Publicamos tradução da resenha Lukács e a alienação de Augustin Sena. Texto que, ao revisar os escritos de Lukács desde a sua juventude, apresenta-nos a fecundidade filosófica do pensador húngaro, que desde a sua juventude faz contribuições fundamentais ao marxismo ao trazer a tona conceitos que aprofundam/revelam as categorias marxianas, como os da reificação e da genericidade em si.

Lukács e a alienação

Por Augustin Sena 

Lukács, O Capital e os Manuscritos de 1844

Em “A Reificação e a Consciência de Classe do Proletariado” (o ensaio central de “História e Consciência de Classe”), Lukács retoma, para explicar o fenômeno da reificação[1], a definição clássica de fetichismo da mercadoria apresentada por Marx no primeiro volume de “O Capital”. Aí Marx diz

o caráter misterioso da forma mercadoria reside […] no facto de ela projetar perante os homens o caráter social do seu trabalho como se fosse um caráter material dos próprios produtos do seu trabalho, um dom social natural desses objetos, e como se […] a relação social que medeia entre os produtores e o trabalho […] fosse uma relação social entre os próprios objetos, para além dos produtores […]. O que aqui assume, aos olhos dos homens, a forma fantasmagórica de uma relação entre objetos materiais, não é mais do que uma relação social concreta entre os próprios homens (Marx, “O Capital”, citado em Lukács, 1970, 116).

Retomando esta definição, Lukács salienta que a reificação “opõe ao homem a sua própria atividade, seu próprio trabalho, como algo objetivo, independente dele e que o domina em virtude de leis próprias, estranhas ao homem” (1970, 116). O fenómeno que Lukács aborda (a reificação) é a outra face do fenômeno do fetichismo tal como definido por Marx. O “fetichismo que se liga aos produtos do trabalho logo que são produzidos como mercadorias” (Marx, 2002, 89) é a causa e o reflexo da reificação da consciência do produtor, do trabalhador.

Em suma, estamos perante o mesmo fenômeno, que é abordado a partir de duas perspectivas complementares: Marx o faz, na passagem acima citada, na perspectiva da mercadoria, do produto do trabalho, e Lukács na perspectiva do trabalhador. Ao mesmo tempo que a mercadoria é fetichizada, o trabalhador (e a sua consciência) é reificado.

O ensaio de Lukács procura, então, explorar as consequências do fetichismo da mercadoria sobre o trabalhador, as formas de reificação da sua consciência. Esta perspectiva do problema já tinha sido abordada por Marx nos “Manuscritos Económico-Filosóficos” de 1844, ainda não publicados, quando Lukács escreveu “História e Consciência de Classe”. Aí Marx assinalava:

O trabalhador torna-se uma mercadoria tanto mais barata quanto mais mercadorias produz. A desvalorização do mundo humano cresce na proporção direta da valorização do mundo das coisas […]. O objeto que o trabalho produz […] confronta-se com ele como um ser estranho, como um poder independente do produtor. O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, que se tornou uma coisa; o produto é a objetivação do trabalho. A realização do trabalho é a sua objetivação. Esta realização do trabalho aparece na fase da economia política como a desrealização do trabalhador, a objetivação como a perda do objeto e a servidão a ele, a apropriação como alienação […]. A apropriação do objeto aparece de tal modo como alienação que, quanto mais objetos o trabalhador produz, menos passa a possuir e mais fica sujeito à dominação de seu produto, isto é, do capital” (Marx, 2006, 104 sublinhado do trad.).

A tese de Marx tem aqui dois postulados. Primeiro: que a realização do trabalho humano é a “sua objetivação”. Segundo: que no período da economia política (isto é, no capitalismo), a apropriação (realizada pela sociedade de uma forma historicamente determinada, e neste caso sob as relações de propriedade burguesas) deste trabalho objetivado toma a forma da alienação do trabalhador.

Já a partir daqui se afirma que o problema da alienação/fetichização é duplo. Por um lado, o trabalhador é mercantilizado, “transformado em mercadoria”. Por outro lado, o produto do seu trabalho “confronta-o como um ser estranho“. Em “História e Consciência de Classe”, Lukács aponta para esta dupla natureza, simultaneamente objetiva e subjetiva, do fenômeno da mercantilização:

objetivamente, surge um mundo de coisas acabadas e de relações entre coisas, cujas leis são gradualmente conhecidas pelos homens, mas que […] se lhes opõem como potências insuperáveis; […] subjetivamente, a atividade do homem […] é objetivada em relação [a ele], torna-se uma mercadoria submetida à objetividade, alheia aos homens” (Lukács, 1970, 116. Sublinhado nosso).

Lukács sublinha aqui as duas faces (a subjetiva e a objetiva) do fenômeno da reificação (do sujeito) e da fetichização (do objeto). Vale a pena sublinhar, nesta linha, que a alienação não é um fenómeno meramente psicológico (um mero desvio da consciência individual), como muitas vezes é caracterizado por correntes teóricas vulgarizantes ou pseudomarxistas.

A alienação é um fenômeno social, ou seja, encarna-se em relações sociais concretas, responde a determinadas relações históricas. E a sua razão de origem não é nem psicológica nem meramente gnoseológica (própria do conhecimento enquanto tal), mas econômica. A alienação é própria de um certo grau de desenvolvimento histórico (e das relações de propriedade e de produção que lhe correspondem) e a sua superação não pode ser individual, um mero ato de vontade ou de conhecimento, mas social, coletiva e histórica. Dito de forma esquemática: para superar a alienação das relações sociais, é preciso superar as relações sociais que sustentam essa alienação.

Alcance histórico da categoria da alienação

Na “Ontologia do Ser Social”, um texto tardio e posterior à publicação dos “Manuscritos” de 1844, Lukács desenvolve a exposição de Marx. Ao postular as categorias de “objetivação” e “alienação” procura diferenciar ontologicamente dois processos no interior do fenômeno analisado por Marx: o ato de trabalho é simultaneamente objetivação do trabalho na forma do produto do trabalho e alienação[2] do sujeito humano (Lukács, 2013, 32).

Esta diferenciação conceitual permite-nos problematizar o alcance histórico da categoria da alienação. Já na citação dos “Manuscritos”, Marx diferencia um fenômeno geral próprio do trabalho humano (a objetivação) de um fenômeno historicamente confinado às relações sociais capitalistas (a alienação).

Na “Ontologia do Ser Social”, Lukács é mais cauteloso na delimitação do alcance histórico da categoria de alienação. Ele define esta última, em termos gerais, como uma contradição entre o grau de desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas e o grau de desenvolvimento da personalidade humana num determinado estágio do desenvolvimento histórico. Segundo Lukács, “o desenvolvimento das forças produtivas é […] o desenvolvimento das capacidades humanas. […] [Mas] o desenvolvimento das capacidades humanas não acarreta necessariamente um desenvolvimento da personalidade humana […], ele pode justamente […] distorcer, degradar a personalidade humana” (Lukács, 2013, 

Note-se que, embora Lukács defina a alienação como um “fenômeno exclusivamente sócio-histórico que aparece em determinados níveis do desenvolvimento do ser“, ele não a confina exclusivamente ao estádio de desenvolvimento capitalista e sublinha a possibilidade de a alienação assumir “formas historicamente sempre diferentes” (2013, 28)[3]. Problematizando o carácter histórico da categoria da alienação, Lukács recupera o conceito de desenvolvimento desigual ou irregular postulado por Marx:

“os dois extremos do desenvolvimento desigual – por um lado as realizações limitadas […], aquelas realizações cuja base objetiva é constituída pelo baixo ou retardado nível de desenvolvimento da sociedade, e por outro lado um progresso objetivo indubitável que ao mesmo tempo conduz […] à deformação da vida humana – aparecem inevitavelmente na história social da alienação(2013, 36 sublinhado do trad.).

Este elemento é relevante na medida em que Lukács postula uma definição relativa do fenômeno da alienação. Na medida em que a alienação é uma contradição entre o grau de desenvolvimento alcançado pelas capacidades humanas em termos históricos e o desenvolvimento real da personalidade humana (i.e. das suas condições efetivas de existência material), o caráter alienado de uma determinada formação social não pode ser determinado em termos absolutos: dependerá sempre das possibilidades de desenvolvimento humano que o grau de desenvolvimento produtivo concreto de uma sociedade efetivamente coloca.

Em outras palavras, a alienação enquanto tal não existe onde não há desenvolvimento. A alienação é um fenômeno não necessariamente limitado (nos termos de Lukács) ao capitalismo, mas às sociedades de classe. A existência de relações sociais alienadas implica um certo grau de desenvolvimento produtivo, a ponto de permitir a diferenciação social, a existência de classes sociais e uma ou outra forma de exploração.

Âmbito social da alienação e possibilidades de superação: a genericidade em si e para si

Em “História e Consciência de Classe”, Lukács postula a reificação como um fenômeno derivado do primado da forma mercadoria sobre o conjunto das relações sociais no capitalismo. Por esta razão, a reificação não é um fenómeno sofrido exclusivamente pelo proletariado, mas o proletariado “partilha […] com a burguesia a reificação de todas as manifestações da vida” (Lukács, 1970, 178). Tal como o trabalhador, para quem o fruto do seu trabalho parece ser regido por “leis […] estranhas ao homem” (Lukács, 1970, 116), também o burguês está sujeito ao funcionamento objetivo do mundo das mercadorias. O capitalista “não age […] mas está sujeito à ação” regida pela “observação e cálculo dos efeitos objetivos das leis sociais naturais” (idem, 162). [4]

Abordando a questão da reificação nesta perspectiva (e deixando de lado as óbvias diferenças concretas na situação das duas classes), a divergência central entre a burguesia e o proletariado reside na sua capacidade (ou incapacidade) de ultrapassar a alienação. Com efeito, “graças à dinâmica dos interesses de classe“, as formas de existência imediatamente dadas no marco da sociedade burguesa “mantém a burguesia aprisionada nessa imediaticidade, ao passo que ‘impelem’ o proletariado a superá-la” (idem, 191).

Em outras palavras, o interesse histórico da burguesia, a sua possibilidade de subsistir enquanto classe, depende da subsistência das relações sociais alienadas que prevalecem sobre a totalidade social, e das virtudes da alienação para ocultar, para esconder “na vida quotidiana a estrutura dialética do processo histórico” (idem). “Para o proletariado“, por outro lado, “é uma questão de vida ou de morte ter consciência” dessa estrutura dialética, isto é, da falsidade do caráter imutável das “leis sociais naturais” ou, por outras palavras, da possibilidade de a humanidade intervir no desenvolvimento histórico.

Na ”Ontologia do Ser Social” Lukács explora as possibilidades de superação da alienação. Ele aponta que “a alienação nunca abrange, apesar de toda a sua importância, a totalidade do ser social do homem” (2013, 38). Esta afirmação não nega o alcance da categoria de alienação sobre a totalidade das formas dadas de existência sob o capitalismo, mas a ideia de uma alienação ontologicamente intransponível para o indivíduo (e para a sociedade como um todo). [5]

Ultrapassando a questão da perspectiva de cada classe (que foi o ponto de partida para a superação da alienação em “História e Consciência de Classe” e que é tomada como certa em “Ontologia do Ser Social”), Lukács aborda aqui o problema a partir da perspectiva dos indivíduos e postula as categorias da genericidade em si e para si.

A primeira constitui a forma de consciência genérica[6] predominante em determinadas formas de existência social. A importância da genericidade em si, apesar do seu caráter reificado, não é menor. Para Lukács, ela é um testemunho da persistência da tendência humanizadora na totalidade social: “o homem alienado deve conservar, mesmo na alienação, a sua genericidade em si mesmo: senhor e escravo, marido e mulher […] já são categorias sociais, mesmo na alienação mais extrema elas se elevam acima do mero ser natural da humanização incipiente” (Lukács, 2013, 49).

A genericidade para si, por outro lado, constitui “uma consciência de um tipo qualitativamente diferente, mais elevado. É a diferença […] entre o homem particular e o homem que está em posição de se elevar acima da sua própria particularidade de uma maneira consciente” (Lukács, 2013, 50).

A genericidade em si não é imutável nem abstrata: depende das formas concretas de existência dadas num dado estágio de desenvolvimento histórico e, o que é o mesmo, responde às formas de alienação próprias desse estágio de desenvolvimento. Isso implica que, sob cada forma de alienação, é possível que certas formas de genericidade apareçam para si. Isto deve-se, por um lado, ao fato de a própria existência alienada impulsionar a sua emergência: “A genericidade para si exprime-se, antes de mais nada, e na maior parte dos casos, na vida cotidiana, como insatisfação individual com a genericidade dominante para si num dado momento” (Lukács, 2013, 54). Por outro lado, Lukács aponta que a “genericidade” é “um processo real“, não externo ao desenvolvimento histórico como um todo. Pelo contrário, “o processo não-constituído da vida individual forma um componente integrativo indispensável da totalidade em movimento” (idem, 51). Por outras palavras, subsistem na totalidade social elementos não (completamente) alienados, germes de genericidade para si mesmo, que coexistem na consciência com a alienação que marca o conjunto das relações sociais.

O traço fundamental da genericidade para si reside, pois, na capacidade de o indivíduo reconhecer conscientemente a realidade do devir histórico como uma totalidade social, isto é, historicamente determinada e construída, fruto da ação da sociedade humana e não imposta a essa sociedade a partir do exterior .

Genericidade e possibilidade efetiva: da tragédia à revolução

Essa elevação consciente ao plano da totalidade, no entanto, não implica necessariamente a possibilidade de uma efetiva superação da alienação. Lukács retira exemplos deste fenómeno do teatro de Eurípides. Aí, a elevação subjetiva (ou seja, consciente) de determinadas formas de existência alienada, na ausência de condições materiais para a sua superação histórica, conduz a desfechos trágicos.

Os exemplos desta contradição insuperável (não ontológica no sentido abstrato, mas historicamente concreta) na cultura grega são clássicos e sintomáticos, para Lukács, de uma determinada fase do desenvolvimento histórico. A tragédia como género encena um choque entre o desenvolvimento individual e o social. Nela o indivíduo permanece preso, do princípio ao fim, a determinações objetivas e alheias, que lhe são impostas (ao indivíduo e à sociedade como um todo) aparentemente a partir do exterior. Dizemos aparentemente porque estas imposições são sempre imposições sociais, próprias de um certo grau de desenvolvimento histórico e de certas relações sociais de apropriação e exploração. A tragédia edipiana ilustra bem este fato: é o próprio Édipo que cumpre a profecia que recebeu. Mas nesta auto-realização da profecia, Édipo atua sempre como um sujeito passivo e inconsciente, um objeto de desígnios divinos. É um sujeito reificado.

Os tabus quebrados pelo protagonista trágico (o hybris) são sempre, por outro lado, os tabus próprios de uma dada formação histórica. No caso edípico, são os tabus da família patriarcal e das formas de propriedade que a acompanham (a herança, em primeiro lugar). A tragédia reside, em última análise, na impossibilidade de o sujeito (e de toda a sociedade) romper com estas formas de existência, com estas relações sociais, no plano da realidade objetiva.

A investigação de Lukács sobre o alcance histórico da categoria da alienação é útil para compreender a especificidade da alienação capitalista. Segundo Lukács, a alienação não nasce com o capitalismo. Mas o que surge na cena histórica com o advento do capitalismo é a possibilidade objetiva da sua superação. Só com a abolição da dominação do trabalho morto sobre o trabalho vivo e, o que é a mesma coisa, da exploração do trabalho, é que podem surgir relações sociais não alienadas.

Essa superação nem sempre esteve entre as possibilidades materiais das sociedades humanas, como Marx já assinalava. Pelo menos não até ao desenvolvimento do capitalismo moderno e à formação de uma classe social, o proletariado, cujos interesses históricos residem na supressão de todas as formas de exploração. A especificidade da alienação capitalista reside, em última análise, na possibilidade objetiva e material da sua superação histórica.

NOTAS:

[1] Aqui a reificação funciona como sinônimo de alienação.

[2] Um termo que não é, no texto em questão, sinônimo de alienação.

[3] Esta precisão, que pode parecer escolástica, é pertinente e produtiva na medida em que nos permite pensar o problema da alienação não só em relação a formações sociais passadas mas também em relação a novos fenómenos. É significativo que o texto date do período tardio da elaboração lukacsiana, com quase trinta anos de estabilização do Estado burocrático estalinista e pós-estalinista atrás de si. Tal como as pressões do mercado mundial, a lei do valor ou a forma mercadoria não desaparecem com a tomada do poder, também a alienação das relações sociais não desaparece de um dia para o outro, enquanto não desaparecerem as razões materiais da sua existência. E com o estabelecimento de uma formação social original não-capitalista na qual se estabilizam novos mecanismos de exploração, a alienação persiste e é relançada pelo declínio histórico desta formação e do seu Estado.

[4] Isto não significa que não haja subjetividade ou vontade na ação da burguesia. Há, e muita, como em qualquer classe dominante. Mas o elemento anarquizante das tendências globais do capitalismo é demasiado grande para ser considerado uma mera vontade. Os marcos recentes das últimas décadas (como o desastre capitalista pandêmico, entre outros) são disso testemunho.

[5] A ideia de uma alienação ontologicamente insuperável é um clássico das perspectivas distópicas e equivale à supressão teórica da vontade das sociedades humanas e, por extensão, da sua consciência e ação enquanto vetor de mudança histórica.

[6] Lukács observa que, mesmo quando se refere a formas alienadas de consciência, a própria genericidade indica um estágio de desenvolvimento superior ao “mero ser natural“. Sendo a alienação um fenómeno específico de um dado estágio de desenvolvimento histórico, as formas de consciência (reificadas) que lhe correspondem são testemunho das suas limitações relativas, mas também do seu progresso em termos de humanização da sociedade no contexto desse estágio de desenvolvimento histórico.

 

Tradução de José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/lukacs-y-la-alienacion/