A cada dia que passa, o capitalismo do século XXI torna-se mais hostil aos setores explorados e oprimidos. Crise econômica, pandemias, migrações em massa, catástrofes ecológicas, lutas inter-imperialistas, guerras e rebeliões – estas são as palavras mais apropriadas para descrever a dinâmica do mundo de hoje.

Na América Latina, onde isto é particularmente dramático e com um pêndulo político que oscila entre a centro esquerda social-liberal (liberal-social no caso brasileiro) e a extrema direita, as eleições nacionais de outubro e novembro são o elemento mais determinante para o desenvolvimento político latino americano próximo período, inclusive e principalmente para a esquerda revolucionária na região.

Acerca disso, publicamos abaixo extraordinário artigo de Victor Artavia (publicado em Agosto deste ano em Izquierda Web) onde ele analisa como esta realidade global se materializa na América Latina, uma das regiões mais atingidas pela espoliação imperialista, mas também extremamente rica em experiências de luta de classes, dando conta do entrelaçamento de fatores estruturais ou de “longo prazo” com outros de natureza conjuntural, mais típicos do tempo da política.

Apesar do tempo em que foi escrito, sua síntese se aplica perfeitamente nesta data, em que o publicamos aqui no portal Esquerda Web.

 Notas sobre a situação na América Latina

Por Victor Artavia

PARTE I. ELEMENTOS ESTRUTURAIS

  1. Uma economia dependente, desigual e altamente vulnerável

Devido a seu status semicolonial e dependente, a América Latina é extremamente suscetível a eventos internacionais, cujas “ondas telúricas” logo atingem suas fracas economias nacionais. Esta característica se aprofundou nas últimas décadas como resultado das contrarreformas neoliberais, que reconfiguraram a estrutura produtiva da região de acordo com os interesses imperialistas, resultando em uma desindustrialização gradual e a consequente reprimarização do padrão comercial – ou seja, a produção de matérias-primas para exportação – assim como um maior endividamento ante os credores internacionais.

Isto foi plenamente demonstrado após a eclosão da crise econômica em 2008, que, com seus fluxos e refluxos, se espalhou pela década seguinte e persiste até os dias atuais. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), a desaceleração da economia global desencadeada pela crise levou a um crescimento econômico na região de 0,3% durante o período de seis anos de 2014-2019, um número raquítico  apenas comparável com as taxas durante a Primeira Guerra Mundial ou da Grande Depressão.

A isto se soma a persistente e crescente desigualdade social nos países da região. Segundo estatísticas compiladas por Thomas Piketty – economista especializado em questões de desigualdade no capitalismo – e replicadas por The Economist, 1% dos ricos da América Latina capturam 25% da riqueza nacional, contra 18% nos Estados Unidos. Em alguns casos, a concentração da riqueza é exorbitante: no México, os ganhos dos 1% ricos cresceram mais de dez pontos percentuais entre 2000 e 2019.

Isto é complementado por políticas econômicas totalmente complacentes com a burguesia, particularmente notáveis em estruturas fiscais regressivas com enormes isenções fiscais para os ricos e grandes empresas, cujas contribuições fiscais representam apenas 2% do Produto Interno Bruto (PIB). Por exemplo, El Salvador não tributa a renda pessoal por herança ou propriedade, enquanto na Guatemala a taxa é de 7% (bem abaixo das taxas de IVA). Para piorar a situação, estes setores não poupam esforços para deixar de pagar os escassos impostos a que legalmente têm o dever; em 2018, os países latino-americanos perderam 6% do PIB devido à evasão fiscal por parte das grandes empresas e dos ricos.

A contrapartida disso é o crescimento da pobreza e da fome entre os setores explorados. O Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) estima que, entre 2019 e 2020, na Colômbia, Peru e Bolívia, o coeficiente de Gini cresceu entre 6 e 8%. Portanto, não é surpreendente que a região seja a mais desigual do planeta em termos sociais.

Além disso, nos últimos dois anos, a América Latina tem sofrido com o impacto de eventos não econômicos. Primeiro, a pandemia de Covid-19 fez com que o Produto Interno Bruto (PIB) da região caísse 6,8% em 2020 e o número de pessoas empregadas 9%. Embora o relaxamento das medidas de contenção tenha encorajado uma leve recuperação econômica em 2021, não demorou muito para colidir com a “crise dos contêineres” e problemas no fornecimento de matérias-primas e bens de consumo básicos, resultando em um aumento no custo de vida.

A isto se somou a guerra na Ucrânia, que gerou um aumento exorbitante no custo dos alimentos nos últimos meses, devido à escassez de fertilizantes como resultado das restrições comerciais impostas contra a Rússia – um dos principais fornecedores da América Latina – e a impossibilidade de exportar a colheita de grãos dos portos ucranianos (este último afetando principalmente os países africanos). Em um relatório recente, a CEPAL estimou que, como resultado da guerra na Ucrânia e do custo crescente dos alimentos e do combustível, até o final de 2022 a pobreza afetará 33,7% da população e a pobreza extrema 14,9%, representando um crescimento de 1,6% e 1,1%, respectivamente, em comparação com o ano anterior.

Como resultado, uma crise alimentar de enorme magnitude está em curso em muitos dos países da região. Segundo o Programa Mundial de Alimentos (PMA), o custo médio por tonelada métrica de arroz, feijão preto, lentilhas e óleo vegetal distribuído na área aumentou em 27% entre janeiro e abril deste ano, um número que se mantém pálido em comparação com o aumento de 111% no período entre janeiro de 2019 e abril de 2022. Da mesma forma, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estimou que o número de pessoas extremamente pobres incapazes de comprar alimentos básicos suficientes aumentou de 5 milhões para 86 milhões entre 2020 e 2021.

No caso do Brasil, os dados são chocantes, pois aqui a crise assume as dimensões de um país-continente que, embora seja a economia regional líder e a décima terceira maior do mundo, suas relações sociais são as de uma nação semicolonial: 58,7% dos lares brasileiros vivem com insegurança alimentar, o que equivale a 125,2 milhões de pessoas que não têm acesso regular a alimentos suficientes, seguros e nutritivos, dos quais 33,1 milhões sofrem de fome, pois não comem o suficiente para levar uma vida ativa e saudável no dia-a-dia.

Além disso, a América Latina enfrenta uma nova crise de dívida e é atualmente a região “emergente” mais endividada do mundo (um eufemismo da ONU para os países semicoloniais). A dívida bruta dos países do subcontinente é de cerca de 78% do PIB da região, enquanto o serviço da dívida – ou seja, os juros pagos sobre a dívida – é de 59%. Para piorar a situação, até agora neste ano a Reserva Federal dos EUA (Fed) aumentou três vezes as taxas de juros para conter a inflação, o que elevou o dólar e aumentou o valor da dívida que é paga em moeda estrangeira.

As projeções econômicas para este ano são bastante sombrias, com um crescimento médio anual do PIB de 1,8%, mas a situação varia de país para país. Por exemplo, no caso do Brasil – a principal economia da América Latina – a expectativa é que ele cresça 1,5% em 2022 e 0,8% no ano seguinte. Quanto ao México – a segunda maior economia da região – embora os números sejam ligeiramente melhores, eles ainda são preocupantes, pois sua economia deverá crescer apenas 1,7% em 2022 e 1,9% em 2023.

Este será o tom para todos os países da região, o que pressagia mais ataques dos governos – de mãos dadas com o FMI e os credores da dívida – pela aplicação de medidas de austeridade contra as condições de vida dos setores explorados e oprimidos. Além disso, a espiral inflacionária terá um forte impacto sobre o poder de compra da classe trabalhadora e setores populares, um fator que pode gerar explosões sociais contra o alto custo de vida (como está acontecendo no Equador no momento em que escrevemos esta nota). Por outro lado, o aperto econômico não deixa dúvidas de que os governos social-liberais da nova “maré rosa” terão pouco espaço de manobra. Ao contrário da primeira onda no início do século, desta vez eles não terão um “boom” econômico a seu favor para implementar programas de bem-estar social em larga escala (voltaremos a este assunto mais adiante).

  1. Outros problemas estruturais

Para dar conta da situação social e econômica na América Latina, é necessário abordar outras questões que, embora relacionadas ao caráter semicolonial da região, têm uma dimensão específica – humana, ambiental ou política – o que torna necessário analisá-las em detalhes. Neste caso, nos limitaremos aqui a delinear alguns dados gerais e reflexões políticas, que esperamos explorar em maior profundidade em artigos posteriores.

2.1 – Crise migratória

A barbárie do capitalismo latino-americano expulsa milhões de pessoas todos os anos, que fogem de seus países para escapar da violência – conflito armado, perseguição política ou crime organizado – ou da falta de trabalho e de condições mínimas de sobrevivência, arriscando uma jornada extremamente perigosa que muitas vezes resulta na morte de muitos migrantes, sem mencionar outras formas de violência a que estão expostos (agressões, estupro, trabalho escravo, etc.)[1].

Segundo as estatísticas de 2020, o México era o país latino-americano com mais emigrantes com 11,2 milhões, seguido pela Venezuela com 5,1 milhões – em sua maioria migrantes intrarregionais – e pela Colômbia com 3,0 milhões. Por outro lado, o chamado “Triângulo Norte” da América Central – Guatemala, Honduras e El Salvador – foi responsável por 4,0 milhões, um número verdadeiramente alto em relação ao tamanho de suas populações. Dez países do Caribe também fizeram a lista dos vinte principais países ou territórios de emigração em 2019 (em termos de proporção da população total).

O principal destino dos migrantes latino-americanos são os Estados Unidos, como evidenciado pelo número crescente de detenções pela polícia de imigração dos EUA; em 2021, 1,7 milhões de migrantes foram interceptados, um número três vezes superior ao dos anos anteriores e indicativo da avalanche migratória em curso.

Diante desta situação, o imperialismo norte-americano optou por abordar a migração como uma questão de “segurança nacional” e externalizou suas fronteiras nos últimos anos, estabelecendo barreiras ao longo do território mexicano, que se tornou um “país tampão” com uma vasta rede de centros de detenção e infraestrutura militar diretamente voltada para a caça e detenção de migrantes[2].

Consequentemente, os custos econômicos e perigosos associados à migração para os Estados Unidos aumentaram substancialmente e, em resposta a isso, “caravanas de migrantes” surgiram em 2018. Ao contrário da migração clássica, que ocorre escondida e em pequenos grupos à noite, as caravanas são explicitamente públicas, turbulentas e coloridas; são “comunidades políticas” transitórias que refletem – e denunciam tacitamente – as condições de miséria que as expulsaram de seus países, a violência que sofrem com o crime organizado e a perseguição das autoridades estatais (mexicanas e americanas).

Além de sua massividade, se caracterizam pelo fato de terem ampliado a composição demográfica da população migrante. Anteriormente, com o modelo clássico, aqueles que migraram eram na sua maioria homens em idade produtiva que pagavam enormes somas de dinheiro às redes de contrabando para atravessar fronteiras. Com as caravanas isso mudou, pois sua massividade e sentido de comunidade as tornaram “relativamente” mais seguras e reduziram os custos associados à migração, trazendo muito mais mulheres com crianças recém-nascidas, pessoas com deficiências físicas – mesmo em cadeiras de rodas, algo antes impensável – e os idosos.

Por outro lado, as táticas empregadas pelas redes de contrabando também mudaram, pois viram uma oportunidade de fazer negócios com as caravanas, mas agora mais associadas à ligação com empresários americanos para explorar o excedente de mão-de-obra não remunerada dos migrantes. Os chamados “polleros” no nordeste do México se conectaram com as “agências de trabalho” americanas, que basicamente pagam antecipadamente para trazer trabalhadores a fim de se apropriar de sua mão-de-obra excedente através de contratos leoninos. Por exemplo, os migrantes são forçados a trabalhar longas horas por salários miseráveis até que paguem sua dívida para com os polleros e o empregador do norte – o que pode levar muitos anos – com ambas as partes lucrando com a mais-valia gerada pelos trabalhadores migrantes durante longos períodos de tempo.

Este formato de exploração capitalista é mais lucrativo do que o da migração clássica, onde o lucro do tráfico de pessoas se reduzia ao pagamento de uma taxa pré-estabelecida; agora, os lucros são prolongados ao longo do tempo. Isto explica por que, desde 2018, os polleros têm dado prioridade ao tráfico de mulheres, pois se associaram a redes de proxenetas para explorá-las sexualmente nos Estados Unidos, obtendo assim lucros espetaculares em pouco tempo e a um baixo custo [3].

2.2 Crise ecológica

A América Latina, em suas 178 regiões ecológicas, contém 50% da biodiversidade do planeta, assim como 22% da água doce, 16% das águas marinhas e 23% do patrimônio florestal mundial. Só a Amazônia contém 34% das florestas primárias do mundo e abriga 400 povos indígenas[4].

Embora isto lhe dê um lugar privilegiado na luta contra o aquecimento global, a região está atualmente passando por uma “emergência ecológica” devido às consequências do extrativismo e da mudança climática.

Por extrativismo, nos referimos ao modelo de desenvolvimento baseado na exploração de grandes volumes de recursos naturais, com o objetivo de exportá-los como commodities para os mercados internacionais. Isto gera economias de enclave em torno dos territórios de extração – poços de petróleo ou minas – ou plantações – soja, abacaxi, banana, etc. – cuja ocupação é intensiva e altamente destrutiva, deslocando outras formas de produção local e afetando significativamente os ecossistemas circundantes (flora, fauna e comunidades humanas), e é caracterizada pela preponderância do capital transnacional, pois são os únicos com capacidade de fazer os investimentos de capital necessários para lançar a produção extrativista em escala industrial.

Em termos de suas origens, podemos rastreá-lo até o período colonial, quando o atual território latino-americano foi saqueado pelas potências europeias em busca de metais preciosos – as minas de Potosí são um exemplo disso – e, mais tarde, através das plantações de açúcar nas Antilhas e no Brasil. [5] Posteriormente, o extrativismo voltou a ganhar impulso na região, uma vez que as políticas neoliberais dos anos 90 incentivaram a exportação de recursos primários e criaram condições excepcionalmente favoráveis para o capital transnacional.

Esta realidade não mudou na primeira década do século XXI, com o surgimento de governos progressistas críticos do neoliberalismo, apesar do que não transformaram a estrutura produtiva da região e, ao contrário, encontraram no extrativismo uma fonte de renda fiscal no contexto do boom das commodities daqueles anos. A única mudança que eles introduziram foi que eles deram ao Estado um papel mais ativo na produção, o que gerou uma “renda extrativista” que eles posteriormente redistribuíram entre os setores sociais através de políticas de bem-estar social. Mas este reformismo moderado – sua intensidade variou de caso para caso – não questionou o modelo extrativista e depredador ambiental, que foi imposto à América Latina pelo imperialismo como parte do mecanismo global de exploração capitalista[6].

Neste cenário, nas últimas décadas, o modelo extrativista se aprofundou em toda a região através da mineração a céu aberto, do fracking (NT.: técnica utilizada para realizar perfurações de até mais de 3,2 mil metros de profundidade no solo para a extração de gás de xisto ou folhelho), dos poços de petróleo e da expansão da fronteira agrícola, entre outras atividades. Isto levou a uma maior resistência das comunidades camponesas e indígenas e dos movimentos ambientalistas contra a destruição ambiental, resultando em uma onda crescente de assassinatos de ativistas por se oporem aos projetos extrativistas das corporações transnacionais. De acordo com a Global Witness, houve 220 assassinatos de defensores da terra internacionalmente em 2020, dos quais 165 ocorreram na América Latina, tornando-a a região mais perigosa do mundo para os ativistas ambientais [7].

Quadro n° 1.

Ambientalistas assassinados na América Latina em 2020

 
Colômbia 65
México 30
Brasil 20
Honduras 17
Guatemala 13
Nicarágua 12
Peru 6
Costa Rica 1
Argentina 1
Total 165

 

Por outro lado, a região é altamente vulnerável às mudanças climáticas, cujas consequências afetam seus delicados ecossistemas. Por exemplo, o aumento da frequência e intensidade dos furacões, ciclones e o fenômeno El Niño destroem os habitats ecológicos e ceifam muitas vidas humanas. O aumento da temperatura causa o derretimento das geleiras e a perda de fontes de água, bem como um aumento dos incêndios florestais nas regiões mais secas do subcontinente. As falhas de cultivo nas áreas rurais são muito sentidas, ameaçando a segurança alimentar e causando a migração de setores da população rural devido à não viabilidade de seu trabalho agrícola.

Dito isto, é necessário observar que a mudança climática é uma manifestação do aquecimento global, causada pela emissão de gases de efeito estufa, que está diretamente ligada à incapacidade do capitalismo de superar a matriz energética baseada em combustíveis fósseis, pois isto exigiria um planejamento global da economia e que afetaria os enormes interesses econômicos das potências imperialistas. De fato, 78% das emissões de gases de efeito estufa têm origem nos países do G20, principalmente na China que produz 27%, seguida pelos EUA com 13% e pela UE e Índia com 7% cada um. Visto de uma perspectiva de classe, estima-se que o 1% mais rico da população mundial emite mais gases de efeito estufa do que os 50% mais pobres.

Em resumo, existe uma relação direta entre a crise ecológica e a forma capitalista de produção, baseada no lucro individual ou empresarial transnacional, mesmo que isso signifique destruir a natureza e, assim, pôr em perigo as condições de vida de milhões de seres humanos, particularmente aqueles que vivem nas áreas mais pobres do planeta, como é o caso da América Latina.

2.3 Disputa inter-imperialista pelo “pátio traseiro”

A partir das primeiras décadas do século XX, o imperialismo americano tornou-se a potência hegemônica na região, deslocando o Império Britânico, que por essa altura já mostrava sinais de seu declínio histórico. Desde então, a América Latina é conhecida como o “quintal” dos Estados Unidos, embora o Presidente Biden tenha “colorido” esta referência na última Cúpula das Américas, quando disse que “não é o quintal, acho que o sul da fronteira com o México é o pátio dianteiro dos Estados Unidos”.

Deixando de lado o “debate” sobre a posição dianteira ou traseira, não há dúvida de que, na mente dos líderes do imperialismo norte-americano, a região tem o status de um quintal. Uma visão compartilhada pelas burguesias latino-americanas, que, como disse o ex-ministro argentino Guido Di Tella nos anos 90, aspiravam manter “relações carnais” com os Estados Unidos. A aplicação completa das diretrizes neoliberais do Consenso de Washington, os acordos draconianos com o FMI e a constante interferência política – e, de tempos em tempos, militar – do imperialismo norte-americano na região são provas irrefutáveis da opressão imperialista dos países da região.

Com o declínio da hegemonia americana nas últimas décadas e o surgimento da China como um imperialismo em construção, uma luta de poder entre as duas potências se abriu na região, particularmente devido à ofensiva econômica do gigante asiático (temporariamente beneficiado pela retirada antiglobalista de Trump). Inicialmente, o Investimento Estrangeiro (IE) da China foi orientado para setores relacionados à indústria no setor de energia para atender às necessidades de sua indústria em expansão; por exemplo, investiu em empresas petrolíferas, mineração e agronegócios. Isto explica a crescente reprimarização do “padrão comercial” em vários países da região, o que resulta em maior destruição ambiental derivada da lógica extrativista. Desde 2010, foi detectada uma mudança na orientação da IE chinesa, que desde então priorizou o desenvolvimento de projetos de infraestrutura e serviços – incluindo telecomunicações – uma mudança que está relacionada à promoção da “Nova Rota da Seda”.

Além disso, o expansionismo chinês apresenta traços particulares que, na opinião de alguns analistas, se assemelham ao modelo empregado pelo império português através do estabelecimento de “feitorias”. Assim, as empresas chinesas estão localizadas em setores-chave destinados a centralizar e facilitar o comércio de matérias-primas para a Ásia e para a China em particular, estabelecendo assim uma relação de poder essencialmente através de seu poder econômico, ao contrário do modelo americano, que está muito focado no controle político e na presença militar[8].

Esta é a razão pela qual a China ampliou sua lacuna comercial com os Estados Unidos na região. Segundo dados de 2021, os fluxos comerciais da potência asiática com os países latino-americanos chegaram a 247 bilhões de dólares, muito superiores aos 174 bilhões dos Estados Unidos. Esta diferença começou durante o mandato de Trump, mas cresceu durante a atual administração Biden, principalmente por causa da relação comercial da China com países sul-americanos, enquanto os Estados Unidos têm um enorme peso em sua relação comercial com o México no NAFTA.

Por todas essas razões, a direção imperialista dos Estados Unidos nos últimos anos reorientou sua política externa para conter a ascensão da China, já que identificou o gigante asiático como o único concorrente de sua hegemonia mundial. Esta mudança de orientação teve seus primeiros episódios durante a administração Obama, mas deu um salto durante a administração Trump e continua agora sob Biden. Desde então, os Estados Unidos têm continuado a obstruir o progresso da China na América Latina, especialmente no que diz respeito ao estabelecimento da tecnologia 5G, o que levou ao veto das empresas tecnológicas chinesas (daí os ataques a Huawei).

Além disso, nos últimos anos a Rússia aprofundou seu relacionamento com vários países da América Latina, particularmente através de oito acordos militares (o que é lógico, visto que não tem tanta força econômica em relação aos Estados Unidos e à China). O interesse da Rússia é sobretudo geopolítico, pois sua presença militar “marca” uma presença em uma área próxima aos Estados Unidos em resposta à ajuda militar oferecida pelos americanos a países próximos ao ambiente geográfico da Rússia (uma tensão mais clara do que nunca com a guerra na Ucrânia).

Estes dados refletem a crescente luta pelo poder na região, que é uma correlação da disputa pela hegemonia global entre os EUA e a China, assim como o crescente papel da Rússia na arena internacional através de seu poderio militar.

PARTE II. ELEMENTOS CONJUNTURAIS

  1. Entre a agitação social e a polarização política

Isto explica a crescente instabilidade prevalecente em uma região sujeita a uma série de fatores – internos e externos – que, após vários anos, corroeram os pilares econômicos e políticos sobre os quais seu “modelo de desenvolvimento” neoliberal foi construído, tanto no sentido econômico quanto político. A América Latina enfrenta uma crise que, além da deterioração de seus indicadores estatísticos, expressa fundamentalmente uma ruptura no consenso social que determinou a política regional nas últimas décadas.

Durante os anos 80 e 90, prevaleceu um ciclo político neoliberal, durante o qual a direita tradicional foi hegemônica com base na implementação do Consenso de Washington – o famoso “decálogo” do neoliberalismo americano – e prometendo uma ascensão social baseada no estímulo do mercado livre e da democracia liberal; isto não aconteceu e, ao contrário, durante aqueles anos a pobreza e a miséria social aumentaram, na medida em que a região é atualmente a mais desigual do planeta.

Por isso, nas últimas décadas o status quo derivado do consenso neoliberal tem sido cada vez mais questionado. Primeiro, ele se expressou na onda de rebeliões populares do início do século, da qual surgiu uma série de governos “progressistas” – alguns sociais liberais, outros nacionalistas burgueses – que, embora aplicassem reformas e planos de bem-estar para redistribuir a riqueza e reduzir os níveis de desigualdade social, não implementaram medidas anticapitalistas ou reverteram o caráter semicolonial de seus países, de modo que as causas estruturais da desigualdade persistiram – embora ligeiramente atenuadas.

Por esta razão, os pequenos avanços sociais alcançados pelos governos reformistas e nacionalistas burgueses foram rapidamente reabsorvidos pelos efeitos das crises econômicas internacionais que ocorreram desde 2008 (como explicamos na primeira parte do artigo). Isto levou ao desgaste do ciclo progressivo e, consequentemente, facilitou o retorno da direita na maioria dos governos, embora com características reacionárias mais acentuadas como resultado do mal estar social acumulado e da instalação de um clima de polarização política.

Talvez o caso mais emblemático seja o Brasil, onde o ciclo de quatro governos consecutivos do PT terminou abruptamente com o impeachment que derrubou a Dilma Rousseff em 2016, um movimento reacionário que colocou Michel Temer (então vice-presidente da Dilma) na presidência, um político tradicional burguês que se concentrou em aprovar uma série de medidas draconianas de austeridade contra a classe trabalhadora, algo incomum considerando que sua “eleição” foi decretada por cima pelos partidos burgueses que queriam enterrar o PT, ou seja, ele não tinha nenhum tipo de legitimidade pelos critérios da democracia burguesa. Portanto, o impeachment deu lugar a uma escalada autoritária entre setores da burguesia e dos militares, propiciando o surgimento do governo de ultradireita de Bolsonaro, que, além de reivindicar a ditadura militar que controlou o país entre 1964-1985, insiste com suas ameaças de golpe e seu questionamento das eleições de 2 de outubro, tudo como parte de sua aspiração de refundar o país em um sentido reacionário e autoritário.

Podemos contar outros casos, como o de Ortega na Nicarágua, que, diante de protestos maciços exigindo sua saída do poder em 2018, transformou-se em uma ditadura burguesa que detém um grande número de presos políticos, incluindo a maioria dos candidatos da oposição que foram seus rivais nas eleições do ano passado. Também é necessário mencionar o caso de El Salvador, onde o Presidente Nayib-Bukele detém enormes cotas de poder, devido a seu controle dos poderes executivo e legislativo, que complementa com seus traços cada vez mais repressivos e autoritários, como as violações dos direitos humanos dos prisioneiros e a recente militarização do país durante várias semanas para “enfrentar” as maras (NT.: “Mara Salvatrucha”, gangue violentíssima, norte-americana, ligada ao narcotráfico, prostituição infantil e tráfico de pessoas, dentro e fora dos EUA) .  Por outro lado, figuras de extrema-direita estão surgindo em outros países, como no caso de José Antonio Kast no Chile, filho de um ex-militar nazista e defensor da ditadura Pinochet, que se levantou meteoricamente nas últimas eleições e disputou o segundo turno contra Gabriel Boric; algo semelhante pode ser dito do Peru, onde Keiko Fujimori – herdeira política do genocida clã da família – perdeu no segundo turno por uma estreita margem para Pedro Castillo.

Como se explica este giro à direita na região em meados da década anterior? Por um lado, se enquadra dentro da situação internacional da época, determinada pela ascensão de governos reacionários em vários países imperialistas, particularmente Donald Trump nos Estados Unidos e Boris Johnson no Reino Unido. Foi também uma consequência do desencanto com os governos progressistas que não resolveram os grandes problemas dos setores trabalhadores e explorados, que foi capitalizado pela ala direita. Tudo isso convergiu com a quebra do consenso social neoliberal e a atual crise econômica, dando lugar a uma polarização política na qual prevalece o repúdio ao status quo e cresce o sentimento antissistema.

Isto está diretamente relacionado ao desencanto com a democracia burguesa na região, cujos índices de aprovação estão caindo ano a ano. Segundo o Latino barômetro, enquanto em 1995 a satisfação com a “democracia” era de 39%, em 2020 era de apenas 25%; por outro lado, a insatisfação subiu de 56% para 70% no mesmo período de tempo. Da mesma forma, a confiança nas instituições eleitorais caiu de 47% em 2006 para 31% em 2020. Foi neste terreno que a direita reacionária se ergueu no último período, que conseguiu aproveitar o momento destacando seu perfil anti-sistêmico.

Por outro lado, embora no contexto da polarização internacional a direita seja, por enquanto, o polo mais dinâmico ou visível, isto não significa que não haja expressões por baixo e à esquerda, particularmente com o que chamamos o retorno das rebeliões populares. No caso da América Latina, o surgimento de Bolsonaro foi simultâneo com o surgimento de novas rebeliões no Cone Sul. Sem dúvida, o caso mais significativo foi o Chile em 2019, onde a explosão social foi radicalizada, colocando o governo de Sebastián Piñera em cheque e assumindo como slogan de luta a exigência de uma nova Assembléia Constituinte, deixando claro o repúdio generalizado do modelo neoliberal e autoritário do país legado pelo Pinochetismo. Este último é de suma importância, pois representou uma tradução pela esquerda do sentimento antissistema do momento, que estava ligado à aspiração popular de refundar o país sobre novas bases sociais (que o governo Boric está desmantelando em seus acordos com a direita, acrescentando uma nova traição ao reformismo latino-americano, como veremos a adiante).

Além disso, houve outros casos de rebeliões regionais, como no Equador em 2019 contra o acordo do FMI, os protestos em massa no Peru e, naturalmente, a rebelião colombiana em 2021, que colocaram o Uribismo em crise. No momento em que escrevo este artigo, houve até mesmo uma rebelião no Panamá e outra no Equador, ambas contra o aumento do custo de vida no contexto da crise inflacionária internacional.

O caráter progressivo de todas essas rebeliões populares é inegável e, além disso, elas tendem a ser cada vez mais radicalizadas, refletindo a polarização e o desespero resultantes da crise econômica. Enormes setores da juventude e do movimento de massa estão desenvolvendo suas experiências de luta, onde enfrentam as “praças” – estágio simbólico das rebeliões – e contra os “Palácios” – espaços de poder burguês. Por outro lado, não podemos deixar de apontar seus limites, particularmente uma característica comum desses processos: a desigualdade entre os métodos radicais de luta com a fraqueza do fator subjetivo. Com isto nos referimos ao nível das representações políticas dentro do movimento de massas, porque na luta entre a praça e os Palácios, o fator político, ou seja, a alternativa a ser construída diante do poder burguês, ainda não amadureceu. Por isso, as rebeliões populares são cooptadas institucionalmente, particularmente através da via eleitoral – mesmo nos casos mais radicais, como no Chile – e, por isso, o reformismo ainda consegue manobrar para desmantelar as rebeliões, prometendo mudanças quando são eleitas como governo [9].

Para romper com esta dinâmica de rebelião/cooptação é necessário avançar para revoluções que apontem destruir o estado burguês, para o qual é indispensável o amadurecimento do fator subjetivo e, naturalmente, a centralidade da classe trabalhadora em unidade com o resto dos setores explorados e oprimidos.

  1. A chegada dos governos social-liberais

Existem atualmente 12 governos na América Latina considerados “à esquerda” pela imprensa burguesa, embora em nosso caso preferimos descrevê-los como sociais-liberais (mais sobre essa definição mais adiante).  As economias sob seu controle representam 60% do PIB da área e, caso Lula vença no Brasil nas próximas eleições, eles se somarão à principal economia do subcontinente, que representa 31,9% do PIB regional (2021). Esses dados parecem confirmar que uma nova “maré rosa” – como foi chamado o ciclo anterior de governos progressistas – está em andamento, que iria da Terra do Fogo até mesmo com a própria fronteira dos Estados Unidos.

Mas para além desses dados quantitativos é necessário  analisar as complexidades da situação atual, que, como indicado anteriormente, é determinada pela crescente polarização e pela crise econômica, dois fatores que empurram para a instabilidade e dificultam a estabilização dos ciclos políticos. Por esta razão, os “curtos-circuitos eleitorais” são cada vez mais recorrentes na região, interrompendo a continuidade dos governos em exercício – seja da direita ou da esquerda – pelo que o pêndulo a nível governamental gira para frente e para trás entre os dois polos.

Para explicar melhor, é útil analisar a incapacidade da direita de consolidar o poder após o sucesso dos progressistas, em grande parte porque sua agenda consistia em rejeitar o “populismo” de esquerda e, imediatamente depois, aplicar novos ajustes neoliberais (de mãos dadas com o FMI e outras agências imperialistas), ou seja, aprofundaram os ataques contra os setores explorados e oprimidos. Por isso mesmo, foram governos de curta duração que, em muitos casos, foram mortalmente feridos pelas mobilizações populares provocadas por suas políticas reacionárias: na Argentina, o governo Macri foi derrotado pelos dias de dezembro de 2018 contra a reforma previdenciária; Piñera e Duque perderam seu capital político ao reprimir as rebeliões e terminaram seus mandatos com a contenção/traição do reformismo dos protestos[10]; as forças golpistas na Bolívia não consolidaram seu regime devido à resistência popular contra o governo racista e conservador de Jeanine Añez, que agora está na prisão após o retorno do MAS ao poder nas eleições de 2020; etc.

Tudo isso explica os recentes triunfos da centro-esquerda ao capitalizarem o voto de protesto contra os governos no poder. Por esta razão, caracterizamos o fato de que não se abriu um novo ciclo progressivo ou reformista, uma vez que os novos governos “esquerdistas” podem não ser capazes de se consolidar ou garantir sua continuidade no poder, dada sua incapacidade de adotar medidas radicais – ou seja, anticapitalistas – para enfrentar a profunda crise econômica e social que está varrendo os países da região. Além disso, eles nem sequer se qualificam como reformistas se os compararmos com a experiência de seus predecessores progressistas – como Chávez ou Evo Morales – uma avaliação que é confirmada ao avaliarmos suas ações quando chegam ao poder.

O caso da Argentina é muito ilustrativo a este respeito. Diante da grave crise econômica que o país atravessa, o governo de Alberto Fernández optou por continuar o acordo com o FMI com o resultado esperado, ou seja, descarregou o custo da crise sobre a classe trabalhadora e os setores populares, provocando o repúdio dos setores que votaram a favor da Frente de Todos na rejeição da gestão neoliberal do Macrismo. O resultado disso é que Macri está surgindo como o favorito para as próximas eleições, além do fortalecimento da extrema direita encarnada em personagens como Milei.

Outro caso é o de Gabriel Boric no Chile, cuja eleição gerou grandes expectativas de mudança que duraram até sua posse em março anterior. Mas não demorou muito para que o verdadeiro caráter de seu governo fosse revelado, devido a sua tentativa de combinar algumas reformas de muito baixa intensidade e, ao mesmo tempo, não romper com o modelo capitalista neoliberal herdado da ditadura. Embora tenha concedido um aumento salarial significativo no início de seu mandato, ele foi rapidamente engolido pela alta inflação de 13,1% – a maior em 28 anos -, em face da qual ele não tomou nenhuma medida de emergência para evitar a queda do poder aquisitivo da população trabalhadora, pois teria que tocar os interesses dos empresários impondo uma escala móvel de salários de acordo com o custo de vida. Pior ainda, diante dos protestos e reivindicações do povo mapuche de recuperar suas terras tomadas por grandes corporações transnacionais e grandes latifundiários, o governo de “esquerda” militarizou a Araucanía para preservar a “segurança pública” – medida aplicada por seu antecessor e criticada por Boric quando era deputado da oposição -, demonstrando na prática que não apoia a devolução das terras usurpadas a seus legítimos proprietários, para o que teria que expropriar um setor da burguesia imperialista e chilena.

Como resultado, o governo de Boric está cada vez mais enfraquecido e sua popularidade sofreu uma forte queda dos 56% de votos no segundo turno das eleições em dezembro para 38% de apoio hoje. Além disso, todas as pesquisas indicam que o projeto da nova Constituição – bastante moderado com relação à radicalização e às exigências da rebelião – não será aprovado no próximo plebiscito em setembro, o que poderia resultar na desmoralização de muitos setores da juventude e setores populares que lideraram as mobilizações em 2019, além de acentuar a crise do governo.

Dado o acima exposto, surge a pergunta: por que os novos progressistas não implementam reformas como seus antecessores e, ao contrário, aplicam ajustes que não ficam atrás de seus rivais neoliberais? A primeira geração de governos progressistas teve o boom das commodities a seu favor e, além disso, a situação econômica internacional foi impulsionada pelo crescimento explosivo da China e pela estabilidade dos outros centros do capitalismo mundial. Isso lhes permitiu realizar reformas para redistribuir a renda extrativista e, embora tenham tido confrontos com o imperialismo e setores da burguesia local, conseguiram negociar com esses setores e garantir o lucro capitalista.

O cenário atual é muito diferente. Primeiro, porque há uma recessão nos Estados Unidos e na União Europeia, enquanto o crescimento da China desacelerou e, portanto, sua capacidade de tração da economia mundial diminuiu. Em segundo lugar, embora o valor das commodities tenha aumentado desde a guerra na Ucrânia, desta vez as entradas da “renda extrativista” são contrabalançadas pela abrupta espiral inflacionária em nível internacional, cujo resultado é uma depreciação acelerada dos salários reais e, consequentemente, do consumo entre a grande maioria dos trabalhadores e os setores populares.

Neste contexto de crise econômica e polarização, os novos governos progressistas não têm espaço para reformas moderadas para redistribuir a riqueza e, ao mesmo tempo, garantir o enriquecimento da burguesia. Por isso, não demoram a ceder às pressões do capital imperialista e local para implementar planos de ajuste, pois a outra alternativa seria contar com a mobilização social para avançar para medidas radicais e anticapitalistas, como o não pagamento da dívida, rompimento com o FMI, impostos sobre o grande capital e fortunas, reforma agrária radical contra os grandes latifundiários e grandes latifundiários, entre outros.

Por esta razão, os novos governos de “esquerda” são social-liberais, ou seja, realizam algumas reformas e planos de bem-estar moderados, mas sem atacar as bases estruturais do capitalismo neoliberal, extrativista e semicolonial latino-americano. [11] Na realidade, são uma variante “esquerdista” do ajuste neoliberal, que eles não questionam fundamentalmente e, no máximo, procuram diminuir seu impacto alterando alguns pontos (embora isto não seja útil, como demonstrado pela renegociação de Fernández com o FMI no caso da Argentina). Isto significa que sua “lua-de-mel” com os movimentos sociais e o eleitorado de esquerda é muito curta, perdendo rapidamente sua popularidade e minando suas chances de ser reeleito – seja diretamente ou através de uma figura substituta – consolidando um ciclo político.

Outro aspecto a ser analisado é que os novos governos social-liberais regrediram em sua capacidade de pensar em si mesmos como parte de um projeto regional/internacional, algo que o progressismo fez através das plataformas regionais articuladas por Chávez e Lula, que transformaram a Venezuela e o Brasil em dois polos de atração para a esquerda reformista. [12] Agora, pelo contrário, os novos governos “esquerdistas” se destacam por suas perspectivas estreitas, pois estão entrincheirados em negociações internas com setores da burguesia e, além disso, não têm nenhum projeto de transformação reformista para exportar.

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Numa pequena síntese, aqui estão alguns elementos gerais de reflexão e orientação política.

  1.         Na América Latina, a crise capitalista é combinada com o legado de pilhagem e exploração imperialista, primeiro em sua faceta colonial e, atualmente, semicolonial. Como resultado, os países da região são profundamente vulneráveis e dependentes do mercado mundial, ao qual estão ligados principalmente como fornecedores de matérias primas.
  2.         A reprimarização da economia latino-americana se aprofundou nas últimas décadas, com o consequente desenvolvimento do extrativismo para atender às necessidades das potências imperialistas, particularmente da China. Isto, por sua vez, está associado à crescente destruição da natureza nas mãos das empresas transnacionais e com a aprovação dos governos locais.
  3.         Somado a isso, décadas de políticas neoliberais resultaram em um aumento da desigualdade social, cuja expressão mais aguda é a miséria e a fome que afeta centenas de milhões de seres humanos na região. Uma consequência disso são as crescentes ondas de migração, que são verdadeiras caravanas de seres humanos em busca de condições mínimas para evitar a fome.
  4.         Como consequência, há uma agitação social acumulada e uma quebra do consenso social sobre o qual a economia e a política latino-americanas foram estruturadas nas últimas décadas. O questionamento do status quo está crescendo, tanto pela esquerda com as rebeliões populares, mas também pela direita com o fortalecimento da extrema direita. Por trás desta polarização há uma disputa latente sobre a natureza da refundação dos países latino-americanos, ou seja, se ela será baseada em novos fundamentos sociais anticapitalistas ou, ao contrário, em uma base reacionária e autoritária.
  5.       Os novos governos sócio-liberais são incapazes de garantir uma saída para a crise econômica e para a   polarização política em curso. Seu reformismo é de muito baixa intensidade, na medida em que seu objetivo é administrar ou “renegociar” os planos de ajuste neoliberal e imperialista com o FMI. Isto os condena ao fracasso desde o início, pois não têm espaço de manobra para negociar com a burguesia e conceder algumas reformas significativas para os setores explorados. Por esta razão, caracterizamos que não há um novo ciclo progressivo na região; é muito provável que a oscilação eleitoral entre a direita e a centro-esquerda persista.

6,        Isto não impede que os partidos e figuras do centro-esquerda desempenhem um papel de contenção em meio ao surto de mobilizações populares ou rebeliões, como mostraram as experiências do Chile e da Colômbia. Daí que a luta política e teórica contra a esquerda reformista seja fundamental, assim como sustentar iniciativas de unidade de ação com esses setores quando necessário.

  1.         Por todas as razões acima, a tarefa estratégica de construir organizações sociais e revolucionárias na região, que lutem pela independência de classe e uma solução anticapitalista para a crise, permanece válida. Em meio à situação atual, é muito possível que no futuro se desenvolvam novas rebeliões populares na região, para as quais será muito importante ter a maior acumulação política e construtiva, a fim de influenciar a orientação das lutas. Estamos assumindo esta tarefa a partir da Corrente  Socialismo ou Barbárie (SoB), cujo esforço é construir partidos e correntes em diferentes países da área (além de nosso desenvolvimento na França e na Espanha).

Bibliografía

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“América Latina: no todo lo que brilla es un «ciclo»”. En ……(Consultada el 17 de julio de 2022).

“Las caravanas de migrantes, las economías de tráfico humano y el trabajo excedente”, Simón Pedro Izcara Palacios**, http://www.scielo.org.mx/pdf/anda/v18n45/1870-0063-anda-18-45-21.pdf

“¿De dónde vienen y hacia dónde van los migrantes en América Latina?” ,Por Sol Amaya, 26 Octubre, 2021 en https://cnnespanol.cnn.com/2021/10/26/migrantes-america-latina-vienen-van-orix/

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“The jet set andtherest”. The Economist, AUGUST 13TH–19TH 2022, p. 34-36.

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«‘Os governos de esquerda na América Latina estão com as mãos atadas’». En https://www.estadao.com.br/internacional/os-governos-de-esquerda-na-america-latina-estao-com-as-maos-amarradas-diz-cientista-politico/(Consultada el 18 de agosto de 2022).

«Esquerda ‘pós-moderna’ enfrenta choque de realidade no Chile». En https://www.estadao.com.br/internacional/esquerda-pos-moderna-enfrenta-choque-de-realidade-no-chile/(Consultada el 18 de agosto de 2022).

 [1] No momento em que escrevemos esta nota, cinquenta migrantes centro-americanos abandonados em um contêiner no meio do deserto no Texas teriam morrido por asfixia; uma morte lenta e terrível que retrata a crueza associada à migração forçada.

[2] Desta forma, o imperialismo aliviou a pressão sobre suas fronteiras e reduziu as queixas sobre as condições abusivas dos migrantes interceptados nos estados do sul, incluindo as violações dos direitos humanos contra menores. Agora o trabalho sujo é feito pelas autoridades mexicanas – às quais o governo “progressista” de AMLO se encarregou de perseguir e deter seus irmãos e irmãs latinos. O imperialismo “terceirizou” a violação dos direitos humanos.

 [3] Com o tráfico de mulheres, a parte do dia de trabalho destinada à reprodução vital das prostitutas – alojamento, alimentação, vestuário – é rapidamente ocupada, de modo que a enorme parte dos ganhos diários é apropriada pelos proxenetas.

[4] As florestas virgens são as mais eficientes para a absorção de CO2, o que explica a importância da Amazônia na inversão do aquecimento global. Contraditoriamente, durante décadas foi assumido que não fazia diferença se a quantidade de terra florestada era primária ou reflorestada, uma abordagem que foi incorporada no Protocolo de Kyoto, cujo foco era o reflorestamento em vez de defender a preservação de florestas intactas. Quanto às reservas indígenas, foi demonstrado que elas são a melhor maneira de proteger as florestas, já que a comunidade as protege do corte ilegal de árvores, da caça e da mineração; daí que os governos mais reacionários da região – como o Bolsonaro no Brasil – questionam o direito dos povos indígenas sobre seus territórios ancestrais, por trás do qual se esconde o interesse em permitir que essas áreas sejam desmatadas.

 [5] Neste sentido, Milcíades Peña, em sua obra Historia del Pueblo Argentino, analisou a colonização da América e a exploração dos metais como uma empresa ligada à acumulação capitalista internacional, mesmo que se tenha desenvolvido sob formas não capitalistas de exploração (trabalho escravo, mita (NT.: em quéchua significa turno), etc.). Nahuel Moreno expos algo semelhante em Cuatro tesis sobre la colonización española y portuguesa en América, onde apontou que o desespero dos espanhóis e portugueses em encontrar minas de ouro e prata -sintetizado em sua busca pela mítica cidade de “El Dorado” – deixou claro que seu interesse não era estabelecer colônias feudais na região, mas extrair os metais preciosos para colocá-los no mercado mundial.

[6] Na literatura ecologista da região, a política ambiental dos governos progressistas é frequentemente referida como “neo-extrativismo”. Embora o termo seja útil para explicar a nuance introduzida pelo envolvimento do Estado no incentivo de práticas depredadoras do meio ambiente sob a justificativa de gerar receitas para políticas sociais, tem a desvantagem de dar a impressão de que este modelo de desenvolvimento é um fenômeno “novo”, quando de fato faz parte da dependência da região em relação às potências imperialistas.

[7] Entre os casos mais simbólicos está o assassinato de Berta Cáceres em Honduras, devido a sua oposição à construção da barragem de Agua Zarca. Da mesma forma, enquanto pesquisávamos por este artigo, noticiou-se o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira enquanto eles estavam em um tour pela Amazônia brasileira, supostamente nas mãos de cartéis de drogas que também controlam as redes de pesca e extração ilegal de madeira na área.

[8] A este respeito, parece importante ressaltar que os “modelos” de hegemonia imperialista podem variar de acordo com as condições. No caso da China, ela responde à sua intenção de expandir-se para áreas historicamente sujeitas a outras potências, para as quais depende de sua principal força, ou seja, o poder econômico. Dizemos isto para não “romantizar” a política externa da China como se ela fosse menos intervencionista; isto pode variar de acordo com sua disputa hegemônica com os Estados Unidos, onde o fator militar desempenhará um papel central em um certo ponto do caminho.

 [9] Para uma análise mais profunda de nossa abordagem das rebeliões populares, sugerimos a leitura de nosso ensaio Rebeliones populares y tareas estratégicas (revista SoB nº 27), particularmente a primeira parte teórica onde problematizamos o escopo e os limites desses processos.

[10] Com relação à rebelião chilena e ao processo constituinte, nos referimos ao nosso artigo Chile: entre la rebelión popular, la Convención “mutilada” y la polarización electorale, no caso da Colômbia, ao  ¿Qué pasa en Colombia?

 [11] É até possível defini-los como social-liberais, uma inversão dos fatores que denota a transformação do produto político. Isto é muito evidente no projeto atualmente encarnado por Lula que, como parte da construção de uma ampla frente contra Bolsonaro, girou à direita e incluiu políticos burgueses tradicionais em sua chapa, como seu candidato a vice-presidente Geraldo Alckmin.

[12] Embora houvesse diferenças marcantes entre os dois. Chávez encarnou um projeto nacionalista burguês, enquanto Lula era um governo social-liberal com amplos planos assistencialistas.

Traduzido por José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/apuntes-sobre-la-situacion-en-america-latina/

 

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