FEDERICO DERTAUBE

Com 100% dos postos de votação contabilizados, a vitória de Boric sobre Kast no segundo turno das eleições presidenciais é completamente indiscutível. O candidato de centro-esquerda venceu o extrema direita pinochetista de direita com uma diferença de 12%.

O pinochetista Kast visava explicitamente esmagar a rebelião contra 30 anos de neoliberalismo e pós-pinochetismo. Boric, apesar de não representar realmente as aspirações das mobilizações de massa que colocaram o regime em xeque, quis se apresentar como tal.

Apesar do fato de que a maioria da rua de outubro de 2019 não tenha confiança nele, defensivamente tomaram sua candidatura como sua própria. Impedir a extrema direita de chegar ao poder era a prioridade. E assim aconteceu.

A rebelião questionou tudo, e este todo se instabiliza. Os partidos que governaram o Chile durante três décadas foram deixados de fora da disputa presidencial. A velha Concertación de Bachelet e a força de Piñera nada mais podiam fazer senão assistir ou emitir declarações de apoio a outros candidatos.

Com Piñera no poder por dois longos anos, a Constituinte não foi capaz de transformar o regime político chileno. E quando eles pensaram que poderiam manter tudo como estava, foi demonstrado macivamente que este não poderia ser o caso.

A força da rebelião, a rejeição do velho pinochetismo reconvertido, fez desta a eleição com o maior participação em mais de uma década. A rebelião derrotou aquele que desejava ser seu inimigo encarniçado, mas ainda não obteve um triunfo próprio.

Boric: a “esquerda” reformista… e capituladora

Esta seção é uma atualização do que foi escrito em artigo* anterior sobre o tema.

Longe da campanha de histeria anti-comunista contra Boric e da aliança “Eu aprovo a Dignidade, já capitulavam muito antes de terem sua influência atual, eles continuaram a fazê-lo sempre que podem, o fazem por ofício e convicção.

A trajetória política de Boric é bastante semelhante à do agora aposentado Pablo Iglesias na Espanha, com sua FA está com PODEMOS. Eles surgiram como uma crítica mais “radicalizada” da “esquerda” clássica, ao mesmo tempo em que faziam sermões à esquerda marxista sobre o “realismo” político. O “realismo” de um e do outro superou seu “radicalismo” uma e outra vez até se tornar pior do que o velho estalinismo em si.

Boric surgiu como uma referência nas lutas estudantis de 2011, quando milhares e milhares saíram às ruas contra a exclusão privatizadora do sistema universitário. Ao posar durante todo aquele ano como mais “combativo” do que a liderança da FECH (o PC e a internacionalmente conhecida Camila Vallejos), ele os destituiu no ano seguinte, colocando-se à frente da principal organização estudantil da Universidade de Santiago do Chile.

Já na liderança da FECH, iniciou a carreira e o ofício de capitulação. O governo Piñera naquela época queria desmobilizar sem atender à demanda básica da mobilização: a das universidades públicas. Em vez de fazer a menor transformação no sistema educacional comercializado, o governo apresentou a chamada “bolsa universitária gratuita” como uma solução. Boric à frente da FECH assinou a “concessão” e entregou a luta ao governo e ao regime de 30 anos.

Mas seu papel mais nefasto foi na rebelião de 2019. À frente de um “partido” sem qualquer militância ou papel relevante nas mobilizações, como deputado votou a favor da “lei anti-barricadas” apresentada pelo governo de Piñera. Isso mesmo, o candidato da “esquerda”, enquanto dezenas de milhares de jovens enfrentavam a repressão brutal da polícia, escolheu a barricada dos fardados de verde, votando por uma lei que é clara e simplesmente repressiva.

Ele também foi signatário do chamado “Acordo de Paz”: sentou-se com o pior do regime de 30 anos, com todos os partidos que eram filhos do pinochetismo, para proporcionar uma saída, um desvio institucional, da crise na rua. A “paz” deveria ser garantida pela rua, enquanto os policiais no dia seguinte implementaram a política pacífica do estado matando um estudante na Plaza Dignidad. Era assim a quinta roda da carruagem de Piñera, um papel tão lamentável que nem mesmo o velho e desacreditado PC queria cumpri-lo. Que sua chpa se chame “Aprovo a Dignidade” para roubar as bandeiras da rebelião de outubro é tão coerente como se Bolsonaro fizesse listas com slogans sobre tolerância e Macri com o “partido do trabalho”.

Sua trajetória política é consistente em um, e apenas um, ponto: o de fazer sempre o contrário do que disse afim de ganhar influência. Quanto aos presos políticos da Frente Patriótica Manuel Rodríguez (um grupo guerrilheiro que enfrentou o pinochetismo em seus últimos anos), ele passou de exigir publicamente a liberdade deles à sustentar que, se ganhasse, não lhes concederia nenhum tipo de perdão.

Consistente em sua inconsistência, ele agora usa o capital político obtido ao criticar a política de aliança do PC para tentar estender “Aprovo a Dignidade” aos membros e partidos da antiga Concertación de Bachelet. Boric veste a faixa presidencial antecipadamente e se olha no espelho imaginando-se rodeado de funcionários “sérios”: ele quer a simpatia daqueles que administraram a ala “esquerda” do regime de 30 anos para que sejam seus ministros e secretários.

Setores da institucionalidade capitalista o vêem com simpatia como o candidato da contenção da rebelião, da tentativa de desviar a mobilização das ruas para as urnas e da desmoralização das massas. Eles querem que milhões olhem para frente, se desiludam e vão para casa pensando que nada pode mudar. A política de Boric é a do Gatopardo: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”.

*Veja em https://izquierdaweb.com/kast-y-boric-a-segunda-vuelta-desplome-de-los-partidos-tradicionales/

Texto originalmente publicado em https://izquierdaweb.com/derrota-de-kast-vitalidad-de-la-rebelion/ 

Traduzido por Débora Lorenzo