Até quando aguentar Macri?

Aprofunda-se a crise política e social

ROBERTO SÁENZ

“Sabido é, porque o governo admite, que somos uma gelatina e qualquer ruído nos faz tremer. Mas devemos considerar que um Brasil complicando-se alimentará a má predisposição para com os emergentes em geral, e para nós, porque são nossos principais parceiros comerciais”.(Gabriel Caamaño, La Nación, 22/08/18).

A conjuntura do país está em uma encruzilhada. Uma profunda crise política e social (que pode levar a uma crise institucional) parece estar abrindo-se. Como assinalamos oportunamente, a suspensão do aborto legal não definiu a dinâmica do país. A situação política não está estabilizada. Enquanto o governo não conseguir impedir a crescente crise econômica ou impor sua agenda reacionária, o caminho para as eleições não será resolvido.

O que cresce, ao contrário, é uma dinâmica de polarização política e social, como se  demonstrou nos últimos dias. As duas faces dessa realidade, dessa “bipolaridade”, foram expressas na marcha das classes médias reacionárias de ontem, terça-feira, ao Congresso, bem como a irrupção dos trabalhadores do Estaleiro Rio Santiago, em La Plata, que, passando por cima da burocracia, realizaram uma mobilização combativa nesta cidade contra o esvaziamento do estaleiro.

O pêndulo político está no ar. A crise se alimenta, inclusive, internacionalmente: com a crise dos países emergentes e com a dinâmica política no Brasil marcada por eleições presidenciais incertas que levaram ao colapso do real (o dólar está cotado a mais de 4 reais, um número sem precedentes nos últimos anos que coloca pressão sobre o peso argentino).

Neste contexto, é evidente que a operação “há 2019” é de contenção e capitulação. Está envolvida nesta operação a CGT, que não se envergonhou de se reunir ontem com o FMI, enquanto os trabalhadores do estaleiro eram reprimidos. Assim também o Kirchnerismo, mesmo antes da possibilidade ainda distante de que Cristina termine aprisionada.

A tarefa do momento, e responsabilidade da esquerda, é encorajar o levantamento dos de baixo. Há elementos de transbordamento como o caso do Estaleiro, do movimento universitário, da docência da província de Buenos Aires, do movimento de mulheres e assim por diante. Se enriquecem os atores sociais que ocupam os espaços públicos.

A bronca entre os trabalhadores e outros setores populares é imensa; desde dezembro passado vivemos uma nova situação política que, para além das oscilações conjunturais, não se encerrou.

Não se pode esperar até 2019. O país precisa de um novo Argentinazo que sinta as bases para uma saída desde a classe trabalhadora e a esquerda; que dê o poder de decidir ao povo trabalhador.

Um cenário de crescente polarização

O histórico debate sobre o aborto legal abriu um cenário de polarização política que continuou a se aprofundar.

Um desses polos é o pólo reacionário, agora expresso na campanha oficial e na mídia afim sobre a corrupção. Depois de semanas de denúncias sobre os desclassificados K à frente do Estado, ontem o macrismo conseguiu uma mobilização de sua base social com o argumento quase explícito de colocar Cristina na cadeia; mas também em defesa de toda a sua agenda reacionária.

Sobre o caráter conservador dessa mobilização, não há dúvidas. Mas também é importante notar o caráter minoritário social e político. Algumas dezenas de milhares de idosos dos bairros ricos da capital não expressam uma maioria social. A população trabalhadora está preocupada com a situação econômica e cresce o ódio ao governo pelo ajuste.

O governo tenta forçar a mão à direita. Ele vem tentando com a intervenção das Forças Armadas em tarefas de repressão interna, com a agenda de “segurança”, procurando inventar novos “inimigos” como os imigrantes; uma série de preconceitos sociais para forçar um giro reacionário.

Os “cadernos da corrupção” vão na mesma direção, com Bonadio e Stornelli como o braço executor de uma campanha que confia em fatos reais da corrupção dos K, mas ao mesmo tempo procura ofuscar a corrupção que enxovalha o macrismo (é impossível que papai Macri, proprietário da Socma, não faça parte do jogo!), enquanto politicamente usa o movimento com o propósito de encurralar Cristina K (uma orientação similar a para com Lula no Brasil [1]).

Mas o problema que Macri tem é que a coalizão reacionária que expressa seu governo está em uma clara minoria social; embora deva ser enfatizado que é uma minoria social que expressa o apoio ainda unificado da burguesia, do imperialismo e do aparelho de Estado [2], nada menos.

A maioria dos trabalhadores e os setores populares estão se movendo em direção à oposição. Esta é a razão que explica as dificuldades que a agenda da corrupção encontrou por abaixo (embora certamente irá se instalando conforme continue o bombardeio da mídia).

Muito mais importante é que os efeitos da crise econômica e do ajuste começaram a ser sentidos: a desvalorização do real pressiona por uma nova desvalorização do peso; novas corridas cambiais, mais inflação e mais recessão, tudo o quanto atinge a caldeira social do descontentamento.

Portanto, não é por acaso que os levantamentos começaram. Os trabalhadores do Estaleiro Rio Santiago se mobilizaram ontem e superaram a burocracia da ATE. Em jogo está uma nova tentativa de esvaziar o estaleiro, o que levaria a demissões e ao estouro das condições de trabalho.

Os trabalhadores do Estaleiro têm uma importante tradição de luta. Ademais, com a classe trabalhadora não se brinca: quando se trata da luta, ela vai até o fim (em todo caso, sempre e desde que consiga evitar as manobras impostas pelos dirigentes burocráticos).

Paralelamente, as universidades explodiram esta semana e uma gigantesca marcha nacional universitária está se formando para quinta-feira 30/08. A política de aumento orçamentário zero para o próximo ano (na verdade, uma queda de 35% real), juntamente com a proposta de salário provocativa para o ensino universitário (10% ao longo do ano), está levando à eclosão de um movimento universitário como não tem sido visto há anos.

Em Córdoba, a Reitoria está em vias de ocupação e, também, as faculdades podem ser ocupadas. Assembléias de massa e mobilizações estão se desenvolvendo nas universidades da Grande Buenos Aires.

E não é só isso. Os trabalhadores das Fabricaciones Militares de Río Tercero em Córdoba partiram para a luta. No Rio Turbio, as mineradoras ainda estão em alerta, levantando a necessidade de realizar medidas conjuntas. Assim como a luta contra as demissões na Telam ainda está em aberto, cujos trabalhadores conseguiram uma nova decisão a seu favor.

Com base em uma crise econômica e social sem fundo, e os golpes reacionários do governo, a situação está polarizada e pode vir a explodir por ocasião do debate no Congresso do orçamento do FMI para 2019.

O povo tem que decidir

Neste contexto, a operação de contenção das direções tradicionais tem funcionado por enquanto. Mas está condicionado pela dinâmica de crescente polarização dos acontecimentos.

O trofeu da vergonha, como já assinalamos, é assumido pela CGT: enquanto Vidal reprimia os trabalhadores do Estaleiro, seus principais líderes sentaram-se para uma conversa amistosa com o FMI …

A CGT já aparece mais rasteira do que sob Menem. A política delineada parece ser “negociar” com o FMI algumas migalhas (proposições gerais impossíveis de fazer valer), em vez de chamar a luta contra o ajuste brutal e entreguista que vem impor.

Paralelamente, outra negociação é a do governo com os governadores peronistas, que vergonhosamente concordaram com uma agenda que é tão anti-operária e antipopular quanto a do governo, apenas com centro na província de Buenos Aires e CABA (eles propõem eliminar de imediato os subsídios. Do transporte, por exemplo).

E depois há o caso dos K, que é extensível a Hugo Moyano. De cabeça na “estratégia” de direcionar tudo para as eleições de 2019, mesmo sob a ameaça – por enquanto longinqua – de ver Cristina presa, eles não parecem pensar em mudar a postura (novamente a mesma orientação capituladora de Lula) e o PT no Brasil [3]).

Seu cretinismo institucional tem a lógica de uma corrente burguesa que quer convencer educadamente os patrões de que com eles as coisas seriam melhores do que com Cambiemos …

Desde a esquerda o ponto chave da situação atual é que não podemos esperar até 2019: a contenda com o governo deve ser resolvido agora! Se Macri continuar até 2019, possivelmente seja sobre a base de uma grave derrota.

A rejeição do aborto legal no Senado e o papel sinistro da Igreja tem desacreditado as principais instituições da democracia dos patrões. Simultaneamente, com o eixo na justiça patronal, a burguesia tenta realizar uma arbitragem que fortaleça o regime pela direita; que o torne mais antidemocrático.

É isso que coloca as tarefas democráticas no centro da cena; e a primeira tarefa contra o regime é atacar, ferir de morte o governo; não há como avançar no questionamento de conjunto do regime sem iniciar pela instituição mais forte do mesmo (o Poder Executivo).

É necessário formular um programa de saída para a crise nacional: rejeição do ajuste e desconhecimento do acordo com o FMI. Não ao pagamento da dívida externa. Aumento de salários de acordo com a inflação e a cesta familiar indexada mensalmente. Proibição por lei de demissões e suspensões. A expropriação sob controle dos trabalhadores de toda empresa que vá para o fechamento. Expropriação de todos os empresários e políticos envolvidos na corrupção. Triplicação do orçamento educacional e aumento de 35% dos salários dos docentes concedidos de uma só vez.

E junto com isso as consignas democráticas e político-democráticas: o aborto legal já. Dissolução do Senado. Separação de Igreja e Estado. O povo tem que decidir: revogação do mandato presidencial e convocação de uma Assembléia Constituinte soberana para que trabalhadores, mulheres e jovens  reorganizemos de baixo a cima o país.

Nós temos que continuar nas ruas. Não se pode esperar até 2019! Vamos por um novo Argentinazo que crie as condições para uma saída operária e popular para a crise nacional.

 

[1] A proscripção de uma figura burguesa opositora desta envergadura, para além de seu papel de contenção e governabilidade, eliminaria um fator mediador do meio, facilitando o desenvolvimento à direita dos acontecimentos..

[2] Em qualquer caso, deve-se notar que, economicamente, as contradições crescem em certos setores burgueses.

[3] Em vez de ter apelado para a “resistência popular pacífica”, mas nas ruas, o centro da orientação do PT para libertar Lula passou pelos infinitos recursos judiciais. Enquanto isso, é provável que em poucos dias mais seja ratificado seu encarceramento e a recusa em ser candidato.