Diante da liquidação do PSOL como partido independente da burguesia e da burocracia imposto pela direção do PSOL – formação da federação com a REDE Sustentabilidade e o ingresso na chapa Lula-Alckmin – e da necessidade de constituir uma frente politica revolucionária com os que rompem pela esquerda com o PSOL, publicamos um fragmento do texto A vigência do Que fazer? em nossa época* de Roberto Sáenz para contribuir com esse debate. Esse texto recupera a atualidade da intuição genial de Lênin no livro Que fazer? quando, ao reescrever Kautsky, afirma que a consciência revolucionária do proletariado não pode vir do mundo restrito da economia, mas sim da autoatividade da classe trabalhadora em simbiose com o partido revolucionário.     

Redação

Sobre as leis de construção do partido revolucionário

ROBERTO SÁENZ

“A organização bolchevique foi a criação do próprio Lênin. A ideia mesma de organização ocupa um lugar central no leninismo; organização do instrumento revolucionário; organização da revolução como tal; organização da sociedade a qual a revolução deu vida. A insistência na absoluta necessidade de organização se encontra em todos os escritos e toda a carreira de Lênin” (53)

Os ensinamentos de Lênin são de um grau de universalidade que se relacionam com as coordenadas centrais de todo partido que se preze enquanto tal, seja enquanto o partido esteja no estágio de organização de vanguarda (e, inclusive, se é um grupo de propaganda), ou com influência entre setores das massas: “O que defendo ao longo do livro [Que fazer?], desde a primeira até a última página, são os princípios elementares de qualquer organização de partido que possa imaginar-se”(54). Ao mesmo tempo, o “modelo” de partido leninista em todo estágio deve possuir traços de partido de vanguarda a respeito do conjunto da classe operária. Explicamo-nos: Ao ser partido político e não meramente movimento reivindicativo, sempre deve tender a encarnar os interesses mais estratégicos dos trabalhadores. Neste sentido, jamais deve marcar o passo com os elementos de consciência mais atrasada: “A socialdemocracia em todo lugar e sempre tem sido, e não pode deixar de sê-lo, o representante dos trabalhadores com consciência de classe, e não dos trabalhadores sem consciência de classe”(55).

Insistimos: o partido revolucionário sempre deve ser o destacamento avançado da classe: “O partido deve ser só a vanguarda, o líder das vastas massas da classe trabalhadora; o conjunto (ou cerca do conjunto) delas ‘trabalham sob o controle e a direção’ das organizações do partido, mas o conjunto destas mesmas massas não pode pertencer ao partido”(56). Nesse mesmo sentido, Liebman assinala que: “A convicção de que a revolução russa devia ser necessariamente o trabalho de um grupo de vanguarda e não de um partido de massas estava baseada não meramente nas características circunstanciais da Rússia de seu tempo, mas também na forma em que se concebia a relação entre a classe operária e o partido proletário; para ser mais preciso, desprendia-se de sua visão geral a respeito da consciência de classe que o proletário possuía o não possuía.”(57). Porém, há outro ângulo que tem que ver com as características do partido e seus estágios de construção. A que nos referimos com isto? Ao fato de que as leis específicas de uma organização em um estágio construtivo de vanguarda – isto é, que busca abrir passo não só em relação com as forças burguesas, mas também no interior mesmo da esquerda – são diversas a respeito do caso em que já está colocada a disputa pela influência entre setores das massas.

Estas leis não podem ser idênticas às que tendem a caracterizar uma organização que já é hegemônica no interior da própria esquerda e dos setores mais avançados da classe operária, e que mergulhou de cabeça no trabalho de massas.  Este salto de qualidade, ao ser de uma mecânica tão complexa, foi resolvido de maneira correta apenas em poucas vezes: se quer na vida de Lênin e Trotsky a frente da III Internacional isto foi tarefa fácil. Nem se fale dentro do movimento trotskista do segundo pós-guerra. Muitíssimas experiências terminaram empatadas neste salto devido a que se as tensões das pequenas organizações revolucionárias provêm mais do lado do sectarismo, a das organizações as quais se lhes coloca o salto às massas vêm, caracteristicamente, do oportunismo. Está claro, por outro lado, que o anteriormente dito de nenhuma maneira deve ser razão para não se afrontar este desafio, sob pena de ser uma seita irremediável que faria um fraco favor a mesma classe operária, que – a experiência histórica propriamente socialista demonstrou claramente – não se pode levar adiante uma revolução propriamente socialista sem um grande partido socialista revolucionário com influência entre as massas.

Em síntese, para além dos determinantes gerais de todo partido revolucionário que vimos acima, no que diz respeito aos estágios de construção do mesmo, operam leis diversas e o salto de qualidade de um ou outro é o desafio mais difícil e historicamente pior resolvido em matéria de construção de organização revolucionária. No entanto, no que se segue, iremos nos concentrar sobre tudo na operação destas leis no caso das organizações no estágio de vanguarda e só daremos umas “pinceladas” sobre o salto às massas.

A lei do mais forte

As leis de construção de uma organização no estágio de partido de vanguarda estão marcadas por um paradoxo: se sua política sempre deve estar referida às exigências objetivas da luta de classes, para responder às mesmas, de certo modo, não tem alternativa a não ser ir adiante a expensas do resto da mesma esquerda. Isto é assim devido a que o “espaço” e o terreno político objetivo mais geral que habitualmente tem a esquerda revolucionária (claro que isto varia substancialmente quando se abrem situações revolucionárias) apresenta determinadas dimensões que obrigam às correntes a se chocar umas com as outras.

Na experiência histórica que conhecemos mais de perto, a do velho MAS – que havia “resolvido” as relações de forças no seio da esquerda -, este alcançou em poucos anos estender seu “espaço” de atuação mais além da vanguarda. Porém, a tremenda contradição surgiu quando começou a “flertar” com o peronismo: entrou em uma espiral de crise que o levou a dissolução. Teve um projeto errado para dar o salto até a influência entre amplos setores das massas: um projeto basicamente regional-geográfico-eleitoral em vez de um orgânico-laboral-estrutural. Este desvio oportunista em matéria de organização – junto a um conjunto de outras razões – o liquidou. Porém o habitual entre as correntes de vanguarda sem peso nas massas é uma construção que se leva a cabo a expensas do outro. Os “espaços” se criam porque uma corrente “cai” e outra que vem acumulando de maneira progressiva o ocupa. Trata-se de uma sorte de “lei de seleção natural política”, de sobrevivência do mais apto, ainda que mais “lamarquiana”(58) que “darwinista” porque, diferentemente da natureza, na sociedade, conta o fator subjetivo da vontade(59). Trata-se de uma lei materialista que rege a vida das correntes revolucionárias: devem-se qualificar umas as outras; a que tem mais capacidade e é sobrevivente em um meio hostil, constrói-se: esta é a lei.

Segundo Liebman, o próprio Martov na época da velha Iskra assinalava que “a luta entre ‘iskristas’ e os oponentes da centralização às vezes tomava a forma de uma ‘guerra de guerrilhas’ na qual ‘táticas subversivas’ deviam empregar-se e na qual, finalmente, ‘a lei do mais forte terminava impondo-se’. Decorre disso que os militantes aprendam suas primeiras lições [na arte da luta de tendências políticas”](60). Partindo do ponto de vista anterior, e durante esta duríssima luta, que muitas vezes abarca todo um período histórico (precisamente essa foi a experiência de bolcheviques e mencheviques na Rússia pré-revolucionária(61)) é que na hora de capitalizar acertos ou direções políticas, o mais “forte” é o que “leva mais” na hora da “divisão/partilha”: se há dez companheiros para ganhar, a corrente mais forte fica com sete, e as mais débeis “repartem”, entre elas, um cada uma.

A questão é que toda organização revolucionária que não se ajuste a estas leis objetivas de disputa, seleção e recrutamento na vanguarda se verá incapacitada para atingir um salto construtivo de qualidade. Isto mesmo é o que colocava Trotsky em seu balanço a respeito do debate Lênin-Luxemburgo em matéria de organização (debate que tem por saldo o triunfo da tese leninista). É que, efetivamente, como dizia Trotsky, o problema de Luxemburgo foi que não possuiu a capacidade de visualizar que a construção da organização revolucionária está determinada por um esforço subjetivo em selecionar, recrutar, concentrar e formar os melhores elementos da vanguarda para que construam a coluna vertebral do partido.

Rosa ficou taxada irremediavelmente como “espontaneista”, porque dadas as circunstâncias históricas em que viveu, sua concepção apostou muito na emergência espontânea e independente da base operária contra o aparato da direção socialdemocrata, questão que em si mesma não estava equivocada, porém, desvalorizou outra tarefa que estava colocada, a construção de uma forte fração centralizada no interior da socialdemocracia alemã. Mas retornemos a nosso ponto. Como vínhamos assinalando, o que nos interessa é apontar como são as leis de crescimento de uma organização de vanguarda. Suas leis são dialéticas como dialéticas são as leis de movimento tanto na natureza quanto na sociedade. Refere-se a uma compreensão profunda da operação desta lei: os saltos em qualidade se produzem após uma progressão caracterizada por toneladas de esforços e desenvolvimentos quantitativos prévios. Isto é, a lei de acumulação no terreno da natureza, a economia e também da construção do partido requer uma base material, um esforço prévio, que é o que em realidade ocupa praticamente a história inteira do processo, no qual o período de acumulação quantitativo leva um largo período de desenvolvimento. Trata-se de uma lei de desenvolvimento pautada por largos períodos de acumulação quantitativos prévios aos curtos períodos de surto revolucionário qualitativo. Em síntese, toneladas de esforços reformistas são necessários para criar as condições materiais de um salto qualitativo em matéria de construção do partido revolucionário.

Quando “a vontade é tudo”

Porém, há algo mais no que pertence a organização de vanguarda: trata-se da passagem de ser uma organização que depende da vontade única de seus integrantes (característica das organizações de vanguarda) em transformar-se em uma corrente, digamos, histórica. Neste sentido, Gramsci (que evidentemente tinha muitíssima sensibilidade em matéria de organização) assinalava algo muito agudo. Citamos in extenso:

“A questão de quando se formou um partido, ou seja, quando se tem uma tarefa precisa e permanente, produz muitas discussões. Verdadeiramente se pode dizer que um partido não está nunca perfeito e formado, no sentido de que todo desenvolvimento cria novas obrigações e tarefas (…). Aqui se deseja aludir a um particular momento desse processo de desenvolvimento, ao momento imediatamente posterior a aquele no qual um fato pode ter existência ou não tê-la no sentido de que a necessidade de sua existência não chegou, todavia, a ser ‘peremptória, mas que depende ‘em grande parte’ da existência de pessoas com uma extraordinária potência volitiva e de extraordinária vontade.  Quando se faz historicamente ‘necessário’ um partido? Quando as condições de seu ‘triunfo’ estão ao menos em vias de formação e permitem prever normalmente seus ulteriores desenvolvimentos. Porém, quando se pode dizer que um partido não poderá ser destruído com meios normais? Para contestar esta pergunta deve-se desenvolver um questionamento: para que exista um partido é necessário que confluam três elementos (propriamente, três grupos de elementos): “Um elemento difuso, de homens comuns, médios, cuja participação está possibilitada pela disciplina e a fidelidade, não por um espírito criador e muito organizador. Sem eles, é verdade, o partido não existiria, porém também é verdade que o partido não existiria ‘somente’ com eles. Eles são uma força na medida em que há alguém que os centralize, organize e discipline, porém se falta esta outra força viva de coesão, dispersarão e anular-se-ão em uma pulverização impotente. “O elemento principal de coesão que centraliza no âmbito nacional, que dá eficácia e potência a um conjunto de forças que, abandonadas a si mesmas, contaria zero ou pouco mais; este elemento está dotado de uma força intensamente coesiva, centralizadora e disciplinadora, e também, ou inclusive talvez por isto, inventiva (se se entende ‘inventiva’ em certa orientação, segundo certas linhas de força, certas perspectivas, e também certas premissas); também é verdade que só este elemento não formaria o partido, contudo o formaria, de todos os modos, mais do que no primeiro elemento considerado. Fala-se de capitães sem exército, porém na realidade é mais fácil formar um exército que formar capitães. Tanto é assim que um exército já existente fica destruído se fica sem capitães, enquanto que a existência de um grupo de capitães, coordenados, de acordo entre eles, com finalidades comuns, não tarda em formar um exército inclusive onde não existe. Um elemento médio que articule o primeiro com o segundo, coloque-os em contato não somente ‘físico’, mas também moral e intelectual. Na realidade, para cada partido existem ‘proporções definidas’ entre estes três elementos, e se alcança o máximo de eficácia quando se realizam essas ‘proporções definidas’. Para que isto ocorra [isto é, a formação do partido. RS] é necessário que se vá formando a convicção férrea de que é necessária uma determinada solução dos problemas vitais. Sem essa convicção não se formará o segundo elemento, cuja destruição é mais fácil, por sua escassez numérica; porém é necessário que este segundo elemento, quando é destruído, deixe como herança um fermento a partir do qual possa reconstruir-se” (62).

Pedimos desculpas pela extensão desta citação, que reproduzimos completa porque é brilhante e capta em toda sua tremenda agudez o caráter a priori “voluntarista” (o que não quer dizer que não se apóie em premissas objetivamente fundamentadas) que necessariamente tem a construção de toda organização de vanguarda. Ou para dizê-lo de uma maneira mais “universal”, de uma corrente política definida com uma identidade tal que introduza um matiz no conjunto do movimento revolucionário de sua época. Em definitiva, segundo Liebman, a vantagem de que gozava o bolchevismo sobre o menchevismo (para além, claro está, das diversas estratégias) se fundamentava não tanto em uma equipe teoricamente superior, mas na capacidade de se manter viva, apesar de todos os fracassos e retrocessos, e inclusive apesar das mais difíceis condições, uma organização de partido que em período de reação e desmoralização que viram o colapso dos mencheviques salvaguardara o essencial e assegurara um futuro para a socialdemocracia russa.

A política no posto de mando

“Tampouco penso que possa dar uma fórmula tal sobre o centralismo democrático que ‘de uma vez por todas’ elimine os mal-entendidos e falsas interpretações. Um partido é um organismo ativo. Desenvolve-se na luta contra obstáculos exteriores e contradições internas (…). O regime de um partido não cai feito do céu, mas se forma gradualmente na luta. A linha política predomina sobre o regime; em primeiro lugar, é necessário definir os problemas estratégicos e métodos táticos corretamente com o fim de resolvê-los. As formas organizativas deveriam corresponder à estratégia e a tática. Somente uma política correta pode garantir um regime partidário saudável. Entende-se que isto não significa que o desenvolvimento do partido não dará lugar a tais problemas de organização. Porém implica que a fórmula para um centralismo democrático deve encontrar inevitavelmente uma expressão diferente nos partidos de diversos países e em distintos estados de desenvolvimento de um mesmo partido”(63). Acerca da espinhosa questão do regime do partido se escreveram toneladas de páginas, no mais das vezes “inservíveis”. Aqui só queremos deixar estabelecida uma série de critérios que cremos fundamentais para abordar esta problemática começando por assinalar que nunca se poderia tratar de tomá-los como um “receituário”. Em última instância, as determinadas “regras do jogo” do funcionamento do partido dependem das circunstâncias concretas da luta de classes em que a construção do mesmo se leva a cabo e em certa forma também do estágio construtivo em que se encontra o partido, tal como coloca Trotsky.

Começaremos despejando questões básicas. A primeira é que sempre os problemas de organização (e o regime de partido de partido dentre deles) se seguem dialeticamente da política. É a todas as luzes evidente que um partido direcionado a mera atividade eleitoral terá um tipo de regime muito diverso ao de uma organização revolucionária cuja atividade principal é intervir cotidianamente na luta de classe. Nesta intervenção, o que deve mandar são sempre as exigências que coloca a luta. Isto é, não há como resolver os problemas da intervenção do partido por uma via de onde se imponham interesses estranhos aos da mesma luta. Os irrevocáveis interesses do partido devem fazer-se valer de uma maneira que contribuam ao desenvolvimento, politização e triunfo dessa mesma luta. O contrário seria instrumentalismo e nada mais que instrumentalismo, que fraco favor faria aos trabalhadores e ao progresso de sua consciência de classe. O regime de partido é passível de outro tipo de reducionismo: o de fazer uma interpretação do mesmo em chave formalista. É dizer, crer que o regime pode ficar preso na aplicação formal de um estatuto que condena o partido a inação, liquidando o desenvolvimento de sua vida militante em toda sua riqueza e diversidade. Porque o que manda em uma organização autenticamente revolucionária é a política, o conteúdo das apostas estratégicas: “A fração e o perigo de uma divisão [do partido bolchevique em oportunidade de luta contra a oposição de esquerda ao acordo de Brest-Litovsk.RS] foram vencidos não por meio de decisões formais baseadas nos estatutos, mas com a ação revolucionária”(64). No mesmo sentido, Marcel Liebman insiste uma e outra vez, de maneira convincente, que, sobretudo em condições de ascenso revolucionário (quando há retrocesso, necessariamente, regem outras leis, mais “fechadas” no que tange a vida da organização), o “partido de Lênin” é um [partido, CER] extremadamente flexível e aberto à pressão revolucionária proveniente desde baixo, como veremos mais adiante.

Centralismo ou federalismo?

Ainda que se sigam dialeticamente dos problemas políticos, está claro que há e não pode deixar de haver uma especificidade nos problemas de regime de partido. Esta especificidade refere-se a várias leis de funcionamento da organização: trata-se das questões que se relacionam com o federalismo ou centralismo em matéria de organização e a combinação da livre discussão (65) com a férrea unidade na ação. Interessa-nos começar pelo federalismo: historicamente, este foi o reflexo organizativo do economicismo: uma expressão pouco madura no terreno político; um marcar o passo com o mais atrasado da classe; o fazer valer os interesses “particularistas” contra o conjunto; um critério de despolitização. Enfim: vários dos temas caros a corrente anarquista-autonomista(66).

Precisamente, o debate entre concepções federalistas e centralistas em matéria de organização se deu já nos primeiros tempos da I Internacional. É conhecido que Marx era partidário do centralismo. O partidário do federalismo era Bakunin. Este acusava Marx de “socialista burocrático”: “Os anarquistas [viam] em toda centralização um obstáculo para a livre iniciativa local e para o impulso revolucionário das massas. Longe de desejar que dessem ao Conselho Geral [da I Internacional a frente do qual estava o próprio Marx] poderes mais amplos a fim de dirigir o movimento, queriam acabar com ele por completo e substituí-lo por uma mera Oficina de Correspondência que manteria em relação os grupos de distintos países, mas que não estaria encarregada de dirigir, em nenhum sentido, a atuação deles”(67). Porém como assinalava Lênin, em matéria de organização partidária, o federalismo é um “câncer”: uma trava organizativista ao livre debate e decisão política no conjunto do partido. Porque o federalismo supõe uma luta de relações de forças no seio da organização que não depende das posições políticas lançadas ao livre debate e a criação de maiorias e minorias políticas, mas de fazer valer nos debates supostas ‘quotas’ da mesma organização.

É conhecido que um dos cânceres do POUM espanhol dos anos 30 que acompanhava organizativamente seu centrismo político – foi que apesar de ter chegado a agrupar uma quantidade importante de militantes (algo em torno de 40.000) era uma organização pautada por caciques e caudilhos regionais que se negavam a subordinar-se, por mesquinhos interesses locais/regionais, a toda organização e diretivas políticas centralizadas. Outra coisa completamente distinta é quando se pensa na organização do Estado (já não do partido). E quando, ademais, este estado está integrado por uma série de nacionalidades diversas para as quais se deve permitir-lhes incondicionalmente livre expressão: trata-se do direito à livre autodeterminação nacional. É o caso – quando a formação da ex-URSS em vida do próprio Lênin – de se a Rússia bolchevique devia ser uma Federação de repúblicas soviéticas – posição de Lênin – ou uma União (grande posição russa de Stalin). Porque o que a União tendia a fazer, e fez, era liquidar os direitos à autodeterminação das minorias futuras integrantes da URSS. No entanto, quando se trata de partido, fala-se de outra coisa muito distinta: o federalismo se converte em uma trava organizativista que impede a unidade da organização em sua ação revolucionária, que se põe acima de toda decisão política. Trata-se não de um critério de democracia partidária, mas de algo muito distinto: um critério de aparato, de“quotificação” do regime partido. Como assinalava Liebman: “O propósito da Iskra era de terminar com este choque dos distintos grupos locais. O centralismo de Lênin era muito mais, no entanto, que esta vocação para unir: era uma concepção das relações no seio da organização entre a ‘liderança’ e a base, entre o ‘centro’ e as ‘regiões’ dependentes dele, uma definição das regras de hierarquia que deviam prevalecer na organização, um conjunto de questões que apresentavam a questão da democracia no seio do partido” (68).

Democracia e centralismo

Em segundo lugar está a famosa questão de como estabelecer a combinação dos critérios de centralização na ação com a livre discussão democrática no interior da organização. Esta combinação, historicamente, expressou-se em uma fórmula proposta por Lênin em 1906 no interior do POSDR: o centralismo democrático(69). Classicamente, alude – como seu nome indica – a um par dialético, em que estão combinadas duas exigências distintas. Por um lado, a exigência de um amplo espectro de democracia e livre debate no interior da organização: os militantes partidários não são “autômatos”, mas companheiros dotados de consciência crítica que devem poder exercer seus direitos de opinião e, inclusive, de decisão autônoma. Como assinalava agudamente Trotsky: “Sabíamos que o regime de partido se baseava nos princípios do centralismo democrático. Supunha-se, desde o ponto de vista teórico (e assim se fez, desde logo, na prática), que esses princípios implicavam a possibilidade absoluta para o partido de discutir, de criticar, de expressar seu descontento, de eleger, de destituir, ao mesmo tempo em que permitia uma disciplina de ferro na ação, dirigida com plenos poderes por órgãos diretivos elegidos e revogáveis. Se se entendia por democracia a soberania do partido sobre todos os seus organismos, o centralismo correspondia a uma disciplina consciente, judiciosamente estabelecida, que garantisse em certo modo a combatividade do partido”. (69)

Precisamente: junto com o elemento de absoluta liberdade na discussão deve-se sublinhar que não há organização de luta – e o partido o é – que possa funcionar frente ao caráter centralizado do Estado capitalista e a patronal de uma maneira que não implique a mais férrea unidade na ação da organização. Neste sentido, Moreno dizia corretamente que questionar o centralismo é questionar a eficácia mesma, e que nenhuma revolução pode triunfar sem um alto grau de disciplina e centralização. Aqui se coloca outro agudo problema: nenhuma organização revolucionária pode dirigir-se à intervenção na luta de classes sustentando duas políticas (70). Isto a condenaria à impotência mais escandalosa. Daí que, chegado a um ponto, o debate no interior do partido – em qualquer de seus organismos – deve resolver-se para passar ao plano da ação. Porque sem essa ação o partido perde seu atributo de partido militante: em seu seio, o debate democrático e, inclusive, a elaboração teórico-política, devem estar ao serviço – em última instância – da ação: de exercer uma ação militante transformadora sobre a realidade. Assim, a unidade de teoria e prática, a práxis em matéria de um regime de partido militante, resolve-se na condenação do federalismo e no impulso da mais livre democracia na discussão e na mais férrea unidade na ação: “[Lênin] dizia que, todavia, havia trabalho a fazer para realmente aplicar os princípios do centralismo democrático na organização do partido, trabalhar incansavelmente para fazer das organizações locais as unidades organizacionais principais do partido nos fatos e não meramente nas palavras. Sua aplicação implica universal e total liberdade para criticar, sempre e quando isto não socave a unidade na ação; [esta regra] ditava cortar pelas raízes todo ‘criticismo’ que rompesse ou fizesse difícil a unidade de uma ação decidida pelo partido” (71).

O salto às massas

“Em janeiro de 1905, no momento de desencadear-se a revolução, a organização bolchevique estava integrada por 8.400 membros. Para a primavera boreal de 1906, o total de membros do POSDR alcançava os 48.000, dos quais 34.000 eram bolcheviques e 14.000 mencheviques. Em outubro desse ano, o total de associados excedia os 70.000 (…) e para o congresso de Londres em 1907, o partido tinha 84.000 membros, dos quais 46.000 eram bolcheviques e 38.000 mencheviques”(72).

Como assinalamos mais acima, não nos deteremos in extenso no que se refere aos complexos problemas da passagem do partido de vanguarda a um com influência entre as massas, nem às leis internas específicas deste último. Só faremos, em todo caso, uma série de meros assinalamentos deixando claro que quando falamos de “partido com influências entre as massas” tratamos de diferenciá-lo da ideia nua e crua de “partido de massas”, precisamente pelo que explicamos mais acima acerca da preocupação leninista de que o partido revolucionário deve manter seu caráter de vanguarda no que tange ao conjunto da classe. Aqui há várias questões, porém a primeira que se deve assinalar é que na operação das “leis” antes assinaladas há, evidentemente, uma transformação. Isto ocorre tanto em matéria das leis de crescimento do partido como no que tange inclusive ao regime interno do partido. Porque se a organização de vanguarda é até certo ponto uma sorte de “brigada de combate”, um partido que está se lançando na influência entre setores das massas, evidentemente deve ter um série de critérios próprios em matéria de organização e funcionamento que configuram em muitos casos uma sorte de “inversão dialética” das leis que regem o estágio de vanguarda. Isto não obsta para que em todos os estágios rejam leis de desenvolvimento desigual e combinado.

Explicamo-nos: se é muito perigoso confundir os estágios construtivos do partido, isto não quer dizer que não haja circunstâncias em que núcleos muito pequenos cumpram um papel de enorme importância com uma projeção no campo político muito acima de suas forças organizativas(73). Porém digamos algo a respeito das leis de crescimento de um partido com peso entre as massas. Os multiplicadores no que pertence a quantidade de militantes, inserção e envergadura política e organizativa do partido numa época revolucionária, evidentemente, variam substancialmente a respeito do período em que a organização é um partido de vanguarda. Trata-se de outras leis as quais regem o salto às massas: aqui operam leis de multiplicação.

Para que, ademais, não seja um salto ao vazio, faz falta a existência de uma acumulação prévia em matéria de construção partidária. O que ocorre, é que em um sem número de momentos se coloca ao partido esta possibilidade. Porém se não há partido organizado previamente, há um ditado que pinta de corpo inteiro a impotência desta situação: é como “tomar sopa com um garfo”(74).  O mesmo se passa com a situação do partido: o salto às massas requer uma acumulação anterior, sob pena de que, inclusive, se existe um veículo a mão para dar esse salto, não possa concretizar-se.

Aqui há um terceiro problema: a variação das leis de construção no caso do partido que se lança a ter influência de massas, que muitas vezes o leva a chocar-se contra a parede. Pode-se dar o caso de que se tenha tanto o “veículo” como certa acumulação partidária para acometê-lo. É muito distinto o grau de politização da militância do partido de vanguarda; são muito distintos também os métodos de direção mais “personalizados” que caracterizam a organização de vanguarda. Porém quando o partido se faz realmente “impessoal” e tudo descansa nos quadros, no grau de educação que os mesmos receberam, e em sua capacidade de atuação autônoma (ainda que dentro dos parâmetros da política geral da organização), este elemento da acumulação de quadros prévia se transforma no elemento chave. Além disso, o partido transformado já – até certo ponto – em um “fato objetivo” tem a tendência de desenvolver interesses “próprios” de uma maneira muito forte, o que coloca a questão de que nunca se deve pensar o partido independentemente da luta de classes.

É o típico perigo do partido “grande”: considerá-lo um fim em si mesmo, ter medo de arriscar, desentender -se dos problemas da sociedade e da classe como se o partido pudesse construir-se independentemente da luta de classes (o caso extremo foi o da socialdemocracia alemã, caracterizada como um “Estado dentro do Estado”). Isto é, deve-se estabelecer um correto balanço entre a vida interna do partido e sua vida habitual, que está dirigida, e não pode deixar de estar, ao serviço da luta de classes.  Vejamos o quarto problema: o das “âncoras” do partido. Aqui nos referimos aos contrapesos para que as pressões sociais que começam a exercer um setor das massas sobre a organização – com todos seus elementos de atraso – não a faça desabar.

Estas âncoras são: o grau de politização de seu núcleo partidário, sua composição social, a autoridade de sua direção, as tarefas as que habitualmente se dedica (não será o mesmo se o cotidiano for a intervenção nas lutas operárias ou se a sua atividade básica for a eleitoral), o quadro teórico estratégico da organização e seu caráter internacionalista(75). Porque, caracteristicamente, e ligado dialeticamente ao anterior, há outro ponto chave: o grau de flexibilidade do partido em matéria de nutrir-se do melhor da jovem geração que entra em luta. O partido deve deixar para trás toda inércia conservadora e lançar-se de todo em intervir política e construtivamente na luta de classe incrementada. É aqui onde entra a capacidade de adaptação do partido, sua flexibilidade revolucionária, sua capacidade de livrar-se de toda inércia conservadora, toda estrutura inflexível que não seja capaz de nutrir-se dos impulsos revolucionários da realidade. Aqui há outra exigência ainda. Em situações de ascenso da luta de classes, o partido corre o risco de ficar por detrás da situação – tanto política como organizativamente – em vez de ser vanguarda.

Como dizia Lênin em 1905: “‘Necessitamos aprender a ajustar-nos a este completamente novo alcance do movimento’. Esta adaptação aos eventos significa que a distinção entre a organização e o movimento, entre a ‘rede horizontal’ e a ‘rede vertical’, e, finalmente, entre a vanguarda e a classe trabalhadora, começava a fazer-se mais tênue” (76). Isto ocorre quando há um ascenso revolucionário: o partido deve livrar-se de toda a inércia, revolucionar-se junto à classe. Há, até certo ponto, e como já assinalamos, uma “inversão” dos princípios enunciados mais acima. Porém para que este salto não seja ao vazio, o estágio de partido de vanguarda deve ter sido resolvido de uma maneira satisfatória. O partido manterá seu caráter geral revolucionário só se quando se “fusiona” com as massas (como assinala Lênin em O esquerdismo…) tem firmes suas colunas vertebrais enquanto organização revolucionária. Aí já se estaria fechando todo um círculo dialético em que até agora só o bolchevismo foi capaz de transitar satisfatoriamente, porém que seguramente terá novos capítulos neste século XXI.

53 Marcel Liebman, cit., p.25.

54 Um passo adelante, dos passos atrás. Repuesta a Rosa Luxemburgo, cit., p. 519.

55 Liebman, cit., p. 32.

56 Construyendo el partido, Tony Cliff, p. 108.

57 Marcel Liebman, cit., p. 29.

58 Em Lamark a adaptação parecia surgir de um esforço “subjetivo” da espécie em questão, ao invés da “coincidência” darwinista objetiva entre a espécie e o meio que fazia que umas espécies (casualmente mais adaptadas a suas circunstâncias) sobrevivessem e outras não.

59 Jogando com a analogia que estamos fazendo com as leis que regem a seleção natural, demos a conhecer o que dizia ao respeito o arqueólogo marxista Gordon Childe: “Para o biólogo, o progresso – se é que emprega este termo – significará o êxito na luta pela existência. A sobrevivência do mais apto é um bom princípio evolutivo. Só que a aptidão significa justamente o êxito na vida. Uma prova provisional da aptidão de uma espécie seria a de contar o número de seus membros durante várias gerações. Se o número total resultasse ser crescente, poder-se-ia considerar que a espécie teve bons resultados; se o número diminui, estará condenada ao fracasso”. Em Cómo el hombre se hizo a símismo, México, FCE, 1954, p.19.

60 Liebman, cit., p. 28. Trata-se de um dos melhores trabalhos acerca da construção do partido em Lênin. É superior ao mais conhecido de Pierre Broué (O partido bolchevique) que é, melhor caracterizando-o, uma reconstrução histórica.

61 Liebman assinala que o Trotsky pre-bolchevique denunciava que Iskra (sob a condução de Lênin) “lutava não tanto contra a autocracia como contra as outras frações do movimento revolucionário”… Está claro que o jovem Trotsky, todavia, não terminava de entender a mediação da luta na vanguarda para chegar às mais amplas massas e o valor político que tinha a polêmica entre as correntes revolucionárias. Cit., p. 29.

62 Antología, Barcelona, Siglo XXI, 1999, p.347.

63 Leon Trotsky, “Sobre el centralismo democrático. Umas poucas palavras acerca del régimen de partido”, em Textos sobre centralismo democrático, cit., p. 104.

64 León Trotsky, “El nuevo curso”, em Textos sobre centralismo democrático, cit., p.26.

65 Livre discussão que nunca poderia ser “democratismo”, que é outra coisa muito distinta. Como assinala Trotsky: “A maturidade de cada membro do partido se expressa particularmente no fato que não exige do regime partidário mais do que [este membro, CER] pode dar. A pessoa que define sua atitude frente ao partido pelos impulsos pessoais que lhe dão na cabeça é um pobre revolucionário. É necessário, portanto, lutar contra todos os erros individuais dos dirigentes, toda injustiça, etc. Contudo, é necessário determinar essas ‘injustiças’ e ‘erros’ não neles mesmos, mas em conexão com o desenvolvimento geral do partido a escala nacional e internacional. Um juízo correto e um sentido das proporções em política são extremamente importantes”. “Sobre o centralismo democrático”, em Textos sobre centralismo democrático, cit. , p.105.

66 G.D.H.Cole caracteriza a luta entre Marx e Bakunin como uma entre os defensores da ação política (Marx) e os federalistas-anarquistas-localistas (Bakunin).

67 G.D.H.Cole, Historia del pensamento socialista, Tomo II, México, FCE, 1958, p. 185. Cole adiciona que “onde Marx acentua a necessidade de uma direção centralizada e uma organização de classe disciplinada, Bakunin depositava fé na ação espontânea dos trabalhadores individuais e nos grupos primários que seus instintos naturais de cooperação social o levariam a formar, quando a necessidade surgisse”, cit., p. 211.

68Liebman, cit., p.38.

69 Tal foi a maneira que encontrou Lênin de resolver – no congresso do POSDR de Londres de 1906 – a relação entre bolcheviques e mencheviques no seio do partido sem por em risco sua unidade na ação.

70 Não fazemos referência aqui a circunstâncias transitórias que se possa dar em uma organização que se cria como organização de frente única de tendências revolucionárias e que necessariamente então deve reger-se por um regime com liberdade de tendências políticas por todo um período. Acerca deste tópico, ver o artigo de Antônio Carlos Soler em Socialismo o Barbárie 22.

71 Liebman, cit., p.51.

72 Idem, p.47.

73 Historicamente na América Latina, o máximo exemplo deste desenvolvimento desigual com muito pouca “organicidade” é o exemplo do POR boliviano e seu peso entre os mineiros no final da década de 40 do século XX. Está claro que além do desvio político oportunista que sofreu na revolução de 1952, não deixou de pagar muito caro por sua incapacidade de obter um salto construtivo: o partido foi “comido” pelo movimento.

74 Na história da corrente morenista há um exemplo emblemático neste sentido: a imensa eleição do FOCEP no Peru em 1978: ao redor de 20% dos votos com só 40 militantes…

75 É evidente que estas “âncoras” falharam completamente no caso do velho MAS.

76 Liebman, cit., p.46.

* https://esquerdaweb.com/vigencia-do-que-fazer-em-nossa-epoca/