Turquia: uma crise com impacto internacional

ALE KUR

Nas últimas semanas, os meios de comunicação vêm apontando o forte impacto internacional que a crise turca está tendo, especialmente na – já muito golpeada – economia argentina. A isto devemos acrescentar os seus efeitos nocivos na economia de países como a Índia, e na própria União Europeia e na sua zona euro. Nesta nota, queremos abordar alguns dos aspectos dessa crise.

Em primeiro lugar, é necessário salientar que a economia turca acumula elementos de deterioração há algum tempo. A Turquia é um dos países mais endividados, acumulando uma dívida externa de 467 bilhões de dólares. Grande parte dessa dívida pertence ao setor privado, isto é, às empresas e aos bancos turcos, que dessa forma estão muito expostos aos caprichos da economia internacional. Por outro lado, a economia turca é fortemente dependente dos fluxos de investimento estrangeiro, já que grande parte de seu aparato produtivo está nas mãos dos capitalistas das grandes potências.

O aumento nas taxas de juros dos EUA há alguns meses – e a conseqüente valorização do dólar em relação ao resto das moedas do mundo – causou forte impacto na economia turca, fazendo com que a moeda local, a lira, desvalorizasse fortemente (acumulando uma queda de 40% em 6 meses). Os fluxos de investimento recuaram e toda a atividade econômica entrou em uma espiral descendente. A inflação também subiu, alcançando níveis muito altos. A fuga de capital acelerou e o risco de inadimplência aumentou.

Esse processo foi acelerado nas últimas semanas por uma decisão política do governo dos EUA. Donald Trump anunciou o aumento das tarifas sobre a importação de aço e alumínio da Turquia, dobrando seu valor. É um míssil econômico que deliberadamente procura punir o governo turco. A razão é que a Turquia mantém encarcerado, desde 2016, a um pastor evangélico americano (Andrew Brunson), acusando-o de fazer parte da tentativa de golpe que ocorreu em julho daquele ano. Ele também é acusado de colaborar com a guerrilha curda e outras “ofensas” políticas genéricas contra o governo.

Por seu turno, a Turquia acusa os EUA de terem colaborado com a tentativa de golpe, especialmente devido à sua recusa em extraditar o clérigo muçulmano Fethüllah Gülen, indicado pelo governo turco como o principal instigador da tentativa de golpe.

Junto com essas diferenças, os governos dos dois países têm se distanciado há anos devido à guerra civil na Síria. Nele, o governo dos EUA (durante o governo Obama, mas também continuando sob Trump) decidiu intervir em apoio às milícias curdas YPG-YPJ em sua luta contra o “Estado Islâmico”. Mas essas milícias são detestadas pelo governo turco, por sua afinidade com os guerrilheiros curdos do PKK no território da própria Turquia.

Neste contexto, o governo turco liderado pelo islamista Erdogan está se afastando do “eixo ocidental” e se aproximando de seus rivais, Rússia e Irã. Junto com eles, a Turquia está negociando uma saída para a guerra civil síria (isto é, uma divisão dos espólios), excluindo os EUA das negociações.

A tudo isso, devemos acrescentar o grande desconforto nas potências ocidentais pela crescente tendência autoritária de Erdogan, que submeteu à sociedade civil turca com mão de ferro. As liberdades democráticas foram severamente reduzidas, chegando à beira da eliminação. Tudo isso a serviço de uma agenda islamista e nacionalista, profundamente conservadora, racista (especialmente em relação à minoria curda) e expansionista. Tudo isso levou a fortes tensões verbais entre os funcionários do governo turco e os políticos da União Europeia, aumentando as tensões.

Toda esta situação implica um grande paradoxo: um conflito político em grande escala dentro da própria OTAN, uma aliança militar da qual a Turquia faz parte. Pior ainda, um conflito com seu país fundamental, os EUA. Este confronto não mostra sinais de distensão: pelo contrário, há poucos dias a embaixada americana em Ancara (capital da Turquia) foi baleada por desconhecidos, o que é um sinal claro do estado das relações mútuas.

O governo de Erdogan também tomou represálias no campo econômico, estabelecendo altas tarifas para automóveis americanos e outros produtos importados dos EUA. Ele também chamou um boicote geral a empresas e bens americanos. Em uma única frase, Erdogan resumiu sua atitude em relação aos EUA e sua mentalidade conservadora: “Eles terão o dólar, mas nós temos Deus”.

Com a mesma lógica, a Turquia se recusou (pelo menos até agora) a procurar o FMI para pedir ajuda, assim como aplicar algumas das receitas ortodoxas, como aumentar as taxas de juros. Em vez disso, ele se aproximou de outros países, como a China, que demonstrou grande interesse em investir na economia turca através de grandes projetos de infraestrutura. Esses projetos fazem parte da nova “rota da seda”, o grande programa chinês para expandir sua esfera de influência na Ásia, África e Europa Oriental.

Da mesma forma, o Qatar (pequeno mas rico país da península arábica) também anunciou apoio financeiro de 15 bilhões de dólares. Aqui há uma lógica geopolítica: a Turquia é um dos poucos países que continuaram a apoiar o Qatar depois que a Arábia Saudita rompeu relações e declarou um bloqueio total. Os governos da Turquia e do Qatar compartilham a simpatia pela corrente político-ideológica islâmica, que apoiaram fortemente desde a “Primavera Árabe”, apoiando a Irmandade Muçulmana no Egito e em outros países. A Arábia Saudita, ao contrário, considerou que essa tendência era uma ameaça à sua hegemonia no mundo árabe e islâmico, à sua forma monárquica de governo e à sua visão religiosa particular, especialmente conservadora.

Desta forma, a crise econômica é alimentada pelo conflito geopolítico entre a Turquia e os EUA e com os conflitos regionais no Oriente Médio. É uma consequência e, ao mesmo tempo, produz efeitos nas tendências à instabilidade e aos realinhamentos geopolíticos na região e no mundo. Nesse sentido, é sintomático do período histórico atual, marcado pela deterioração dos antigos pilares da ordem internacional e pelas tendências à desintegração, crise e polarização.