Os diferentes indivíduos só formam uma classe na medida em que são obrigados a travar uma luta comum contra outra classe, caso contrário, eles próprios são hostis uns aos outros no âmbito da competição. Por outro lado, a classe, por sua vez, torna-se substantiva em relação aos indivíduos que a formam, de tal forma que eles já encontram suas condições de vida predestinadas; eles descobrem que a classe lhes atribui sua posição na vida e, portanto, a trajetória de seu desenvolvimento pessoal; eles são absorvidos por ela. É o mesmo fenômeno que a sujeição de diferentes indivíduos à divisão do trabalho; e para eliminá-lo não há outra maneira senão a abolição da propriedade privada e do próprio trabalho” (idem; 85).

Em suma, partindo da fundamentação materialista do desenvolvimento histórico, Marx passaria à crítica da economia burguesa, onde desvenda o funcionamento da economia capitalista, as categorias onde aparece a segunda grande descoberta de Marx: a mais-valia. Isso quer dizer que a riqueza capitalista surge do trabalho não remunerado do trabalhador e que a acumulação capitalista vem da apropriação desse trabalho não remunerado. Em termos mais gerais, todas as sociedades de exploração se basearam na apropriação econômica e/ou política do trabalho excedente: o trabalho não remunerado dos trabalhadores diretos (sobre o qual abordaremos mais especificamente a seguir).

A crítica da economia política é a crítica específica dos mecanismos de exploração capitalista. Essa crítica se baseia nas conquistas da concepção materialista da história, bem como na avaliação crítica de todos os regimes sociais anteriores ao capitalismo que também se baseavam na exploração do homem pelo homem (deixamos de lado o “comunismo primitivo”, ao qual nos referiremos mais adiante). Exploração que é o fundamento da história humana como história da luta de classes, que coloca essa luta de classes como o motor da história, como concepção “ativa” da mesma e não mecanicamente dependente do que é seu substrato material, mas não “autômato espontâneo”: o desenvolvimento das forças produtivas.

Em sua clássica crítica a Kautsky, Karl Korsch (La concepción materialista de la historia. Una controversia con Karl Kautsky) criticou Kautsky por colocar a dinâmica do desenvolvimento social nas forças produtivas, e não na luta de classes. Kautsky fez do marxismo um “reducionismo naturalista” ao afirmar que a história, como história da luta de classes, era apenas um “episódio” na história da natureza, o que alimentava uma concepção evolucionista da história, que forneceria a base teórica para a passividade e o fatalismo da socialdemocracia alemã: “(…) o terceiro significado do conceito de desenvolvimento de Marx e Engels: a compreensão do desenvolvimento social não apenas como devir histórico objetivo, mas ao mesmo tempo como ação histórica subjetiva, ‘atividade revolucionária, crítica prática’ ou ‘práxis revolucionária’. Para Kautsky, Marx escreveu inutilmente suas ‘Teses sobre Fehuerbach’ [nas quais Marx criticava Fehuerbach por ter uma visão puramente contemplativa da realidade; não vendo o papel ativo do homem em sua transformação, R.S.]” (Korsch; 1980; pp. 27)[44].

Juntamente com a fundamentação materialista dos acontecimentos, Marx estabeleceu a crítica do materialismo vulgar: reivindicou a dialética como a lei geral do desenvolvimento de todos os fenômenos da natureza e da história (como Lenin também enfatizou). Dialética, como já vimos, legada por Hegel, o maior representante do idealismo filosófico alemão, que Marx e Engels, longe de negar mecanicamente, superariam criticamente ao se apropriarem de sua contribuição ao pensamento universal: o refinamento das leis de desenvolvimento de tudo o que existe. “Hegel (…) tentou penetrar filosoficamente em mais e mais áreas do conhecimento. Sua intenção não era impor a essas áreas certos princípios, por assim dizer, “de fora”, mas, ao contrário, revelar os princípios formadores e estruturadores das próprias coisas. A penetração filosófica a que Hegel aspirava pressupunha um vasto conhecimento especializado das respectivas áreas (…) sua reflexão filosófica continha uma grande quantidade de conhecimento da realidade” (Heinrich; 2918; 183)[45].

Esse caráter dialético do materialismo marxista nem sempre conseguiu ser compreendido. Uma rejeição unilateral de Hegel (nas versões mais vulgares do marxismo) deu origem a uma apreciação esquemática dos acontecimentos: uma apreciação objetivista da história em que os fatores objetivos e subjetivos não estão bem equilibrados. Um reducionismo no qual o marxismo, sempre ativo e baseado na experiência concreta, foi “sociologizado”. Estabeleceu-se, assim, uma primazia mecânica que fez do desenvolvimento das forças produtivas abordadas autonomamente, e não da luta de classes, o fator dinâmico: a luta de classes deixou de ser o motor da história; forças produtivas que são a base material da história, mas não seu motor, que está na luta (uma crítica que Karl Korsch faria a Kautsky, como vimos acima, e também Gramsci em relação ao naturalismo de Bukharin).

É interessante destacar que o primeiro trabalho de Marx, “Diferença entre a filosofia da natureza de Demócrito e a de Epicuro”, já colocava uma acentuação antimecanicista[46] (comumente não apreciado pelos “marxólogos” e reivindicada por toda a física moderna): “Pode-se entender o entusiasmo com que o jovem Marx demonstra as consequências extraídas da hipótese da declinação, pois é introduzindo o princípio da liberdade dentro da própria natureza que Epicuro torna possível a liberdade dos homens com respeito aos seus temores religiosos e a toda forma de determinismo” (Ronaldo Vielmi Fortes, “Introducción a Diferencia entre la filosofía de la naturaleza de Democrático y la de Epicuro”)[47].

Em resumo: o materialismo e a dialética são as ferramentas para desvendar o movimento da realidade. E para transformá-la. Uma “soma dialética” que torna possível superar as oposições vulgares entre existência e consciência, entre objeto e sujeito, entre massas e partido; oposições muito características. E não é apenas nos textos fundamentais de Marx e Engels que encontramos referências nesse sentido, mas também nas “Notas à lógica de Hegel” de Lenin, ou nas “Notas metodológicas” de Trotsky no início da década de 1930, ou mesmo na “Crítica ao manual de sociologia popular de Bukharin” esboçada por Gramsci, como acabamos de apontar. Traços de uma abordagem correta do marxismo podem ser encontrados em todos esses textos.

Mas a obra de Marx e Engels não é apenas uma obra econômica e filosófica: é uma obra histórico-política com textos brilhantes como “O Dezoito de Brumário de Luís Bonaparte”. É uma obra histórico-política, mais que propriamente histórica. Pois, embora Marx e Engels tenham fundado a concepção materialista da história, não se pode dizer que eles tenham textos históricos propriamente ditos. Sua obra histórica é, antes, uma obra histórico-política, com textos críticos sobre os eventos do presente, além, é claro, de um imenso conhecimento histórico, mas um conhecimento histórico que não levou à escrita de obras de história propriamente ditas, mas a obras teórico-estratégicas, por assim dizer, em que a matéria-prima histórica, a matéria-prima da experiência histórica, é colocada a serviço da generalização teórica.

Nesse sentido, alguns dos artigos recentes de Traverso sobre Marx e a história nos parecem não apenas extremamente unilaterais, mas até mesmo errados. Marx fornece uma “metodologia” para a compreensão histórica; uma metodologia de enorme riqueza que em nenhum caso pode substituir a análise concreta da situação concreta. Tampouco pode ser confundida com as vicissitudes do século XX, com as mil e uma “crises” pelas quais passaram formas particulares de “marxismo”, que se referem, em geral, não ao marxismo revolucionário (o mais vivo e atual de todos os marxismos, na linhagem dos bolcheviques e de Trotsky), mas a formas historicamente unilaterais dele. Formas que, por uma razão ou outra, foram submetidas à ruptura entre teoria e prática, a forma característica de esvaziar o caráter revolucionário e científico do próprio marxismo. Infelizmente, Traverso (em artigos como Marx, história e historiadores: uma relação a ser reinventada), é demasiadamente afetado por sua visão nostálgica do século XX. E por uma afirmação de independência intelectual que, como tal, está muito bem, mas nos parece um erro fazer isso em detrimento da enorme riqueza e atualidade do pensamento de Marx: a profunda atualidade de sua crítica implacável de tudo o que existe.

Por fim, a obra de Marx e Engels também é uma obra com aspectos “antropológicos”, uma obra que “mergulha” nos momentos iniciais da sociedade humana, que valoriza a passagem da natureza para a sociedade: “A família patriarcal não deve ser considerada a unidade básica e original da sociedade, mas uma forma de organização social que surgiu mais tarde, em uma época mais recente do que geralmente se acredita. Era ‘uma organização frágil demais para enfrentar sozinha as dificuldades da existência’. Muito mais plausível supor a presença de uma forma como a assumida pelos aborígenes da América, a família sindiásmica [permite a poligamia, R.S.], na qual se praticava o princípio do modo de vida comunista [coletivo]” (Musto; 2918; 33)[48]. Em todo caso, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, de Engels, obra de estudo crítico de Morgan, é uma referência clássica nesse sentido, à qual não podemos nos dedicar aqui.

Mas, acima de tudo, a obra de Marx também é uma obra política, como o marxista ianque Hal Draper já enfatizou várias vezes. Pois, mesmo que não tenha dado origem a uma elaboração sistemática nesse campo, Marx e Engels lançaram os fundamentos gerais da política revolucionária. Ou seja: junto com o materialismo histórico, a dialética e a “filosofia marxista”, e a crítica da economia política, temos os fundamentos de uma crítica do Estado e da política burguesa: “O confronto com Hegel foi posteriormente um caminho para a política. No manuscrito inacabado A crítica da filosofia do direito de Hegel, Marx desenvolve o argumento de que a política estatal moderna desenvolvida pelas revoluções inglesa, americana e francesa eram a expressão alienada de uma sociedade civil competitiva e fragmentada” (“Marx politics”, Alex Callinicos).

Acrescentemos, de passagem, um fato que Heinrich aponta, e que é importante para a problemática do direito e da transição socialista (e que é frequentemente ignorado): Marx teve uma sólida formação jurídica. Por isso, suas alusões ao direito em textos como “A Crítica da Filosofia do Direito de Hegel”, “O Capital”, ou na “Crítica do Programa de Gotha”, são um ponto de referência para estudos posteriores nesse campo; em particular, com referência ao caráter da propriedade estatizada na transição socialista[49]. A crítica da economia se “completa” assim com a crítica do Estado. Em um de seus muitos planos, Marx havia estabelecido que o volume IV de sua obra teórica geral seria dedicado ao Estado. Mas ele mal conseguiu publicar o primeiro volume de “O Capital”. No entanto, como se verifica no volume I da “Karl Marx Theory of Revolution”, há uma enorme quantidade de material sobre o Estado em Marx e Engels, mesmo que esteja – mais uma vez – em um estado fragmentário. Uma elaboração teórica/política que mais tarde seria levada ao seu mais alto grau por Lênin, Trotsky e os bolcheviques. E isso no melhor terreno em que a política revolucionária poderia alcançar “cidadania” e universalidade: a Revolução Russa de 1917.

Marx havia declarado em A Sagrada Família que “ser radical é tomar as coisas em sua raiz”. E acrescentou que, no homem, “a raiz é o próprio homem” (um homem inserido no contexto das relações sociais, é claro), ratificando assim sua humanística radical, sua vocação emancipatória. O que, no curso da experiência histórica, poderíamos apontar como a necessidade de a classe operária, como classe e conscientemente, assuma as tarefas da transformação social em suas próprias mãos. Uma abordagem que tinha antecedentes desde sua juventude: “A filosofia da autoconsciência nos anos 1840-1841 não representou um retrocesso à filosofia [subjetivista] do Eu de Fichte, mas uma primeira tentativa de esclarecimento pós-hegeliano; o que impulsionou a história não seria o movimento de uma racionalidade abstrata e geral – esse impulso estaria, antes, imediatamente no próprio ser humano” (Heinrich; 2018; 393).

A teoria política do marxismo se resume, portanto, no “princípio da autoemancipação” dos explorados e oprimidos: a emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores, algo ratificado pela experiência do último século e do qual suas organizações, programas e partidos são obviamente uma parte orgânica[50].

  1. A crítica da economia

Vamos nos voltar agora para o trabalho maduro de Marx, as várias redações de “O Capital[51]. Além do plano de trabalho rascunhado em seus cadernos, a obra econômica está organizada cronologicamente da seguinte forma: Os Grundrisse” (1857/8), publicados apenas no final da década de 1930 (e que passaram despercebidos até uma nova publicação no início da década de 1950[52]); “A Crítica da Economia Política”, publicada imediatamente e que acabou sendo um fracasso editorial (1859); os textos que mais tarde formariam as chamadas “Teorias da Mais-Valia” (1861-63), publicadas em dois volumes por Kautsky no final da primeira década do século passado (1910); outros cadernos de 1861-63, entre eles os “Cadernos Tecnológicos”, cuja publicação é variada; o primeiro volume de “O Capital”, publicado por Marx em 1867 em alemão e que teve uma nova edição no mesmo idioma durante a vida de Marx, e também uma “edição popular” em francês supervisionada por ele em 1873; o volume II de “O Capital”, publicado por Engels em 1885; e o volume III, de 1894, também publicado por Engels no ano anterior à sua morte (ambos os volumes foram uma compilação organizada por Engels de rascunhos inacabados deixados por Marx).

Em suma: uma obra que, no total, está recebendo sua edição crítica com o projeto alemão MEGA II[53], que dá continuidade a um empreendimento editorial iniciado na República Democrática Alemã (RDA) antes da queda do Muro de Berlim e retomado há alguns anos, com o objetivo de publicar as obras completas de Marx e Engels, em quatro partes: A obra econômica madura de Marx; todo o restante dos textos de Marx e Engels; as cartas entre eles e entre si (publicando tanto as enviadas por eles quanto as recebidas escritas por outros); bem como os cadernos sobre outros autores (que em uma imensa proporção são os cadernos de apontamentos apenas de Marx). Quanto ao resto, cada um dos volumes publicados das obras de Marx e Engels possui outro com o aparato crítico de citações e referências. Trata-se, obviamente, de um projeto editorial monumental, cujo estudo é a matéria-prima para a atual geração de marxólogos e tem como objetivo trazer à luz grande parte da obra ainda não publicada de Marx. E estamos falando de um autor que morreu em 1883 para enfatizar o enormemente prolífico de sua obra; sua capacidade criativa sem precedentes.

Um material de pesquisa de valor inestimável que Marcello Musto caracteriza pelo “charme encantador do inacabado”; porque é um pouco assim: um trabalho científico só pode ter “fechamentos” parciais e/ou transitórios; acontece que o real sempre está em movimento, tem, por definição, uma dinâmica aberta: “tudo o que existe merece perecer”, havia apontado Hegel e foi mais de uma vez parafraseado por Marx e Engels.

O que podemos dizer aqui sobre essa obra monumental? Com base especificamente em “O Capital”, todos sabem que o primeiro volume é dedicado ao processo de produção capitalista, ao seu “segredo oculto”: a produção de mais-valia. O segundo volume é dedicado ao processo de reprodução, ou seja, às metamorfoses do ciclo do capital (industrial, monetário e mercantil), e aos “esquemas de reprodução” do capital (reprodução simples e ampliada); e o terceiro volume trata do capital como um todo (lucro e taxa de lucro), do aluguel da terra e da teoria das crises: a lei tendencial à queda da taxa de lucro.

A obra completa é uma crítica à produção capitalista: as leis que regem especificamente esse modo de produção. A partir dessa rica totalidade, queremos destacar neste ensaio alguns aspectos de apenas três “subteorias”: a teoria do valor, a teoria da reprodução e a teoria das crises. Não podemos fazer mais, não apenas por causa da enorme complexidade de cada um desses desenvolvimentos, mas também porque aprofundar seriamente a obra econômica de Marx seria dar a este ensaio uma extensão interminável; tal é o grau de “detalhes” e determinações de cada parte de “O capital”.

A teoria do valor, colocada no primeiro capítulo do primeiro volume de “O Capital”, sempre foi considerada a parte mais difícil, a mais “filosófica” da obra: “Os começos são sempre difíceis, e isso é verdade para todas as ciências[54]. A compreensão do primeiro capítulo, e especialmente da parte dedicada à análise da mercadoria, apresentará, portanto, a maior dificuldade”, advertiu Marx no prefácio da primeira edição (Marx; 1981; 5). No fundo, seu significado final é simples. A produção capitalista é uma produção para o mercado, para a troca. Os produtos produzidos para troca se chamam mercadorias; o que os distingue da produção não mediada pela troca, para autoabastecimento. A troca tornou-se um progresso histórico da humanidade, pois possibilitou atingir um nível superior de produção como produção social. A constituição do mercado nacional e mundial possibilitou, assim, o desenvolvimento de “uma densa rede econômico-social“: consagrar a economia como uma totalidade social em que cada produção unilateral pode ser trocada no mercado com outras produções unilaterais para satisfazer as necessidades de conjunto, multilaterais: “A divisão social do trabalho faz que o trabalho de tal possuidor [Marx se refere ao produtor de uma determinada mercadoria, R.S.] seja tão unilateral quanto multilateral suas necessidades ” (Marx; 1981; 129).

Um dos problemas a serem investigados era o que havia de comum nas mercadorias. Marx apresentou o caráter duplo das mercadorias como valores de uso e valores de troca (na verdade, valores de uso e valores, porque o valor de troca é meramente a expressão monetária do valor nas trocas)[55]. O valor de uso é a utilidade material do bem: nenhum bem pode ser uma mercadoria se não satisfizer uma necessidade: deve ser um objeto útil. Mas, ao mesmo tempo, todo valor de uso nada mais é do que um portador de valor de troca, ou seja, de uma soma de trabalho com base na qual essa mercadoria pode ser trocada por outras mercadorias. O que é comum a todas as mercadorias? Ser subproduto do trabalho humano; portadoras de uma certa quantidade de trabalho humano nelas incorporado: “Agora, se deixarmos de lado o valor de uso do corpo das mercadorias, só lhes resta uma propriedade: a de serem produtos do trabalho” (Marx; 1981; 46)[56].

Acrescentemos, de passagem, que esse foco no trabalho, o tomar essa relação social como fundante da sociedade, a relação homem/natureza para a produção e reprodução da vida humana, foi uma revolução teórica que Marx começou a processar a partir de seus Manuscritos de Paris de 1844 e que atinge sua expressão máxima em “O Capital”: “Como criador de valores de uso, como trabalho útil, então, o trabalho é, independentemente de todas as formações sociais, uma condição da existência humana, uma necessidade natural e eterna para mediar o metabolismo que ocorre entre o homem e a natureza e, consequentemente, para mediar a vida humana” (Marx; 1981; 53). Em contraste com o ambiente idealista do Marx inicial, a descoberta do trabalho como a relação social fundamental é um avanço colossal; um avanço que só pode ser explicado com base na concepção materialista da história; na compreensão de que, sem o metabolismo humano com a natureza, não pode haver nenhuma outra relação orgânica ou social; o que contrasta com o ambiente “esotérico” do qual Marx e Engels partiram, pelo menos no que diz respeito a explicações puramente “políticas” ou religiosas da vida social[57].

Quando alguém se “toca” e reflete sobre o foco colocado por Marx no trabalho humano, percebe a materialidade de sua abordagem, a profundidade de uma compreensão do trabalho como relação social fundante da existência humana, que não nega, ao mesmo tempo, que, com o desenvolvimento das forças produtivas, o caráter do trabalho pode mudar de forma até tornar-se irreconhecível: Marx falou brilhantemente nos “Grundrisse” sobre como, com a automação, o trabalho, que aparece no capitalismo subordinado à produção, começa a ser colocado “ao lado dela” como observador e dominador do próprio processo de produção com a ajuda da ciência e da tecnologia; o “mecanismo automático”: a geração de uma energia que não depende mais do trabalho humano até que o próprio trabalho se torne independente de qualquer lógica de subordinação, de exploração; tornando independente a medida da riqueza, do próprio valor: uma riqueza ainda baseada no suor humano, que é característica do capitalismo, que é, desnecessário dizer, ainda uma economia de valor: da exploração do trabalho de outros. Um trabalho que, nessa instância de desenvolvimento social, o comunismo, deixaria de ser estritamente um trabalho, mesmo que, de uma forma ou de outra, a relação do homem com a natureza como uma relação metabólica fundamental deva sempre ser assegurada; seja ela agora levada adiante pela ciência e pela tecnologia[58].

Voltando ao trabalho no capitalismo, esse trabalho, que é sempre um trabalho social, uma medida de trabalho social, é a substância do valor. E se expressa nas trocas como valor de troca. O “mistério” aqui é como essas trocas são “equalizadas”: que “lei de proporções” é estabelecida no mercado? Porque não se pode trocar um “hipopótamo” (por assim dizer) por uma formiga; isso seria desproporcional (é claro que nenhum desses dois animais é subproduto do trabalho humano, embora talvez, se tiverem sido criados em cativeiro, tenham uma parte desse trabalho incorporada a eles; nós os colocamos apenas para fins de um exemplo simples e claro). E a lei que estabelece essas proporções, uma lei baseada na prática de centenas de milhares e milhões de trocas é, precisamente, a lei do valor: a lei da troca igualitária de mercadorias com base no trabalho nelas incorporado; a magnitude do valor na acepção de Marx. “Uma das consequências do surgimento progressivo e da generalização da produção de mercadorias é que o próprio trabalho começa a se tornar algo regular, medido, não mais em sintonia com o ritmo da natureza e o ritmo fisiológico do homem (…) Em outras palavras: quanto mais a produção de mercadorias se generaliza, tanto mais o trabalho se regulariza e mais a organização da sociedade se concentra em torno de uma contabilidade baseada no trabalho” (Ernest Mandel, “Iniciação à economia marxista”). A lei do valor é, portanto, estabelecida como uma “lei social da contabilidade” do trabalho humano[59].

Para chegar a esse resultado e, ao mesmo tempo, explicar como funcionava o mecanismo de exploração do trabalho, Marx teve de descobrir a diferença entre o trabalho como atividade útil e a força de trabalho como mercadoria. O trabalho nada mais é do que o atributo do valor de uso da mercadoria força de trabalho. Mas o valor da força de trabalho não é todo o trabalho realizado durante a jornada de trabalho, mas apenas o que o trabalhador precisa para se reproduzir (a si mesmo e à sua família), para voltar ao trabalho no dia seguinte: “(…) para extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso detentor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir na esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possuísse a propriedade peculiar de ser uma fonte de valor; cujo consumo real fosse, então, uma objetivação do trabalho e, portanto, uma criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado essa mercadoria específica: a capacidade de trabalho ou força de trabalho” (Marx; 1981; 203).

Essa diferença entre trabalho e força de trabalho, o fato de que apenas a força de trabalho é uma mercadoria, a descoberta da diferença entre valor e mais-valia, a descoberta da própria mais-valia, é o que Marx consideraria sua contribuição específica nesse campo (“Eu só descobri a mais-valia”, ele diria em uma carta a Engels): explicar o mecanismo específico da exploração do trabalho sob o capitalismo.

Mas antes de passarmos para o próximo volume, precisamos dizer algo sobre o dinheiro. O valor de troca é a expressão monetária do valor: o valor que é expresso em dinheiro para as trocas. A produção é uma produção social para o mercado. Mas para que o mercado “funcione” como um intermediário geral de mercadorias, ele deve ir além do estágio rústico da troca: deve surgir uma mercadoria cujo valor de uso sirva universalmente para as trocas. E essa mercadoria é o dinheiro, a moeda, uma moeda metálica cujo valor de uso será ou para ornamentação (ouro, prata), ou, precisamente, como estamos dizendo aqui, deixará de lado esse valor de uso e adquirirá o valor de uso de ser um mediador geral de trocas. A teoria do dinheiro se torna cada vez mais complexa porque, posteriormente, o dinheiro que tem um trabalho humano real incorporado, como o ouro e a prata, é deixado de lado, e em seu lugar é colocado o que se chama de “moeda fiduciária”, que, na realidade, representa apenas simbolicamente o valor das mercadorias, porque é papel-moeda; não tem quase nenhum valor, ou melhor, seu valor não tem nada a ver com a expressão simbólica dele estampada no papel.

No entanto, isso nos levaria longe demais em relação aos nossos objetivos aqui, que são muito mais limitados. De qualquer forma, o que nos interessa neste ensaio é apresentar um relato geral do funcionamento da lei do valor; e a lei do valor não pode funcionar sem o valor de troca, que é precisamente a expressão do valor nas trocas e seu suporte: o dinheiro. Outro desdobramento, que não abordaremos aqui, é como os valores se traduzem em preços, uma questão tratada no volume III de O Capital. Se o valor é o trabalho social médio incorporado à produção, os preços são estabelecidos no mercado de acordo com a oferta e a demanda. Isso não quer dizer que eles sejam completamente independentes do valor real das mercadorias; mas o mercado pode estabelecer preços acima ou abaixo do valor incorporado nas mercadorias, o que requer toda uma teoria específica para entender como isso funciona.

De qualquer forma, a teoria do dinheiro, o “mediador universal das trocas”, também faz parte do volume I de O Capital; e faz parte da lei do valor na parte que tem a ver com o lugar do valor de troca na mesma; com a expressão monetária do valor, como já apontamos. Todos os aspectos que, como estamos vendo, exigiriam um desdobramento adicional que não podemos fazer aqui e que deram origem a várias controvérsias dentro do marxismo, que, de qualquer forma, têm mais a ver com a entrada na questão da teoria econômica especificamente, uma questão que não interessa a este trabalho nesse grau de detalhe.

Passemos agora para o volume II de “O Capital”. Esse volume conecta a produção com a realização da mais-valia na circulação; a produção social com a reprodução, a fim de criar as condições para que o mecanismo de produção em geral seja reiniciado após cada ciclo de seu desenvolvimento. Por cada ciclo de desenvolvimento entende-se a produção e a reprodução econômica no total: a criação das condições para que, uma vez encerrado um ciclo de produção, a força de trabalho, as matérias-primas e os meios de produção estejam prontos para recomeçar o processo produtivo. Mas acontece que o trabalho contido nas mercadorias, o valor e a mais-valia, só podem ser realizados na compra e venda; somente quando o capitalista vende a mercadoria e obtém uma soma de dinheiro por ela, ele acaba “capturando” a mais-valia: o trabalho não remunerado do trabalhador, a motivação específica do modo de produção capitalista. Esse é outro desdobramento da análise, porque, ao contrário do que se poderia acreditar pragmaticamente, a motivação específica do modo de produção capitalista não é a satisfação das necessidades, mas a acumulação de lucro sobre lucro; algo que ele tem de fazer produzindo valores de uso, porque, caso contrário já estaríamos fora da economia: em um mundo de completa irracionalidade (o que não tem caráter útil, o que não é valor de uso, não pode ter valor, não pode ser uma mercadoria[60]); somente no comunismo a produção será realizada diretamente para a satisfação das necessidades humanas, o que não significa “produção pela produção em si”, como se costuma acreditar, porque tal produção, por si só, poderia dar as costas às necessidades da sociedade, como foi provado pelas fracassadas experiências não capitalistas do século passado (e das quais a generalidade das correntes de esquerda não tem balanço). A produção não pode ser realizada apenas com o objetivo da própria produção (cuja ideia distorcida poderia ser o planejamento burocrático): para superar o horizonte da exploração do trabalho, a produção deve ser colocada a serviço da satisfação das necessidades humanas (além de cuidar, na medida do possível, de uma reprodução saudável da natureza: natureza humanizada; humanidade naturalizada).

Por fim, a realização da produção na circulação conforma um mecanismo complexo de reprodução econômico-social, que é precisamente o que o volume II estuda (do qual deixaremos de lado a primeira parte, que se refere às metamorfoses do dinheiro, do capital produtivo e do capital mercantil): o que acabamos de identificar como o ciclo de produção capitalista, e que deu origem a todo um debate sobre os ciclos da produção capitalista, que não abordaremos aqui[61].

Essa realização da mais-valia não é tão simples. A economia é basicamente dividida em dois ramos: o ramo I dos meios de produção e o ramo II dos meios de consumo: os dois setores da produção social, cujas relações são complicadas, além disso, pelo fato de que a reprodução pode ser simples, ou seja, mantendo a produção na mesma base anterior, ou ampliada, multiplicando a base de produção (e, portanto, a própria produção).

Supõe-se que o capitalista divide sua renda em duas partes: uma parte vai para seus próprios meios de consumo e a outra para a acumulação de capital: a base “física” da produção (seja em investimentos físicos ou em qualquer “suporte” de investimento produtivo), que, ao ser ampliada por sua base (seja em máquinas, fábricas, computadores ou o que for), lhe permitirá a extração de maiores porções de mais-valia; a incorporação em sua esfera de exploração de um número maior de trabalhadores: uma reprodução ampliada do capital. A renda que o trabalhador obtém é meramente para fins de consumo. O consumo, em seu caso, é produtivo, porque reproduz a força de trabalho, algo diferente do consumo do capitalista, cujo consumo é improdutivo porque não é um produtor de valor ou de mais-valia. Em uma vida inteira, o trabalhador pode acumular muito pouco, porque não obtém nenhuma participação na mais-valia: não acumula nem, portanto, deixa uma herança real.

A produção e o retorno da mesma a partir da circulação, a divisão do valor e da mais-valia, e como isso se aplica ao consumo de cada classe social e ao investimento, toda a complexidade desses movimentos, é o que está contido no segundo volume do “O Capital”. Complexidade que deu origem a várias discussões dentro do marxismo porque essas trocas, essa reprodução, não se processam sem crise: sem desproporções entre ramos econômicos, entre a produção e a circulação. É daí que Rosa Luxemburgo haja visto a crise do capitalismo nas suas dificuldades de realização da mais-valia, no fato de que toda essa mais-valia não poderia ser realizada na base estreita da exploração do trabalho, razão pela qual ela colocou esse “produto excedente”, por assim dizer, necessariamente para ser realizado fora do mercado capitalista: nas regiões ainda não capitalistas do mundo.

Na realidade, e como Lênin colocou classicamente, a abordagem de Rosa estava errada. Existem vários mecanismos no mercado capitalista que permitem a realização de todo o capital. Isso não diminui o fato de que essas contradições acarretam, é claro, crises permanentes: crises que podem ser devidas a “descompassos” entre oferta e demanda; também a desproporções entre ramos econômicos; embora esses fatores ainda sejam fatores derivados do principal: a tendência de queda da taxa de lucro, que Marx colocou no volume III e que veremos mais abaixo:

“Dizer que as crises surgem da falta de um consumo em condições de pagar, da falta de consumidores solventes, é se envolver em uma tautologia cabal (…). Mas se alguém quiser dar a essa tautologia uma aparência de fundamento profundo, dizendo que a classe trabalhadora recebe uma parcela muito pequena de seu próprio produto, e que o mal seria, portanto, remediado assim que ela recebesse uma parcela maior desse produto, porém, assim que seus salários aumentem, será suficiente observar que as crises são invariavelmente preparadas por um período em que os salários aumentam em geral e a classe trabalhadora obtém realiter [realmente] uma parcela maior da parte do produto anual destinada ao consumo. Do ponto de vista desses senhores de “simples” senso comum, tais períodos, ao contrário, deveriam conjurar a crise. Parece, então, que a produção capitalista implica condições que não dependem de boa ou má vontade, condições que apenas momentaneamente toleram essa prosperidade relativa da classe trabalhadora, e sempre, como um pássaro das tormentas, anunciadora da crise” (Marx; 1982; 501/2).

Em resumo: a circulação acarreta crises periódicas, mas não é a sede essencial dessas crises. Se todas as crises expressam, empiricamente, problemas de realização, ou seja, de demanda, em qualquer caso, sua base está na produção.

O terceiro volume é, então, dedicado (entre outros tópicos, como o problema da renda da terra e a já mencionada transformação de valores em preços) à teoria das crises. Essa teoria se baseia nas definições contidas no volume I: a teoria do valor. Acontece que o capitalismo é um sistema de extração de mais-valia: essa é sua motivação específica, como já dissemos. Mas o aumento das forças produtivas do trabalho social, o crescimento da composição orgânica do capital – trabalho morto em proporção ao trabalho vivo – significa que, à medida que a produção capitalista avança, à medida que a automação do trabalho, a melhor utilização das forças naturais do trabalho, avança, a base de valor da produção diminui.

À medida que a produção capitalista avança, a proporção entre o valor e mais-valia se inclina do primeiro para o segundo devido ao aumento da produtividade do trabalho: o barateamento tendencial dos meios de consumo que constituem o valor da força de trabalho. Mas, como a base geral de valor da economia tende a diminuir devido ao aumento das forças produtivas do trabalho, devido à substituição do trabalho humano pela ciência e pela tecnologia (uma potencialidade humana que visa historicamente remover a base de “suor” da economia, como também apontamos), a mais-valia diminui[62].

E assim são geradas as crises capitalistas: “Mas foi revelado como uma lei do modo de produção capitalista que, com seu desenvolvimento, há uma diminuição relativa do capital variável em relação ao capital constante e, portanto, em relação ao capital total posto em movimento. Isso significa apenas que o mesmo número de trabalhadores, a mesma quantidade de força de trabalho disponibilizada por um capital variável de um determinado volume de valor, põe em movimento, trabalha, consome produtivamente, como consequência dos métodos peculiares de produção que se desenvolvem na produção capitalista, uma massa constantemente crescente de meios de trabalho, maquinaria e capital fixo de todos os tipos, matérias-primas e materiais auxiliares, no mesmo período de tempo e, portanto, também um capital constante de volume de valor constantemente crescente. Essa diminuição progressiva do capital variável em proporção ao capital constante e, portanto, do capital total, é progressivamente idêntica à maior composição orgânica do capital social na média. De toda forma, é apenas outra expressão do desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho, que se revela precisamente no fato de que, por meio do uso crescente de maquinário e capital fixo em geral, o mesmo número de trabalhadores transforma na mesma quantidade de tempo mais matérias-primas e insumos em produtos, ou seja, com menos trabalho.

A esse volume crescente de valor do capital constante – embora represente apenas remotamente o crescimento da quantidade real dos valores de uso que compõem materialmente o capital constante – corresponde um barateamento crescente do produto. Cada produto individual, considerado por si só, contém uma soma menor de trabalho do que nos estágios inferiores de produção, nos quais o capital gasto em trabalho está em proporção incomparavelmente maior do que o capital gasto em meios de produção. Assim, a série hipoteticamente formulada no início [exercícios numéricos nos quais Marx mostra a queda tendencial da taxa de lucro, R.S.] expressa a tendência real da produção capitalista. Com a progressiva diminuição relativa do capital variável em relação ao capital constante, a produção capitalista gera uma composição orgânica crescentemente mais alta em relação ao capital global, cuja consequência direta é que a taxa de mais-valia, permanecendo constante o grau de exploração do trabalho e, mesmo que este aumente, expressa-se em uma taxa geral de lucro em constante declínio (veremos mais adiante por que esse declínio não se manifesta de forma absoluta, mas sim em uma tendência à baixa progressiva). A tendência progressiva para baixo da taxa geral de lucro é, portanto, apenas uma expressão, peculiar ao modo de produção capitalista, do desenvolvimento progressivo da força produtiva social do trabalho” (Marx; 1980; 271).

Marx fala de uma “lei tendencial à crise“, como se dissesse que o sistema está prenhe de uma crise estrutural. Mas não existe uma lei de ferro do colapso econômico, porque ao mesmo tempo existem causas que contrabalançam e que medeiam a crise. Embora essas causas não anulem a operação da lei tendencial, o grande economista marxista polonês-alemão do século passado, Henryk Grossmann, já destacava como as crises recorrentes eram simultaneamente o meio pelo qual o capitalismo deslocava sua “crise geral”: crises recorrentes que, ao destruir o capital excedente, ao baratear os preços das matérias-primas e da força de trabalho, ao reconstituir o exército industrial do trabalho, ao conquistar novos mercados para a valorização do capital, para a mercantilização dos produtos, tornam possível contrabalançar a atuação da lei tendencial[63]. Mas atenção: se a tendência à crise é uma lei tendencial à mesma (ou seja, uma lei, uma regularidade concreta do sistema), não existe nada parecido a uma “lei de que contrabalança à crise”, apenas causas variáveis que as contrabalançam (como Bensaïd apontou agudamente em “La discordancia de los tempos”, uma obra com indicações metodológicas úteis para a compreensão do trabalho econômico de Marx).

Em suma: o que temos é uma tendência a crises recorrentes, historicamente cada vez mais graves, que abrem a oportunidade para a classe trabalhadora “tomar o céu de assalto” e dar sua saída. A alternativa histórica, documentada por toda a experiência do século XX, e multiplicada hoje por crises como a ecológica, é o socialismo ou a barbárie: “Talvez o trabalho ‘catastrofista’ mais valioso sobre economia seja o de Grossmann. Se deixarmos de lado os elementos mecânicos de sua análise, ficamos com um estudo extraordinário da lógica da acumulação no capitalismo, que identifica a tendência à crise crescente do sistema. Grossmann mostra que o sistema não tem uma lógica puramente “cíclica”, uma espécie de eterno retorno do mesmo (altos e baixos regulares e simétricos sem tendências evolutivas ou involutivas de qualquer tipo), mas que é estruturalmente marcado por uma dinâmica de crises historicamente crescentes, que são a base material de nossa luta pelo socialismo” (“Um cheiro socialdemocratizante”, Roberto Sáenz).

Em suma, “O Capital” e a obra econômica de Marx como um todo constituem os fundamentos materiais, a crítica material do capitalismo; os fundamentos materiais que recriam, repetidamente, as condições para a luta. E não por razões ideais, mas por razões materiais: o capitalismo não pode ser concebido sem a crise que pulsa em suas entranhas.

  1. A crítica do Estado, da política e da propriedade

Da crítica da economia, passemos à crítica do Estado, da política e da propriedade. Marx desenvolveu uma profunda crítica a essas instâncias, voltando historicamente às primeiras experiências de organização coletiva. Se sua “obra política” não foi tão sistemática quanto a crítica econômica, e se está dispersa em inúmeros textos, ainda assim oferece enormes lições. Hal Draper realizou um trabalho monumental de sistematização do “Marx político”; um trabalho que constitui uma contribuição real para a compreensão da teoria política de Marx. Draper fez isso sob o seguinte lema: se a lei do valor é a chave explicativa da teoria econômica de Marx, a autoemancipação do proletariado é sua chave política.

A abordagem de Marx sobre o Estado propõe seu surgimento histórico como um subproduto do surgimento do sobreproduto social. À medida que a sociedade se eleva acima da mera subsistência, à medida que o excedente aparece, surge um “corpo especial” para administrá-lo. E, junto com ele, surge o Estado (“comunismo primitivo” refere-se ao período anterior de sociedades sem excedente e sem Estado). Mas o Estado não é uma mera excrescência, algo puramente parasitário: ele cumpre uma função social. Isso quer dizer: ele se encarrega, não importa quão unilateralmente (ou seja, de um ponto de vista de classe), dos assuntos coletivos da sociedade naquele estágio social específicoo das sociedades de classe; estágios sociais de desenvolvimento (despotismo oriental, antiguidade clássica, Idade Média e capitalismo) que compõem a “pré-história” da humanidade. Um estágio histórico no qual ainda nos encontramos: ainda não é a humanidade, como tal, que tomou as rédeas, as tarefas sociais coletivas, em suas próprias mãos[64].

Assim, temos uma evolução histórica na qual, geralmente, mas nem sempre, o estado é o da classe economicamente dominante, um aparato que cuida dos interesses coletivos dessa classe dominante e que, ao mesmo tempo, cumpre certas funções sociais: um Estado de classe baseado em certas relações materiais de exploração.

Historicamente, no entanto, as relações entre economia e Estado têm admitido todo tipo de variações: nunca foi mecânica. Uma classe que se torna economicamente dominante pode ainda não ver consagrada sua dominação política, daí a eclosão de uma era de revoluções burguesas entre os séculos XVII e XVIII, e vice-versa: uma “classe política” ou burocracia pode ser a dominante no nível do Estado, mesmo que não seja dominante na esfera econômica. Esse é o caso do Estado absolutista como mediador entre o declínio da aristocracia e a ascensão da burguesia. Além disso, a nítida separação entre Estado e economia que ocorre sob o capitalismo (e que “formatou” nossa concepção clássica de Estado) não foi a característica dominante historicamente, onde Estado e economia apareceram, em grande parte, fundidos (como foi o caso do despotismo oriental e é também, necessariamente, o caso da transição socialista): “A relação tributária – ao contrário da relação escravista, da relação servil e do trabalho assalariado – é dificilmente concebível, exceto como uma relação entre produtores diretos, por um lado, e um poder político dominante, por outro. No caso das três primeiras, a relação de exploração aparece como uma relação entre duas classes da sociedade civil, entre a classe de produtores e a classe de proprietários privados. Nesses casos, o Estado normalmente aparece como o instrumento ou o guardião da classe economicamente dominante: a classe proprietária. Mas na relação tributária, a relação de exploração é estabelecida entre os produtores e o Estado como tal, diretamente. Em outras palavras: no caso dos outros três modos de exploração, a exploração econômica e a dominação política estão de alguma forma relacionadas; mas no modo tributário elas estão fundidas nas mesmas mãos” (Draper; 1977; 553)[65].

Em suma: a teoria do Estado admite uma complexidade que desde o marxismo muitas vezes se tem abordado de forma mecânica e que Marx fornece elementos para elucidar de forma mais rica, mais complexa, “(…) Marx sempre manterá uma sensibilidade muito forte em destacar (e explicar as diferenças) entre as formas políticas pré-capitalistas e o Estado moderno” (Antonine Artous, Naturaleza y forma del Estado capitalista); o que, notamos de passagem, inclui a crítica do anarquismo, que simplesmente afirma a abolição do Estado no dia seguinte à revolução e não entende toda a complexidade da transição socialista: “(…) por mais poses que se assumam, por mais que se queiram os fins ‘aqui e agora’ (‘o anarquismo não gosta de esperar’, disse Preobrajensky com agudeza), a passagem ao socialismo continuará sendo um processo que não pode ser simplesmente declarado; a dissolução do Estado é o oposto de um ato de mera vontade; são tarefas que compreenderão toda uma experiência histórica de transição entre a sociedade de classes de hoje e o futuro comunista sem elas” (“Marxismo, anarquismo y la transición al socialismo“, Roberto Sáenz).

Se passarmos do Estado para a política, ocorre uma situação análoga: a política é a instância da generalização dos interesses de classe, uma instância que aparece como uma forma separada, como o exercício prático de um setor específico da sociedade (a antiguidade grega como o modelo clássico) e que, historicamente, como um subproduto da luta de classes e do desenvolvimento das forças produtivas, deve tender a – deve-se lutar por – ser reabsorvida no corpo social, um processo que é o que caracteriza a transição socialista.

A crítica marxista ao Estado e à política é uma crítica a essa divisão: a busca pela dissolução de todos os Estados e a absorção da política pela sociedade, “para que até o último cozinheiro aprenda a administrar os negócios do Estado” (Lênin).

E é exatamente aqui que se situa a autoemancipação do proletariado. O proletariado é a classe universal: ao se emancipar, ele emancipa o restante dos oprimidos da sociedade. Mas essa emancipação não pode ser realizada por alguém em nome da mesma classe (esse é o cerne da crítica de Marx aos socialistas utópicos). Não há emancipação, no sentido socialista do termo, que não seja autoemancipação. Não há substituição possível para essa tarefa: “Somente o proletariado atual, que está completamente afastado de toda autoatividade, está em condições de alcançar a autoatividade completa e irrestrita, que consiste na apropriar-se da totalidade das forças produtivas e no desenvolvimento da totalidade das capacidades que isso implica” (Marx, “A Ideologia Alemã”, citado em Draper; 1978; 25). Autoatividade que pressupõe o caráter imprescindível do partido revolucionário como um elemento interno ao desenvolvimento político da própria classe, acrescentamos[66].

A teoria política de Marx que leva à autoemancipação da classe trabalhadora é uma de suas maiores contribuições: uma contribuição que se perdeu totalmente de vista pelas adversidades do século passado. O paradoxo do caso é que a Revolução Russa e os bolcheviques foram a maior experiência política da classe trabalhadora. Mas com a burocratização da revolução e as revoluções anticapitalistas do segundo pós-guerra, sem o protagonismo dos trabalhadores, essa perspectiva foi completamente deixada de lado. Recuperar a crítica marxista do Estado e da política leva ao restabelecimento da teoria da política marxista como uma teoria da autoemancipação da classe operária. Uma perspectiva que pressupõe, insistimos, o partido revolucionário como um instrumento indispensável para a elevação da classe operária a uma classe política.

Pois a autoemancipação é um processo simultâneo de emancipação política e social; nenhum dos termos pode ser negado. O político sem o social é superficial, e o social sem o político não tem nenhum veículo real, relações que, ao mesmo tempo, não são simples nem mecânicas[67].

As lições do século passado são inescapáveis neste sentido; lições que indicam que a revolução socialista pressupõe que a classe operária, como classe, realmente tome o poder; o que deixa lições no sentido oposto à tradição do trotskismo no segundo período do pós-guerra, quando se pensava que bastava que a propriedade fosse nacionalizada para que o Estado fosse “operário”: Estado dos trabalhadores e transição para o socialismo, ditadura proletária e transição para o socialismo devem ser conceitos sinônimos: a chave para a transição socialista é o poder. Porque sem política, sem poder político, nessa instância do desenvolvimento social, não há autoemancipação, não há transição para o socialismo. E a autoemancipação, a transição para o socialismo, significa que cada vez mais camadas do proletariado exercem de fato o poder.

Do Estado e da política, devemos passar para a crítica da propriedade. Já dissemos que Marx tinha um amplo conhecimento do direito. Em textos como a Carta a Annenkov, de 1847, por exemplo, ele fez valiosas observações gerais no sentido de que as relações jurídicas são relações derivadas: elas consagram relações materiais de fato na produção. “(…) A propriedade constitui a última categoria no sistema do Sr. Proudhom [Marx diz “última categoria” no sentido da categoria principal, R.S.]. No mundo real, ao contrário, a divisão do trabalho e todas as outras categorias do Sr. Proudhon são relações sociais cujo conjunto forma o que hoje é chamado de propriedade; fora dessas relações, a propriedade burguesa não passa de uma ilusão metafísica ou jurídica. A propriedade de outra época, a propriedade feudal, desenvolve-se em um conjunto absolutamente diferente de relações sociais. O Sr. Proudhon, ao estabelecer a propriedade como uma relação independente, comete mais de um erro de método; ele prova claramente que não compreendeu o nexo que liga todas as formas de produção burguesa, que não compreendeu o caráter histórico transitório das formas de produção em uma determinada época. O Sr. Proudhon, que não vê em nossas instituições sociais produtos históricos, que não entende nem sua origem nem seu desenvolvimento, não pode fazer mais do que uma crítica dogmática a elas” (“Marx a Annenkov”, Bruxelas, 28 de dezembro de 1946).

Essa abordagem não tem nenhum interesse em desconsiderar a esfera jurídica. Entendemos que, quando falamos sobre uma determinada relação de propriedade, devemos sempre olhar por trás dela: quais relações sociais reais ela esconde. Ressaltamos isso porque é sabido que a posição de nossa corrente é que, quando falamos sobre propriedade estatal em uma sociedade não capitalista, não estamos dizendo muito sobre o que estamos falando. Se o que se quer destacar é que os capitalistas foram expropriados, tudo bem. Mas, geralmente, no movimento trotskista, há uma tendência de interpretar a propriedade estatizada como propriedade real dos trabalhadores, o que é falso. As categorias de Marx acerca da propriedade, apropriação real, posse etc., são fundamentais para a compreensão de que se trata de tirar o véu por trás das formas de propriedade; que somente no capitalismo a propriedade tem sido uma categoria absoluta. “Nos povos que emergiram da Idade Média, a propriedade tribal se desenvolve por meio de vários estágios – propriedade feudal da terra, propriedade corporativa de bens móveis, capital manufatureiro – até chegar ao capital moderno, condicionado pela grande indústria e pela concorrência universal, a propriedade privada pura, que já foi despojada de toda a aparência de comunidade (Gemeinwesen) e eliminou toda a influência do Estado no desenvolvimento da propriedade. A essa propriedade privada moderna corresponde o Estado moderno (…) Por meio da emancipação da propriedade privada da comunidade, o Estado assume uma existência própria ao lado e à parte da sociedade civil (…) Uma vez que o Estado é a forma sob a qual os indivíduos da classe dominante afirmam seus interesses comuns e na qual se condensa toda a sociedade civil da época, segue-se que todas as instituições comuns são objetivadas por meio do Estado e adquirem sua forma política por meio dele. Daí a ilusão de que a lei se baseia na vontade e, além disso, na vontade desvinculada de sua base real, no livre-arbítrio. E, da mesma forma, o direito, por sua vez, é reduzido à lei (…) O direito privado proclama as relações de propriedade existentes como o resultado da vontade geral. O próprio “jus utendi et abutendi” [direito de usar e abusar, de dispor de uma coisa de acordo com a própria vontade, R.S.] expressa, por um lado, o fato de que a propriedade privada não depende mais da comunidade e, por outro lado, a ilusão de que a propriedade privada em si repousa na mera vontade privada, como o direito de dispor de uma coisa arbitrariamente (…). Essa ilusão jurídica, que reduz o direito à mera vontade, leva necessariamente, no desenvolvimento posterior das relações de propriedade, ao fato de que uma pessoa pode ter um direito legal a uma coisa sem chegar a possuí-la realmente” (Marx e Engels; 2010; 102/103/104/105). Apreciações que devem ser levadas em conta para entender o problema do direito e da propriedade na transição socialista, um processo em que a propriedade, sendo mediada pelo Estado, não tem e não pode ter o caráter da propriedade absoluta capitalista: a chave está nas mãos de que classe social está realmente o Estado[68].

A crítica do Estado, da política e da propriedade são outras áreas em que a contribuição de Marx, mesmo que fragmentária, é imensa. E nas quais devemos aprofundar nossa pesquisa com base na experiência histórica do último século, baseando-nos também no trabalho de nossos fundadores.

10 – Entre o “partido histórico” e o “partido efêmero”

Já ressaltamos que Marx e Engels eram revolucionários dos pés à cabeça. No entanto, não nos dedicamos a “historicizar” a trajetória deles no campo de sua ação política específica. Embora não possamos ir muito além neste ensaio, queremos estabelecer alguns parâmetros para um desenvolvimento futuro.

Marx e Engels estiveram envolvidos na vida política desde muito cedo. Quando a vida acadêmica de Marx se encerrou, ele se voltou para o jornalismo: uma atividade política por antonomásia. A matéria-prima do jornalismo é a realidade. E não há outra maneira de avaliar a atualidade a não ser de uma forma política. É claro que, em sua crítica à filosofia, incluindo o materialismo naturalista de Feuerbach, Marx imprimiria sua máxima: “Os filósofos não têm feito nada mais do que criticar o mundo, do que se trata é de transformá-lo”.

Sua função de editor da Gazeta Renana por alguns meses no final de 1842, seu novo cargo como editor da Nova Gazeta Renana em 1848, sua chegada a Paris alguns anos antes, em 1844, e seu contato com as correntes políticas da esquerda naquela cidade, sua viagem a Londres com Engels em 1845, seu exílio apátrida nesta mesma cidade de 1849 em diante, sua participação decisiva no trabalho da Primeira Internacional (entre 1864 e 1872), a acusação de que ele foi o “inspirador” da Comuna de Paris no final de 1871/2, a carta que escreveu em nome da Primeira Internacional a Lincoln para expressar apoio à luta dos unionistas do norte contra os confederados do sul e, voltando ao passado, suas conclusões sobre o fracasso da revolução de 1848, a chegada à perspectiva da independência de classe dos trabalhadores e os primeiros esboços da concepção de Revolução Permanente (1851), esboços mais tarde retomados por Trotsky, entre outros, são todos marcos de sua vida política (e da de Engels).

Parte dessa atividade política é a crítica aos outros socialistas. A reivindicação e a crítica dos utopistas (os socialistas utópicos), dos quais ele assumiria suas perspectivas de que “outros mundos eram possíveis”, outras relações sociais humanas e relações com a natureza, enquanto criticava a falta de base científica deles, bem como, acima de tudo, os elementos de substitucionismo social dos trabalhadores para empreender a tarefa; o não os ver como uma classe revolucionária, mas apenas como um objeto de caridade.

Também, a amizade íntima e, mais tarde, o rápido rompimento com Proudhom, seu panfleto “Miséria da Filosofia”, no qual ele criticou este último por sua base romântica; sua concepção de que, com base na (pequena) propriedade privada, um curso emancipatório poderia ser desenvolvido. Assim como, mais tarde, sua dura polêmica com Bakunin, não apenas contra sua orientação política irresponsável, antipolítica e minoritária, mas também contra a base idealista de suas concepções: ver todos os males como originários no Estado (considerado abstratamente, a propósito), e não ao Estado determinado como um subproduto das relações sociais exploradoras. Ou seja, sua incompreensão da concepção materialista da história e sua orientação política minoritária e antipolítica, repetimos. E, neste último sentido, seu reconhecimento da lógica revolucionária que guiou Blanqui, mas ao mesmo tempo sua crítica à adesão deste ao modelo jacobino da Revolução Francesa, seu seguidismo ao modelo das “sociedades secretas” de Babuef e Bounarroti, substituindo a ideia mais moderna de ação política como ação de massa, como ação da classe trabalhadora, da classe trabalhadora como uma classe política agindo abertamente na luta e não de uma maneira puramente conspiratória[69].

Em suma: sua crítica ao substitucionismo da classe operária na transformação social: a “emancipação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores”, Marx estamparia no manifesto de fundação da Primeira Internacional.

E é claro que isso nos leva à ideia de partido de Marx e Engels, uma ideia que ainda estava nas “fraldas” durante a maior parte de sua vida política. Marx e Engels passaram por vários tipos de partido: a Liga conspiratória dos Justos, o conhecimento de um movimento de massa político e aberto como os Cartistas, sua ligação com o movimento da Primeira Internacional (uma espécie de combinação de “sindicatos e partido internacional”, por assim dizer), o modelo dos partidos socialistas de massa que dariam origem à Segunda Internacional; em suma, uma gama variada de partidos.

Dentro dessa experiência variada, nem Marx nem Engels chegariam a distinguir o partido da classe operária como tal; nas mentes de ambos, esses dois planos estão “sobrepostos” sem chegar à concepção moderna do partido revolucionário, que é “a forma de partido de vanguarda” descoberta por Lenin: sua integração não é por pertencimento à classe, mas por adesão ao programa revolucionário (razão pela qual não pode abranger toda a classe, mas apenas suas seções mais avançadas).

Quanto ao resto, Marx e Engels eram muito ciosos de sua independência, isto a respeito de qualquer partido. Isso se explica pelo fato de que, na medida em que não eram construtores diretos de um partido, de que nenhum deles era realmente o “seu” partido, de que eles viam os partidos como surgindo mais da experiência objetiva da classe (uma concepção semelhante seria defendida por Rosa Luxemburgo), eles não queriam se sujeitar a nenhuma forma específica de partido que lhes tirasse a independência.

Seu “partido”, de qualquer forma, era a causa: o “partido histórico” para o qual eles, como nenhum outro, contribuíram com as bases fundamentais: o movimento socialista moderno. Mas, é preciso dizer, os vários “partidos efêmeros”, ou seja, os vários partidos concretos de seu tempo, na maioria das vezes lhes davam urticária; talvez com a exceção da Primeira Internacional, na qual eles participaram diretamente, especialmente Marx, sendo seus principais inspiradores teórico-políticos.

De qualquer forma, a vida política de Marx e Engels ocorreu entre o lançamento das bases do “partido histórico” e a participação, em geral sempre crítica, nos “partidos efêmeros” em que lhes cabia atuar, e nos quais nem sempre se sentiam confortáveis.

Marx rejeitava o sectarismo de forma visceral; e isso é compreensível: ele tinha uma concepção generosa demais das coisas; ele apreciava as qualidades que se aninham na humanidade de forma muito profunda para ter empatia com os sectários. Ao mesmo tempo, é claro, ele foi o crítico mais implacável e mais ácido dos oportunistas: daqueles que se rendem ao possibilismo ambiente; que não têm a coragem de se sustentar como “vanguardistas”; que se adaptam às modas passageiras.

A perspectiva deles, conforme estabelecida no “Manifesto Comunista”, é a de que os comunistas se distinguem apenas por “reivindicar em cada caso os interesses gerais da classe trabalhadora“. Lênin completaria seu trabalho nesse sentido descobrindo que somente o partido revolucionário, o partido que une os trabalhadores de vanguarda, é aquele que, ao contrário dos sindicatos e movimentos, pode defender esse interesse geral. Para a transformação da classe trabalhadora em uma classe política, é necessário ir além das meras demandas, elevando-se aos interesses históricos da classe, à liquidação do capitalismo e de seu Estado: à ditadura do proletariado, entendida como o exercício real do poder pela classe operária. E a compreensão de que essa tarefa exigia o partido revolucionário seria algo que somente Lenin (e Trotsky, mais tarde, seguindo seus passos) entenderia.

11 – Marx no Século XXI

Vejamos, finalmente, a questão que dá título a este ensaio: a atualidade de Marx. Muitos autores escreveram que Marx seria “um pensador do século XIX”; que sua abordagem não seria atual: uma afirmação de escandalosa superficialidade: “Declarado morto após a queda do Muro de Berlim, Marx mais uma vez se torna o foco de um interesse generalizado. Seu renaissance se baseia em sua capacidade permanente de explicar o presente; na verdade, seu pensamento continua sendo uma ferramenta indispensável para entendê-lo e transformá-lo” (Musto; 2015); como acreditamos ter evidenciado nestas páginas.

A obra de Marx é caracterizada por uma dupla vigência. Em primeiro lugar, porque a estrutura social que Marx criticou, uma estrutura fundada na forma específica de exploração capitalista, a exploração do trabalho assalariado, é a que reina mais do que nunca em todo o mundo: todo trabalho é assalariado; toda produção é mercadoria.

Já no “Manifesto Comunista”, algumas de suas frases podem ser lidas como uma enorme antecipação: “A burguesia, ao explorar o mercado mundial, dá à produção e ao consumo de todos os países um cunho cosmopolita (…) Aquele mercado local e nacional que era autossuficiente e onde nada de fora entrava, não reina mais; agora a rede de comércio é universal e nela entram todas as nações, unidas por laços de interdependência”. O ponto ao qual a internacionalização das forças produtivas chegou não faz mais que confirmar Marx; isso além dos limites que a própria globalização capitalista está encontrando atualmente, o que nos leva de volta a outra questão. As frases do Manifesto Comunista mostram claramente que não há crítico mais profundo de nossa contemporaneidade do que o próprio Marx: “A época da burguesia se caracteriza e se distingue de todas as outras épocas pelo deslocamento constante e agitado da produção, pela comoção ininterrupta de todas as relações sociais, por uma inquietação e dinâmica incessantes. As relações inabaláveis e mofadas do passado, com todo o seu séquito de ideias e crenças antigas e veneráveis, entram em colapso, e as novas envelhecem antes de criar raízes. Tudo o que se acreditava ser permanente e perene vira fumaça, o sagrado é profanado e, no final, o homem é forçado, pela força das coisas, a contemplar com um olhar frio sua vida e suas relações com os outros”. Uma contemporaneidade que não se baseia em nenhuma relação mais ou menos “superficial” entre seus dias e os nossos, mas na continuidade, como já dissemos, da forma de exploração do trabalho na qual o sistema se baseia: a exploração do trabalho assalariado[70].

Mas, além disso, a abordagem de Marx (além de sua crítica específica ao capital; relação social de exploração), tem a ver com algumas das características, também históricas, mas não apenas capitalistas, que organizaram a história da humanidade: o fato de que essa “história” é, antes, e como apontamos acima, uma pré-história em que, até agora, uma parte da humanidade oprime a outra.

O conteúdo específico de cada uma dessas relações sociais históricas têm variado. Entretanto, o que permanece, o que é comum, é que todos os regimes sociais até os dias de hoje são sistemas de exploração do homem pelo homem. E, portanto, a história continua sendo a história da luta de classes pela emancipação dessa exploração.

É claro que o século XX foi caracterizado por experiências socialistas e/ou anticapitalistas que foram além do sistema capitalista. Entretanto, essa experiência complexa não pode ser abordada sem os instrumentos críticos legados por Marx (assim como pelos marxistas revolucionários do século passado, é claro). Uma experiência que a crítica marxista do Estado, da propriedade e da burocracia deixou no lugar: o desvio que significou o Estado burocrático relativamente a um autêntico processo de transição para o socialismo.

A modo de digressão, vamos ressaltar que o acúmulo de evidências de que, em algum momento, a antiga URSS deixou de ser um Estado operário, nos remete à seguinte reflexão de Marx: “Sucede com a história humana como com a paleontologia. Há coisas que estão debaixo do nariz e que as inteligências mais eminentes não veem, em um primeiro momento, por causa de uma certa “judicial blidness” (cegueira do juízo). Depois, quando a aurora começa a despontar, vem a surpresa de perceber que o que não havia sido visto oferece rastros por toda parte” (Marx & Engels; “Anagrama”; 62).

Assim, relegar Marx a um pensador “antiquado”, do século XIX, é uma superficialidade que não resiste à menor análise: “Uma objeção óbvia à possível atualidade da obra de Marx é o tempo decorrido desde seu surgimento. Esse é precisamente o argumento destacado nas duas biografias mais recentes. Para Jonathan Sperber, Marx estaria tão enraizado no século XIX que suas teorias não teriam relevância para o presente. Stedman Jones não chega a rejeitar completamente a teoria marxista, como Sperber, mas também tenta destacar os limites do pensamento de Marx” (Michael Heinrich; 2018; pp. 19).

Se pensadores como os filósofos gregos mantêm elementos de atualidade 2000 anos depois por terem legado ensinamentos ligados a algumas características universais da experiência humana, o que se pode dizer da obra gigantesca de Marx? Ainda mais quando Marx logrou estudar e resumir o pensamento acumulado até ele: uma tarefa muito difícil de ser realizada.

A força do pensamento de Marx é imensurável; uma fonte de inspiração teórica, filosófica, histórica, política e econômica de imensa magnitude. Critica-se, corretamente, que, como é difícil ler Marx diretamente, sempre o lemos por meio de “pessoas interpostas” (mesmo que essas pessoas interpostas sejam pesquisadores sérios que nos permitem uma “via de acesso” ao seu pensamento), e não diretamente.

É verdade: seu 200º aniversário nos convida a estudar diretamente sua vida e obra; a ler seus textos e não apenas o que outros escreveram sobre ele. Um estudo que deve ser feito como se estuda um gênio: palavra por palavra: registrando-o, escrevendo-o, fazendo anotações como ele fez. Que este ensaio sirva como um chamado para mergulharmos nessa tarefa.

Notas:

[1] Dedico este ensaio à minha mãe, Jenny, que morreu recentemente de câncer aos 78 anos de idade. Embora ela fosse basicamente pró-capitalista e estranha ao marxismo (embora ela estivesse tentando entender algumas coisas a respeito – ela tinha lido a biografia de Jaques Attali sobre Marx: “Karl Marx ou o Espírito do Mundo”), ela sofreu quando jovem de algumas das formas mais extremas de barbárie capitalista, órfã pela perseguição nazista aos judeus: “Adaptei-me a muitos nomes, nasci Dzeni (Jenny) Gabaj, fui batizada Ljiljana Lukic, quando me naturalizei argentina as leis proibiam os estrangeiros e me tornei Juana” (“Em busca de meus ancestrais“, Mimeo).

[2] Como diz Marcelo Yunes, “a agenda de problemas a serem estudados em Marx se renova a cada momento histórico particular” (“Introducción a los Escritos de Juventud de Marx“, Antídoto, Argentina, 2006).

[3] É impressionante que nos muitos textos que foram produzidos sobre Marx este ano, mesmo nas fileiras das correntes trotskistas, muito poucos ligam sua reflexão ao que ele contribui teoricamente em termos de um balanço crítico das revoluções do século XX.

[4] Neste ponto, parafraseamos o artigo de Lenin Karl Marx, 1914, bem como os aspectos biográficos contidos na bibliografia deste artigo.

[5] Entre sua família e amigos mais próximos, Marx não era Karl, mas “O Mouro” (ele era assim chamado por causa de sua pele escura): “Ele nunca foi chamado Marx, nunca Karl, apenas Mouro (…) Mouro era seu sobrenome da universidade; e também na Nova Gazeta Renana, ele sempre foi chamado assim” (Musto; 2018; 97). “Motor a vapor” ele foi rotulado por causa da quantidade louca de tabaco que ele fumava e “velho Nick” ele apelou para si mesmo em alguns artigos.

[6] As cartas de Heinrich Marx para seu filho são geralmente de apoio e encorajamento, além de, às vezes, reprová-lo por sua vida desperdiçada e desordenada como estudante.

[7] Por “intuição permanentista” entendemos a necessidade de independência política da classe trabalhadora; o conceito de que a classe operária deve levar adiante a “revolução democrática” e, no processo dela, tender a dar-lhe objetivos socialistas.

[8] Este texto seria abstrato e, portanto, não ganharia um público (dedicado ao dinheiro, Marx diria em zombaria – estamos parafraseando livremente – que “nunca uma pessoa tão pobre dedicou tanto esforço para entender o dinheiro“). Musto assinala que, com a lição aprendida, Marx introduziria no primeiro volume do Capital experiências vividas de exploração do trabalho (o que o tornaria muito mais terrenal e concreto).

[9] Se os Enciclopedistas foram a inspiração para a Revolução Francesa, nunca antes na história uma revolução havia sido tão diretamente inspirada por um movimento fundado por duas pessoas: Marx e Engels, um fato que fala da profundidade de sua abordagem dos problemas.

[10] Expulso da Alemanha, França e Bélgica, ele nunca se tornou um inglês naturalizado: ele permaneceu apátrida por toda a vida.

[11] Enrique Dussel enfatizou este aspecto de sua obra.

[12] Esta tarefa recairia sobre Lenin e os bolcheviques.

[13] Cada biografia é uma combinação das condições de existência (que colocam certos limites), e da própria vida. Em certos casos, é possível “desafiar” estas condições fazendo uma contribuição transcendente. Encontrar os “pontos de integração” entre a própria vida e a história: um momento em que o indivíduo eventualmente começa a influenciar o curso histórico. Heinrich crítica este conceito com o argumento de que ele poderia dar origem a uma ideia unilateral que perde de vista a constante interação entre ambos os termos. Sem desconsiderar isto, parece-nos, no entanto, um conceito interessante para considerar aqueles momentos em que, eventualmente, ocorre uma “fusão” entre o indivíduo (ou o partido) e o processo histórico: onde este se transforma – com base em um certo “paralelogramo de forças” – em um “fator histórico objetivo” (ver o caso típico de Lenin em 1917).

[14] Draper identifica a vida de Marx organizada em torno da região mais industrializada da Europa: o Reno alemão, a França, a Bélgica e a Inglaterra. Embora Trier não fosse a região mais avançada, era próxima a Colônia, a cidade que o tornou famoso e onde ele fez suas primeiras experiências políticas, e em torno da qual existiam importantes localidades industriais.

[15] Vale a pena notar aqui a crítica à abordagem extremamente superficial e estúpida de Jonathan Sperber: “Aqui vale a pena perguntar como um ser humano mortal e não um mágico – Karl Marx, não Gandalf o Cinzento – conseguiu antecipar o futuro em 150 a 160 anos (…) A visão de Marx como um homem atual cujas ideias definem os contornos do mundo moderno está agora esgotada e chegou o momento de uma nova interpretação que vê nele uma figura ligada a um passado histórico, cada vez mais distante de nosso tempo (…) um caráter retrógrado” (Sperber; 2014; 11). Voltaremos a este assunto no final deste ensaio.

[16] Algo semelhante caracteriza muitas correntes revolucionárias, que se constituem em torno de “equipes de direção” convidadas a amadurecer e permanecer.

[17] O estudo das cartas de Marx-Engels é de enorme interesse. Ao abordar as questões de forma direta, “à queima-roupa”, elas estão repletas de percepções afiadas. De passagem, devemos ressaltar que “marxólogos” como Musto e Heinrich enfatizam que as cartas foram a renovação do estudo de Marx e Engels na geração passada, e que isso agora está passando pelo estudo das obras completas do MEGA II (que está tirando a poeira de vários textos anteriormente desconhecidos)[18].

[18] O primeiro exemplo disso foi um artigo de Engels que já em 1844 tratava de questões econômicas (Esboço para uma crítica da Economia Política) e que Marx tanto elogiou.

[19] Em uma apresentação das cartas de Marx e Engels sobre a natureza, Jean-Pierre Lefevbre destaca que, ao contrário da crença popular, nas décadas de 1850/ 1860 foi Marx quem lidou com as ciências naturais.

[20] Marx tinha uma sólida formação clássica (antiguidade grega). Cultura que, naqueles anos, era considerada o auge da humanidade, especialmente na Alemanha. O peso dessa formação clássica na mente de Marx pode ser visto de relance em seus textos. Veja, por exemplo, sua referência ao prazer que a arte clássica continua a causar no mundo contemporâneo na “Introdução à Crítica da Economia Política” (1857).

[21] Os pais de Engels não permitiram que ele fosse para a universidade. Depois do ensino médio, ele prestou serviço militar e, em seguida, foi enviado para inteirar-se dos negócios.

[22] Vamos acrescentar uma citação do próprio Hegel: “Na experiência, tudo depende do pensamento que dedicamos à realidade. Uma grande mente é grande em sua experiência. E, no jogo heterogêneo dos fenômenos, percebe no ato o ponto de real importância” (Enciclopédia de Hegel citada por Engels em “Dialética da Natureza”, idem, pp.166). Essa citação é ilustrativa de como Hegel podia ser um materialista quando “queria ser”.

[23] Podemos usar aqui uma observação incisiva de Musto, que fala do “encanto da incompletude” com relação à obra de Marx. Ou seja, o fato de não encontrarmos nela um sistema “acabado”, mas uma obra aberta em constante evolução.

[24] Esse é um artigo escrito entre setembro e novembro de 1914, quando Lenin estava enriquecendo sua compreensão da dialética (um assunto que abordamos em nosso “Lenin en el siglo 21“).

[25] A empregada da família Marx foi para a casa dos pais de Karl ainda muito jovem e os acompanhou por toda a vida. Quando Jenny e Marx morreram, ela foi trabalhar na casa de Engels.

[26] Karell é Karl com sotaque holandês (a mãe de Marx era de origem holandesa).

[27] Engels conheceu em Manchester, em 1843, a renomada operária têxtil e ativista Mary Burns (aparentemente uma operária da empresa da família), defensora do nacionalismo irlandês. Ele manteve um relacionamento com Mary por duas décadas e, quando ela morreu, ele começou a se relacionar com a irmã dela, Lizzy Burns. Foi Mary quem guiou Engels pelos bairros operários da cidade e lhe deu uma visão das reais condições materiais de vida dos operários, que mais tarde foram sistematizadas em seu primeiro livro,” A situação da classe trabalhadora na Inglaterra”, publicado em 1845. Em resumo, não por coincidência, foi uma mulher que abriu o caminho de Engels e Marx para a classe operária.

[28] Mais de uma vez, Marx assinalaria para Engels sua “vergonha” por ter de lhe pedir dinheiro. Aqui podemos ver a falta de partido que ambos sofreram: a carência de qualquer retaguarda [29].

[29] Uma tragédia semelhante à que Trotsky experimentaria com sua filha mais velha.

[30] Veja nossa avaliação do modernismo em Ensayo de interpretación del modernismo, www.socialismo-o-barbarie.org.

[31] A única corrente socialista revolucionária organizada no início do século XXI é o trotskismo.

[32] Draper desenvolve isso em seu trabalho. Ele explica como, no início do século XIX, a burocracia estatal prussiana manteve elementos de autonomia em relação ao desenvolvimento econômico e ao ascenso da burguesia. A complexidade da relação entre as classes feudais e a burguesia seria uma característica do Estado alemão e permaneceria assim até o século XX (o exército prussiano teria peso até a derrota alemã na Segunda Guerra Mundial). Esse “pastiche” de atraso e modernidade seria muito característico da direita alemã e do nazismo, como Enzo Traverso, entre outros autores, enfatizou.

[33] Uma repressão semelhante havia sido sofrida pelos trabalhadores têxteis de Manchester, na época a principal cidade industrial da Grã-Bretanha. Engels documentou essa greve histórica em um artigo no qual também destacou a intervenção do exército britânico para interrompê-la.

[34] Os “Manuscritos Econômico-Filosóficos” (ou Manuscritos de Paris) foram publicados em baixa tiragem pelo Instituto Marx e Engels em 1932. É óbvio que Stálin (que já havia destituído Ryazanov da direção do Instituto) não poderia ter morrido de vir com um texto que criticava a alienação do trabalho: “A ideologia stalinista, que havia feito do stakhanovismo uma de suas bandeiras, provocou uma profunda hostilidade ao conceito de alienação, sem dúvida a principal novidade teórica contida nos Manuscritos” (Musto, “El mito del joven Marx “).

[35] Lembramos aqui de uma ideia de Daniel Bensaïd, quando ele enfatiza que Marx tinha clareza de que fazia ciência de “outra maneira”: não de uma maneira positivista, mas de uma maneira crítica; “ciência ao estilo alemão”.

[36] Vamos enfatizar o conceito de “transformação contínua da natureza humana” para dar conta da plasticidade que se aninha nos seres humanos: a amplitude de perspectivas se se mudam as condições materiais de existência que as limitam.

[37] Por “lição de sangue” queremos dizer uma lição histórica subproduto do que aconteceu no século passado: uma sangria burocrática que liquidou a vitalidade; que levou à morte as revoluções do século passado.

[38] Nem todos os grandes pensadores têm obras “arquitetônicas”: pense em Freud, por exemplo, cujo trabalho é expresso em vários “ensaios” e artigos, mas não em um texto “geral”. A “Interpretação dos Sonhos” é talvez seu ensaio mais extenso.

[39] É bem conhecida sua declaração de que esse manuscrito foi entregue à “crítica roedora dos ratos” (no sentido de que não se destinava à publicação).

[40] Heinrich aponta que Mehring viu nessas declarações uma primeira “semente do materialismo histórico”. Mas ele rejeita essa interpretação, acrescentando que outros autores enfatizam que “o efeito restritivo das circunstâncias sobre o desenvolvimento dos indivíduos” era um fato adquirido do pensamento materialista do século XVIII [41].

[41] Marx chegaria ao materialismo por meio de Feuerbach: “A fantasia é uma atividade intelectual subjetiva, que representa as coisas da maneira que elas se adequam ao humor; a razão é uma atividade intelectual objetiva, que representa as coisas como elas são” (Feuerbach citado por Heinrich; 2018; 326).

[42] Mesmo que o conceito de herança de Engels não seja o adequado, sua explicação do trabalho e da adaptação da mão a ele como a causa do desenvolvimento da consciência humana é brilhantemente materialista.

[43] A política revolucionária é – e deve ser – “uma linguagem para a luta de classes” (Aldo Casas).

[44] Esse texto de Korsch é muito valioso em termos de uma abordagem crítica do marxismo como uma “ciência da luta de classes“: “Mesmo se abstrairmos a forma peculiar do fundamento ‘científico-natural’ do primeiro conceito de sociedade de Kautsky, que consiste em explicar o fenômeno da sociedade com base em supostos ‘instintos’ sociais, e nos atermos exclusivamente à concepção fundamental de natureza e sociedade que está em sua base, enfatiza claramente que esse conceito kautskyano de sociedade nada mais é do que uma variante da filosofia vulgar da ‘luta pela existência’, na qual os inimigos declarados de qualquer modificação consciente da vida social têm se apoiado, desde os dias de Hobbes, Malthus e Darwin, cada vez mais no fundamento ‘científico’ de suas tendências reacionárias” (idem, pp. 46/7). 46/7).

[45] Heinrich argumenta que colocar Hegel como parte do idealismo alemão é um tipo de “reducionismo”. Para ele, Hegel foi um pensador pós-kantiano, “pós-idealista” em certo sentido: um pensador ligado à realidade prática e não afastado dela, como é o estereótipo.

[46] Em uma breve nota, Valerio Arcary usa uma citação brilhante de Stephen Jay Gould, ilustrativa para esse propósito: “Os seres humanos não são um resultado final do progresso, mas um pormenor cósmico fortuito, um pequeno ramo da assustadora arborescência da vida; se a semente fosse replantada, é quase certo que nunca mais produziria o mesmo ramo e, possivelmente, nenhum outro broto com uma propriedade que poderíamos chamar de consciência” (“Dinossauro no Palheiro”, São Paulo, Companhia das Letras, em “134 anos sen Karl Marx“).

[47] O “princípio da declinação” referia-se, em Epicuro, à ideia de que na “queda dos átomos”, em sua trajetória, poderiam ocorrer “desvios” de seu suposto curso normal, algo que Demócrito avaliava de forma rígida e mecânica (é claro que tudo isso eram “intuições atomísticas”, e não conhecimento científico propriamente dito). Se esse “princípio da liberdade” pudesse ser fundamentado na própria natureza, não seria mais apenas um capricho pensar na complexa dialética entre necessidade e liberdade.

[48] Hal Draper toma apontamentos da elaboração “histórica/antropológica” de Marx e Engels no volume I de sua “Teoria da Revolução de Karl Marx”, onde, referindo-se ao estágio do comunismo primitivo, à propriedade comunal, lhe tira a apreciação romântica que geralmente se tem dela: o grau de individuação ainda era muito baixo. Por isso, Marx chegou a falar da “servidão” que prendia as pessoas às comunidades agrárias no despotismo oriental.

[49] Nossa corrente tem elaborado sobre isso. Veja, por exemplo, “La revolución permanente hoy. A cien años de la Revolución Rusa”, do mesmo autor deste ensaio, obra que contém vários capítulos sobre a propriedade estatizada na transição socialista. Podemos destacar também o artigo “Evgeny Pashukanis y la superación marxista del derecho“, de Marcelo Buitrago.

[50] Ver, a esse respeito, “Lênin en el siglo XXI“, do mesmo autor deste ensaio. Em todo caso, voltaremos à concepção do partido em Marx e Engels mais adiante.

[51] Alertamos para o fato de que este capítulo será um pouco mais pesado. A teoria econômica de Marx, o fato de ele ter trabalhado profundamente nela, tem um número enorme de determinações, desdobramentos, alguns dos quais inevitavelmente seremos obrigados a “sujeitar” aqui.

[52] “Génesis y estructura de El capital”, de Roman Rosdolky, é um dos trabalhos marxistas mais reconhecidos sobre esses manuscritos. Enrique Dussel também tem notas acadêmicas sobre as várias redações de “O Capital”.

[53] O projeto MEGA I teve início na antiga URSS na década de 1930 e foi interrompido algum tempo depois.

[54] A ideia de Marx de que os inícios são sempre difíceis é aguda, embora possamos acrescentar que isso é verdade em qualquer campo da vida e não apenas na ciência. Pois é assim: qualquer começo implica não ter o “controle total” da coisa, ainda não dominá-la: andar “como se estivesse tateando” em um empreendimento no qual não se conhece seus parâmetros [55].

[55] A isso Engels acrescenta na quarta edição de O Capital: “A língua inglesa tem a vantagem de ter duas palavras distintas para esses dois aspectos diferentes do trabalho. O trabalho que cria valores de uso e que é determinado qualitativamente é chamado de work, em oposição a labour; o trabalho que cria valor, e que é medido apenas quantitativamente, é labour em oposição a work” (Marx; 1981; 58).

[56] O que Marx identificava como “mera gelatina de trabalho humano indiferenciado” ao falar de trabalho abstrato, indiferente relativamente ao caráter específico do trabalho em si.

[57] Em “O Capital”, Marx se refere à concepção de trabalho em Aristóteles, ou melhor, à sua compreensão errônea do trabalho como trabalho humano: para Aristóteles, havia ferramentas de dois tipos: ferramentas “mugidoras” e “não mugidoras”: entre as não mugidoras estavam as ferramentas tradicionais de trabalho; mas entre as mugidoras ele colocava tudo, desde vacas… até os escravos.

[58] O debate sobre o trabalho nos últimos tempos tem todo um desenvolvimento específico no marxismo que não podemos desenvolver aqui: de André Gorz a Ricardo Antunes, para dizer o mínimo, houve todo um arco-íris de posições: algumas negando as determinações do trabalho hoje; outras talvez um pouco essencialistas. Veja o debate atual sobre automação na última edição de nossa revista Socialismo o Barbarie, artigo de Marcelo Buitrago.

[59] O que na transição socialista se metamorfoseia na combinação da lei do valor subsistente e do planejamento socialista. Veja, a esse respeito, “La dialéctica de la transición socialista. Plan, mercado e democracia proletária“, do autor deste ensaio.

[60] Atenção que muitos aspectos da irracionalidade do planejamento burocrático tinham a ver exatamente com isso: a busca de índices produtivos puramente físicos (peso, quantidade etc.), produtos que não podiam satisfazer nenhuma necessidade tão mal concebidos que eram. Por exemplo: tratores que avaliados pelo peso, não conseguiam levantar um metro no campo porque eram muito pesados!

[61] Tratamos desse assunto em obras como “El debate sobre las perspectivas históricas del capitalismo, www.socialismo-o-barbarie.org, assim como outros autores abordaram esse assunto em nossa revista Socialismo o Barbarie.

[62] Marx era um grande matemático: todo o “O Capital” é atravessado por uma análise de proporções. Proporções, muitas das quais estão matematizadas e exigem uma certa “capacidade lógica” para lidar com elas. As leis de “O Capitalsão leis de proporções: daí é que se necessita do esforço para estabelecer o sentido delas (diretas e inversas).

[63] A obra mais importante de Grossmann é “La ley de la acumulación y el derrumbe del sistema capitalista”, de 1927, uma das obras econômicas mais importantes do século passado, que, apesar de certos ares “catastrofistas”, pode ser estudado com proveito. Marcelo Yunes fez um estudo esclarecedor de uma parte dela.

[64] Uma pré-história que não se atém à divisão histórica convencional, mas que Marx e Engels situam no império das sociedades de classes, razão pela qual ainda estamos na pré-história humana neste século XXI. A história humana de fato começará quando as relações de exploração e opressão terminarem.

[65] A esse respeito, Perry Anderson oferece uma nuance, pois em sua obra “El Estado absolutista“ ele ressalta que, com exceção do capitalismo, todos os outros regimes sociais de exploração se baseavam na coerção extraeconômica. De qualquer forma, isso não prejudica o ponto principal que Draper quer destacar nessa citação, que em regimes sociais que não o capitalismo, as esferas da economia e da política aparecem fundidas.

[66] Em Marx, a ideia do partido não foi totalmente elaborada. Acontece que, para eles (incluindo Engels aqui também), a ideia de partido era muito sobreposta à classe, vista quase como uma constituição espontânea da classe. Embora tenham tido várias experiências partidárias, não tiveram uma elaboração específica do partido de vanguarda. Quanto ao resto, muito ciosos de sua independência, eles não gostavam de ser “amarrados” a nenhum partido. Eles faziam uma distinção entre o “partido histórico”, que era a causa, e o “partido efêmero”, que era a forma concreta de partido em um determinado momento. Voltaremos a esse assunto no final deste artigo.

[67] Bensaïd é incisivo ao criticar o reducionismo mecânico do político em social como um freio ao pensamento dogmático. Isso para além do fato de que também devemos evitar o erro simétrico: esvaziar as formas políticas de todo o conteúdo social.

[68] Ver, a esse respeito, “La revolución permanente a cien años de la Revolución Rusa. Aprofundaremos essas categorias em um próximo texto que intitulamos aproximadamente Marx, o Estado e a transição socialista.

[69] O que não diminui, obviamente, o fato de que, na concepção de Lenin do partido revolucionário, não há elementos de partido legal e ilegal, dado o caráter repressivo do Estado capitalista.

[70] Um elemento enfatizado pelo marxista francês Pierre Naville em toda a sua obra.

 

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 Tradução: José Roberto Silva e Antonio Soler