Maria Donalisio Cordeiro
História
O vestuário faz parte do dia a dia da humanidade desde o início da própria espécie, no período paleolítico, há cerca de 30 mil anos1. As técnicas de transformação de fibras naturais para proteção e adorno ao corpo se desenvolveram de acordo com as características geográficas, culturais e políticas de cada população na história. Por meio do estudo das vestimentas de uma sociedade, é possível aprender muito sobre sua forma de vida e sua visão de mundo. Individualmente, a maneira como uma pessoa escolhe se vestir reflete a forma pela qual ela gostaria de ser vista, sendo assim, uma forma de expressão criativa. Hoje, numa perspectiva do mundo globalizado, o vestuário é sobretudo uma mercadoria e a indústria da moda, que inclui a produção têxtil além do processo de design, controla o hábito de consumo geral da população nesse setor. Anualmente, cerca de 80 bilhões2 de peças de roupa são vendidas no planeta e essa produção causa grandes impactos no campo do trabalho e meio ambiente.
Diante da importância do vestuário para a humanidade, não é à toa que a produção têxtil foi a indústria principal da Primeira Revolução Industrial. Esse período que teve início na Inglaterra, no século XVIII, transformou o modo de produção da manufatura à maquinofatura. O movimento modificou também as relações de trabalho, foi responsável pelo aumento da população das cidades e consolidou uma nova relação social de classes: a da burguesia e proletariado. Essa configuração de sociedade, a partir da industrialização de algumas nações europeias, determinou a passagem do capitalismo comercial (sistema baseado no mercantilismo) para o capitalismo industrial que, norteado pelo liberalismo econômico, aumentou a produtividade das indústrias e diminuiu os preços das mercadorias. Sustentado pela exploração do trabalho, esse novo modelo político econômico moderno proporcionou a acumulação de capital da burguesia, responsável hoje pela profunda desigualdade social. No Brasil, a industrialização começou na segunda metade do século XIX, também estrelando a instalação de fábricas têxteis.
É importante salientar a presença das mulheres na indústria têxtil: a tecelagem (produção de tecidos) e a confecção (costura das roupas) sempre foram vistas como ofícios femininos, muitas vezes tendo um menor prestígio que a alfaiataria masculina. Durante a Primeira Revolução Industrial, as mulheres compunham a maioria dos trabalhadores fabris, cerca de 77% da força de trabalho em 1830 na In glaterra era composta por mulheres e crianças, pois sua mão de obra era barata e abundante, além de serem consideradas operárias dóceis e manipuláveis3. Nesse contexto, a exploração da classe trabalhadora se aliava à violência de gênero: as operárias eram submetidas à além de trabalho insalubre e jornadas de 12 horas diárias, à desigualdade salarial em relação aos seus pares masculinos e assédio sexual.
Muitas dessas trabalhadoras das indústrias têxteis compuseram a primeira grande onda feminista, que se alastrou por vários países no final do século XIX. Inclusive, O estabelecimento do dia internacional da mulher em 8 de março é uma homenagem à greve das operárias da indústria têxtil que aconteceu na Rússia, em 1917. Elas lutavam contra a fome, contra o Czar Nicolau II e pelo fim da participação do império na I Guerra Mundial4. Hoje, as mulheres ainda fazem parte da grande maioria do setor da tecelagem e confecção e, infelizmente, o setor têxtil é denunciado repetidamente por recrutar mulheres vítimas em condição de trabalho escravo tanto no Brasil, quanto em outros países periféricos. Por isso, lutar pelo fim da exploração do trabalho dentro dessa indústria é, fundamentalmente, uma luta feminista.
Nos últimos 30 anos, a indústria da moda consolidou a fast fashion, traduzida para “moda rápida” como modelo de produção e consumo. Ela ganha esse nome pela velocidade em que as peças são produzidas, usadas e descartadas. Esse sistema produz roupas padronizadas em massa, com tempo de vida reduzido e preços baixos. Como estratégia para consolidar a moda rápida, essa indústria promove uma alta rotatividade de tendências da moda. Dessa forma, o estilo em voga de uma estação seria considerado ultrapassado na próxima, e por isso, os consumidores sentem pressão para estarem sempre comprando os novos modelos a fim de permanecerem estilosos. Além desse aspecto da cultura do consumo da fast fashion, a matéria prima utilizada nas roupas é de baixa qualidade, o que também diminui o tempo útil das peças.
Trabalho
O processo produtivo da indústria têxtil é longo e complexo, ele está disperso por uma ampla variedade de trabalhos: o setor criativo de design de estampas e moda, a agricultura e pecuária para a obtenção de fibras naturais, a indústria petroquímica para fibras artificiais; o beneficiamento, que inclui a fiação, tecelagem, malharia, tintura e estamparia; a confecção das roupas em si e por fim, a distribuição e varejo. Essas etapas de produção muitas vezes estão espalhadas pelo mundo – uma característica da economia globalizada atual. Segundo essa dinâmica, poderosas empresas multinacionais se utilizam da mão de obra abundante e barata de países da periferia do capitalismo para aumentarem ao máximo sua margem de lucro. Devido a esse contexto, uma peça de roupa de uma marca estadunidense que tem suas contas em paraísos fiscais, pode ser comprada no Brasil, ter sua matéria prima vinda de plantações de algodão indianas, ser confeccionada por trabalhadoras em Bangladesh e após o uso e doação dessa peça, ela pode ser enviada a um lixão têxtil sudanês.
Não é novidade que a indústria da moda utiliza trabalho escravo em sua cadeia de produção. A escravidão moderna, ou o trabalho análogo à escravidão, é definido, segundo o artigo 149 do código penal brasileiro5, como o trabalho que sujeita a vítima a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas, trabalho forçado e servidão por dívida (tais cenários podem ocorrer isoladamente ou de forma simultânea). Há mais de 40 milhões de pessoas escravizadas hoje no mundo, sendo que 71% dos escravos são mulheres e meninas menores de idade6. Existem acusações de trabalho escravo no setor têxtil em todos os continentes exceto na Antártida. As denúncias mais conhecidas são as da etapa de confecção, porém também há queixas contundentes a respeito de trabalho escravo em outros estágios de produção como o da agropecuária. A maioria das denúncias são contra países asiáticos, localização de grande parte da produção têxtil no mundo, como China, Bangladesh, Índia e Coreia do Sul.
O evento que se tornou símbolo da exploração inescrupulosa no setor da moda foi o massacre do Rana Plaza, edifício localizado em Daca, capital de Bangladesh7. A estrutura que comportava quatro fábricas de roupa com cerca de 5000 empregados desabou após negligência dos proprietários do estabelecimento depois de avisos constantes sobre rachaduras no prédio. Infelizmente, 1127 trabalhadores, maioria mulheres, morreram e cerca de 2500 ficaram feridos. As empresas que operavam a fábrica produziam roupas para as marcas Zara, Walmart, Carrefour, H&M, Primark, entre outras. As semanas após a tragédia foram marcadas por protestos e greves de centenas de trabalhadores da fábrica exigindo a punição dos responsáveis, condições de trabalho seguras e salários dignos. É importante salientar que há uso de trabalho precário generalizado, abrangendo lojas de todas as faixas de preços, tanto por marcas mais populares como Renner, Forever 21, Lojas Pernambucas, Walmart, Zara até as grandes casas da alta costura como Prada, Dior, Armani e Dolce e Gabanna8. Por isso, o preço elevado de um produto não implica necessariamente em uma cadeia produtiva menos exploradora, apenas expõe que a marca obtém uma maior margem de lucro sobre a venda.
O Brasil é um importante componente da indústria da moda global e não está livre de escândalos com trabalho insalubre. Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção9 (ABIT), em 2020 o Brasil compôs 2,6% da produção mundial de vestuário, atrás apenas da China (47,2%), Índia (7,1%) e Paquistão (3,1%). Dentro do território brasileiro, essa indústria é a segunda que mais emprega no país no setor de transformação, diretamente responsável por 1,5 milhão de empregos, dos quais 75% são de mão de obra feminina. O país é considerado a maior cadeia têxtil completa do Ocidente, pois há a produção interna desde a obtenção das fibras, passando por tecelagens, beneficiadoras, confecções, forte varejo até os desfiles de moda. No entanto, várias grandes marcas de roupa no Brasil, 38 no total, foram denunciadas por utilizarem trabalho análogo à escravidão, a maioria delas imigrantes, em pequenas oficinas terceirizadas.
A cidade de São Paulo é a sede da maior parte dessas denúncias. Segundo dados do Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do trabalho no Brasil (RADARSIT) 10, nos últimos 10 anos foram resgatados 624 trabalhadores do setor da confecção no município de São Paulo. A vítimas eram, em grande maioria, mulheres de origem peruana e boliviana. A fiscalização do trabalho nesse setor é especialmente desafiadora pois, muitas vezes, as costureiras são terceirizadas e agrupadas em pequenas células de produção em bairros residenciais, tornando mais difícil a identificação desses locais. Pelo aplicativo Moda Livre11, iniciativa criada pela ONG Repórter Brasil, é possível consultar quais empresas de moda. O aplicativo agrupa os varejistas de roupa no país foram flagradas utilizando a escravidão moderna em suas linhas de produção e quais empresas não são transparentes quanto a fiscalização dessa questão.
Impactos ambientais
Outro campo no qual a indústria da moda atua de forma negativa é o do meio ambiente. Atualmente, a indústria é considerada a segunda mais poluente do planeta, responsável por 10% da poluição global. Segundo o artigo “The enviromental price of fast fashion” traduzido como “O preço da indústria rápida ao meio ambiente”, a indústria produz cerca de 92 milhões de toneladas de lixo e consome 79 trilhões de litros de água por ano12.
Os índices altos de poluição na cadeia produtiva da indústria têxtil já se fazem presentes na produção de matéria prima, como a do algodão, fibra mais utilizada na composição de roupas. O desmatamento para o plantio do algodão, contaminação do solo e água pelo uso de pesticidas, fungicidas e inseticidas, além do próprio uso de água nesse processo, são exemplos dos impactos ecológicos causados por essas monoculturas13. Outra fibra que também tem um importante impacto ambiental em sua extração é a viscose, vinda da celulose, a qual 30% do total produzido advém do desmatamento de matas nativas, principalmente das florestas de países asiáticos e da Amazônia14. Ao longo da transformação da matéria prima em uma peça de vestimenta, há o descarte impróprio de substâncias tóxicas na etapa de beneficiamento dos tecidos despejados em rios e lagos.
Igualmente, os danos ambientais da moda não estão limitados apenas à fabricação da mercadoria, há também a produção de lixo durante o uso da peça de roupa e após seu descarte. Durante a vida útil de uma vestimenta, é recomendado sua higienização, atividade que faz parte da rotina da maioria das pessoas. Porém, em peças compostas por fibras sintéticas como o poliéster, a lavagem ou o simples atrito do tecido na pele faz com que pequenas partículas de plástico se soltem do material e contaminem o ar e oceanos. Essas partículas, denominadas microplásticos15, são responsáveis por um enorme dano na saúde dos ecossistemas naturais, inclusive ao próprio bem estar humano. Há estudos científicos ligando a presença de microplástico no corpo à disrupção do sistema endocrinológico16.
Por fim, o destino das milhões de roupas compradas anualmente dentro da lógica da fast fashion é o lixo. Cerca de 50% de todo produto têxtil fabricado é descartado ou doado após um ano de sua fabricação17. Essas toneladas de material compõem lixões que contaminam o solo e águas subterrâneas, e quando incinerados, lançam toneladas de CO2 na atmosfera. Os lixões são muito comuns no Brasil, no ano de 2020 foram identificados 2.707 no território nacional18. É difícil contabilizar o volume do lixo produzido pelas roupas descartadas no Brasil, segundo a ABIT, somente na indústria são descartadas 170 mil toneladas de resíduo têxtil todos os anos, das quais apenas cerca de 40% são recicladas 19.
Países no centro do capitalismo, como a Europa ocidental e os EUA, são os que mais produzem lixo têxtil devido ao alto consumo destas regiões, no entanto, seus resíduos não permanecem em seus territórios. No caso da doação, as peças que não são aproveitadas por instituições de caridade (mais da metade) são vendidas para lixões têxteis na África subsaariana, principalmente Gana, Kenya, Sudão e Senegal20. As roupas jogadas fora também entram na lógica comercial, há a exportação, legal e ilegal, dos resíduos para países do sudeste asiático. Recentemente, governos da Indonésia, China, Malásia e Filipinas expressaram seu descontentamento em serem o “lixão do ocidente”. Por isso, tomaram algumas atitudes contra essa prática. Um exemplo disso é a China ao fechar definitivamente suas fronteiras para contêineres de lixo vindos do exterior21.
Conclusão
Diante das informações apresentadas, é evidente que a dinâmica atual da indústria têxtil, junto com o capitalismo em si, é insustentável. Portanto, qual seria a melhor forma de diminuir os impactos causados pela moda rápida? Antes de tudo, para se resolver um problema é preciso ter consciência dele, afinal, informações sobre a ética socioambiental da indústria da moda não vêm escritas nas etiquetas de roupa. Por isso é fundamental analisar a mercadoria têxtil além do objeto em si e se perguntar: o que faz com que as pessoas queiram comprar isso? Por onde passou esse produto antes de chegar até aqui? Quem foram as pessoas envolvidas em sua fabricação, em quais condições elas trabalharam? Quanto ganharam? Quais corporações estão lucrando com isso? Quanto tempo essa peça vai durar? Para onde ele vai quando ela for descartada?
A partir destas perguntas, existem 2 concepções que traçam o caminho para a mudança: um sintomático e individual, o outro radical e coletivo. O primeiro é o mais popular quando se fala de consumo consciente, ele enfatiza uma mudança no dia a dia pessoal de cada um – nesse campo estão filosofias dentro do minimalismo e ações como consumir menos produtos, comprar roupas de costureiras independentes, de brechós, aprender a fazer alterações e remendos no vestuário, usar apenas materiais duráveis e produzidos de forma ecológica, etc. Existem inúmeras ações que podem ser feitas individualmente para diminuir a pegada socioambiental de cada um, porém, não há real consumo ético dentro do sistema capitalista.
Apesar da frase “se cada um fizer sua parte o mundo seria melhor” fazer sentido superficialmente, na realidade, os problemas causados pelo capital não são fruto das escolhas individuais da população, mas sim, de interesses econômicos de grandes corporações multinacionais, que visam invariavelmente o lucro acima do bem estar de seus trabalhadores e da natureza. Sabendo disso, empresas utilizam práticas de marketing voltadas aos consumidores preocupados com questões de sustentabilidade. Elas caracterizam seus produtos, geralmente mais caros do que os “normais”, como éticos, no entanto sem apresentarem ações efetivas para limpar as injustiças presentes ao longo de sua cadeia produtiva.
Diante dessa contradição, há o segundo caminho: um esforço coletivo global para lutar por um novo sistema econômico político e social edificado pela classe trabalhadora sobre os interesses dos explorados e oprimidos e as suas necessidades mais históricas, pela superação de todo o tipo de exploração e opressão e que inevitavelmente exige a compressão da relação metabólica entre sociedade e meio ambiente, o socialismo. Essa luta busca solucionar a raiz dos problemas da indústria da moda, a lógica capitalista em si, que inclusive se consolidou junto com as pioneiras fábricas têxteis, há dois séculos, durante a primeira revolução industrial. Por fim, é necessário e urgente fazer muito mais do que comprar roupa de brechó se o objetivo for a mudança estrutural, é preciso se juntar às corajosas trabalhadoras desse ramo e a todos os outros corajosos trabalhadores do mundo, de uma forma organizada, para então conquistar um futuro mais justo e limpo.
Referências
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