Um mundo em crise

Editorial da revista Socialismo ou Barbárie Nº 32/33

 

ROBERTO SÁENZ, Junho de 2018

INTRODUÇÃO

Apresentamos abaixo o relatório oral publicado sobre a situação mundial apresentado oportunamente na conferência internacional da Corrente Internacional Socialismo ou Barbárie de fevereiro deste ano. O texto foi retrabalhado nos meses seguintes e concluído em junho. Dedicamo-lo ao nosso jovem companheiro Alejandro Vinet, que morreu em Paris, lutando para colocar em pé a nossa corrente.

“Poderíamos dizer que Trump está tão longe do fascismo clássico quanto o Occupy Wall Street, os Indignados e Nuit Debout (Noite de Pé) são do comunismo do século passado. No entanto, eles incorporam uma polaridade social e política tão profunda quanto aquela que no passado opunha o fascismo e o comunismo” (Enzo Traverso, Las nuevas caras de la derecha, SigloXXI).

Para começar, uma questão de rigor e óbvia: o mundo é grande e a corrente é pequena. Todos os tipos de “camadas geológicas”, problemas, determinações, etc.  se manifestam, com perguntas que inevitavelmente nos escapam. Além disso, em nossas atividades diárias, em nossos grupos, somos absorvidos pelas realidades nacionais, sumamente regionais. Isso também dificulta a compreensão em sua totalidade dos problemas mundiais, gerais. Até porque nos falta a percepção direta de muitos deles. Essas percepções que são chaves na hora de fazer política revolucionária, de não “pontificar” sobre o que não sabemos.

A Argentina é um país muito exigente. E aqui está o núcleo da nossa corrente. No Brasil também há uma experiência acumulada. Mas o nosso núcleo ainda é fraco e o país imenso. Na Europa, obviamente, por causa da perda de Ale, estamos enfraquecidos mesmo no que é uma fase inicial de implementação. Na Costa Rica, o grupo está se fortalecendo. Mas a Costa Rica reflete a América Central, que é um mundo dentro de outro mundo. E Honduras é quase um mundo em si, embora intimamente ligado às características do quintal dos ianques, que é outra particularidade.

É complexo, então, fazer uma panorâmica do mundo. Muito mais com este mundo em plena transição, em plena transformação: econômica, política e geopoliticamente, o mundo está em plena mutação. É complexo, embora, claro, se tenha que fazer o esforço. Existem muitas determinações, muitas realidades, muitas problemáticas complexas de subsumir.

Vamos buscar cinco ou seis definições e também levantar questões, tópicos a estudar. Algumas dessas questões são abordadas nesta edição da revista. A ideia é propor definições e estabelecer problemas para um maior desenvolvimento posterior, fazendo o esforço de mergulhar nos problemas do mundo sem projetar, mecanicamente, nossas realidades.

A perda de Alejandro

Claro, não quero deixar de mencionar que Ale não está aqui. Nós vivemos no ano passado um duro golpe como corrente. Quero repetir aqui o que dissemos quando fizemos a homenagem no partido, que foi muito bacana, muito significativa, na porta da escola onde a Ale tinha sido líder, a Nacional Buenos Aires, uma das escolas mais importantes da Argentina. Lá dissemos que a explicação última da circunstância é que Socialismo ou Barbárie é uma corrente muito jovem, em pleno desenvolvimento, em construção, onde em muitos casos, os locais são “postos de fronteira”. Isto é, desafios difíceis. Porque temos que criar uma corrente ainda minoritária em uma situação internacional complexa.

Tens que enfrentar forças gravitacionais maiores. E então, muitos dos locais de atuação do partido e da corrente são locais de fronteira. Exigem romper com o conforto; quebrar a inércia das coisas. A construção revolucionária é sempre feita no sentido de uma ruptura com a dinâmica inercial, que, exceto quando há um aumento na luta de classes ou quando a construção do partido já foi estabelecida, significa uma multiplicidade de tendências adversas a serem enfrentadas para que o partido dê passos. Um pouco isto remete ao caráter de vanguarda da atividade revolucionária (algo que nem sempre é entendido em sua especificidade); se é de vanguarda, é porque as mediações e as pressões inerciais adversas devem ser superadas.

De passagem, como estamos neste ano comemorando o 200º aniversário do nascimento de Marx, com a proliferação de bibliografia sobre sua carreira (e a de Engels), a cada passo você pode ver as adversidades que teve que enfrentar, o caráter vanguardista de sua atividade Qualquer vanguarda no campo que seja (artístico, científico, político) deve enfrentar essa pressão inercial: ir contra a corrente, não podendo se  “acomodar”; portanto, o possibilismo é o inverso dessa circunstância.

De alguma forma esse elemento teve seu peso no caso da Ale pelas adversidades que teve que enfrentar: morreu militando, cumprindo uma tarefa e uma responsabilidade que lhe tínhamos confiado desde a corrente, sendo muito jovem. Ele era um quadro estratégico, um jovem companheiro muito capaz, politicamente bastante maduro e, em outras coisas, nem tanto, é claro. É uma enorme perda para a corrente, sofremos um golpe. Devemos absorvê-lo e seguir em frente, incorporando a Ale como parte da tradição da nossa jovem corrente.

1. Um giro dereitista persistente

Vamos agora nos voltar ao informe e às definições. O primeiro elemento é o giro para a direita que segue se verificando na situação mundial. Esta definição é duplamente importante para deixar assentado porque somos uma corrente com peso centralmente na América Latina, uma região dinâmica nas últimas décadas, e embora tenha acompanhado a curva à direita mais geral, a nossa radicação periférica talvez nos turve a vista sobre as principais tendências internacionais e nos confunda.

A primeira definição é, então, que a situação do mundo, em geral, está muito já direita. A conjuntura internacional é, pura e simplesmente, reacionária. Não há praticamente um único país no mundo onde o pêndulo político não esteja movido a direita. Revendo papéis, notas, regiões, etc. Não há uma só região do mundo que esteja à esquerda. É um facto político central, que tem uma soma de elementos e que não se pode deixar de considerar na formulação de políticas.

Vejamos geograficamente a coisa, a partir do norte do mundo e somando: Trump nos EE.UU., cujo gabinete representa uma ideologia ultraconservadora que não se via na Casa Branca desde a presidência de William Harding em 1920. Está Xi Jinping na China, com sua marca cada vez mais autoritária e de culto à personalidade. Shinzo Abe no Japão é um governo ultranacionalista nacional imperialista: o Partido Liberal Democrata, clássico partido dominante no Japão desde a guerra, ganhou as últimas eleições presidenciais de forma esmagadora e é pelo rearmamento militar do país. O governo Theresa May na Grã-Bretanha é definido por Alex Callinicos como “um dos mais reacionários, desde o século passado”, mas “também fraco e ilegítimo”, o que “não significa necessariamente que rejeita o neoliberalismo cosmopolita”, mas “visa dar à ideologia dominante um perfil mais nacionalista, autoritário e economicamente intervencionista “. Na Rússia, Putin foi reeleito pela terceira vez; temos o governo de extrema-direita, nacionalista e racista de Modi na Índia; Erdogan na Turquia, etc. O que se vê são governos de direita nos principais países. É muito difícil encontrar um contrapeso à esse giro global de direita. Se olharmos para o mapa-mundi, se vê tudo muito à direita.

Sobre o caráter de um governo como o de Trump, vamos ver uma segunda definição: “Ainda que Trump defenda uma política de extrema-direita (…), hoje ela não é fascista. Por quê? Em primeiro lugar, Trump, embora tenha ridicularizado os militantes do Partido Republicano, não se elevou acima deles ou da classe política; isto é, ele não é uma figura bonapartista, independente do sistema político existente. Em segundo lugar, não há partido fascista por trás dele. O demagogo populista conseguiu mobilizar eleitores brancos que buscam melhorar sua situação econômica e se sentem ameaçados por imigrantes estrangeiros que competem por empregos e colocam em risco seu status “(“O monstro está instalado na Casa Branca, as pessoas protestam “, Dan La Botz).

Indo do norte imperialista para a América Latina, lembremos que, desde a década de 2000, nas discussões sobre a situação mundial, a América Latina era a região do contrapeso mundial. Pelas revoltas populares do começo do século XXI, estava à esquerda. No resto do mundo, a situação era ruim; mas na América Latina não.

Uma periodização muito breve poderia marcar os anos 90 como de ofensiva neoliberal generalizada na região, a primeira década dos anos 2000 como de rebelião popular e desde meados da década atual, como uma acelerada reversão direitista do ciclo anterior, mas sem terminar de estabilizar. A região teve seus altos e baixos, mas é evidente que desde 2015, como um todo, com o triunfo de Macri na Argentina (outubro de 2015), com o “golpe parlamentar” no Brasil (abril / julho de 2016), com a crise quase-terminal do chavismo,  sofreu um claro revés: uma forte virada à direita.

E, no entanto, a América Latina, em todo caso, mantém um conjunto de atribuições positivas. A região é caracterizada, em termos gerais, por conflito de classes. Não está misturado com conflitos religiosos, por exemplo, o que complica outras regiões, os países do Oriente Médio em primeiro lugar, sem desconsiderar o imenso movimento de mulheres ou de minorias sexuais, as reivindicações de grupos originários e até mesmo o problema do negro no Brasil, etc. Mas acreditamos que se entende que, em todo caso, estas são questões mais diretamente políticas, não misturadas com a religião como ocorre em outras regiões.

Além disso, suas relações de forças não estão resolvidas, como pode ser visto no encerramento da publicação desta revista, na crise geral do governo de Macri na Argentina, fortemente ferido desde os dias de dezembro de 2017 e dos quais não terminou de se recuperar; pelo contrário, o oposto acontece.

Mesmo no Brasil, onde Michel Temer conseguiu impor parte de seu programa reacionário, as coisas não parecem de modo algum estabilizadas; a greve de caminhoneiros abalou o governo e as eleições presidenciais estão chegando em meio a uma fragmentação política sem precedentes, embora nada disso deva nos levar a perder de vista o assassinato de Marielle, a intervenção militar do Rio de Janeiro, a prisão de Lula e a ascensão eleitoral de Jair Bolsonaro, todos elementos à direita, sem dúvida.

Enzo Traverso salienta que, após as derrotas das revoluções do século XX, a religião foi mais uma vez uma dimensão fundamental da política em muitas regiões (uma dimensão substituta da crise das alternativas deixadas pelo século). Define o ciclo atual como um período sem utopias, o que é importante porque enfatizamos que a “dimensão utópica” coloca a aspiração de lutar por uma alternativa. A atual proliferação de filmes distópicos seria um dos reflexos do que estamos apontando.

Em todo caso, mesmo em meio ao desenvolvimento de fenômenos “bipolares”, que veremos no próximo ponto, a América Latina vive uma abordagem conservadora (ver o recente triunfo de Iván Duque na Colômbia). Mais do que o mundo se acoplar com a região, a região está se acoplando ao mundo, o que não deixa de ser lógico, dado o peso gravitacional diverso de ambas as “entidades”. Esta é uma mudança muito importante: a América Latina deixou de cumprir esse papel de contrapeso que manteve por muitos anos; pelo menos no imediato.

Voltando ao mundo, se formos ao mundo árabe, a situação é horrível. O único contrapeso é um pouco a Tunísia, que sofreu uma rebelião popular em 2011, seguida por eleições bastante democráticas em 2011 e 2014, o que marca a diferença com a virada autoritária e ditatorial do restante das primaveras árabes (exceto o muito lento degelo cultural na Arábia Saudita e agora a rebelião jordaniana). Mas a situação geral é muito ruim, muito degradada, uma degradação contrarrevolucionária das primaveras árabes. Aqui tudo é muito complicado por causa do fenômeno religioso. Mesmo assim, há contra tendências, como a luta do povo curdo, a regressão do ISIS (que requer uma abordagem específica que não podemos fazer aqui) e assim por diante.

Não nos esquecemos da Turquia, que também girou à direita (ou para a extrema direita) com o endurecimento do regime de Erdogan. A anos-luz parecem ter acontecido as revoltas populares que caracterizaram o Egito, a Síria e outros países no início da década atual.

Se do Oriente Próximo vamos para outra região centro de eventos de alcance histórico-universal hoje, mas começando de longe, como o Sudeste Asiático, Ásia-Pacífico, é exatamente o mesmo: tudo está à direita, sendo a Coréia do Sul, de certa forma, um contraponto de importância. A Coréia do Sul é um caso para estudo, especialmente agora que as negociações de paz entre o norte e o sul estão em andamento. Seu atual presidente, Moon Jae-in, foi eleito em 9 de maio do ano passado com 41% dos votos contra 24% do conservador Hong Joon-pyo, após uma grande revolta democrática conhecida como o “Movimento das velas”. “(2016/7) contra a presidente de direita Park Geun-hye, por escândalos de corrupção.

Ainda que não tenha obtido uma maioria nas câmaras legislativas, a eleição representou uma séria derrota eleitoral para a direita militarista e o regime anterior; inclusive, de certa forma, um tapa em Trump. A opinião sul-coreana é amplamente favorável à retomada do diálogo com a Coréia do Norte e se opõe a qualquer “solução militar” (Rousset).

Indo da Coréia do Sul para Hong Kong, e baseado em textos recentes de Au Loong-Yu, atualmente um dos principais estudiosos marxistas da região, se destaca o paradoxo  de que a “Rebelião dos Guarda-chuvas” (2014), um movimento juvenil-democrático contra as imposições do governo de Pequim, tem sido capitalizado pelas correntes anti-chinesas, de extrema-direita nativista. Parece loucura, mas os movimentos nacionalistas nesta região, tanto à direita quanto à esquerda, têm uma longa tradição, tanto em sentido progressivo quanto reacionário. Na China e em ambas as Coréias, há uma sensibilidade à flor da pele contra o Japão por conta de seus horrendos crimes durante a Segunda Guerra Mundial.

As correntes de extrema-direita de Hong Kong são muito fortes, o que, neste caso, significa a capitalização de direita de um sentimento justo de autodeterminação política. Há um problema sério em Hong Kong: a esquerda está identificada com o maoísmo e mergulhada em uma enorme perda de prestígio. Au Loong Yu conta que nos anos 60 o maoísmo era uma potência entre os jovens de Hong Kong. Hoje a situação é radicalmente diferente: “Foi a extrema direita nacionalista que capitalizou o 'Movimento dos Guarda-chuvas' (…). O problema é que em Hong Kong não há partidos de esquerda, e todos os partidos “pandemocráticos” são de centro-direita. Como resultado, o chamado “regime liberal” em Hong Kong gerou uma mentalidade muito competitiva e de darwinismo social “(Entrevista com Au Loong-Yu,“No vigésimo aniversário da reunificação com a China“, 7-7-17).

Aqui podemos ver a superposição ou “choque” de temporalidades (um assunto ao qual retornaremos no final deste documento), no sentido de uma temporalidade universal de certo questionamento ao capitalismo desde a crise de 2008 que se sobrepõe ou colide com outra temporalidade proveniente da queda de estados burocráticos não-capitalistas, fenômeno que, evidentemente, gera todo o outro tipo de reflexos na consciência

Vamos para a Europa agora. No nível governamental, é menos dramático, é claro, que Macron tenha se imposto na França e não a NF de Marie Le Pen. Na Alemanha, em comparação com a extrema direita, Merkel (reeleita para um quarto mandato, mais fraca do que os três anteriores por seu desempenho eleitoral desanimador), parece “centrista”. Na área econômica, a Alemanha exporta 60% de sua produção, uma questão que explica sua profissão de fé globalista e neoliberal (sem perder de vista o alto grau de produtividade de sua economia). Outra explicação do atual confronto com o giro nacionalista/protecionista de Trump, que veremos mais abaixo.

A extrema direita alemã, no entanto, fez sua melhor eleição desde o período pós-guerra, alcançando 13% dos votos e entrando pela primeira vez desde os anos 1930 no Bundestag (parlamento alemão): “Para a maioria dos alemães – incluindo aos trabalhadores – manter a Alemanha em uma posição privilegiada dentro da competição internacional é a única maneira de não compartilhar o destino dos países do sul da Europa “(Angela Klein,”Depois da eleição alemã“). O que mostra, em todo caso, os impulsos conservadores da maioria do eleitorado alemão. E o mesmo aconteceu na França com o FN: 7,5 milhões de votos no primeiro turno e 10 milhões no segundo turno, cifras históricas (você pode ler uma análise detalhada das eleições na França em “Interview: The meaning of Macron“, International Socialism 155).

Existem nuances, claro. Mas o pêndulo político está entre o centro e a direita e, até mesmo, a extrema direita, quando há alguns anos se podia dizer que havia certa irrupção do centro-esquerda, o novo reformismo, hoje em crise aberta, situação da qual há que excluir os casos da Espanha (Podemos ainda é uma força em ascensão) e Portugal (o Bloco de Esquerda tem uma forte presença política no país). Mas, como um todo, a traição do Syriza ainda pesa. Entre as expectativas que gerou e a ignominiosa capitulação em que terminou, a lacuna é dramática.

Estamos, portanto, diante de uma conjuntura internacional reacionária bastante longa; não se vê quando terminará. A traição do Syriza ocorreu em meados de 2015. O Brexit venceu em junho de 2016. Trump tornou-se presidente no final de 2016. Erdogan fortaleceu-se na Turquia após uma insurreição cívico-militar fracassada. Houve atentados ultrarreacionários do ISIS nos países centrais da Europa imperialista, como a França, etc.

É uma série de eventos que acabaram mudando a dinâmica geral, colocando o processo de rebelião popular na defensiva. Mas, atenção, sem fechá-lo, o que seria um erro: até a conjuntura atual dá exemplos – ainda que cheios de contradições – de sua permanência, como Nicarágua, Irã, Jordânia e uma longa lista de processos onde reapareceram as características de rebelião popular. Voltaremos a isso.

O primeiro elemento é, então, o seguinte: o giro à direita da conjuntura mundial, com uma série de consequências e desdobramentos que remetem à dificuldade que ainda está presente de superar as modificações e alterações estruturais do final do século passado; entre eles, a crise da alternativa socialista. Refere-se a questões fundamentais que são difíceis de superar e que propõem elementos de longa temporalidade na atual situação mundial presentes desde a queda do Muro de Berlim.

Há uma ruptura na continuidade da experiência entre diferentes gerações. Surgem os problemas complexos de uma refundação de um novo movimento de trabalhadores e massas, que se expressa em um conjunto de acontecimentos incipientes, mas que ainda custa que cristalizem em um avanço conjunto.

Não é fácil refundar, relançar, recomeçar. As dores do parto dessa reafirmação da experiência histórica dos explorados e oprimidos se prolongam. As gerações se modificaram; a continuidade com a experiência histórica anterior foi quebrada. Há toda uma série de elementos que estão do lado “ruim” das coisas, como na “má infinitude” de Hegel. A vida cotidiana das massas foi despolitizada.

Esses elementos combinam aspectos da conjuntura com questões inerciais e dificuldades mais profundas. Essa definição se poderia trabalhar muito mais. É um problema que tem várias determinações e sobre o qual vimos trabalhando. Ela pode ser tratada regionalmente ou pode ser tomada do ponto de vista da experiência das gerações, como fizemos em “A tarefa de resgate da revolução. Século 20 e dialética histórica “. A primeira definição é, então, o giro à direita da situação mundial.

2. Bipolaridade política e social

O segundo aspecto da realidade mundial (e no sentido contrário ao anterior) é um elemento que se perde para a maioria dos analistas, uma “categoria” que funciona em vários autores: os elementos “bipolares” da realidade, ou “comportamento bipolar” (enquanto contrapontos do giro a direita). Claro que não na acepção psicanalítica de comportamentos que passam rapidamente da euforia para a depressão, mas sim para explicar a (potencial) contra tendência que coloca a luta de classes. Ou seja, um conjunto de tendências que transbordam a direita e que podem tender, pela lógica das coisas, a ricochetear à esquerda.

Esse conceito aparece em autores como Pierre Rousset (que acompanha a situação mundial no mandelismo), no economista marxista inglês Michael Roberts, quando destaca o comportamento “bipolar” da economia internacional (neste caso, em referência ao conceito psicanalítico, o curto caminho que atualmente medeia na economia internacional entre euforia e depressão); no filósofo e militante grego Stathis Kouvelakis, que enfatiza que “a tendência dominante é a polarização”[1] , e em Alex Callinicos, entre muitos outros, que enfatiza que a crise da ordem neoliberal está fazendo a esquerda radical e a direita radical crescerem , antirracismo e racismo, progresso e reação (“Corbyn justified, May humbled and the left advances“).

Nossa corrente vem enfatizando há muito tempo essa tendência à polarização dos negócios; uma tendência a ser proeminente e tão decisiva quanto o giro à direita, porque não nos deixa cegos para o conjunto de tendências em que atuamos, especialmente porque se trata daqueles que podem ser pontos de apoio para nossa ação.

Esses fenômenos de polarização se expressam em todo o mundo. Giro reacionário e giro à direita, sim, mas também expressões à esquerda de questionamento bipolar; o desenvolvimento dos dois pólos, a tendência a diluir o centro político e transbordar pela direita e esquerda. Como para entender a “necessidade” de ambas as determinações, poderíamos fazer uma analogia com a economia política: “As categorias bipolares da relação mercantil, dinheiro e mercadoria não podem existir umas sem as outras, de modo que há uma contemporaneidade lógica” (Artous, Tran Hai Hac, González, Salama 2016: 62)

Por que adotamos essa definição de “bipolaridade”? Porque é muito difícil conceber a ação sem reação. O giro à direita gera um “bipolo” para a esquerda: “Em uma parte do mundo, a violência dos ataques provoca, às vezes, demonstrações espetaculares (…). A 'direitização' dos governos suscita também o surgimento de processos políticos à esquerda (…) e, nessa medida, podemos falar de bipolarização reacionária e progressiva, embora seja necessário especificar que se trata de uma bipolarização muito desigual. Theresa May está no governo, Jeremy Corbyn não”(Rousset, 3-3-17).

Um Trump misógino e ultrarreacionário gera o mais importante movimento de mulheres nos Estados Unidos em décadas (embora assumido pelos democratas e ainda não radicalizado). Mesmo com expressões em Hollywood, no movimento #Me Too, etecetera; gera uma resposta pela esquerda. E há também um novo fenômeno de “radicalização socialista” (algo não menor para os EUA) em camadas da juventude, expressas no crescimento dos DSA (os Social Democratas da América); a politização de toda uma juventude, como  desenvolve outro texto desta edição.

Este “bipolo” se expressa em todos os lugares. Em (quase) todas as circunstâncias de giro para a direita, há elementos de resposta bipolar que devemos saber apreciar. Mesmo no terreno mais subjetivo, o bipolo encoraja as novas gerações a entrar na vida política: “Não posso ficar em casa, tenho que me comprometer”, “Esses caras são monstros: há que se organizar.” Há muita coisa que vai para o pólo reacionário (que é o dominante). Mas outra parte vai para o bipolo: para o elemento polar à esquerda.

Existem todos os tipos de movimentos sociopolíticos progressistas que, embora na atual situação mundial estejam na defensiva, são extremamente importantes. Por exemplo, na Espanha, um bipolo claro é a Catalunha, um processo de cidadãos em massa, com uma liderança burguesa, não muito radicalizada, mas que tem significado o questionamento mais importante desde a queda do regime de Franco para o Estado espanhol, algo nada menor.

As coisas são dinâmicas. Quando no referendum de outubro passado a polícia de Madri agarrou os cabelos de mulheres e homens de idade que queriam votar, isso radicalizou as coisas (até certo ponto, é claro): surgiram os “Comitês de Defesa do Referendum” (CDR), um fenômeno importante, embora incipiente, de auto-organização do cidadão.

O giro à direita produz uma resposta bipolar que radicaliza todo um setor que entra na vida política, fator que não pode ser perdido de vista. Um elemento chave que, por exemplo, se perde nos documentos do mandelismo, onde o pólo reacionário é identificado, mas o elemento bipolar desaparece. Um exemplo é “Globalização capitalista, imperialismos, caos geopolítico e suas implicações“, um documento votado no recente congresso mundial da IV International mandelista. O mesmo Pierre Rousset, analista sério, tende a perder esse registro.

O mandelismo é uma corrente que passou, mecanicamente, do otimismo objetivista de Mandel ao atual ceticismo histórico: tudo estaria na mesma linha adversa desde a queda do Muro, 30 anos atrás; não haveria mediação, nenhuma contra tendência, nenhum acúmulo de experiências. Daniel Bensaïd criticou Mandel por suas características objetivistas. No entanto, dá a impressão de que, por outro lado, ele caiu em posições extremamente céticas: “Daniel aprendeu muito com Mandel (…). Às vezes, ele zombava do aspecto estendido, filatélico e pequeno-burguês de Mandel e sua tendência a cair em monólogos e afirmações irrefutáveis e otimistas “(” Daniel Bensaïd 1946/2010 “, Sebastian Budgen, Viento Sur, 28-1-18).

Só assim pode se entender que chegue ao extremo de definir a situação atual como “contrarevolucionária”: “Entramos em uma nova era. No meu relatório, falei de um período contrarrevolucionário, que gerou muitas reticências ou incompreensões. Por que usar a palavra “período”, que parece muito “longa”, pouco “clara”? (…) Contrarrevolucionário não significa que a contrarrevolução tenha vencido, mas é com isso que somos confrontados, seja abertamente como em grande parte do mundo muçulmano, ou mais sibilinamente, como muitas vezes no Ocidente “(Rousset 3-3-17).

Sibila ou abertamente, essa definição é um exagero para qualquer região que não seja o mundo árabe. Um processo contrarrevolucionário significa regimes fascistas, repressões em massa, assassinatos, expurgos, sangue a granel; algo que foi vivido nos anos 30 do século passado. Parece extremamente desproporcional colocar tal definição para a situação atual. Vivemos um período reacionário, não contrarrevolucionário.

O congresso mundial de mandelismo apresentou divididos os relatórios e resoluções sobre análise mundial, em relação ao que os camaradas chamam de “documento de resistência” e as diretrizes para a construção. Ao dividir o conjunto desta forma, todo o “pacote” era muito unilateral. De resto, abaixo, criticaremos a errônea reafirmação construtiva dos “amplos partidos” sem delimitação estratégica entre reforma e revolução, uma definição equivocada que confunde não apenas a maioria dos membros dessa corrente, mas também aqueles convidados aos eventos de “a Quarta”.

Embora tente limitar seu escopo (“algo contra ao qual somos confrontados”), a definição de Rousset inevitavelmente deixa a impressão de um processo resolvido; relações de classe e políticas já estabelecidas. Parece-nos um unilateralismo sério e uma apreciação impressionista dos acontecimentos que, sendo complexos, são completamente unilateralizados.

Esse elemento do pólo e do “bipolo”, do giro à direita e da polarização de direita e de esquerda, deve ser bem tratado, sem se confundir nem para um lado nem para o outro, tanto porque a conjuntura mundial se ordena a direita (e a partir daí a política começa!), bem como o ponto de apoio para a ação que significa. Reiteramos que é um fato que se encontra em muitas sociedades e está presente na situação como um elemento real e um fenômeno mundial.

Rousset ressalta, por exemplo, o caso do Japão, onde a resistência à remilitarização do país permanece ampla, apesar do lançamento de mísseis norte-coreanos que estão afundando ao longo das costas do arquipélago (agora suspensos pelas relações de Kim. com Trump), e da insistente propaganda da direita radical. Isso ocorre tanto no arquipélago, onde mais de 40.000 membros das forças armadas ianques estão estacionados, e especialmente em Okinawa, onde a oposição às bases dos EUA continua sendo forte.

Sem perder de vista o giro direitista, trata-se de apreciar as contra tendências. Um fator que tem expressões sociais, políticas e de todos os tipos: o movimento de mulheres, o surgimento da juventude, a Catalunha, os dias de dezembro na Argentina, os estudantes e setores populares na Nicarágua; em nível eleitoral, Corbyn, Sanders, a esquerda argentina, a campanha Boulos no Brasil e assim por diante. Há um conjunto de “situações bipolares” com relações de força não resolvidas: Brasil, Argentina, França, entre outras, que poderiam significar a reafirmação do curso de direita ou o rebote para a esquerda. Assim, essas situações têm um certo grau de incerteza ou de transição.

Na França, por exemplo, existem elementos desse tipo. Há uma grande tradição de luta, expressa pela luta contra a lei de El Khomri, que agora retorna em relação aos trabalhadores ferroviários e aos estudantes (com ares de uma unidade operário-estudantil). É uma tradição que persiste e se resignifica neste 50º aniversário de Maio. Precisamente, a França é um país caracterizado por uma enorme continuidade de sua tradição revolucionária; um contraponto ao que acontece no mundo e uma característica que também atravessa a Argentina, com um acúmulo de experiências desde o Argentinazo até os dias atuais. Experiência que Macri chegou a tentar quebrar mas, até agora, sem sucesso (outro contraponto ao atual mandelismo, que nega qualquer acúmulo de experiências).

Ambos os países estão em um escalão mais elevado em termos de dinamismo e tradições políticas; isso explica a posição privilegiada da esquerda revolucionária na Argentina (a FIT e o Novo MAS), uma circunstância que, devido à enorme tradição que o trotskismo tem na França, não tem uma explicação “objetiva” de por que não é dada também no país gaulês. A explicação está, antes, nos fatores subjetivos ligados à desorientação das correntes revolucionárias e aos elementos do liquidacionismo ou imobilidade que caracterizam, infelizmente, as principais formações do trotskismo na França, o NPA e a LO. Por outro lado, são formações com um valioso acúmulo de elementos cuja evolução terá que seguir.

Continuando com a França, a resultante política (e político eleitoral) do processo de luta contra Hollande acabou sendo Macron, que se apresentou como um “centrista” (um dos poucos exemplos do centro ainda “bem-sucedido”). Isso não elimina o perigo real que significa o Front National, que chegou à segunda rodada pela segunda vez na história; uma eleição de impacto e magnitude, superando tetos anteriores (embora ainda longe de poder prevalecer), com 34%, 10 milhões de votos. A FN é expressão de processos profundos na França, e que poderia se projetar muito mais, dependendo das circunstâncias, e que é parte dos novos fenômenos de direita em desenvolvimento internacionalmente. Faz anos que se enraizou eleitoralmente em grandes setores das classes médias empobrecidas e até mesmo entre trabalhadores de ambos os sexos e jovens. Um fenômeno que tem a ver com a forma como a Frente Nacional veio a substituir o Partido Comunista como uma referência política entre setores dos trabalhadores (expressão muito séria da crise da alternativa socialista).

Em quase todas as sociedades, verificamos essa dupla determinação do giro à direita e da bipolaridade. A política começa com o giro à direita, mas devemos responder em todas as regiões a essa dupla determinação entre as tendências reacionárias dominantes e as contra tendências bipolares.

Isso não significa perder de vista as enormes dificuldades envolvidas na situação mundial. Porque no polo mais dificultoso, o da inércia, está a classe trabalhadora. E no pólo dinâmico está a juventude, o movimento das mulheres, as novas gerações militantes. Um fenômeno contraditório porque, socialmente, eles têm um peso obviamente diferente. E esse atraso geral da classe trabalhadora em intervir como classe nas questões faz o giro à direita persistente que se vive, às características mais gerais do período.

Pode-se mover com este “esquema geral” para entender os acontecimentos; partir da dupla determinação das questões para verificar as circunstâncias.

3. As bases materiais da polarização

Vamos agora nos voltar para o terceiro elemento de análise: as raízes materiais da situação mundial de polarização (uma situação que hoje se expressa pela direita, mas que o amanhã poderia ser feito pela esquerda). Que razões estruturais existem para um mundo onde o signo é a instabilidade? É um mundo onde se afirma a tendência ao descontentamento, à crise e não à parcimônia. Quais são as bases do que se expressa politicamente como um giro à direita e a polarização e como uma crise crescente entre os estados?

Veremos a seguir, resumidamente, quatro questões desenvolvidas de forma vasta nesta edição de nossa revista.

3.1 Uma crise econômica que não termina

A economia mundial combina problemas sérios. É consensual que a burguesia tenha alcançado um  progresso estrutural nos últimos 40 anos em relação às classes exploradas. Uma tripla ofensiva sobre as relações de exploração direta, a restauração capitalista no terço do globo que não era e uma  subordinação maior das nações dependentes. Ninguém discute isso. É por isso que é difícil explicar a razão (as razões) para a desaceleração persistente na economia mundial e as dificuldades para uma recuperação estrutural, e não conjuntural (as conjunturas vêm e vão, neste momento as previsões favoráveis do FMI parecem estar se ofuscando). O grande mistério é, em todo caso, porque, se tais avanços foram alcançados sobre as massas exploradas e oprimidas, a economia mundial não está bem.

Faz 40 anos que o capitalismo vem avançando nas relações de exploração e alcançando conquistas. Surgiu uma nova classe trabalhadora, mas que em questões de consciência e organização parte muito mais atrás. E, no entanto, a economia mundial parece ter alcançado uma nova crise estrutural; o que temos chamado em outros textos o esgotamento do impulso ascendente da globalização.

Em abril passado, o FMI anunciou um crescimento global de 3,9% para este ano e para o próximo. No entanto, o próprio Fundo esclarece que, até 2020, a situação econômica mundial se deteriorará novamente (“Perspectivas da Economia Mundial”, abril de 2018). A previsão de crescimento parece cumprir-se nos EUA, onde se mostra sólida (por exemplo, os números de emprego estariam em recordes históricos). Daí o persistente aumento nas taxas de juros, que está introduzindo pressões à crise nas economias emergentes (Michael Roberts já está questionando se uma “nova crise da dívida” está se aproximando). O aumento das taxas nos EUA está levando a uma valorização do dólar e a uma desvalorização de outras moedas (especialmente as do mundo emergente), bem como a um retorno de capital para o centro do mundo, que afeta países como Argentina, mas também a outros mais sólidos, como o Brasil.

Para além das previsões do FMI, as dúvidas crescem em relação à UE, ao Japão e à própria China. Eis aqui um mix de problemas econômicos, políticos e geopolíticos: a escalada dos preços do petróleo, as medidas protecionistas que Trump está tomando, as novas restrições de crédito na China, a saída dos EUA do acordo com o Irã, a suposição do novo governo eurocético. na Itália, etc. O consenso globalista prevalecente até pouco tempo atrás parece estar sendo feito em pedaços. Voltaremos sobre isso.

A “recuperação” não resolveu nenhum dos problemas estruturais que prejudicam a economia mundial: o fraco crescimento da produtividade, o investimento produtivo, a baixa recuperação da taxa de lucro, a financeirização econômica, a dificuldade em encontrar ramos de ponta. que levem adiante a economia do grupo, etecetera.

A combinação de baixa produtividade e um fraco crescimento do investimento produtivo não augura nada de bom para o aumento do crescimento ou mesmo para a sustentabilidade do atual crescimento baixo: “Como Gavyn Davies resume: 'É apenas mais um falso amanhecer? 'Ele ressalta que “há poucos sinais de recuperação do lado da oferta e algumas evidências de excesso de riscos nos mercados de ativos' (isto é, o crescimento excessivo dos preços das ações). Por isso, alguns economistas sugerem que a economia global pode ser 'bipolar', com um aumento do risco de que o atual período de crescimento da atividade empresarial possa ser afetado por um súbito aumento da aversão ao risco nos mercados. de ativos. Assim, 'um choque de risco relativamente pequeno, por exemplo, geopolítico, poderia levar a uma correção acentuada nos preços dos ativos, e isso poderia parar a recuperação econômica global no seco'” (Roberts).

Como é essa dialética entre a “recuperação” e a crise estrutural na economia mundial? Há uma série de problemas que prejudicam o crescimento: “Sob o capitalismo, até que a rentabilidade não se recupere o suficiente e a dívida seja reduzida (e ambos andam de mãos dadas), os benefícios de produtividade das novas tecnologias '(…), robôs, IA, impressão 3D,' big data ', etc., não permitirão uma reativação sustentada do crescimento da produtividade e, portanto, do PIB real“(idem).

Trata-se de toda uma série de questões que a nossa corrente vem abordando e que se referem às dificuldades para um novo ciclo de crescimento da economia mundial; para um relançamento da acumulação (ver o trabalho de M. Yunes nesta edição, bem como nossas “Perspectivas del capitalismo a comienzos del siglo XXI” e “El debate sobre la dinámica histórica del capitalismo”).

Como digressão, enfatizamos que no campo econômico também se verificam as longas temporalidades que caracterizam a situação mundial, ampliada em vários planos: econômico, político, geopolítico, no que faz a falta de um “horizonte de expectativas” dos explorados e oprimidos. Essas tendências um tanto profundas devem estar expressando: a “cronicidade” de uma série de acontecimentos, a fluidez de uma situação globalmente não resolvida, uma transformação do mundo em pleno desenvolvimento e que não decanta.

Uma dessas “longas temporalidades” é o alcance da crise de 2008, que ainda não foi superada desde a 10 anos; uma crise histórica (como definimos na época), expressa na terceira depressão econômica da história do capitalismo moderno. Uma longa depressão mais parecida com a do final do século XIX, do que com a depressão catastrófica de 1929 (como para ter um parâmetro, as taxas de queda do PIB mundial durante a crise de 2008 atingiram algo em torno de 5%, durante a Grande Depressão, 30%), mas que não para de multiplicar seus efeitos, incluídas as tendências protecionistas.

Vivemos em um longo período de crescimento fraco que se reverte em uma depressão persistente e não catastrófica, mas muito real. Porque a economia mundial, com exceção da China, que ainda é uma grande história de sucesso (voltaremos a isso), não termina de se recuperar. Essa é a base econômica do atual cenário de polarização. E se combina com outro fenômeno socioeconômico, o grau de desigualdade, que é monstruoso. Essa desigualdade, estatisticamente, aparece como um retorno ao século XIX; um dos “alertas estruturais” que pesam sobre a situação mundial (e sobre os quais falaremos mais abaixo).

Parte disso é o desemprego global dos jovens, que após a crise de 2008 atingiu o nível de 24%. Em 2012, a Grécia e a Espanha estavam com 55% de desemprego juvenil; Irlanda, França e zona do euro em torno de 25%; Estados Unidos e Canadá, em 15%, e apenas a Alemanha teve taxas abaixo de 10% (sem esquecer aqui a epidemia de “minijobs” que cobre o país alemão há anos); tudo isso sem esquecer que em países como a Polônia e a Espanha, mais de 70% dos jovens adultos têm empregos precários (Roberts).

Isso não diminui em nada a importância estratégica do proletariado universal que supôs a fase globalizante; a classe trabalhadora mais materialmente poderosa que o capitalismo já conheceu, para além da fragmentação e heterogeneidade que também caracteriza essa nova classe trabalhadora (além de seu atraso em termos de consciência e organização).

Novos centros de acumulação se estabeleceram, e neles, as potencialidades objetivas do proletariado são imensas: “A indústria automotiva vem se movendo para o leste: com exceção do México, Argentina e Brasil, o maior desenvolvimento ocorreu em áreas como a Europa Oriental, Turquia, Irã, Paquistão, Índia e China. Nestes casos, as linhas de produção e as qualificações são as mesmas dos países de industrialização antiga, mas os direitos sociais e a legislação trabalhista não são os mesmos (…). Mais ainda: podemos observar situações de semiescravidão, especialmente entre trabalhadores migrantes, e fábricas “clandestinas” que escapam a toda legislação”(“Social upheavals, fightbacks and alternatives”). Por outro lado, corresponde adicionar um fato importante: na maioria das novas áreas produtivas do mundo há ganhos reais de salários entre os trabalhadores, algo que é especialmente verdadeiro na China.

A economia mundial levanta uma série de temas que, em suma, se referem a uma dinâmica histórica do capitalismo com um prognóstico reservado, em que um elemento fundamental é a já mencionada “crise do globalismo”. Como aponta um analista marxista: “Há sinais de que a corrida nas últimas décadas à expansão das cadeias de suprimento e à terceirização da produção em todo o mundo diminuiu e, em alguns casos, se inverteu. Algumas grandes empresas, como a US têxtil American Apparel e a espanhola Zara, concentraram-se em centros de produção locais, em vez de cadeias de suprimentos globais, um modelo que agora estão abraçando outros como IBM em computadores e Caterpillar máquinas agrícolas (…) . Tudo indica que a globalização já superou seu momento sob o sol. Mas se este é o caso, quão sustentável é a tendência de se afastar da globalização? “(Martin Upchurch,”Is globalisation finished?”).

Seria o fim do que alguns chamam de “janela de oportunidade” que significou a queda de estados burocráticos não-capitalistas, há 30 anos; o esgotamento das tendências expansionistas da globalização (a extenuação do que viemos a chamar de “momento Rosa Luxemburgo”) e os perigos crescentes de fragmentação do mercado global: “O específico do momento atual, no entanto, é que este impulso para cima parece estar se esgotando, atingindo o limite de seu potencial. Como explicar, se não, a mediocridade do que está acontecendo nas principais economias do centro imperialista? É verdade que EEUU resultou ser o país mais avançado que melhor se recuperou depois da crise. Mas dúvidas sobre a dinâmica da economia norte-americana persistem, e ninguém acredita ter resolvido seus problemas estruturais, como o empobrecimento nas condições de acumulação de longo prazo, um fenômeno que seria inexplicável sem Donald Trump “(R. Sáenz: “Marx, Trotsky e Mandel o debate sobre a dinâmica histórica do capitalismo.” Socialismo o Barbarie 30/31).

Nesse sentido, um dos fenômenos visíveis é a estagnação do comércio mundial, um fator dinâmico do capitalismo desde o segundo período pós-guerra; essa perda de dinamismo dá base material aos impulsos protecionistas que estão se tornando recorrentes. Trump está introduzindo as primeiras medidas protecionistas em relação ao aço, ao alumínio e aos ramos tecnológicos que, no final, buscam contrabalançar os desequilíbrios comerciais com as duas grandes nações superavitárias: China e Alemanha. No entanto, ainda está longe dos números da década de 1930: um aumento geral das tarifas que, segundo a Callinicos, as levou a 45% (Lei Smoot-Hawley). Isso não significa que as medidas de Trump não estejam tendo efeitos não previstos inclusive para os EUA: a Harley Davidson acaba de anunciar que tirará parte de sua produção do país para poder continuar vendendo na Europa.

O capitalismo funciona e domina, mas sua dinâmica envolve sérios elementos de crise. Este é o fundamento material da instabilidade global.

3.2 Uma tendência crescente à conflitividade geopolítica

Um segundo elemento de polarização é a tendência à ruptura o equilíbrio entre Estados, fato que é cada vez mais confirmado. Roberto Ramírez escreveu um longo e profundo estudo sobre isso na edição anterior. É uma questão já instalada como parte da “geografia política” internacional e que significa um ponto de virada quando apenas alguns anos atrás estávamos discutindo com os intelectuais marxistas que afirmavam que os conflitos entre Estados eram “uma coisa do passado” porque a mundialização capitalista tornou-os “impossíveis”.

Se tratava de uma abordagem unilateral que perdeu de vista o fato de que a globalização não havia resolvido o problema da subsistência dos Estados nacionais; em primeiro lugar, dos estados imperialistas e das relações de hierarquia e subordinação que o sistema mundial de Estados implica. Em “Adam Smith, em Pequim”, Giovanni Arrighi afirmou que a ascensão da China ao pódio mundial seria pacífica; Claudio Katz também defendeu anos atrás um olhar ingênuo similar dos conflitos inter-imperialistas

Um problema complexo cujo eixo é a relação cada vez mais conflitiva entre os EUA e a China, mas que também é complicado pela intervenção da Rússia de Putin na Ucrânia e na Síria, além das crescentes contradições dos EUA com a UE em geral e a Alemanha. em particular, para falar apenas das contradições entre os potências, isto é, interimperialista, aos quais podemos acrescentar conflitos regionais como os que existem entre Irã-Turquia-Arábia Saudita, Índia-Paquistão etecetera.

Um comentário de Pierre Rousset (especialista no Sudeste Asiático) aponta que está instalado entre as massas chinesas que em algum momento pode haver “um confronto com os EUA”; dado de extrema gravidade a médio prazo. Outro fato importante é o profundo antagonismo que a população chinesa ainda sente com o Japão. Durante 8 anos (1937-45) o Império Japonês ocupou cerca de 50% da China: 7 milhões de soldados chineses e 28 milhões de civis foram mortos, algo que não deixa de alimentar as tensões geopolíticas que estão em alta na região.

Um comentário semelhante é expresso por um observador que viajou para a China continuamente nos últimos 45 anos: “O que preocupa [a população chinesa] é como continuar crescendo depois de quinze anos, onde era considerado normal crescer  10-12% ao ano Eles estão cientes de que é insustentável e não tem claro sobre como seria o país a uma taxa mais normal (…). Eles se preocupam [também] com o inevitável confronto com os EUA pela liderança mundial; algo que eles consideram inevitável dado o tamanho, os recursos e a disposição para conseguir isso, no entanto, exigirá a obtenção de matérias-primas (principalmente na África e na América Latina), aumento das Forças Armadas e pesquisa e desenvolvimento (“Celebrating 45 years of visiting China“).

A China é a maior história de sucesso da mundialização nos últimos 30 anos. Tem uma taxa de produtividade do trabalho muito menor que a dos EUA. Mas expressa um dinamismo, que embora tenha sido reduzido, permanece alto para a média mundial (seu crescimento passou de 12 para 6% ao ano). Um dinamismo que, se sustentado, teria a médio prazo a possibilidade de deslocar os EUA em termos de tamanho do PIB (algo muito mais difícil seria fazê-lo em termos de produtividade global); uma questão que alimenta a agitação geopolítica: “Por trás das tarifas está aquilo que os analistas consideram o objetivo mais amplo da Casa Branca de quebrar a estratégia chinesa chamada 'Made in China 2025', que busca que um número de empresas em setores como robótica, semicondutores, aviação e computação se tornem líderes mundias “(A. Callinicos:”Trump gets serious“).

A China consome metade do cimento e do aço do mundo. Possui o maior número de quilômetros de ferrovias e trens de alta velocidade no mundo. Tem o maior número de cidades com mais de 1 milhão de habitantes e está se aproximando rapidamente da produção automotiva dos Estados Unidos: 20 milhões de carros. Todos os seus índices são recordes, incluindo obras de infraestrutura gigantescas.

E essa história de sucesso não se verificaria apenas nas grandes cidades. Também o interior chinês está se desenvolvendo aos trancos e barrancos. Pelo menos, o interior da China costeira (a região mais cosmopolita, que inclui as cidades de Xangai, Guangzhou, Shenzhen, Hong Kong e outras), onde se pode ver rodovias ultramodernas e urbanizações sem grandes sinais de pobreza.

Para além de outras determinações, a “infraestrutura” deste dinamismo baseia-se na criação de um novo proletariado urbano-rural numeroso que trabalha sob as condições do hukou (passaporte interno ancestral a que voltaremos mais abaixo), bem como sob um regime de trabalho específico de superexploração que poderíamos chamar de “cama dentro”: os trabalhadores dormem em grandes alojamentos dentro das plantas que estão abarrotadas compartilhando até mesmo as camas (o documentário “We, the workers” é um testemunho extraordinário disso). O gigantismo dessa nova classe trabalhadora e as fábricas onde  concentra sua atividade podem ser vistas em uma das fábricas da Foxconn (fábrica de semicondutores de origem taiwanesa) que agrupa 400 mil trabalhadores sob um mesmo teto.

Existem na China várias “comunas de trabalhadores” dessa magnitude, o que diz das potencialidades estratégicas dessa nova classe trabalhadora, além de que a burocracia do PCC não é idiota e restringe permanentemente suas possibilidades de expressão independente.

Portanto, não é surpreendente que na China não exista qualquer indício de “sociedade civil” (uma sociedade com elementos independentes além do estado). Au Loong-Yo confirma isso e ressalta que na década de 1930, pleno regime fascista do Kuomintang (KMT) de Chiang Kai-shek, Chen Du Xiu, ex-fundador do PCC e depois líder trotskizante, tinha mais cobertura nos jornais do que Vencedor do Prêmio Nobel da Paz, Lui Xiaobo, que acaba de morrer em cativeiro no mais completo ostracismo.

Au Loong-Yu denuncia que seu julgamento e morte prematura tiveram menos garantias judiciais e difusão do que o caso de Chen: “Na China de hoje não há um único jornal independente. É por isso que, embora a imprensa dos anos 1930 tenha reproduzido fielmente a defesa de Chen contra o KMT, a declaração pública de Lui Xiaobo – afirmando que o PCC “não é meu inimigo” – foi censurada na China do PCC (…). O KMT deu a Chen melhor tratamento na prisão do que os maus-tratos infligidos a Lui pelo PCCh “(Au Loong-Yu:” Lui Xiabo, “um mártir, um homem de grande coragem moral” morreu, libertem Lui Xia “).

A China é hoje uma sociedade capitalista de Estado; um imperialismo em construção (Rousset) caracterizado por um conjunto de especificidades: “A principal tese de Au Loong-Yu é que a China é uma potência capitalista-burocrática, onde 'a burocracia é a classe capitalista'. Ao identificar o capitalismo burocrático como uma subespécie ou “variante” do capitalismo de estado, a tese de Au rejeita a qualificação do “socialismo de mercado” de pensadores como Giovanni Arrighi. Au argumenta que a propriedade estatal, por si só, não funciona como uma espécie de propriedade socializada; Pelo contrário, a propriedade estatal permite que a burocracia controle diretamente a apropriação da mais-valia “(“China:  Ascenso y crisis emergente“, revisão de Pierre Rousset de um livro de Au Loong-Yu).

Como digressão, digamos que a reflexão da Au também se aplica aos “estados operários” onde, na ausência do poder da classe trabalhadora, a propriedade nacionalizada per si, não garante o caráter operário do Estado. Algo que vai contra o que é afirmado, por exemplo, por Michael Roberts, que o desenvolvimento da China estaria ocorrendo de uma maneira “não capitalista” (em “Xi assume o controle total do futuro da China“, uma análise com pontos em contato com Arrighi). Esta afirmação não tem apoio na realidade e parece basear-se na ideia equivocada de que a propriedade estatal seria a mesma que a produção não capitalista.

Resumindo: uma profunda reconfiguração geopolítica está em andamento. Como apontamos acima, intelectuais como Claudio Katz escreveram anos atrás que no atual contexto globalizante as guerras interimperialistas seriam “impossíveis”. Nós não sabemos se ele ainda pensa o mesmo. O que sabemos é que uma crescente maioria de analistas está alertando sobre o aumento do conflito geopolítico: é mais difícil do que no passado descartar hoje a possibilidade de confrontos militares entre grandes potências a médio prazo.

Essa tendência crescente de aumentar os confrontos, a possibilidade de conflagrações, é a segunda base material deste cenário de polarização global, sem esquecer nesta área as tendências contraditórias entre a saída de Trump do acordo com o Irã (que imediatamente agravou as tensões geopolíticas na região e o preço do petróleo subiu), e  “distensão” na península coreana, desde que se pudesse chegar a um acordo de paz entre as duas Coréias (ver, por Pierre Rousset, “Corea y la crisis del nordeste asiático“).

Em todo caso, todas as tendências de trabalho na situação mundial indicam que, lenta mas firmemente, se vão criando as condições materiais de uma reabertura da era de contradições, crises, conflitos, guerras e revoluções. Esta é a base material das tendências crescentes de polarização.

3.3 O definhamento do centro político

Um terceiro elemento da polarização universal dos negócios é a tendência para o enfraquecimento da democracia burguesa: o definhamento do centro político. Ou seja: as tendências que minam o império pacífico, “light” e pós-moderno da democracia burguesa, muitas delas expressadas no estabelecimento recorrente de medidas do estilo “Estado de exceção”.

Isso inclui a crise do bipartidarismo, a tendência ao surgimento de três ou quatro forças políticas, a fragmentação político-eleitoral e, em termos de representação, o crescimento de formações de extrema direita que, se ainda são minoritárias, estão ganhando importância político-eleitoral.

Trata-se de dois fenômenos. O primeiro, ligado aos regimes políticos: a tendência do Poder Executivo de subjugar os elementos do tipo democrático, democrático-burguês, para impor: o “Estado de exceção (…) [é] esse momento do direito em que se suspende o direito precisamente para garantir a sua continuidade e até mesmo a sua existência”. Ou, no mesmo sentido, “a forma jurídica do que não pode ter forma legal, porque está incluída na legalidade através de sua exclusão. Sua tese básica é de que 'o estado de exceção', esse momento – que se supõe provisório – no qual a ordem jurídica está suspensa, se tornou, durante o século XX, uma forma permanente e paradigmática de governo ”(Agamben 2014 : 7-8).

Embora o impeachment (julgamento político) apareça em todas as constituições, quando é usado como uma ferramenta para derrubar governos mais ou menos “populares” a partir de manobras palaciano-parlamentares, como no Brasil para derrubar Dilma Rousseff, constitui uma forma de governo de exceção, que pode incluir muitas outras, como a suspensão de direitos e garantias constitucionais que supõe o estado de sítio ou o estado de excepção reafirmado em França sine die e estabelecido baixo o governo de Hollande em resposta aos atentados fundamentalistas.

Repetidamente ouvimos Michael Temer no Brasil dizer que ele não se importa se sua popularidade cair para 5%, de qualquer forma ele levará adiante as “reformas” necessárias. Isso, de maneira clara, significa passar por cima de todos os elementos legitimadores da própria democracia burguesa; não se submeter sequer ao escrutínio das formas de democracia indireta do voto popular.

Ainda mais: neste último país as Forças Armadas estão sendo cada vez mais reivindicadas: “Visto desde o Brasil (…), as Forças Armadas evocam a ordem antes do autoritarismo (…). O problema não é que os militares falem, mas que os civis tenham abdicado de controlá-los. Nas palavras do jornalista Elio Gaspari, a extemporânea declaração do chefe do Exército [afirmando que se a corrupção continuasse, as Forças Armadas deveriam intervir. RS] “expôs o pior legado da curta presidência de Michel Temer” (…). O Brasil é hoje uma democracia tutelada em que os uniformizados não governam, mas têm poder de veto “(La Nación, Buenos Aires, 11-4-18).

Complementar a isso, o giro à direita que significam estes regimes de exceção, as restrições dos direitos democráticos elementares, estão as tendências ao transbordamento, aos confrontos mais diretos entre as classes; não todo dia e em todo tempo e lugar. Acontece que existem também as forças sistêmicas que operam sistematicamente para mediar os acontecimentos, para cuidar da governabilidade: do jogo parlamentar, das burocracias, das próprias eleições. Operam como diques de contenção da ação direta, entre os quais a burocracia sindical é um fator universal, expressado em todos os países do mundo. Uma espécie de agente da ordem estabelecida no seio do movimento operário, caracterizado por uma perfídia maiúscula, por uma administração sistemática do conflito que mostra internacionalmente regularidade em suas práticas: as “mesas de negociação”, o “respeito pela democracia” (governabilidade), as medidas isoladas sem continuidade, a aposta na passividade e assim por diante.

Mas, de toda maneira, o cenário atual de polarização é expresso tanto nas garras reacionárias quanto nas tendências de transbordar pela esquerda; a maiores confrontos diretos entre as classes: “O problema do Estado de excepção apresenta analogias evidentes com o do direito de resistência. Tem havido muita discussão, particularmente em assembleias constituintes, sobre a oportunidade de incluir o direito de resistência no texto da constituição (…). O fato é que já no direito de resistência, já em estado de exceção, o que está em questão, enfim, é o problema do significado jurídico de um esforço de ação em si mesmo extrajurídico “(Agamben 2014: 41).

Uma luta de classes menos pós-moderna, com mais confrontos diretos entre as classes, está se tornando visível de maneira tendencial, além de uma discussão maior sobre essas medidas excepcionais como o debate sobre a “violência” ou as posições supostamente “destituídas” ligadas à explosão da paciência, à ação direta das massas trabalhadoras (ver, a este respeito, os dias de dezembro passado na Argentina ou, a incipiente preocupação com a possibilidade, ainda remota, de uma saída antecipada de Macri).

É claro que, no resto do mundo, muitos regimes políticos variados coexistem. As democracias burguesas com mais características dos países imperialistas tradicionais, a Europa Ocidental e uma boa parte da América Latina (embora existam muitas nuances). No entanto, se voltarmos nossa atenção para a China, a Rússia, o Paquistão e muitos outros países grandes, ficará claro a olho nu que seus regimes são mais bonapartistas, com ou sem elementos de representação eleitoral.

Mas, em qualquer caso, mesmo em países caracterizados por um império de décadas de democracia burguesa, o que se verifica é uma degradação do mesmo, e esse é um dos fatores que torna o atual cenário de polarização, de tendência ao crescimento dos extremos, do enfraquecimento do centro político: “Foi o que aconteceu na França depois que Manuel Valls, em seu tempo como primeiro-ministro, deu seu apoio aos decretos ilegais adotados por alguns municípios contra o burkini [traje de banho para as mulheres muçulmanas. RS], descartando numa canetada a opinião do Conselho de Estado (desta forma, agindo antecipadamente como Trump): 'O Conselho de Estado fala de leis; Eu faço política ', colocando-se acima da Lei (pode um primeiro ministro fazer isso?)”(Rousset). Voltaremos sobre isso.

3.4 Trump contra o globalismo

Há outro fator que traz a polarização global: a divisão crescente no seio da burguesia imperialista, algo inexistente – pelo menos nesta proporção – no período anterior. É uma divisão que está ligada à crescente crise do consenso globalista: o surgimento de impulsos nacionalistas e / ou nacional-imperialistas como um subproduto da crise de 2008, e as crescentes tensões geopolíticas: o retorno da competição entre estados ( que é o mesmo que dizer o retorno das fronteiras nacionais).

O consenso neoliberal mundializante continua a dominar as instituições supranacionais (Banco Mundial, FMI, OCDE, etc.), inclusive com um funcionalismo burocrático burguês internacional que incorpora a burguesia multinacional; uma espécie de camada burguesa-burocrática globalista supranacional que inclui muitos dos funcionários das mais renomadas instituições multinacionais. Mas o governo Trump é a expressão mais óbvia – embora bastante empírica – do questionamento desse consenso. Daí que, para os demais, seja um governo minoritário (pelo menos até agora) da burguesia ianque; não parece ter o apoio da maioria da classe capitalista nem nos EUA nem nos demais países imperialistas. No entanto, não devemos esquecer o surgimento de governos nacionalistas/populistas em outros países imperialistas como a Grã-Bretanha ou a Itália, cada um com suas próprias nuances. Parecem crescer os governos imperialistas desconfortáveis com o lugar do seu país dentro de globalização e que desatam “instintos nacionalistas” e questionando ao status quo globalista.

Assim, é paradoxal que a presidência ianque seja encabeçada por uma administração que questiona a visão ainda predominante, ainda que em crise crescente, da burguesia imperialista: “Para os movimentos de extrema direita na Europa, a vitória de Donald Trump aparece, em primeiro lugar, como uma boa notícia. A prova de que é possível romper com a “globalização” à direita! Assim como rejeitar as “elites” à direita “(Rousset).

Essa visão da maioria admite nuances crescentes se levarmos em conta as tendências nacionalistas de governos como o de Abe no Japão, que promove um rearmamento militar proibido pela constituição, ou a administração de Theresa May na Grã-Bretanha, que representa alguma versão do Brexit, que se verá qual; ou agora o novo governo populista de direita na Itália, todas essas expressões de um questionamento do globalismo.

Um fato a ser observado, então, é o crescimento de nacionalismos poderosos em vários dos principais países imperialistas, assim como na China, Rússia, Turquia, Irã e outro conjunto de potências regionais: “O objetivo final do novo nacionalismo chinês é a recuperação da glória do histórico Grande Império, de modo que a propaganda sobre a “ascensão da China” não contém nada que seja progressista “(Rousset,”China, Ascenso y crisis emergente“).

Em qualquer caso, a burguesia dos EUA como um todo parece gozar de certos favores econômicos com Trump (veja a isenção fiscal imensa em torno de 1 ou 2% do PIB), sem perder de vista, paralelamente, setores específicos que visa beneficiar e/ou proteger mais diretamente como a indústria do carvão (questionando os acordos de Paris), a taxação das importações de aço e alumínio (reafirmada em relação à União Europeia, China e Canadá, reunião de crise do G7 incluído), a renegociação em curso do NAFTA (uma grande região comercial que inclui os EUA, Canadá e México), entre outras medidas protecionistas. Embora o The Economist entenda por que Trump acrescenta a demanda à uma economia que já estava crescendo, talvez a resposta não seja tanto estritamente “econômica”, mas relacionada a conseguir que o país volte a tornar-se um lugar favorável aos investimentos capitalistas, uma medida ligada aos esforços de “relocalização” econômica.

Em seu segundo ano no cargo, Trump parece ter alcançado um pulso mais assertivo e menos errático em sua agenda nacional imperialista, como simbolizado pela substituição de Rex Tillerson por Mike Pompeo na Secretaria de Estado. Um exemplo disso são as medidas protecionistas que parecem esboçadas (se verá se elas conseguem desencadear uma guerra comercial em escala), somando-se a isso a mudança na política externa ligada à saída dos Estados Unidos do acordo com o Irã, a transferência da embaixada dos EUA para Jerusalém e, na direção oposta, o diálogo agora com a Coréia do Norte.

Este último acaba de começar, e a iniciativa do diálogo correspondeu, na realidade, a Kim Jong-un e ao novo presidente da Coreia do Sul, Moon Jae-in, cujo movimento político de centro-esquerda (embora não rompa com os cânones do neoliberalismo) atribui grande importância à questão nacional, ou seja, a reunificação do país por meio de negociação. Moon se opôs ao envio de baterias de mísseis da THAAD em solo sul-coreano, e desde sua eleição defendeu a abertura do diálogo com Pyongyang (Rousset, “La inestabilidad geopolítico y la proliferación nuclear“). Além disso, atenção, o regime Kim Yong-in não é puro regime totalitário. Segundo o pesquisador Philippe Pons (citado por Rousset), se não houvesse fatores legitimadores para além do regime stalinista, não teria sobrevivido.

Voltando à recuperação econômica yanqui que está ocorrendo (sem resolver nenhum de seus problemas estruturais, é claro), isso constitui um ponto de apoio para Trump parecer um pouco mais estabilizado, inclusive mantendo vivas suas esperanças para as eleições de meio de mandato deste ano. : “Isso é mais do que mudanças de pessoal [a substituição de Rex Tillerson e HR McMaster por Mike Pompeo e John Bolton. RS] Permite que Trump desenvolva suas políticas econômicas protecionistas que, além de todas as suas inconsistências, têm sido um elemento consistente de seu pensamento por muitas décadas “(Callinicos,”Trump gets serious “).

Em qualquer caso, a divisão burguesa internacional é um fato novo que está aqui para ficar. Se adicionarmos Trump a Theresa May (em relação ao Brexit) e ao novo governo italiano, inclusive no G-7, o equilíbrio entre globalistas e “protecionistas/nacionalistas” parece muito instável.

E se acrescentarmos a isso as características específicas da China e da Rússia como capitalistas de Estado, podemos ter uma medida simples e gráfica da profunda desordem que se expressa no sistema mundial de Estados. Caído o acordo em torno da “agenda globalista”, há uma proliferação de divergências cruzadas. Se Macron e Merkel (que está muito enfraquecida) expressam a agenda globalista, essa agenda obviamente se choca com a de Trump, em vários aspectos delicados com Theresa May e, se paradoxalmente, em alguns pontos (como a globalização) coincide com a China, geopoliticamente não é o caso, para não mencionar que também se choca com Putin. A lista de problemas poderia continuar a se estender dando conta da “desordem mundial” imperante, uma situação não vista desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

Então, há um fato que se repete internacionalmente: a palavra “fissura” (divisão, polarização). Um cenário em que a burguesia está mais dividida do que no período anterior (pré-crise de 2008) e seus governos são mais agressivos (mas dialeticamente, mais débeis também), com bases sociais e políticas mais instáveis; daí a recorrência a medidas excepcionais: o deslizamento a crescentes traços bonapartistas.

Para além do dito acima, no entanto, a globalização capitalista continua a dominar: nenhuma mudança estrutural foi introduzida ainda. Além disso, instituições internacionais continuam entrincheiradas na defesa dessa fisionomia do mercado mundial. É interessante ressaltar aqui a relativa autonomização das hierarquias administrativas do imperialismo em relação a governos como o de Trump, por exemplo. No entanto, é um facto que o consenso globalista é cada vez mais questionado, colocado na defensiva, sem que fique claro ainda qual será o resultado dos acontecimentos em curso.

É claro que o de Trump é um governo defensivo em relação à configuração atual da ordem mundial, um governo de uma potência que parece ter perdido, por enquanto, a iniciativa estratégica. Daí também que ele ensaia uma “arbitragem bonapartista” (de certa forma), porque ele tem que passar por cima de acordos que estavam consagrados: “Sem dúvida estamos testemunhando uma reordenação do centro de poder dentro da economia mundial, com a hegemonia dos EUA desafiada e visões de um mundo mais policêntrico. Trump e o 'trumpismo', amplamente definidos como uma forma de populismo centrada no protecionismo econômico e uma imigração mais restritiva, aparece como uma reação desde a direita projetada para agradar trabalhadores prejudicados pelo isolamento dos supostos benefícios da globalização. econômica “(M. Upchurch: cit.).

Com marchas e contramarchas, somando incoerências, Trump tenta, em todo caso, uma defesa do lugar dos EUA no mundo. Expressa o “despertar” dos Estados Unidos do “sonho” globalista, assumindo que o prejudicou em certos aspectos: “Vamos notar que Trump tem um problema que Obama não conseguiu responder: como recuperar a iniciativa no Leste Asiático depois de ter deixado a iniciativa por tanto tempo para a China? (…) A militarização em próprio benefício do mar do sul da China é um fato consumado (…). A situação é mais controversa e fluida no nordeste da Ásia, com o cara-a-cara belicoso entre o Japão e a China “(Rousset).[2]

A iniciativa de Trump na Coréia do Norte (Norte e Sul) parece ir nessa direção, independentemente do que vai acontecer e de que sua saída do Tratado Transpacífico parece ter deixado a iniciativa para a China em questões comerciais, o que levou, por exemplo, ao realinhamento de Duterte nas Filipinas atrás da China, quando as Filipinas eram um tradicional vassalo dos EUA na região.

O acima não significa que, internamente, Trump é um governo ultrarreacionário e na ofensiva (para além de suas inconsistências), com uma maioria em ambas as câmaras; os traços são todos eles coerentes com a sua posição internacional, ainda que a divisão burguesa lhe passe fatura sem permitir se afirmar plenamente. Um exemplo disso é a causa judicial armada em torno da cumplicidade da Rússia com sua campanha eleitoral, que tem a possível classificação de “traição à pátria”. É uma espada de Dâmocles de um julgamento político no caso de seu governo perder o pé, o que não é, no momento, a perspectiva mais provável.

Em suma: Trump alcançou um curso mais assertivo que não anula sua erraticidade e a desordem (que expressa também as tensões contraditórias dos setores burgueses, dos Estados competidores e das massas): “Trump tem motivos que a razão diplomática ignora. Ele não sabe nada do mundo (além dos negócios) e não pede a opinião das embaixadas ou dos respectivos serviços da Administração. Sua ação política é errática; depois de sua eleição, ele mudou de ideia sobre a situação internacional, abruptamente, mais de uma vez. É um fator de instabilidade, de imprevisibilidade, e os aliados dos Estados Unidos no Japão, Coréia do Sul ou Austrália estão cientes disso. O unilateralismo dos EUA preocupa. Sabem que a Casa Branca pode tomar decisões sérias que os afetam sem consultá-los “(Pierre Rousset,”El desorden global”).

4. Os novos problemas

Embora não sejam fenômenos estritamente novos, é real que constituem “irrupções” relativamente novas, em plena investigação e que requerem abordagens específicas, pelo que o que se segue será uma espécie de “guia de estudo” para estas questões.

4.1 As formações de extrema direita “pós fascistas”

Uma questão a aprofundar é o surgimento de novas formações da extrema direita. No último período eles fizeram sua aparição universalmente. Nos mais variados países, organizações deste tipo começam a emergir; formações muito diferentes entre si, atendendo às histórias e características nacionais em cada caso. De qualquer forma, aqui estamos interessados em responder a apenas um dos elementos da caracterização: quão “fascistas” são as formações de extrema-direita. Quais são os alcances e os limites do perigo que elas constituem?

Em termos gerais, poderíamos começar destacando duas características gerais (também distintivas da extrema direita no passado): a tradução de certo pânico para a perda de suas aquisições entre as classes médias (aquisições colocadas em xeque pela globalização capitalista), assim como também a orfandade política de setores da classe trabalhadora; a falta de alternativas para o mundo de hoje.

Estas características se conjugam na Frente Nacional da França, que é uma das mais importantes formações de extrema direita da Europa. No segundo turno presidencial de abril de 2017, chegou a 35% dos votos, seu maior valor histórico. Também o caso da AfD (Alternativ für Deutschland), uma organização anti-imigrante, islamofóbica, apologista do nazismo, que ingressou no Bundestag pela primeira vez desde o período pós-guerra com 13% dos votos, tornando-se o terceiro partido parlamentar, e que teve um bom desempenho nas últimas eleições municipais. Não são organizações com formações paramilitares (embora haja grupos de extrema direita na França com essas características, inclusive provenientes do mesmo tronco que a FN histórica, mas marginal), em verdade, eles constituem um fenômeno político e político-eleitoral.

De todo modo, sua mera existência constitui um grave perigo que seria um crime subestimar; um fenômeno que expressa a polarização em um país da importância da França. Por outro lado, a tradição da extrema direita naquele país tem mais de cem anos, com correntes monárquicas, restauracionistas, reacionárias e católicas, que vêm desde a Revolução Francesa, com marcos históricos como a campanha contra Dreyfus no início do século XX ou o governo. de Vichy durante a ocupação nazista.

As formações de extrema direita estão se fortalecendo. Se espalharam internacionalmente (dos EUA às Filipinas, passando pela Itália, França, Alemanha, países da Europa Oriental, Oriente Médio, etc.), expressando em muitos casos um questionamento pela direita à globalização. Também são nutridos pela vergonhosa falência do neoreformismo do tipo Syriza e pela crise de alternativas entre os trabalhadores.

Para enfrentar esse novo fenômeno, é um desafio metodológico evitar o unilateralismo. Um primeiro erro seria ignorar os perigos envolvidos. Nas correntes objetivistas, vulgares, que só veem as coisas sempre e invariavelmente “para cima”, a rejeição de todo fenômeno que marca a gravidade de certos acontecimentos é característica. Uma das tarefas obrigatórias das correntes revolucionárias é levar a sério os perigos. Portanto, na situação atual, colocar frentes únicas de luta nas ruas para enfrentar e derrotar as formações da extrema direita é uma das tarefas privilegiadas. Junto com isso, trata-se de fazer uma campanha política sistemática alertando que eles são inimigos dos explorados e oprimidos.

Mas essa tarefa exige o esforço simétrico de não impressionar-se, valorizando justamente o alcance e os limites dessas formações. Deve-se notar que, por enquanto, na Europa ocidental, EUA e América Latina, seus desdobramentos estão centralmente no terreno político e político-eleitoral: ainda não se trata, em geral, de formações pura e completamente fascistas, com corporações liberadas ou grupos de assalto às ruas, embora formações como Alba Dorada na Grécia ou os grupos fascistas nazistas do “setor direito” na Ucrânia organizem grupos ativos de ação direta. É, antes, um fenômeno “adaptado” até certo ponto aos critérios da democracia burguesa, que não mobilizam setores de massa. Mas isso, em todo caso, e levando em conta a tendência de crescente polarização dos temas, constitui um sério perigo que nos coloca em alerta para sua evolução posterior.

É por isso que devemos agir agora para neutralizá-los e lutar nas ruas e no campo da consciência seus “cantos de sereia” reacionários: sua pregação anti-imigrantista, seus ângulos misóginos e contra a liberdade sexual, sua reivindicação das forças armadas, seu discurso contra o Islã, etcetera. Uma batalha concreta é aquela que se apresenta hoje no Brasil. Jair Bolsonaro, ex-Capitão do exército ultrarreacionário, é o segundo nas urnas e pode passar para o segundo turno das eleições (embora seja difícil conquistar a presidência). É um fenômeno novo, e não em qualquer país, senão no mais importante da América Latina (algo inédito nessa escala).

A este respeito, um artigo valioso mas impressionista é “Wilhelm Reich e o fascismo no presente” (de Michel Goulart da Silva, Blog Convergência, Esquerda on line), que se excede ao sugerir uma certa “aproximação” entre os contextos da Alemanha nazista e do Brasil hoje. Faz isso inspirando-se em Michel Löwy, que afirma unilateralmente o caráter pleno e simplesmente “fascista” das formações de extrema direita na Europa (“Diez tesis sobre la extrema derecha”). A nota fornece elementos para compreender as relações não-mecânicas entre crise econômico-social e consciência política: “Reich, analisando a Alemanha pré-nazista, lembra que o trabalhador não é nem claramente reacionário nem claramente revolucionário, mas está enredado nas contradições entre tendências reacionárias e revolucionárias”.

Para uma apreciação equilibrada dessas formações, tomaremos algumas definições do historiador Enzo Traverso. É um fenômeno que abrange situações muito diferentes, entendendo que experiências como a dos fundamentalistas de extrema direita no Oriente Médio e no Paquistão ou a extrema direita de Hong Kong são diferentes em muitos graus diferentes dos da Europa ou da América Latina.

Traverso estabelece uma delimitação entre o fascismo clássico e os fenômenos atuais, que ele caracteriza como “posfascistas”. Salienta que a ascensão dos “direitos radicais” é um dos aspectos distintivos da atual situação internacional. O escopo específico de sua pesquisa é os EUA e a Europa. Neste segundo continente, ele aponta a necessidade de traçar uma linha entre os países da Europa Ocidental e Oriental. No primeiro, ele coloca o traço específico mais característico na rejeição à imigração e a criação do Islã como um novo “demônio” (além dos traços nacionalistas anti-europeus). Na segunda (saindo do antigo “bloco soviético” após a virada do 1989), identifica a criação de condições para um ressurgimento do nacionalismo de pré-guerra de características fascistóides, anticomunistas e até mesmo anti-semitas, além de também de ressoar a cantilena anti-imigrante. Exemplos disso são o partido húngaro Jobbik, o “Partido de la Gran Rumania”, o Atak da Bulgária e partidos semelhantes nas repúblicas dos Balcãs e Ucrânia, que são considerados “herdeiros de movimentos nacionalistas e/ou fascistas dos anos 1930 “(Lowy,” Conservadorismo e extrema direita na Europa e no Brasil“). Ostentando sua vontade de restaurar nesses países uma consciência nacional (reacionária) reprimida durante quatro décadas de hibernação “soviética”, eles gozam de certa legitimidade dentro da opinião pública. Traverso insiste que o Velho Mundo não conhecia um ascenso similar das direitas radicais desde a década de 1930.

No entanto, acrescenta que a caracterização desses fenômenos como plena e simplesmente “fascistas” não parece correta. Identifica-os, antes, como pós fascistas, sublinhando a necessidade de traçar analogias, mas também diferenças: “Pensar no fascismo hoje significa levar em consideração as formas possíveis de um fascismo do século 21, não a reprodução daquilo que existia nos anos entre guerras”. O pós-fascismo extrai sua vitalidade das crises econômicas e do esgotamento das democracias liberais que levaram as classes populares à abstenção eleitoral, e se identificam com as políticas de autoridade. Sua ascensão, entretanto, ocorre em um contexto muito diferente daquele que viu o nascimento do fascismo nas décadas de 1920-30.

Outro autor diz algo parecido: “O fascismo é um movimento de massas organizado, armado, pronto para lutar contra o movimento operário (partidos e sindicatos) nas ruas antes de tomar o poder, e esmagá-lo pela violência massiva após ter tomado o poder (instituindo um Estado totalitário para fazê-lo). A classe dominante não recorre a essa solução extrema, desde que sua dominação não tenha sido ameaçada pelos trabalhadores. Não existe uma ameaça assim nos EUA, hoje pelo menos“(Barry Sheppard,”El ascenso del trumpismo“).

O posfascismo é desprovido do impulso vital e “utópico” de seus ancestrais; é limitado por uma temporalidade “presentista”. Longe de ser ou se apresentar como “revolucionário”, o pós-fascismo é profundamente conservador. Se apresenta como uma “muralha” diante dos inimigos que ameaçam as “pessoas comuns” – globalização, islamismo, imigrantes, terrorismo – e suas soluções são sempre retornar ao passado: retorno à moeda nacional, reafirmação de soberania, retirada de identidade, “proteção das pessoas humildes” que se sentem “estrangeiras em sua pátria”, etc. O posfascismo não esconde sua paixão pela autoridade: exige poder forte, leis de segurança, a reintrodução da pena de morte e assim por diante.

O problema em muitos casos é que as direitas radicais adquirem uma espécie de monopólio na crítica do “sistema”. Embora, claro, eles não sejam opção 1, nem 2, das elites dominantes. Para que fossem, deveria ocorrer um colapso dos Estados estabelecidos e a instalação de uma instabilidade permanente e generalizada. O fato de que apareçam como mais “radical” do que a centro-esquerda adocicada e reformista atada à legalidade, é um verdadeiro problema, porque ata as mãos dos explorados e oprimidos em sua ação (como a apresentação de Lula à justiça sem proceder a uma verdadeira resistência, uma obra prima do cretinismo institucional), e muitos dos setores desmoralizados ante a deterioração das condições de vida, subproduto do capitalismo globalizado de hoje, pode, então, ser bucha de canhão para a direita radical. Seja como for, está claro que a superação da legalidade e da democracia burguesa pela esquerda revolucionária tem outros caminhos e vias que os da extrema-direita, como veremos mais abaixo.

Em suma: uma das principais tarefas da conjuntura é combater e continuar estudando essas formações que parecem ter vindo para ficar, e que poderiam se radicalizar à medida que os elementos da polarização mostram uma tendência ao aprofundamento, ao rompimento do centro e o fortalecimento dos extremos. .

4.2 A persistência da rebelião popular

Como contrapartida ao ponto anterior, devemos sublinhar a persistência da rebelião popular. Embora não seja o fenômeno dominante hoje, essa persistência – que é reiterada repetidas vezes – é evidente nos quatro pontos cardeais do globo: é a forma que assumem os extravasamentos sociais quando a situação chega ao seu limite.

Para dar exemplos do último período temos os casos das Jornadas de Dezembro na Argentina, as explosões populares na Nicarágua, Irã, Honduras, Armênia, Catalunha, Jordânia, etc; todas as circunstâncias que mostram um conjunto de características comuns: a insurgência dos de baixo, seu caráter popular massivo, suas bandeiras democráticas e econômico-sociais e o fato de custar ainda a assumir formas sociais de classes definidas (no sentido de centralidade operária, organismos de poder, partidos revolucionários com influência de massa e programas revolucionários). Nesse sentido, enfatizamos que, mesmo na ausência de outros elementos de subjetividade, no caso nicaraguense atual o surgimento de formas de organização independentes, como substituição das intendências e outros organismos oficiais, além de uma certa organização de autodefesa, é uma característica presente e também visível em vários outros processos.

O quanto irrompe a bipolaridade, a rebelião popular aparece. Apareceu em Honduras contra a fraude eleitoral; apareceu na Catalunha defendendo o direito à autodeterminação; apareceu no Irã contra o alto custo de vida; apareceu na Argentina nos dias de dezembro; por toda parte, a contra tendência ao desafio desde abaixo é evidente.

Na Argentina, houve uma batalha campal em dezembro com centenas de milhares de trabalhadores, jovens, mulheres e de companheiros e companheiras. O trotskismo e o nosso partido estiveram na vanguarda da luta com suas bandeiras. O governo levou meses para reconstruir a Plaza Congreso.

A persistência da rebelião popular é um fator tal que seria cegueira política capital perder de vista. Com ela se dão uma série de fenômenos progressivos, contra tendências na arena internacional: o movimento das mulheres internacionais, as novas gerações de militantes, o surgimento de uma nova classe trabalhadora, lutas democráticas: “A classe trabalhadora está afetada, mas não paralisada. No ano passado ocorreram nos  Estados Unidos mobilizações de uma amplitude inigualável há muito tempo: a Women’s March de 20 de Janeiro de 2017, manifestações contra o decreto Trump proibindo a entrada em território norte-americano de cidadãos de sete países de maioria muçulmana e dos refugiados, que se seguiram a revogação do programa que permite que as pessoas Dreamers, jovens imigrantes ilegais que entraram nos Estados Unidos quando crianças, trabalhar e estudar legalmente; manifestações contra a extrema direita após o eventos em Charlottesville, etc.”(Entrevista com o sindicalista Sherry Wolf,”Um verdadeiro potencial de resistência“).

Naturalmente, que isso não nega a persistente queda nas lutas dos trabalhadores nos Estados Unidos. Apesar do recente aumento de importantes lutas de professores, tanto neste país quanto na Inglaterra, o fenômeno da queda de conflitos no local de trabalho é sintomático. Se entre 1947 e 1979 houve uma média anual de 303 greves “importantes” (envolvendo 1.000 ou mais trabalhadores), esse número caiu para 50 ou menos desde os anos 90 (Doug Henwood, “EEUU: La desaparición de la huelga“) .

Na Polônia, na luta pela defesa do direito ao aborto, está surgindo uma nova geração de mulheres e da juventude em geral, jovem e “ultrajovem” (como em outros países). Meninos e meninas que saem a militar. Não são apenas jovens: “As mobilizações mais importantes foram organizadas por militantes de vários grupos e organizações (…), assim como incontáveis desorganizados, com apenas 20 anos de idade e indo às ruas pela primeira vez” (Przemyslaw Wielgosz, “Ne pas galvauder la victorie remportée contre le régime “).

É algo que também verificamos em nossa corrente: jovens de 17 ou 18 anos, uma nova geração faz sua entrada em cena. No Irã, entre o milhar de pessoas presas, 95% tinham menos de 25 anos de idade (Houshang Sépéhr, “Après le tremblement de terre, le tremblement sociale“).

O movimento internacional de mulheres, a nova geração militante, uma geração jovem e muito jovem, o surgimento de uma nova classe trabalhadora em muitos lugares e, especialmente, nos grandes centros de acumulação capitalista hoje, são questões que devem ser aprofundadas e que trazem imensas potencialidades  à frente.

Essa persistência também está ligada a outra questão: as tarefas democráticas e a necessidade de ter sensibilidade política para elas, sem sectarismo, sem perder de vista seu potencial mobilizador e disruptivo em relação ao giro reacionário dos regimes. E, ao mesmo tempo, a capacidade de conectá-las com o resto das tarefas econômico-sociais e políticas, com a saída estratégica da mão da classe trabalhadora.

Diante da ofensiva reacionária e do ajuste, a combinação de propostas democráticas com demandas dos explorados e oprimidos tem um tremendo potencial. Porque, além disso, muitas das demandas democráticas e do movimento de mulheres estão no centro da cena em muitos países, aos quais devemos nos vincular com as perspectivas da classe trabalhadora, com a perspectiva socialista, sem permanecer como propostas democráticas isoladas. . Esta ida e volta é o abc da política revolucionária no período atual, que não pode ser resolvido por deslizes sectários ou oportunistas, senão que requerem uma síntese que, como tal, sempre é global.

Aprofundemos algo mais a respeito da política em direção à democracia burguesa, uma questão vital hoje tanto pelas tendências a enfraquecer seus aspectos democráticos através de golpes reacionários, como também pelos perigos que apresentam muitas correntes revolucionárias à adaptação oportunista a ela.

Muitos analistas apontam que, devido à irrupção das direitas radicais, a democracia burguesa parece mais questionada pela direita do que pela esquerda. Temos a impressão de que isso é mais complexo. É verdade que é desafiado mais abertamente pela extrema direita do que pela centro-esquerda, que deriva do cretinismo parlamentarista e legalista de centro-esquerda, de seu caráter de formações puramente eleitorais (Syriza) e/ou de sua profissão cretina de fé institucional (Lula ).

Por outro lado, não se pode ignorar as pressões eleitoralistas e/ou institucionais que gera o maior peso político-eleitoral alcançado por diferentes expressões da esquerda revolucionária no último período, o qual é uma conquista que deve ser administrada sustentando os ensinamentos históricos do marxismo revolucionário a respeito disso No caso europeu, essas pressões se resolvem em uma adaptação simples e plena ao regime, como no caso dos anticapitalistas no seio de Podemos; Em países como o Brasil e a Argentina, as coisas são mais complexas. Neste último país, a esquerda trotskista mantém sua fisionomia revolucionária, que não nega que essas pressões também estejam presentes em certos casos; veja a respeito à nossa elaboração “Cuestiones de estrategia”.

Mas também é verdade que a extrema esquerda não pode “desafiar” a democracia burguesa da mesma maneira que a extrema direita. Deve fazê-lo de uma forma que levante a necessidade de ser superada por uma democracia superior: a democracia direta dos explorados e oprimidos a partir de baixo. Além disso, existe internacionalmente um elemento de transbordamento característico das rebeliões populares, inclusive dando lugar a experiências de um poder alternativo fragmentário, como é ultimamente o caso da Nicarágua, para além das confusões na consciência popular.

Diante do giro à direita dos regimes, não podemos sair e desafiá-los da mesma maneira: somos defensores da defesa das conquistas democráticas em face da sanha reacionária. Toda outra atitude seria um desastre político. Mas o desenvolvimento da experiência, da luta por essas tarefas democráticas, pode abrir elementos de auto-organização. Ser campeão das tarefas democráticas pode levar a ações diretas independentes, inclusive com elementos de autodefesa. E isso também é superação da democracia burguesa. Não saímos a denunciar a democracia burguesa da maneira que a extrema direita faz, que questiona toda democracia. Mas, encorajamos o progresso em experiências de ação direta que a superam.

É por isso que, seguindo os ensinamentos de Rosa Luxemburgo e do bolchevismo, uma tarefa obrigatória dos revolucionários é chamar à desconfiança no parlamento (uma tarefa mais obrigatória ainda se atuamos nele!). Insistimos que a chave das conquistas passa pela rua. Procuramos sobrepujar as instituições na ação, no estabelecimento de formas alternativas de organização.

É uma dupla tarefa que passa pela luta implacável contra os “Estados de exceção”, os “golpes parlamentares” e ações similares de desestabilização reacionária da própria democracia burguesa, ao mesmo tempo em que impulsionamos a institucionalidade a ser superada desde abaixo, na ação

4.3 Alertas estruturais da barbárie capitalista

Além dos aspectos mencionados, queremos elencar aqui uma série de questões a serem desenvolvidas posteriormente: os “alertas estruturais” da atual dinâmica capitalista, entre elas as tendências do sistema à barbárie, que estão se aprofundando no início do século XXI. Apontamos quatro alertas estruturais: o problema ecológico, o migratório, a crescente desigualdade social e o rearmamento militar. Vamos descrever brevemente os dois primeiros, deixando os outros para um próximo documento.

O problema ecológico é uma questão cada vez mais dramática. A mudança climática é cada vez mais perceptível, assim como a impossibilidade do capitalismo em resolvê-lo. O capitalismo é um sistema competitivo cujo objetivo é o lucro; esse é seu mecanismo específico. Nesse sentido, não importa quantas reuniões de cúpula sejam realizadas, é difícil ir além da retórica.

Isso se torna agudo com Trump na presidência dos EUA; um porta-estandarte do negacionismo climático e um representante quase direto dos setores capitalistas diretamente ligados à poluição ambiental (as indústrias do carvão, do petróleo, do aço …). Simultaneamente com estes acontecimentos, tem crescido nos últimos anos a sensibilidade em relação aos problemas da mudança climática, uma bandeira que os explorados e oprimidos estão tomando nas regiões mais amplas do globo. É por isso que a esquerda revolucionária também se preocupa com essa dinâmica adversa que está se tornando cada vez mais central na perspectiva da humanidade neste século XXI, assim como a elaboração teórica a esse respeito.

Há duas premissas básicas e programáticas a esse respeito. A primeira é que, além das pressões pelas “reformas”, parece evidente que em nenhum outra temática como nesta a perspectiva revolucionária se torna mais necessária, na medida em que a questão do clima questiona em seu centro mesmo a lógica de uma sistema cujo único vetor é acumular lucros sobre os lucros, sem se importar se isso se faz sobre o cadáver da humanidade e da natureza.

De resto, outro desafio programático de primeira ordem é como conseguir que as reivindicações ecológicas combinem com os problemas dos trabalhadores. Isto é, não se opor a elas, mas encontrar um ângulo que nos permita assumir a questão desde a classe trabalhadora. Existem muitas tendências ambientais que tendem a dividir o problema e elevar a natureza acima das classes sociais. É uma questão que, como outras não diretamente classistas, requer um esforço por parte dos marxistas revolucionários para evitar um reducionismo sectário. Mas, também, não se adaptar a uma pressão pós-moderna, que coloca os trabalhadores como “uma questão à parte”, como se o problema ambiental pudesse ser resolvido separadamente das perspectivas da revolução socialista.

De natureza mais teórica são os apaixonantes debates em torno de se entramos em uma nova era geológica (antropoceno ou capitaloceno), caracterizada pela interação dos seres humanos com a natureza. Em nossa opinião, o debate é útil para entender que o atual desenvolvimento das forças produtivas, nas mãos do capitalismo, tem o potencial de se reverter negativamente sobre o planeta.

Aqui o problema não é o desenvolvimento das forças produtivas como tais; o substrato material inevitável de qualquer perspectiva emancipatória (socialista e comunista), mas em cujas mãos estão umas forças produtivas cujas potencialidades libertadores se multiplicam, mas que também revertem contra a humanidade e a natureza na medida em que não são liberadas com a revolução socialista É, então, um problema que adquiriu um status universal e que temos um atraso na abordagem.

Outro alerta estrutural é a crise migratória. Desde Marx sabemos que os fluxos da população seguem os da acumulação; as leis da população estão intimamente ligadas às da acumulação capitalista. Portanto, não é por acaso que os fluxos migratórios continuam rumo aos polos mais fortes e/ou mais dinâmicos da acumulação capitalista. A barbárie na África, na América Central e no México, na Europa Oriental, no Oriente Médio, leva milhões a empilhar-se na fronteira sul dos Estados Unidos, a embarcar no Mediterrâneo, inclusive a buscar o território chinês para encontrar uma “salvação”, um futuro que não encontram em sua casa.

São conhecidas as catástrofes sociais e econômicas de países como Honduras, Guatemala, México, os países do norte da África, Síria, etc., levando à expulsão de suas populações trabalhadoras. Por experiência da corrente e do próprio autor, conhecemos em profundidade a situação de Honduras, um país com sua economia quebrada e um dos muitos países onde o maior ingresso de divisas vem das remessas de dólares do exterior; isto é, um país que simplesmente exporta força de trabalho.

Mas o drama não termina aí. Devido à maior parte da estadia ilegal nos Estados Unidos, as famílias não podem se encontrar novamente. O pai (ou mãe) vai em busca de trabalho para os EUA e, por ser ilegal, não pode retornar; Você não pode visitar seu país de origem. E não estamos falando de alguns anos. Falamos de circunstâncias que se cristalizam ao longo de duas ou três décadas e, entretanto, pouco resta daquela família. Há muitas crianças e adolescentes que não conhecem seus pais.

O fenômeno migratório é conatural ao capitalismo. Os fluxos migratórios acompanharam no início do século XX as histórias de sucesso dos Estados Unidos ou da América do Sul; as gerações de camponeses irlandeses, espanhóis, italianos, etc., fugindo de seus países para “fazer-se na América”. Além disso, os fluxos migratórios da Rússia e da Europa Oriental (população judaica e não-judaica) para a Europa Ocidental ou a América como um todo na mesma época. Ou, na segunda pós-guerra, migrações maciças como a turca para colaborar com a reconstrução da Alemanha, sem esquecer os países metropolitanos sedes de um grande império, como a Inglaterra e a França.

A questão atualmente é que com a crise de 2008 se acentuou a restrição nos países de destino à chegada dos imigrantes. Seus países e regiões expulsam anualmente centenas de milhares ou milhões. Mas a crise econômico-social do capitalismo neoliberal globalizado levou ao surgimento de formações de direita e extrema direita, que fazem dos imigrantes bodes expiatórios para a crise capitalista.

É isso o que tem colocado a questão no centro da agenda nos últimos anos; trata-se de uma espécie de “panela de pressão” onde os fluxos migratórios se multiplicam devido à falta de expectativa de vida em seus países de origem. E as nações que deveriam ser receptoras dessas novas populações migrantes endurecem suas políticas de uma maneira que transformou a questão migratória em um dos aspectos da barbárie capitalista mais característicos .

É claro que o populismo de direita e de extrema direita como o de Trump tem esse perfil reacionário anti-imigrante como porta-estandarte, num país como os EUA, onde a população de origem latina atinge 50 milhões (sua segunda população mais importante). Em outros textos, abordamos essa questão característica do capitalismo de hoje, outro alerta estrutural da barbárie capitalista e deste mundo que tende a aumentar a polarização sob um sistema que toma os imigrantes como reféns e inimigos. Uma recente experiência direta de nossa corrente com o tema é a participação nos “encierros” que estão ocorrendo, no momento do fechamento desta edição, em Barcelona.

5. Quando se reinicia a experiência histórica

Seria um erro dar uma definição unilateral do atual ciclo mundial que perderia de vista o fato de que, para além das dificuldades, passamos por um recomeço da experiência histórica dos explorados e oprimidos. O ciclo internacional está aberto. Seria um erro cristalizar um processo que não o está, que supõe um combate. Quando falamos com a militância, conversamos com companheiros e companheiras que militam, que lutam. E se você se põe a chorar com a “derrota”, o retrocesso, o giro à direita, não constrói uma corrente de lutadores: constrói um clube de chorões e choronas. Porque toda a leitura militante é legitimada.

Se perdermos de vista os pontos de apoio para lutar, se tomarmos por fechados processos que estão abertos, desarmamos ou justificamos qualquer coisa (o mais comum é toda a variedade de possibilismos), porque teria “fechado” a era revolucionária. Assim, nada se constrói; cai-se no liquidacionismo.

O mundo está hoje em um movimento infernal. Não há relação sociopolítica, geopolítica ou social que não esteja flutuando, que esteja solidificada: não há nada cristalizado. Não há fenômeno ou evento desencadeado: tudo está desencadeando-se: “A 'fluidez' é a qualidade de líquidos e gases (…), essa mudança contínua e irrecuperável de posição (…) constitui um fluxo (…). Até aqui, é o que diz a Encyclopaedia Britannica, em uma entrada que visa explicar a “fluidez” como uma metáfora que rege o atual estágio da era moderna “, Zygmunt Bauman nos diz no prólogo de seu famoso livro Modernidad líquida”, capturando um elemento de atualidade.

Vive-se um acúmulo de contradições. Nada está desencadeado; tudo está desencadeando-se. E como se faz para ligar essa circunstância em uma definição dialética, dinâmica? Vejamos: “A arena mais fluida do moderno sistema mundial, que está em crise estrutural, é possivelmente a arena geopolítica. Nenhum país chega, nem de perto, a dominar essa arena. A última potência hegemônica, os Estados Unidos, atuou por muito tempo como um gigante indefeso. Pode destruir, mas não controlar a situação. Ele ainda proclama regras esperando que o resto [dos países] as cumpram, mas pode ser e é ignorado “(I. Wallerstein).

Em muitos países, as relações de forças não estão resolvidas. Na Argentina, na França e até no Brasil, as relações de forças ainda estão abertas. Por exemplo, a Argentina enfrenta agora uma nova prova de forças com o ajuste brutal do FMI. Algo semelhante acontece na França com a tentativa de Macron de liquidar o convênio ferroviário. No Brasil há uma situação reacionária, mas a reforma previdenciária não passou e a greve de caminhoneiros introduziu uma forte crise no governo de Temer.

A “bipolaridade” que identificamos, os fenômenos que se movem a direita e a esquerda, aprisionam uma tendência profunda que permite entender melhor o mundo. Se trata de uma definição mais dialética do que se afirmamos apenas o “giro à direita”, ou se definíssemos “tudo avança”, como fazem as correntes objetivistas. Capta uma dialética dos eventos que também tem seu paradoxo, o fato de que nada se estabiliza, embora não resolva por si só a crise de alternativas subsistente, que continua a ser uma grave hipoteca para os acontecimentos.

Uma análise que não capture as tendências e contra tendências da atual situação mundial fracassaria pela base. As conjunturas são feitas de temporalidades variadas; são uma soma, uma resultante particular, específica e momentânea de muitas temporalidades sobrepostas. O marxismo opera com várias escalas de tempo combinadas. Não se trata de uma apreciação mecânica do “tempo político”, mas de entender como as dimensões temporais e espaciais se combinam, como os diferentes planos das relações de foça se combinam, desde as mais históricas às mais conjunturais; como opera uma síntese destas em cada caso concreto (cf. nosso Ciência e arte da política revolucionária).

Por exemplo, voltemos à extrema direita na Europa Oriental. Seu projeto nacionalista estava ligado ao fascismo, mas afundou-se com isso. No entanto, a degeneração stalinista alimentou suas raízes populares tanto com os horrores da década de 1930 (a fome na Ucrânia que custou a vida de 6 milhões de camponeses, por exemplo), como durante seu domínio sobre esses países no período pós-guerra.

Sobrepõe-se, então, a uma temporalidade que parte dessa experiência histórica com outra que se forjou hoje, contemporaneamente, na experiência do capitalismo neoliberal, resultando no surgimento dessas formações “antiliberais” e “anticomunistas” da extrema direita. Porque nesses países, se quisermos, o buraco negro da crise de alternativas é mais profundo e dramático do que em outros.

Trata-se de uma longa temporalidade ligada aos desastres do Estado burocrático. Uma temporalidade presente na situação atual do mundo, em muitos lugares. Por exemplo, em Hong Kong, com movimentos nativistas anti-chineses. Nesse caso, subproduto da degeneração burocrática de uma revolução anticapitalista real.

Na América Latina, há a crise em Cuba e a hipoteca que certamente moldará a Venezuela. No entanto, não é uma hipoteca que terá profundidade semelhante, porque a experiência da degeneração burocrática foi generalizada na Europa Oriental, na antiga URSS e na China. Não obstante, cuidado com menosprezar os efeitos adversos da bancarrota do chavismo: “Este discurso [sobre a catástrofe de Chavismo e Maduro] penetrou profundamente em grandes setores sociais [da Colômbia], na classe média e em mais setores mais baixos economicamente, que temem que um governo diferente do autoritário e “defensor dos bons costumes” [tipo Uribe] expropriará seus poucos pertences”(“Colombia. Las elecciones presidenciales”, John Castellanos, www.socialismo-o-barbarie.org).

Diferentes temporalidades, tendências e contra tendências se combinam. Mas a abordagem cética só vê as tendências adversas e não consegue descobrir as contra tendências dinâmicas; a imensa riqueza do atual despertar dos explorados e oprimidos. São contra tendências em várias ordens. O surgimento de uma nova classe trabalhadora massiva em vastas partes do globo é uma delas. O surgimento de uma nova classe trabalhadora como um fator material não se traduz, mecanicamente, em uma “classe para si” com consciência e organização independentes, como Marx classicamente estabeleceu. Mas uma classe trabalhadora com 200 ou 300 milhões (China) representa uma potencialidade estratégica. Temos que ser materialistas: a experiência, através de mil e um caminhos, forja, pode forjar, a consciência.

A China é um tremendo paradoxo, uma revolução anticapitalista que cria as condições de um êxito capitalista. Uma das questões mais interessantes da China hoje é a recriação de um proletariado universal. Não há criação maior de um proletariado no início deste século XXI. Aqui se poderia adicionar outros países como a Índia e até mesmo um continente que se antecipa deverá concentrar um enorme proletariado, a África. Mas, hoje, esse evento passa centralmente pela China.

A dinâmica da acumulação capitalista recria um proletariado que é impossível que seja, em termos históricos, um autômato. Eles são trabalhadores que vivem, sofrem, lutam, acumulam experiências, tiram conclusões. “Todo ser humano é um filósofo”, dizia agudamente Gramsci. Ou seja, vai se fazendo uma composição de lugar. E essa é a base material do reinício da experiência que estamos vivenciando. Porque se trata de seres humanos que lutam, que começam a avaliar criticamente suas condições de existência.

E são centenas de milhões, o que é um problema estratégico de magnitude: “Nosso foco é a criação de uma classe trabalhadora chinesa em regime de trabalho de dormitório. A extremamente concentrada natureza  da espacialidade do trabalho e da residência se transforma em um campo de batalha para lutar por seus direitos “(Jenny Chan e Ngai Pun,”The Spatial Politics of Labor in China: Life, Labor, and a New Generation of Migrants Workers“, www.reserchgate.net).

Perder de vista essas potencialidades só pode levar a uma recaída na análise derrotista: “A coisa mais óbvia é que os e as revolucionárias não nos encontramos em um momento de otimismo. O que resta do movimento dos trabalhadores não se encontra na ofensiva revolucionária, mas sim em um defensivismo brutal depois de décadas de derrotas. As experiências sobram, mas se tem traduzido em lições negativas para as classes populares, e não em avanços de consciência e organização “(Ernesto M. Díaz, em Viento Sur).

Nenhuma acumulação de experiências? Apenas ensinamentos negativos? É uma abordagem unilateral, derrotista, justificadora das orientações oportunistas que fazem parte da maioria da IV mandelista; uma abordagem equivocada e completamente cega para o acúmulo de experiências que começou nas últimas décadas, o que se expressa nas tendências à rebelião popular. A tarefa que temos diante de nós é a oposta: recriar uma compreensão do mundo que sirva para lutar.

6. A luta pela consciência das novas gerações

Nada do acima significa que estamos enfrentando tarefas simples. Um elemento a ser enfrentado é a luta pela consciência das novas gerações: como restabelecer o fio de continuidade com as lutas do século passado? Acontece que com a virada do novo século, muitos dos vasos comunicantes com a experiência do século passado se romperam. E não foi sobre qualquer experiência, senão da epopeia do século mais revolucionário da humanidade. Um século em que a porta para a transição socialista começou a se abrir, que guarda um tesouro de experiências sem igual, que deve ser recuperado criticamente na luta para relançar a batalha pelo socialismo.

Esse fenômeno poderíamos identificá-lo com a perda da “consciência histórica” que pode ser vista entre as novas gerações: o “cretinismo histórico” das novas camadas que estão protagonizando o recomeço da experiência de luta. O falecido historiador Eric Hobsbawm, o antropólogo Marc Augé, Enzo Traverso e muitos outros autores explicam o fenômeno: a ruptura na continuidade da experiência em relação às lutas e experiências de gerações passadas. A passagem do século XX para o XXI constituiu uma espécie de “conta apagada” em questões históricas, fenômeno que se resolve na adoração do presente como única dimensão da temporalidade, uma espécie de abolição da própria história: “O homem vive atualmente em uma espécie de hipertrofia do presente“, afirma Marc Augé.

A base material dessa ruptura na experiência pode ser encontrada em duas dimensões que não são idênticas, mas têm uma relação dialética. Com a globalização econômica, as transferências de fábricas, o desenvolvimento de um novo proletariado na China e, em geral, nos novos centros de acumulação capitalista, o que se verifica é uma ruptura da experiência transmitida no local de trabalho. Traverso diferencia o conceito de “experiência transmitida” (aquela que passa de uma geração para outra) de “experiência vivida” (aquela que um sujeito experimenta no tempo presente).

Claro que esta dimensão não é absoluta; existem vários exemplos em que a experiência é transmitida. No entanto, o desemprego em massa que prevalece em muitos países, especialmente entre os jovens, alterou a transmissão “normal” da experiência no local de trabalho e introduziu um hiato nela em múltiplos planos, desde o “saber fazer” laboral, até às experiências de luta e organização.

Mas, junto com esse fenômeno “material”, estamos interessados em também abordar o que poderíamos chamar de corte na transmissão da experiência histórica. Desde a queda do Muro de Berlim, a memória histórica das lutas emancipatórias do passado foi cortada, foram jogadas na lata de lixo do “totalitarismo”. É óbvio que em cada país ou região esta circunstância é diversa. É mais grave, sem dúvida, nos países que passaram por experiências não capitalistas, cuja população não consegue encontrar uma maneira de dar unidade às experiências do século passado.

Traverso é agudo quando afirma que as experiências na antiga URSS, a memória histórica da vida, foram fragmentadas: “A memória do stalinismo é profundamente heterogênea, porque é ao mesmo tempo memória da Revolução e do Gulag, da 'grande guerra patriótica´ e da opressão burocrática” (El pasado, instrucciones de uso). Essa “heterogeneidade” da memória é por sua vez causa e consequência dessa falta de unidade, de síntese da experiência.

O autor deste relato fez anos atrás uma experiência em relação a essa “memória heterogênea” que não encontra síntese conversando com um motorista de táxi na cidade de Cluj, na Romênia. Quando questionado sobre Ceaucescu, o último ditador à frente do país sob o estado burocrático, a resposta foi de repúdio. Mas quando chegou a hora de responder sobre a situação econômica, o taxista respondeu que era “melhor que hoje” …

Um problema similar se observa na China. Uma consciência nostálgica das antigas “garantias” (trabalhistas e outras) está entre os trabalhadores estatais aposentados que desfrutaram de amplos benefícios antes de serem demitidos em massa com a mudança para o capitalismo. Agora, entre as novas gerações, parece não haver vestígios disso. Como está integrada  a experiência da China não capitalista em sua “consciência histórica” é difícil de saber(embora Au Loong-Yu enfatize a perda de prestígio do maoísmo).

Uma questão é clara: o peso do elemento nacionalista na China surge como uma forma de “consciência substituta” para a burocracia do PCCh. A consciência nacionalista foi uma característica da China ao longo do século passado; uma característica progressista enquanto a China estava sujeita ao imperialismo, para além de que o maoísmo a usava para ofuscar a consciência de classe, propriamente socialista. Mas hoje essa característica nada tem a ver com um país dependente e semicolonial, mas com um “imperialismo em construção”, que é muito diferente.

A questão é como integrar elementos não-capitalistas e/ou “igualitários” herdados da Revolução de 1949 (sob a camisa de força e as distorções introduzidas pela burocracia maoísta), com as experiências e conscientização do presente de um imenso proletariado de 400 ou 500 milhões de membros submetidos a condições de superexploração, passaportes internos (hukou), e a ausência de direitos de sindicalização: “A criação de um sistema de trabalho dual veio favorecido pelo regime do hukou, um mecanismo de alocação de residência bastante antigo, anterior mesmo a revolução de 1949, em que os indivíduos se classificam como residentes rurais ou urbanos (…). A análise realizada por Au Loong-Yu da luta de classes na era posterior a Tiananmen, centra-se na continuidade do sistema hukou como um fator de divisão da classe operária [fator de divisão que continuou durante o maoísmo! RS] O sistema hukou, ou registro de residência, tem uma história de mais de 2.000 anos na China, tendo sido criado na era imperial como um meio de controle social “(Rousset:”China. Ascenso y crisis emergente“).

Em todo caso, se esta não-integração da consciência histórica ocorre nos ex-países não-capitalistas, o fenômeno se espalha e se generaliza entre as novas gerações forjadas em um capitalismo sem um concorrente social. Daí a perda de “dimensão histórica” com a qual se vive; a crise de alternativas em meio à qual as novas gerações emergem para a vida política: “Por muitos séculos, o tempo foi o portador da esperança. `Do futuro, os homens esperavam serenidade, evolução, amadurecimento, progresso, crescimento ou revolução´. Mas isso acabou. Para o antropólogo Marc Augé, nas últimas três décadas, o futuro praticamente desapareceu: `um presente imóvel se abateu sobre o mundo, desmantelando o horizonte da história´” (La Nación, 22-5-15).

A luta pelo relançamento da perspectiva socialista neste novo século não é uma abstração, mas uma necessidade muito concreta de que as novas gerações se elevem para além do possibilismo; de modo que a “bipolaridade” encontre uma perspectiva política transformadora; para a reconstrução de uma consciência socialista dos explorados e oprimidos.

7. A esquerda: partidos “amplos” ou partidos de vanguarda?

Vejamos agora a questão das novas formações reformistas, que abordamos em outros documentos. Pode-se dizer que estão presentes como uma contra face ou expressão bipolar das formações de direita e extrema direita. No entanto, não estão em um momento de projeção bem-sucedida como há alguns anos; pesa a derrota de Syriza, o naufrágio ignominioso de todas e cada uma das expectativas que despertara.

De qualquer forma, Corbyn, na Inglaterra, Sanders, nos Estados Unidos, ou Podemos, na Espanha, ainda são “histórias de sucesso”; o grau de radicalização dos amplos setores de vanguarda não chegou ao ponto de que sejam facilmente sobrepassados pela esquerda.

No entanto, estamos interessados aqui em nos dedicar ao problema das organizações revolucionárias. O recente congresso do mandelismo ratificou a construção de “partidos amplos” (sem delimitação entre reforma e revolução), sob o eufemismo de “partidos que servem à luta de classes”, como se os partidos de vanguarda não servissem a tais efeitos ou fossem puramente “propagandísticos”.

Esta afirmação é uma falsidade completa. A orientação que vem seguindo essa tendência desde os anos 90 não é apenas baseada em premissas falsas, mas é um fracasso total. A falsa premissa é a afirmação de que, como a era atual “não seria revolucionária”, seria inútil construir partidos de vanguarda. Mas essa premissa não é apenas errada, senão que o mundo que se aproxima é difícil de imaginar como sem crises, guerras e revoluções. Acreditamos ter demonstrado neste texto que as premissas materiais e políticas para tal cenário estão crescendo.

De resto, também não é verdade que esses partidos reformistas sejam “úteis” para as lutas dos explorados e oprimidos. A velocidade de sua adaptação às regras do jogo do sistema é incrível e, ademais, não está provado que desses partidos estejam surgindo alas à esquerda. As realidades não são todas iguais; algumas experiências, como o caso do PSOL no Brasil, estão cumprindo um papel mediador progressivo. Mas o problema não é a tática que, em cada caso, corresponde a uma construção revolucionária, mas haver renegado estrategicamente a construção de organizações revolucionárias.

Se trata de uma definição que separa a construção atual das perspectivas de uma organização revolucionária e, portanto, nega estrategicamente a relevância do partido revolucionário, o que é um unilateralismo completo e, talvez, o pior erro dessa corrente internacional que, construtivamente, continua a levar uma orientação liquidacionista. Está claro que a cegueira analítica para reconhecer as potencialidades da situação mundial é transferida para a orientação política e construtiva.

Estes chamados partidos da “uteis à luta de classes” não demonstram ser assim; enquanto isso, países como a Argentina são laboratórios de uma construção bemsucedida de partidos revolucionários de vanguarda, como é o caso já mencionado do FIT e do Nuevo MAS. Mas mesmo em outros países há êxitos na construção de organizações revolucionárias, até mesmo pelo fato de que todas as formações neoreformistas estão na lama do possibilismo, o que abre oportunidades construtivas em todos os lugares.

Para além da Argentina ser um país político por antonomasia (a França também, mas o NPA vai de crise em crise), com enormes tradições de luta e muito favorável hoje às correntes da esquerda revolucionária, não acreditamos que seja um “exotismo” ” A mesma fluidez dos acontecimentos, a mesma fragilidade nas identidades políticas, a mesma “porosidade” que uma campanha eleitoral como a de Philippe Poutou demonstrou na França mostra que crescem o espaço político e as possibilidades para a esquerda revolucionária. Esse fenômeno também se manifesta em países do mundo anglo-saxão, embora de forma mais fragmentária. Há um arco-íris político que vai do “progressismo”, o novo reformismo mais de direita, ao reformismo mais de esquerda. E o reformismo mais à esquerda (poderia ser o caso do PSOL) começa a “se sobrepor” às correntes revolucionárias.

Outra coisa é o caso do NPA na França. É, finalmente, um partido trotskista com tendências, em crise, mas que não desapareceu. A campanha presidencial de Philipe Poutou foi bem-sucedida, embora tenha poucos votos. Nesta área existe um problema na França que não existe na Argentina: o sistema eleitoral, muito mais restritivo, torna quase impossível eleger deputados, o que, por sua vez, impede a cristalização das relações político-eleitorais. A partir disso, aprendemos muito na Argentina, onde se está acumulando uma experiência estratégica para o trotskismo, sem antecedentes nas últimas décadas, talvez atualmente a experiência mais importante do trotskismo internacional, com maior acúmulo de experiências.

Então, há agora uma “porosidade” maior para a esquerda revolucionária, embora seja verdade que deve haver uma “acumulação primitiva trotskista” para tirar proveito dela. Sem acumulação prévia, o fenômeno não pode ser explorado. Além disso, é preciso saber avaliar as tendências dinâmicas da realidade. Sem isso, o que se tem é um arco que vai do derrotismo ao liquidacionismo (um perigo real para muitas correntes atualmente, e não apenas europeias).

Alertamos contra uma leitura unilateral dos acontecimentos, que enfatize os elementos existentes de regressão (que são reais), mas perde de vista o recomeço da experiência histórica dos explorados e oprimidos que estão sendo vividos, assim como o acúmulo de experiências que significa o ciclo de rebeliões populares. Se apenas se veem as derrotas, a construção de partidos militantes e revolucionários será abandonada. Mas se os fatos forem avaliados estrategicamente, a construção de fortes partidos de vanguarda centrados na luta de classes é uma tarefa atual.

8. Preparar-nos para uma luta de classes mais dura

Vamos ver agora as questões de orientação. Um aspecto que emerge do relatório é preparar a corrente para o cenário de uma luta de classes, direta e mais polarizada. Uma combinação mais rica entre mediação eleitoral (na qual se deve participar compulsoriamente) e a luta de classes direta.

Até certo ponto, é apropriado alertar que esse cenário envolverá uma espécie de “choque” entre a nova geração militante e a luta de classes. A nova geração pode recuar um pouco se as coisas ficarem difíceis, dado que ainda é determinada pela influência do pós-modernismo, o contexto “light”, de um mundo que é atual, mas que está ficando para trás. Esta nova geração, “de repente”, será confrontada com um cenário de grandes choques de classe. Isso terá, simultaneamente, o valor estratégico de se configurar como uma forja militante real que nossas organizações já estão vivendo, configurando-se cada dia mais como uma militância aguerrida, militante.

O desafio da orientação é fortalecer nossa sensibilidade com os novos fenômenos, o movimento das mulheres, as novas gerações militantes, as tarefas democráticas, reafirmando ao mesmo tempo um trabalho estratégico de longo prazo, para situar-se entre porções crescentes dos trabalhadores (entre as novas gerações operarias).

Outro plano disso é a combinação de tarefas político-eleitorais (legalizações nacionais, figuras públicas, mídia), de enorme importância hoje para a projeção política de nossos partidos em setores mais amplos, enquanto se prepara a militância para um cenário de luta de classes mais difícil, mais direta. A corrente e o partido devem assumir as tarefas democráticas e eleitorais sem qualquer sectarismo, juntamente com a mudança para a ação direta em cada caso correspondente; não há compartimentos estanques entre ambos planos.

Dentro deste contexto, há uma série de questões a serem estabelecidas. Um, a importância das tarefas democráticas.

Dois, sensibilidade a fenômenos dinâmicos (o movimento das mulheres, as questões da juventude). Três, a unidade de ação para enfrentar os ajustes e golpes reacionários. Não há que ser sectários; devemos saber como praticar a unidade de ação quando apropriado, bem como a frente única, mesmo que seja mais complexa e exija uma elaboração específica que ainda devemos.

Em quarto lugar, o compromisso estratégico com a nova geração operária implica a participação em todas as experiências da nova geração trabalhadora, como é o caso da experiência acumulada por nossa corrente na Argentina em conflitos muito difíceis como o da Gestamp, dos pneumáticos e muitos outros. Esses conflitos levaram à recuperação dos métodos históricos de luta dos trabalhadores e à importância estratégica da democracia operária, importância que é subestimada por outras correntes.

Quinto, é necessário participar das eleições e buscar a legalidade nacional de nossos grupos onde já estamos maduros para dar esse salto. E parte disso é ter acesso à mídia de massa. É um veículo fundamental para emergir do ostracismo, da marginalidade; até certo ponto, a mídia “substitui” a falta de parlamentares. Sem figuras políticas, eleições e mídia, não se sai do ostracismo. Este ponto é de uma potencialidade imensa para a esquerda revolucionária, porque lança uma “sombra” com um alcance muito maior do que chega o trotskismo de forma organizada (e, ao mesmo tempo deve ser obrigatoriamente uma alavanca para a nossa construção orgânica) . Isso tem a ver com o mundo hoje, com a busca por novos personagens públicos. Uma renovação que, embora não é de classe, pode ser jogada por jovens figuras da esquerda como no caso do Nuevo MAS, Manuela Castañeira, um caso de crescente sucesso. Estas são questões que exigem uma abordagem que não seja idiota, nem sectária, politicamente sensível e ao mesmo tempo não perca de vista uma luta de classes mais dura, mais direta para a qual temos de nos preparar (ver sobre a extraordinária participação do partido argentino nas jornadas de dezembro em Buenos Aires).

Em sexto lugar, dar continuidade à elaboração marxista da corrente; que ganhou um lugar privilegiado entre elas e está trazendo ângulos reais para a reflexão estratégica do marxismo revolucionário. Há um certo reavivamento da elaboração marxista; os centenários e os bicentenários se sucedem e são a ocasião para reelaborações, discussões e debates. Até mesmo a Internet está contribuindo para isso, facilitando um intercâmbio maior entre elaborações de diferentes países e regiões.

Em resumo, é um conjunto de tarefas em um contexto excitante que coloca às correntes revolucionárias a possibilidade concreta de dar um salto histórico em nossa experiência, se conseguirmos realizar uma construção revolucionária e militante.

9. Fortalecimento de nossa corrente

Antes de terminar nosso relatório, queremos reiterar uma questão de enorme importância que é invisível em outras correntes: onde o trotskismo está presente, abre-se um espaço político inédito. Possivelmente, essa seja uma visão tendenciosa por conta da Argentina, mas também é provável que ela reflita algo mais universal, que é outra das contra tendências em campo. Há uma nova “porosidade” para a esquerda revolucionária, algo que faz parte desse fenômeno de bipolarização à direita e à esquerda.

Está claro que na Argentina é um fenômeno categórico. As figuras do trotskismo argentino: Nicolás del Caño, Néstor Pitrola, Miriam Bregman, Manuela Castañeira e outros são conhecidas e respeitadas, com um lugar de destaque na arena política e uma presença diária literal nos meios de comunicação de massa.

É claro que a presença política e eleitoral não tem o mesmo peso em questões orgânicas. Há uma enorme desigualdade entre a “sombra” projetada em termos de mídia ou político-eleitoral e a construção real dentro da classe trabalhadora. Mas, mesmo assim, é um fato que a esquerda argentina está na vanguarda da maioria das causas que emergem desde abaixo; que vive um processo de acumulação constante que não foi cortado e que não teve derrotas significativas na última década e meia. Sim, houve derrotas, especialmente no seio da vanguarda operária, mas não se pode dizer que elas signifiquem a falência da experiência atual. Foram colocados fortes retrocessos, mas que não limitam em geral as possibilidades de acumulação de forças no seio dos trabalhadores.

De qualquer forma, nossa corrente internacional está se fortalecendo em todos os lugares onde está estabelecida; cada grupo mostra progressos desde o ponto de partida do seu desenvolvimento. Há uma miríade de elementos que abonam e demonstram esse progresso, desde o amadurecimento teórico-político e estratégico da corrente até o acúmulo de experiências em vários planos.

A experiência construtiva do Nuevo MAS na Argentina, que, partiu de muito atrás com respeito às forças de esquerda, vem se afirmando crescentemente política e construtivamente, com personalidade própria, que aparece como evidente para qualquer avaliação objetiva. A figura de Manuela Castañeira, a experiência de Las Rojas, a nova geração militante, a extensão nacional do partido, as experiências valiosas feitas na recomposição dos trabalhadores, o conjunto de acertos políticos, são elementos destacáveis de um partido que está acumulando condições para um salto qualitativo

Ao seu nível, algo semelhante acontece em outros núcleos da nossa corrente internacional, como é o caso do NPS na Costa Rica, Socialismo ou Barbárie Brasil e SoB Europa (Espanha e França), onde em cada caso os grupos parecem se aproximar de um novo patamar de desenvolvimento. Mesmo em um país tão duro quanto Honduras, o núcleo de nossa corrente está se consolidando.

A elaboração desta dupla edição de nossa revista é a expressão de um crescente amadurecimento teórico e estratégico de uma corrente que está se fortalecendo visivelmente e aponta tornar-se uma corrente internacional de real importância no médio prazo.

 

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[    1]      A citação completa refere-se à França e diz: “Você diria que estamos testemunhando não apenas uma direitização, mas uma polarização da sociedade francesa, como vimos em outros lugares? 'Totalmente. A tendência dominante é a polarização e um nível de tensão sem precedentes na sociedade francesa nas últimas décadas. Se você lê a imprensa, percebe que há muita raiva e divisões ferozes, mesmo em famílias ou entre amigos “(Feyzi Ismail,”Entrevista a Stathis Kouvelakis sobre Macron, Le Pen, la crisis social y la izquierda“) .P5

[    2]      Muitos dos acontecimentos nos negócios humanos não são intencionais (ou contra as intenções iniciais). Se é claro que a globalização beneficiou os EUA por um longo período, as forças econômicas, sociais e geopolíticas colocadas em ação, e que nenhum governo (não importa o quão forte) possa controlar, pode ser revertido, posteriormente, contra aquele que os colocou em movimento ou deu-lhes rédea livre. É o que parece estar acontecendo hoje com os Estados Unidos em questões econômicas e geoestratégicas. P15