Publicamos abaixo o educativo artigo de Juan Cañumil sobre o jogo de forças não resolvido entre o golpe parlamentar que destituiu Pedro Castillo e uma histórica rebelião popular que o enfrenta. Como parte do internacionalismo militante também estivemos com Manuela Castañeira, principal figura pública do Nuevo Mas argentino e da corrente internacional Socialismo ou Barbárie, em Lima para levar a nossa solidariedade militante a essa rebelião, o que se pode ver em outras publicações aqui em nosso site. Como diz o texto abaixo, o governo Lula desgraçadamente reconheceu o governo golpista de Dina Boluarte. Isso, além de reafirmar o seu caráter de governo burguês de conciliação de classes – se comprovando cada vez mais normalizador da dominação liberal-social -, é uma contrassenso à medida que Lula, Dilma e seu partido (PT) vem sendo atingindo por golpes institucionais (jurídico-parlamentares) e a extrema direita e o seu golpismo no Brasil estão longe de ser definitivamente derrotados. Da nossa parte, da esquerda socialista, nesse momento de correlação de forças não resolvidas, a solidariedade internacional à rebelião popular é fundamental, por isso é decisivo marcar com urgência manifestações em apoio à rebelião popular e às demandas do povo peruano em todas as grandes cidades e capitais do Brasil.   

Redação

JUAN CAÑUMIL, 26 de janeiro de 2023

A face visível do golpe é Dina Boluarte, ex-vice-presidente do próprio Castillo, que foi com ele uma candidata do partido Peru Libre, o que lhe rendeu o apelido de traidora.

O governo golpista tem o apoio das forças armadas e da polícia, da burguesia e de sua mídia, de todo o pessoal político de direita e reacionário, entre eles Keiko Fujimori (Fuerza Popular) e o atual prefeito de Lima, López Aliaga (Renovación Popular), assim como o imperialismo estadunidense, que deu a Boluarte um reconhecimento expresso poucas horas após sua posse. O exército e a polícia têm levado a cabo uma repressão brutal com cerca de 60 pessoas mortas com balas de chumbo nos protestos que acontecem em diferentes partes do país. É um dos maiores massacres da história recente deste país em confrontos diretos.

Mas ao mesmo tempo em que se desenvolve o golpe, uma enorme rebelião popular (camponeses, rurais, nativos e, em segundo lugar, trabalhadores organizados na CGTP, aos quais poderiam se juntar setores universitários de diferentes partes do Peru, que têm convocado manifestações em repúdio à incursão da polícia na emblemática Universidade de San Marcos em Lima). É talvez a maior rebelião popular que o Peru já viu em décadas[1]. Uma rebelião popular que, como as últimas rebeliões no Chile, Colômbia e Equador, e em contraste com as rebeliões dos anos 2000, não resultou na rápida demissão dos governos, mas tendeu a permanecer em vigor até que um processo eleitoral fosse iniciado, o que não diminui sua riqueza.

Tanto a magnitude da repressão como a reafirmação da continuidade do governo golpista, assim como a intensidade e a magnitude da rebelião popular, cujos slogans principais incluem “Fora Boluarte e o congresso golpista” e “Assembleia Constituinte agora! Uma situação na qual coexistem duas tendências opostas, cuja dinâmica se desenvolve, sem qualquer definição imediata, e na qual não está claro que a mediação seja possível. Por exemplo, o governo Boluarte pediu que as eleições fossem antecipadas para 2024, um setor parlamentar centrista exige que elas sejam antecipadas para este ano, enquanto a exigência das ruas é a demissão imediata dos líderes golpistas.

A seguir, uma série de definições do processo aberto, com as precauções de distância do país, o que nos obriga a não dar definições claras dos elementos mais importantes do processo.

Um choque de tendências não resolvidas

A mobilização dos “Cuatro Suyos”[2] ou “Toma de Lima”, que começou na semana passada, continua agora com a chegada de delegações de diferentes partes do país diariamente. A isto se soma a greve geral convocada há alguns dias pela CGTP (Confederação Geral dos Trabalhadores Peruanos, liderada pela burocracia do PC, mas atualmente dominada pelo ativismo, embora não esteja claro para nós a extensão da própria greve).

É fato que a rebelião tem fortes pontos de apoio no interior do país, principalmente no Sul: Puno, Cuzco e Arequipa. Nas principais cidades destes departamentos houve tentativas sucessivas de tomar conta de aeroportos, e foi na cidade de Juliaca (Puno) que a brutal repressão das forças repressivas deixou 18 manifestantes mortos e centenas de feridos em 9 de janeiro. A resposta a este evento foi estender a rebelião a novas partes do país. Lambayeque, Cajamarca e Piura também estão no norte/centro e noroeste do país. No total, cerca de 160 bloqueios de estradas estão sendo realizados dia após dia em todo o país, levando o país a uma virtual paralisação.

Lima, por outro lado, concentra a classe média e a burguesia do país, onde o Fujimorismo de Keiko obteve 60% dos votos nas últimas eleições presidenciais, e cujo atual prefeito é López Aliaga (também concorrente nas últimas eleições presidenciais e terceiro na corrida), um empresário ultrarreacionário e militante da Opus Dei que compete com o Fujimorismo pelo eleitorado de direita. Fora de Lima, os cones sul/norte/este/este/oeste (uma espécie de “Grande Lima”) concentram as “populações jovens” ou favelas dos trabalhadores pobres. Lembremos que o Peru tem cerca de 78% de trabalhadores informais (precários).

Este componente de direita na capital é sem dúvida um contrapeso à rebelião e um ponto de apoio para o golpe que não foi quebrado até agora. Além disso, a incursão policial na Universidade de San Marcos, cujos estudantes haviam aberto as portas e dado hospedagem na Universidade para mobilizar manifestantes do interior do país, gerou o repúdio de setores da classe média de Lima.

Se o recente ataque da polícia militar à Universidade agiu como uma reafirmação reacionária diante das mobilizações vindas de todo o país contra o governo golpista, a posterior retirada e libertação dos detentos mostra certos limites que Boluarte e companhia enfrentaram. Uma espécie de ida e volta na qual o governo de facto não conseguiu impor uma derrota através da repressão ou da aplicação do Estado de Emergência (desrespeito às liberdades e direitos democráticos em vigor desde o final de 2022) por um lado, e na qual a rebelião está se deslocando do interior para a capital (algo semelhante ao que vimos recentemente no Equador e também na Colômbia), mas sem conseguir por enquanto romper o “apoio passivo” da capital ao governo de fato.

Nem o massacre de Juliaca alcançou os objetivos do golpe, que era infligir a derrota na rebelião. Recordemos que no caso do golpe de 2019 na Bolívia sob Añez, os massacres em Sacaba (Cochabamba) e alguns dias depois em Senkata (El Alto) derrotaram a resistência antigolpista e lançaram as bases para seu triunfo[3].

Fora da capital e de algumas cidades urbanas, o resto do país é em grande parte rural/campones e com uma alta porcentagem da população que se reconhece como nativa-Quechua (22%), em maior medida mestiça (60%), e uma baixa porcentagem da população que se reconhece como branca (6%)[4].

Além da falta orgânica que Pedro Castillo demonstrou (ao contrário de Evo Morales e Masismo), é claro que um elemento de mobilização, além da enorme desigualdade econômica e social no país onde poucos são os donos de tudo, está ligado à identidade camponesa/original que simpatiza com a origem rural do presidente destituído. Castillo, que ganhou o voto por muito poucos votos, foi atacado por sua origem social pela direita rançosa, enfrentou desde o início a tentativa de ignorar o resultado eleitoral, e depois 3 moções de vacância (um mecanismo parlamentar que permite que uma maioria especial retire um presidente do cargo e o substitua por outro, sem antecipar as eleições, e que levou o país a ter 6 presidentes nos últimos 4 anos).

A manobra de Castillo para dissolver o Parlamento (outro mecanismo legalizado em certos casos pela Constituição reacionária) foi uma tentativa de cortar a última tentativa de vacância que seria realizada no Parlamento no dia seguinte. Como é sabido, a manobra de Castillo foi recebida com um golpe parlamentar e ele foi preso pela própria segurança do presidente, até os dias de hoje. Junto com a ausência de pontos de apoio entre os setores populares, lembremos que muitas de promessas de campanha, como uma profunda reforma agrária e uma Assembleia Constituinte repetidamente adiada, mais as alianças com setores de direita que ele integrava em seu gabinete, estavam cortando laços com sua base social.

Este último nos traz de volta a um problema de regime ligado à constituição estabelecida por Fujimori após o “autogolpe” de 1992, quando dissolveu o parlamento e o judiciário e, apoiado pela burguesia, as forças armadas e o imperialismo, modificou a constituição em 1993 e lançou as bases para um país ultra neoliberal que persiste até os dias de hoje. Uma constituição ao estilo Pinochet no Chile, que permite politicamente todo tipo de manobras “destituintes” parlamentares, que legaliza a figura do terrorismo[5] e permite a arbitrariedade absoluta.

E, do ponto de vista econômico, torna impossível, por exemplo, modificar ou anular os acordos de livre comércio, que entregaram os principais recursos do país às multinacionais ianques, entre outros. Um país de grande riqueza geográfica, com costa, terras altas e selva, e uma das maiores concentrações de minerais do mundo (mesmo após séculos de pilhagem pela colônia espanhola), com terras extremamente férteis, biodiversidade e acesso ao Pacífico.

O fujimorismo consolidou uma derrota de 30 anos no país que agora está sendo posta em questão pela rebelião popular.

Um programa daqueles de baixo, diante da vergonha de Lula e Fernandez

Atualmente, o CELAC foi realizado na Argentina. Longe de qualquer fachada progressista, Alberto Fernandez e Lula da Silva, que fizeram discursos retumbantes contra os métodos golpistas de direita no caso local após a tentativa de ataque a Cristina Fernandez e no caso brasileiro contra a recente tentativa de golpe de Estado (no sentido de que a mobilização reacionária e a tomada da Praça dos Três Poderes não tiveram apoio das forças armadas ou da burguesia), Pelo contrário, eles se encarregaram de reconhecer Dina Boluarte e exigiram soluções pacíficas, e deram espaço para a participação do chanceler do governo golpista nas sessões.

Uma completa desgraça que teve como contrapartida a mobilização do Nuevo MAS junto com todas as organizações de esquerda e a comunidade peruana às portas do Sheraton, sede das sessões de concertação, para denunciar o golpe em curso e a repressão feroz que nosso país irmão está vivenciando.

A situação regional ainda está em um estado de tendências não resolvidas e de polarização entre as tendências mais reacionárias e as que que sustentam o ciclo de rebeliões populares. Em que os setores reacionários que estão abertamente golpeando no estilo de Áñez, com manobras de impeachment no Brasil ou o golpe parlamentar no Peru, ou com governos reacionários e obscurantistas que atacam as liberdades democráticas, como no caso de Bolsonaro, não conseguiram ganhar uma base duradoura, mas sua base social se alargou relativamente. Ao mesmo tempo, persiste uma tendência à rebelião que persiste desde o início do século, que foi recriada nos casos do Chile, Colômbia, Equador e atualmente no Peru, com uma mobilização que não se via há décadas.

A aposta de que a rebelião popular no Peru se aprofundará e contribuirá para o pólo progressista começa levantando os slogans das massas mobilizadas no Peru, como o repúdio à repressão do golpe que ceifou a vida de mais de 60 camaradas: Abaixo o governo golpista de Dina Boluarte e pela dissolução do parlamento reacionário! Pela liberdade Castillo, e a convocação imediata de uma Assembleia Constituinte Soberana que refundará o país em novas bases em favor daqueles que estão na base, e que derrubará a Constituição Fujimorista reacionária imposta pelo golpe de Estado de Fujimori em 1993.

[1] De nosso partido, membro da corrente SoB, falamos com camaradas do grupo “El Trabajo” do Peru com influência numa seção da CGTP no norte do país e presença em Lima, camaradas com uma longa trajetória militante no Lambertismo, que nos disseram que tanto a imensidão da rebelião popular quanto o massacre que está ocorrendo são historicamente inigualáveis. Com relação à repressão, lembremo-nos de que Fujimori realizou uma ditadura brutal nos anos 90 e até 2000, com um número de pessoas desaparecidas que nunca foi esclarecido, mas que é estimado entre 80 e 90 mil, bem como um plano de controle de natalidade pelo qual milhares de mulheres nativas e camponesas foram submetidas a ligaduras tubárias sem seu consentimento. Mesmo assim, os camaradas dizem que não houve massacres em eventos de luta de classe diretos pelas forças repressivas desta magnitude.

Os camaradas levantam corretamente o slogan de uma grande Assembleia Nacional Popular em Lima e a construção de um organismo centralizado para liderar o processo. Além disso, a caracterização de “semi-insurreição” com a qual eles estão trabalhando nos parece muito rebuscada, principalmente por causa da ausência de órgãos centralizados com “autoridade” para dirigir a ação. Preferimos a caracterização da rebelião popular, que em nossa humilde opinião é mais apropriada ao processo.

[2] Recordemos que o governo de Fujimori caiu após sua tentativa de reeleição, o que levou à mobilização conhecida como os “4 Suyos” no ano 2000. Uma mobilização de centenas de milhares que pôs um fim ao governo reacionário. O nome “4 Suyos” se refere ao nome das 4 regiões do Império Inca e dá uma indicação do forte elemento nativo do país, especialmente fora da capital.

[3] Naquela época, uma delegação de nosso partido, juntamente com Manuela Castañeira, foi para o território boliviano para mostrar solidariedade com a resistência ao golpe. Um clima de polarização estava no ar e foi vivenciado com as mobilizações anti-coupistas que desciam das terras altas lideradas pelos “Ponchos Rojos” e as “Señoras de pollera”, enquanto na capital um movimento social reacionário repudiava qualquer tentativa de solidariedade. Não parece haver um movimento social reacionário ativo em Lima no momento, embora a distância faça com que seja necessário ser cauteloso. Ao mesmo tempo, não existe um setor concentrado tão ativo e reacionário como na Bolívia, como existia e existe em Santa Cruz, liderado por Camacho.

[4] María Sosa Mendoza: “La extrema derecha que gobernará Lima”; Nueva Sociedad.

[5] A figura do terrorismo fazia parte do plano para aniquilar os guerrilheiros do “Sendero Luminoso” liderados por Avigail Guzman e iniciados nos anos 80, um maoísta separatista do PCP cujos ataques eram dirigidos não só ao governo, mas também à população civil. Quem não aderisse ao Sendero Luminoso era considerado um inimigo e poderia sofrer ataques e até mesmo assassinatos. O fujimorismo finalmente conseguiu aniquilar a guerrilha. O conceito de terrorismo ainda está em vigor e é usado como desculpa para rotular qualquer manifestação de descontentamento social como “terruco” (terrorista).