CAÇA AOS “VERMELHOS”: PRIORIDADE NO CONE SUL (E ALHURES)

Izquierda web responde ao editorial de La Nación

A “tribuna de doutrina” fundada por Mitre[1] dedicou seu editorial anônimo de hoje a vomitar contra a esquerda. A pergunta é: a escreveu um ignorante ou um deliberado confusionista e mentiroso?

Nota da editoria de Izquierda Web – 17 fevereiro, 2019

La Nación intitulou seu editorial hoje “Estertores póstumos de la Estrella Roja” em clara referência à esquerda. “Depois do fracasso do comunismo, as duras esquerdas procuram articular todas as reivindicações a seu favor, com base nos manuais soviéticos desbotados.” Já nas primeiras linhas, o autor exala um ódio indiscutível e uma preocupação clara e óbvia. Ao longo do editorial, mistura água e óleo, Bíblia e aquecedor de água, coisas e pessoas de maneira desordenada, de modo que só existe uma idéia: a esquerda é má, é má.

O artigo parece estar em sintonia com o editorial não menos temeroso do The Economist na sexta-feira passada, que dedica suas linhas a falar sobre a “crescimento do socialismo do milênio“. É evidente que algo está acontecendo neste mundo do século XXI.

O que as reivindicações de igualdade de gênero têm em comum com a divisão de poderes? Ou o debate sobre o aborto com a liberdade de imprensa? O que liga os ecologistas à independência do judiciário? Qual a relação entre os protestos dos professores e a periodicidade dos cargos eletivos? E entre as marchas pelas tarifas e a liberdade de expressão? Estas são todas questões que surgem nas democracias liberais, onde é possível fazer declarações que podem ajustar tradições seculares, mas que são ouvidas e discutidas em um contexto de diálogo e tolerância. Esse contexto só é possível quando regem a divisão de poderes, a liberdade de imprensa, a independência do Judiciário, a periodicidade dos mandatos e o direito de se expressar livremente. Isto é, quando o Estado de Direito funciona e não o contrário.

O “Estado de Direito” nos é apresentado como uma entidade metafísica que existe acima das pessoas e de sua história, como um dom divino para o qual trabalhadores, mulheres e aqueles que lutam em geral lhes devem uma gratidão nunca formulada pelo ressentimento, ignorância ou qualquer outro motivo. As “democracias liberais” são o eterno domínio da liberdade, do qual brotam todos os conflitos da sociedade moderna, uma vez que é ela e só ela que permite a sua existência “num ambiente de diálogo e tolerância“.

A realidade historicamente verificável é que “democracias liberais” surgiram das revoluções que colocaram uma classe no governo, a classe capitalista, e que o reino eterno da “liberdade” era para a classe que efetivamente detinha (e detém). o poder. O direito de votar era majoritariamente para uma parte (geralmente muito pequena) da população, para grupos selecionados de proprietários. A liberdade de imprensa era para aqueles que tinham idéias aceitáveis e bolsos cheios o suficiente para imprimi-los (como o mesmo jornal La Nación e os Mitre). A liberdade de se organizar em partidos legalmente reconhecidos era para as diferentes frações em que os proprietários iam se dividendo.

O direito ao sufrágio universal foi geralmente conquistado contra as democracias liberais e a burguesia dominante, tanto para a maioria dos homens mais velhos quanto (mais tarde) para as mulheres. E aqueles que se atreviam a reivindicar tal coisa não raramente eram metralhados. Na Argentina, o sufrágio universal (masculino) só existiu depois da “revolución del parque”[2]; na França, depois das revoluções operárias de 1848 e 1871, reprimidas a sangue e fogo; nos Estados Unidos, os negros não podiam votar até que os membros de várias gerações fossem massacrados. As mulheres não se saíram melhor. Em outros lugares, como Alemanha e Itália, o direito de voto surge como uma concessão para ampliar sua base de apoio aos novos governos. Mas a burguesia nunca esqueceu de conceder isso sem garantir que as pessoas votassem o que era razoavelmente aceitável, proibindo todas as atividades socialistas, sindicais e sindicais.

Qualquer pessoa com um conhecimento básico de história sabe que as liberdades de protestar, organizar, criar associações de trabalhadores, ter imprensa própria, foram conquistadas depois de sofrer duras repressões e massacres. Os regimes políticos que ostentavam uma Constituição, tribunais, códigos legais estritos e, acima de tudo, o palavrório sobre a liberdade, também têm em comum terem reprimido a sangue e fogo um outro tipo de liberdade, a de outra classe social. As liberdades da democracia liberal foram conquistadas pelos trabalhadores contra a democracia liberal. O editorialista do La Nación sente a frustração do escravista que trata de ingratos aos negros que “libertou” quando estes colocaram uma corda em seu pescoço. E se podemos entender seu sentimento de queixa, não será por isso que estaremos dispostos a dar graças. É claro que a democracia burguesa é o melhor regime ao qual os trabalhadores podem aspirar no âmbito do capitalismo, mas somente porque com ela podem exercer os direitos conquistados contra a vontade dessa prória democracia.

Nosso liberalíssimo editorialista, após sua reivindicação de liberdade, nos oferece uma explicação muito respeitável de seus limites: “Todas as formas de convivência social envolvem compartilhar valores e estabelecer uma certa ordem para a ação coletiva. Toda ordem, por sua vez, significa estabelecer hierarquias de autoridade e formas de exercer coerção para cumprir as regras. Sempre haverá reclamantes e dissidentes: filhos e detentos; estudantes que repreendem seus professores; infratores que questionam a polícia; trabalhadores que tomam fábricas; desempregados que cortam rotas; igualitários de gênero que não toleram nem as cortesias; abolicionistas que não acreditam em punição; subalternos que desprezam seus líderes; anarquistas que não conhecem o Estado; racistas que abominam a imigração; piqueteros que cobram para mobilizar descontentes“.

Certamente, não inventam nada novo. “... liberdade pessoal, liberdade de imprensa, de fala, associação, reunião, ensino, culto, etc., receberam um uniforme constitucional, o que os tornou invulneráveis. Na verdade, cada uma dessas liberdades foi proclamada como o direito absoluto do cidadão francês, mas com um comentário adicional de que essas liberdades são ilimitadas, desde que não sejam limitadas pelos “direitos iguais dos outros e da segurança pública” ou por “leis” chamadas para harmonizar essas liberdades individuais entre si e com a segurança pública … Aí onde veda completamente “aos outros” essas liberdades, ou permite seu desfrute, em condições que são outras tantas armadilhas policiais, o faz sempre, pura e exclusivamente, no interesse da “segurança pública”, isto é, da segurança da burguesia, como ordena a Constituição … Na frase geral, liberdade; no comentário adicional, a anulação da liberdade. Assim, enquanto o nome de liberdade se respeitasse e se impedisse apenas a sua execução real e efetiva -por meio legal, claramente-, a existência constitucional de liberdade permaneceu intacta, por mais que se assassinasse sua existência comum e corrente.

O artigo do La Nacion é suscetível da mesma crítica da Constituição burguesa da França de 1848, feita por Marx no 18 Brumário de Luis Bonaparte: “Na frase geral, a liberdade; no comentário adicional, a anulação da liberdade “.

Assim, a repressão de mobilizações e greves, as emboscadas policiais sobre as lutas, são uma restrição necessária da liberdade em nome dos interesses da liberdade e da democracia liberal. É assim que funciona a democracia capitalista, efetivamente. Nosso autor dá no cravo.

Não percamos de vista a imagem que nos apresenta dos protestos que surgem a partir de baixo. Tudo parece estar em ordem no mundo capitalista, se alguém se queixa é por ser um desajustado, revoltado, criminoso. Não há motivo sério para queixar-se; a espada de Dâmocles do desemprego e da miséria, as mortes por abortos clandestinos, as vociferantes queixosos sobre o envenenamento por agrotóxicos são para nosso liberal diário uma coisa ininteligível, das quais se sente à vontade falando desde o conforto de sua hierárquica e respeitável poltrona.

Sua missão é identificar todas as reclamações, todas as reivindicações, todas as tensões sociais para 'articulá-las' a seu favor, com base em antigos manuais soviéticos, livros vermelhos desbotados e velhos slogans de Gramsci encarcerado.” Nisto temos que dar o braço a torcer para o nosso autor. De fato, transformar o protesto e seus interesses em uma causa comum que pode aspirar ao poder é o que fazemos.

O que não vai ao caso é a referência a “manuais soviéticos” nas mesmas linhas em que os trotskistas “all'uso nostro” são criticados. Se os clássicos do marxismo estão em causa, é improvável que eles sejam “livros vermelhos desbotados”. Com a crise de 2008, a leitura do marxismo (que nunca morreu ou se superou) voltou a crescer com a publicação de novas e novas edições, amplamente lidas por milhares e milhões de pessoas. A leitura de Marx, publicada e republicada de novo e de novo, simplesmente não tem tempo para desbotar. Enquanto isso, os autores que seguramente são das simpatias deste escritor hostil duvidosamente tenham tanta difusão, menos ainda novas edições e ainda menos leitores. É assim que as coisas são, por pior que se pese.

A mistura de “trotskismo” e “manuais soviéticos” não é a única raridade. Ao longo da nota, muitas coisas são colocadas no mesmo plano de tal forma que a imagem apresentada é a de um monstro deformado no qual nenhum de seus membros parece pertencer ao mesmo organismo. O nosso autor não sabe que o trotskismo se opôs aos ideólogos oficiais da URSS desde o seu surgimento como continuação do marxismo? É um ignorante ou um mentiroso mal-intencionado?

O pós-marxismo denuncia esquemas de dominação por trás de qualquer ordem adotada por uma democracia liberal, qualquer que seja sua tendência. E ali incuba a pregação de convocar, em um discurso comum, os lamentos de ambientalistas, estudantes, professores, sindicalistas, libertários, abortistas, taxistas -até onde sabemos, a existência de redes de carros para seu uso pago não é uma invenção comunista, vai alguém saber por que inclui aos taxis neste lista-, piqueteros, pilotos ou aposentados … A reforma constitucional inventada por La Campora, nessa linha, defende uma democracia radical, onde o povo exerça seus direitos de forma semidireta sem os pesos e contrapesos do modêlo alberdiano, com uma justiça sem venda, que responde ao desejo da maioria e sem imprensa “hegemônica” para um discurso único”. Como pode ser séria uma mistura alquímica tão grave de tantas coisas diferentes, como o marxismo (o “pós” está a mais) e uma reforma constitucional de La Campora[3]? Quando e onde eles tiveram algo a ver um com o outro? Este jornalista é um ignorante ou um mentiroso mal-intencionado?

A única ordem aceita pelos emuladores de Nicolas Ceaucescu, Janos Kadar, Erich Honecker, Wojciech Jaruzelski, Gustav Husak, Fidel Castro e outros líderes da Estrela Vermelha, enquanto ainda brilham, é a ordem política.” Quando o trotskismo emulou estes personagens do stalinismo tardio e decadente quando nem nem sequer quis se misturar com o stalinismo jovem e vigoroso? Não sabe absolutamente nada da história e da tradição do trotskismo, que soube enxergar desde cedo a esses escriturários mediocres como futuros líderes da restauração capitalista? É por nacaso este jornalista um ignorante ou um mentiroso mal-intencionado?

“Muito decepcionados ficarão os queixosos que aceitam em suas fileiras as bandeiras vermelhas, os Eternautas do mausoléu ou os caudilhos de Cristina Eterna[4], em busca de massa crítica para 'ir com tudo' e deixar seus crimes impunes”. Em que cabeça se pode misturar as bandeiras vermelhas do trotskismo com a “eterna Cristina” e a busca de seu retorno ao poder? Onde e quando? Seria por acaso uma greve ou manifestaçãoo o mesmo, exatamente o mesmo, que uma campanha para Cristina 2019? Nosso autor parece imaginar que qualquer protesto contra o ajuste anti-operário de Macri não passa de uma conspiração cristianista, já que pouca raiz poderia haver na realidade que milhões de pessoas vivem. O natural é suportar e sofrer, todo o resto é campanha eleitoral nada mais e nada menos que de Cristina, com o único objetivo de “deixar impunes os seus crimes“. Este jornalista é um ignorante ou um mentiroso mal-intencionado?

Depois do fracasso do marxismo como uma forma de organização social, cujos últimos expoentes são Cuba com aposentadorias de 10 dólares, a Venezuela do déspota Maduro, a Coreia do autocrata Kim Jong-Un ou a China onde coexistem multimilionários e campos de concentração as esquerdas duras propõem uma nova leitura de Karl Marx para superar a original interpretação fracassada “.

Deixemos-lhe passar a este editorialista o fato de que ele nunca explica o que seria a “nova” leitura de Karl Marx. Falemos do seguinte: sua identificação do fracasso do stalinismo com o do marxismo como tal. De Marx (nosso autor poderia aprender um pouco e ler esse grande clássico que é a Ideologia Alemã) dizemos que fatos históricos devem ser avaliados não pelo nome, mas por seus feitos, não pelo que diz, mas pelo que é . E não falamos de denominações fantasmagóricos que existem acima do povo, de socialismo mal aplicado e bem aplicado, de capitalismo bem aplicado e mal aplicado. Os sistemas existem através de pessoas específicas divididas em classes sociais antagônicas, não são idéias aplicadas à sociedade independentemente vindas de um mundo sobrenatural, de modo platônico. Existe o socialismo, ou transição para ele, onde há trabalhadores que governam. Existe o marxismo onde se manifesta a corrente histórica que abriu o caminho para o movimento operário nos quatro cantos do mundo. Misturar este fenômeno histórico, o da classe trabalhadora organizada, com os tradicionalistas coreanos que afirmam ter um pensamento especificamente nacional ou regimes que jamais expropriaram aos capitalistas como o venezuelano, com a burocracia capitalista da China, é uma desfaçatez ou ignorância muito resolvida.

De qualquer forma, essa mistura descarada de fantasmas dos liberais, essa invectiva contra a esquerda, significa algo. Mais ainda em um editorial de um importante jornal diário da classe dominante. Com o crescimento da polarização política em nível internacional, o La Nación quer exorcizar o fantasma do comunismo. Nessas linhas, existe o medo de um fenômeno incipiente, mas real, sobre o qual algo precisava ser feito.

Então, novamente. Este jornalista é um ignorante ou um mentiroso mal-intencionado? Estamos inclinados a pensar que pode ser ambos ao mesmo tempo.

Trad. José Roberto

[1]Não é demais lembrar que Mitre (General Bartolomé Mitre) é reivindicado pelo La Nación como um representante da “democracia liberal” que eles reivindicam. Ele é um representante histórico da oligarquia argentina, eleito como presidente pela minoria que poderia votar na época de acordo com o tamanho de sua riqueza, e responsável (entre muitas outras coisas) pela carnificina contra o povo paraguaio na Guerra da Trípice Aliança, que se calcula ter vitimado a cerca de 80% da população masculina do país vizinho. Um verdadeiro liberalissimo liberal!

[2]NT.: Levante civil-militar, liderado pela União Cívica, que estourou em 26/07/1890 no Parque de Artilharia de Buenos Aires, contra o governo do presidente Miguel Juàrez Celman, que apesar de debelado resultou na queda deste último.

[3]NT.: La Campora é uma organização juvenil de orientação kirchinerista criada em 2003 por Máximo Kirchner. Seu nome é uma homenagem ao ex-presidente argentino Hector Cámpora

[4]NT.: Referência à Cristina Kirchner e aos kirchineristas