Redação

Apresentamos aqui, desde a corrente internacional Socialismo ou Barbárie parte de um amplo trabalho de revisão crítica da economia da transição socialista: desde os debates dos anos 20 e 30 do século passado na antiga URSS, passando pelos da segunda pós-guerra, até os ensinamentos das experiências anticapitalistas na China de 1949 e Cuba.

Este texto de Roberto Sáenz busca fundamentar porque uma economia de transição autêntica não pode ser de comando burocrático nem como abertura reformista para o “socialismo de mercado”. Pelo contrário, deve expressar uma combinação dialética entre planejamento democrático, o controle da produção via o mercado e o poder político nas mãos da classe trabalhadora. É preciso retomar as perspectivas de Outubro como horizonte estratégico.   

Roberto Sáenz

1. A abordagem geral do problema

1.1 A década de 1920

Na década de 20 do século passado, um debate apaixonante teve lugar na ex-URSS sobre os caminhos da transição socialista após a revolução. No contexto da mudança das circunstâncias econômicas e do isolamento em que a república bolchevique ficou após o fracasso da revolução europeia, começou a ocorrer uma polêmica e uma luta política muito dura sobre qual direção tomar para promover o processo de transição socialista no contexto do cerco econômico e político da ex-URSS.

O oficialismo burocrático encarnado por Stalin e Bukharin promoveu uma orientação de enriquecimento camponês e de industrialização lenta. No entanto, no final dos anos 20, esta frente unida quebrou-se, e Stalin, numa brutal virada política, impôs a orientação da coletivização agrária e da industrialização a um ritmo forçado. Esta virada, além de comprometer as forças produtivas no campo por décadas, começou a lançar as bases para a transformação do “estado operário com deformações burocráticas”, como Lênin havia definido a ex-URSS no início dos anos 1920, em um “estado burocrático com restos proletários e comunistas”, como Christian Rakovsky o definiu.

Por sua vez, a Oposição de Esquerda liderada por Trotsky vinha alertando desde meados dos anos 20 que sem uma rápida industrialização e planejamento econômico os camponeses acabariam deixando as cidades sem comida e pressionando para a vinculação com o mercado mundial.

Esta posição acabou sendo verificada pelo próprio curso dos acontecimentos, o que levou Stalin a fazer sua curva de 180 graus. Entretanto, as medidas de coletivização e industrialização de Stalin não levaram Trotsky a capitular. Muito precisamente, ele apontou que o “como” e “quem” estava realizando esta virada poderia acabar minando as próprias bases do estado dos trabalhadores, como um produto da desnaturalização dessas medidas. Um setor da Oposição, liderado por Preobrajensky, Radek e Smilga, com uma leitura economicista dos eventos, acabou capitulando, abrindo uma crise na Oposição de Esquerda. A este respeito, Trotsky lembrou: “Em 1929, Preobrajensky, para justificar sua capitulação, alegou que com a ajuda dos sovkhozes e dos kolkhozes, o partido colocaria o kulak de joelhos em dois anos. Já se passaram quatro anos. O que está acontecendo? Se não é o kulak – está liquidado – é o camponês meio rico que pôs de joelhos o comércio soviético, que o forçou a desagradar aos trabalhadores. Em qualquer caso, como vimos, foi Preobrajensky que se ajoelhou diante da burocracia estalinista”  (El fracaso del plan quinquenal, p. 58)

Do ponto de vista teórico, naqueles anos – com réplicas posteriores na ex-URSS, bem como na China e em Cuba – foi gerado um debate estratégico rico e empolgante sobre a orientação geral para fazer avançar a transição em uma direção socialista.

No início do século XXI, voltar a esta discussão é de grande atualidade, à luz dos acontecimentos atuais em Cuba. E os postulados gerais do debate desses anos deixaram uma fonte de lições universais que, no entanto, não costumam ser revisitadas na esquerda revolucionária, pelo menos de forma sistemática.

Precisamente, o que nos move neste trabalho é sublinhar as clivagens teóricas mais gerais desta excitante discussão sobre a economia de transição, abordando-as a partir do seguinte ponto de vista para explicar não apenas as inércias teóricas da facção burocrática cujo teórico era Nicolai Bukharin – a quem também dedicaremos observações críticas – mas, sobretudo, as limitações da abordagem de Evgeny Preobrajensky, um eminente economista da Oposição de Esquerda, que se tornou evidente quando acabou capitulando antes da virada “esquerdista” de Stalin no final dos anos 20.² Postulamos então uma tentativa de superar dialeticamente sua abordagem, à qual Ernest Mandel, o principal teórico do movimento trotskista na segunda metade do século passado, estava tão endividado.

Neste caminho, tomaremos como ponto de referência as observações de Leon Trotsky em uma série de textos brilhantes dos anos 1920 e 1930 sobre o necessário entrelaçamento na economia da transição entre o plano, o mercado e a democracia operária, que não foram considerados com o devido cuidado entre as correntes socialistas revolucionárias. ³

Como tentaremos mostrar, suas opiniões constituem uma superação crítica dos aspectos mecanicistas e/ou economistas de Preobrajensky. Como Trotsky advertiu na época: “A análise de nossa economia do ponto de vista da interação (tanto em seus conflitos como em suas harmonias) entre a lei do valor e a lei da acumulação socialista é, em princípio, uma abordagem extremamente importante; mais precisamente, a única correta (…), mas agora existe um perigo crescente: que esta abordagem metodológica se transforme em uma perspectiva econômica acabada que prevê o “desenvolvimento do socialismo em um único país”. Há motivos para esperar e temer que os seguidores desta filosofia, que até agora se basearam em uma citação mal compreendida de Lenin, tentem adaptar a análise de Preobrajensky, transformando uma abordagem metodológica em uma generalização para um processo quase autônomo. É essencial, a todo custo, deter este tipo de plágio e falsificação. A interação entre a lei do valor e a lei da acumulação socialista deve ser colocada no contexto da economia mundial. Então fica claro que a lei do valor operando dentro da estrutura limitada da NEP é complementada pela crescente pressão externa da lei do valor que domina o mercado mundial e que está se tornando cada vez mais forte” (“Notas sobre cuestiones económicas”, 1926). Desta forma, Trotsky coloca toda uma problemática que é o objetivo deste trabalho a ser desenvolvido à luz da experiência histórica do século passado.

1.2. Lei do valor, protecionismo socialista e acumulação

O que está em jogo é o que, à luz da experiência prática do século XX, deveria ser a mecânica de uma genuína transição socialista. Um problema de vastas consequências entre os marxistas revolucionários surge aqui: uma visão esquemática da transição socialista, como se fosse um processo governado exclusivamente por leis econômicas, que poderia operar mecanicamente entre classes e frações de classe, levando a um único resultado possível: o socialismo.

O cerne teórico do debate é a relação entre os três elementos que necessariamente “regulam” a economia na transição: planejamento, mercado e democracia dos trabalhadores.

A discussão sobre o mercado foi colocada muito corretamente em A Nova Economia de Preobrajensky em relação ao escopo e limites da continuidade das imposições da lei do valor na transição. A questão sempre foi uma matéria de polêmica árdua nas correntes revolucionárias socialistas. Da nossa parte, sempre defendemos que a lei do valor é inevitavelmente mantida nas economias em transição e que obscurecer este fato presta um mau serviço ao processo de socialização da produção.

Há várias razões para isso. A principal delas é a subsistência do mercado mundial e o fato de que todas as revoluções anticapitalistas do século passado ocorreram em países atrasados, então inevitavelmente sua racionalização econômica não poderia prescindir da medida do valor: a medida da riqueza pelo tempo médio de trabalho utilizado para produzi-la.

Trotsky sempre insistiu que, como correlato da necessária subsistência da lei do valor, a moeda estável deveria ser uma forma inescapável de racionalização econômica: não há outra maneira de medir objetivamente a produtividade da economia de transição, pelo menos nos países atrasados, em sua relação com o mercado mundial. Um padrão comum era necessário para racionalizar a economia de transição: “É necessário que cada fábrica estatal, com seu diretor técnico, não só esteja sujeita ao controle de cima (…), mas também de baixo, pelo mercado, que permanecerá por muito tempo o regulador da economia estatal”. O plano é verificado e, em grande parte, realizado através do mercado. A regulamentação do mercado deve ser baseada nas tendências que se manifestam no próprio mercado, deve provar sua racionalidade econômica através de cálculos comerciais. A economia do período de transição é inconcebível sem o ‘controle do rublo'” (in Alec Nove, The Economy of Feasible Socialism, pp. 92-93).

Um problema que não foi levado em consideração nos debates na esquerda trotskista é apresentado aqui: o caráter de mercadoria da força de trabalho mesmo após a expropriação dos capitalistas. Porque em todos os países onde o capitalismo foi expropriado, seja a Rússia em 1917, a China em 1949 ou Cuba em 1959, a força de trabalho invariavelmente manteve o caráter de uma mercadoria passível de troca por um salário. E se o principal “fator de produção” continuou sendo uma mercadoria, não há como supor que a lei do valor não continue governando, pelo menos até certo ponto, na economia de transição. Desconsiderar isto significaria negar as imposições que o valor ainda implica com relação ao caráter ainda não totalmente emancipado da força de trabalho, bem como os problemas de geração e administração do trabalho não remunerado. A revolução começa essa emancipação, mas não pode completá-la.

A este respeito, digamos que na transição permanece, inevitavelmente, um princípio de exploração do trabalho: a auto exploração ou exploração mútua dos trabalhadores. Esta é uma ação coletiva e consciente da classe trabalhadora para as gerações posteriores, como Marx classicamente apontou em sua Crítica do Programa Gotha.

O problema é quando esta auto exploração não significa realmente uma acumulação a serviço do progresso geral da classe trabalhadora, mas de uma burocracia que se eleva acima dela, como acabou acontecendo na ex-URSS e em outras sociedades não capitalistas. Nesse caso, a auto exploração torna-se seu oposto: uma nova forma, certamente não orgânica, de exploração a serviço da burocracia, que toma a maior parte do acúmulo.

Vejamos o caso da China em 1949: “[Não se pode deixar de ver] o papel problemático do Estado, que nunca é neutro, e muito menos quando a burocracia do aparelho estatal não está sujeita a nenhum tipo de controle. Na China, desde os anos 50, a burocracia sequestrou efetivamente o Estado, usando-o como uma máquina para se apropriar do excedente social” (“End of a Model or Birth of a New One?”, Au Loong Yu, New Politics, Summer 2009, em www.socialismo-o-barbarie.org).

Agora, assim como sublinhamos o alcance da lei do valor na transição, é necessário apontar os limites de seu império. Se os trabalhadores deixassem simplesmente o mercado governar plenamente, o resultado seria o retorno ao capitalismo e não a acumulação socialista, ao contrário do que Bukharin acreditava em sua orientação oportunista do enriquecimento ilimitado dos camponeses-proprietários.

Pelo contrário, promover a acumulação socialista nas mãos do Estado proletário implica precisamente “violar” a regra da lei do valor. Kalecki, o conhecido economista polonês, costumava dizer com astúcia que “a coisa mais estúpida que se pode fazer é não calcular; a segunda coisa mais estúpida que se pode fazer é seguir cegamente os resultados dos próprios cálculos” (em A. Nove, cit., p. 151).

Neste sentido, Preobrajensky estava certo (e é um dos pontos mais fortes e um tanto universal de sua argumentação) quando apontou: “A ideia do camarada Bukharin de que mesmo a acumulação socialista não pode ser contraposta à lei do valor (…) porque nossa economia está crescendo “com base nas relações de mercado” constitui um flagrante erro teórico sobre o qual se ergueu um programa de oportunismo teórico e prático (…). Somos capazes de ‘acumular’, de vender nossos produtos pelo dobro do valor que no exterior, somente porque erguemos uma barreira entre nosso território e o mercado mundial, que defendemos pela força” (La nueva economía, p. 31).

De fato, o Estado dos trabalhadores deve orientar e escolher as violações necessárias e inevitáveis à regra da lei do valor, sob pena de não haver acumulação socialista. Mas isto não pode acontecer ao preço de uma queda na irracionalidade econômica, o limite da definição de Preobrajensky que, na época, o estalinismo atravessou. Como Trotsky observou corretamente: “O monopólio do comércio exterior é um poderoso fator a serviço da acumulação socialista; poderoso, mas não todo-poderoso. O monopólio do comércio exterior só pode moderar e regular a pressão externa da lei do valor na medida em que o valor dos produtos soviéticos, ano após ano, se aproxima do valor dos produtos do mercado mundial” (“Notas sobre cuestiones económicas”). Desenvolvemos isto mais adiante.

Voltemos agora à necessidade de “violar” a lei do valor. A acumulação, uma vez expropriada a burguesia, mas no contexto da subsistência do mercado mundial capitalista, terá que ser feita em toda uma série de ramos que a economia do país após a revolução não poderia suportar se obedecesse aos critérios de produtividade média do mercado mundial.

Entretanto, enquanto se aguarda a extensão do processo político da revolução a outros países (a única garantia final de subsistência, como Lênin e Trotsky apontaram inúmeras vezes), é imperativo colocar a economia em marcha, sob pena de morte por fome do estado dos trabalhadores. Ainda mais levando em conta o certo isolamento ao qual a revolução será submetida, pelo menos em um primeiro momento.

Nessas condições, a violação da lei do mercado é uma obrigação da transição, o que torna necessário colocar em funcionamento mecanismos indispensáveis de “protecionismo socialista” da economia. Se o livre comércio com o mercado internacional fosse permitido, os camponeses ou produtores capitalistas agrários, ou qualquer produtor privado de bens, inevitavelmente prefeririam exportar sua produção. E por razões muito concretas: com toda certeza estes produtores privados (especialmente agrários) obterão melhores preços no mercado internacional do que aqueles fixados internamente pelo Estado, além de receberem pagamento em moeda estrangeira e assim terem acesso a mercadorias de melhor qualidade e preço mais baixo do que no mercado interno.

É óbvio que quando o estado proletário fixa preços para a produção agrária e força os produtores do campo a comprar produtos da indústria local, que é mais atrasada do que a do exterior, está de certa forma explorando esses produtores agrários: dá-lhes menos valor em troca de mais valor, em benefício da acumulação socialista. Este é o ponto corretamente sublinhado e desenvolvido por Preobrajensky, que chamou este processo de “acumulação socialista primitiva”.

Em resumo: a lei do valor subsiste e deve subsistir de certa forma para racionalizar a economia de transição, mas ao mesmo tempo deve necessariamente ser infringida para que a acumulação socialista comece e se desenvolva.

1.3 planejamento socialista

Vejamos agora a apaixonante problemática do planejamento. Foi neste ponto que foram observados os lados mais defeituosos do pensamento de Preobrajensky (e que os trotskistas do segundo período pós-guerra interpretaram literalmente). Acontece que, com a justa preocupação de promover a industrialização nas mãos do Estado operário, Preobrajensky chegou ao ponto de caracterizar unilateralmente o planejamento como uma espécie de “lei natural”: uma Lei com letra maiúscula.

É sabido que foi sob a direção política de Trotsky que a oposição de esquerda levantou a necessidade de industrializar o país e planejar sistematicamente sua economia. Mas o conceito de “lei do plano” ou “lei da acumulação socialista primitiva” foi mais a elaboração de Preobrajensky, o que levou Trotsky a advertir sobre o perigo de que essa mesma “lei” pudesse ser interpretada como um processo quase autônomo com respeito ao sujeito social e político no comando da transição, a classe trabalhadora.

Em nossa opinião, esta ideia da “lei do planejamento” pode assumir dois significados diferentes. Por um lado, parte corretamente do fato de que se a alocação de recursos não é feita através da anarquia do mercado (não há concorrência de produtores privados, que foram expropriados), o planejamento é necessariamente imposto para organizar a produção.

Mas o que nos preocupa aqui é o uso desta ideia de “lei” em outro sentido: se ela significa acumulação a serviço da classe trabalhadora de forma autônoma, por sua própria dinâmica, é questionável porque sugere que ela pode ser imposta independentemente do sujeito à frente da direção da economia. O erro é, então, assumir esta “lei” como se impondo espontaneamente, como lei da gravidade ou do automatismo econômico, independentemente do sujeito sociopolítico que toma as decisões. Porque a experiência histórica tem mostrado que os processos econômico-sociais de transição não avançam em uma direção socialista se a classe trabalhadora não estiver verdadeiramente à frente do Estado.

Esta ideia de que a transição socialista avançaria quase espontaneamente deu origem a desvios objetivistas no sentido de acreditar que seria uma “lei natural” que se imporia, independentemente de quem planeja e como. Isto é completamente falso.

A rigor, quando se fala da “lei do plano”, especialmente nos estágios iniciais da transição, está-se mais na presença de um princípio de planejamento do que de uma lei real. Nos anos 1920, Bukharin também falou do “princípio do planejamento”, mas em seu caso para tirar qualquer entidade real, qualquer necessidade, e reduzi-lo a uma mera “política econômica”, como Preobrajensky o criticou muito bem.

O planejamento é, em qualquer caso, um critério a ser afirmado na transição, e não uma lei espontânea que se impõe regularmente, como é o caso da lei do valor sob a ordem capitalista. O plano não se impõe: ele deve combater conscientemente determinações que, deixadas à regra da “lei econômica natural”, ou seja, valor, levariam à quebra do monopólio do comércio exterior e a uma racionalidade econômica de acordo com os preços de mercado⁴.

Aqui, a questão de quem e como se planeja é decisiva. Justamente porque não existe uma “lei objetiva” que a faça funcionar por si só, a racionalidade do planejamento como uma intervenção política na economia depende, em certa medida, do caráter e da “qualidade” das decisões. Um planejamento liderado por uma burocracia corrupta e chauvinista é radicalmente diferente de um planejamento liderado por uma classe trabalhadora consciente. Como disse Pierre Naville, a racionalidade do planejamento e sua superioridade à anarquia do mercado não são impostas automaticamente: elas dependem de seus fins. E estes fins dependem, por sua vez, de quais classes e frações de classe o próprio planejamento está a serviço, pois “se o plano deve se tornar o instrumento de uma determinação de objetivos, de uma finalização, é uma obrigação que leve em conta os interesses [sociais] diretamente envolvidos, e não apenas os objetivos estabelecidos pela liderança política (o partido)” (Le nouveau Léviathan, 2, p. 228).

Também a anarquia do mercado capitalista tem sua racionalidade, como o próprio Lenin apontou; sem algum tipo de racionalidade, os sistemas sociais entrariam em colapso. Mas a “racionalidade” que é imposta pela lei do valor (e esta automaticamente, na medida em que expressa uma ordem social dominante a nível mundial) está, logicamente, a serviço da acumulação capitalista.

O desenvolvimento das forças produtivas na transição socialista, a acumulação socialista, para realmente servir à classe trabalhadora, deve estar sob a liderança da classe trabalhadora, como mostra toda a experiência do século XX.

Em resumo, supor que o planejamento poderia ter uma racionalidade per se ou, a fortiori, a capacidade de se impor como lei “objetiva” poderia ter sido compreensível nas primeiras décadas do século passado, após a Revolução Russa. Mas à luz da experiência geral, é tolice teórica ou objetivismo obsoleto acreditar que uma burocracia, uma camada social estranha à classe trabalhadora, desenvolverá na ausência desta uma acumulação “socialista”, em vez de buscar, acima de tudo, resolver sua própria questão social. Isso é, consolidar as relações sociais que lhe conferem um status dominante sobre a classe trabalhadora, mesmo que o faça em nome do “socialismo”.

1.4 Democracia operária, propriedade, possessão e estado proletário

“Todos aqueles que refletiam poderiam facilmente convencer-se de que a transformação das formas de propriedade, longe de solucionar o problema do socialismo, apenas o colocava” (León Trotsky, La revolución traicionada, p. 34.)

As relações entre economia e política na transição são modificadas em relação ao “tipo ideal” de capitalismo de livre mercado, no qual economia e política são estritamente separadas. Isto é completamente anulado na transição: os dois estão em grande parte “fundidos” novamente: o Estado se torna o organizador econômico, como disse Trotsky.

Aqui o planejamento está ligado à democracia dos trabalhadores e ao problema do caráter do Estado, do verdadeiro caráter do poder: a ditadura do proletariado. Se o planejamento não tem uma racionalidade em si, se tudo depende de quem planeja e como, já estamos deixando o nível meramente econômico: vamos para as definições políticas e estratégicas da política econômica. Ainda mais quando a economia, os meios de produção, foram nacionalizados: é fundamental quem decide no Estado, porque esse sujeito será aquele que administra o produto excedente, o valor excedente nacionalizado.

Agora, este critério destrói a equalização mecânica habitual nas fileiras do trotskismo do pós-guerra entre propriedade estatal e propriedade da classe trabalhadora ou socialização, por várias razões.

Em primeiro lugar, a propriedade é apenas “absoluta” no caso da propriedade privada capitalista. Quando se proclama “propriedade do povo inteiro”, como é o caso da propriedade estatal, e dado que dentro deste “povo inteiro” existem várias classes e frações de classe, não se está dizendo nada muito concreto. Além disso, nos vários regimes sociais ao longo da história, a propriedade sempre máscara diferentes graus de apropriação real das coisas. Foi o caso, por exemplo, do colonato no feudalismo, uma forma de propriedade que significava formas muito diferentes de acesso à terra para os camponeses.

Portanto, além do conceito de propriedade, existe o conceito de posse efetiva. Se a classe trabalhadora é declarada “dona” de um bem-estamos falando fundamentalmente dos meios de produção – mas esse bem nunca está realmente em suas mãos, é duvidoso se ela sente que a “propriedade” seja eficaz. Um velho ditado dos países do Leste Europeu foi muito ilustrativo a este respeito: “A propriedade que é declarada como pertencente a todos não pertence a ninguém, e é apropriada pelos mais malfeitores”. Ou, no caso da China pós-1949: “[nas sociedades não capitalistas] as leis e regulamentos escritos não são necessariamente obrigatórios na prática. Desde os anos 50, a burocracia chinesa governa usando um conjunto de regras ocultas e não escritas (…). O propósito das regras ocultas é óbvio: elas servem aos [interesses] ocultos da burocracia, ou seja, o enriquecimento da burocracia” (Au Loong Yu, cit.).

Na definição de propriedade como “social” há uma contradição óbvia apontada por Pierre Naville: sempre que a propriedade é declarada, ela está sempre em relação aos não proprietários. De fato, a propriedade estatizada é inicialmente afirmada contra os capitalistas expropriados. Mas durante a transição, a própria propriedade deve ser reabsorvida na socialização efetiva da produção – isto é, na gestão coletiva dos meios de produção pela classe trabalhadora auto-organizada -, caso contrário, a propriedade acabará se afirmando, como aconteceu nos países “socialistas”, contra a massa dos trabalhadores.

Sendo assim, a propriedade estatizada deve se referir mais concretamente à posse efetiva dos meios de produção pelos trabalhadores, o que significa tender à superação da divisão entre trabalho vivo e morto de forma efetiva e à dissolução de toda propriedade através da socialização da produção.

Estas são as únicas relações que podem permitir o planejamento econômico a serviço da classe trabalhadora e conferir um caráter efetivamente operário ao Estado, de modo que a expropriação dos meios de produção seja realmente colocada a serviço de uma gestão e controle efetivo da classe trabalhadora.

A democracia operária, uma verdadeira ditadura do proletariado, o exercício efetivo do poder pelo proletariado, é o terceiro fator para colocar a acumulação a serviço das necessidades da massa dos explorados e oprimidos: “Um dos erros mais grosseiros seria o de deduzir disto [a determinação final da base econômica] que a política da liderança soviética é um fator da terceira ordem. Não há outro governo no mundo que tenha em tal grau o destino do país em suas mãos. Os sucessos e fracassos de um capitalista dependem, embora não inteiramente, de suas qualidades pessoais. Mutatis mutandis, o governo soviético se colocou, em relação à economia como um todo, na situação do capitalista com respeito a uma empresa isolada. A centralização da economia faz do poder um fator de enorme importância” (L. Trotsky, La revolución traicionada, p. 48).

Resumindo, após a avaliação dos três aspectos da transição (mercado, plano, democracia dos trabalhadores), temos que os fatores econômicos e políticos, objetivos e subjetivos, são profundamente inter-relacionados e inseparáveis. Vale a pena criticar aqui as abordagens puramente economicistas do século passado, que acreditavam que a economia da transição socialista poderia ser definida por apenas um fator, a nacionalização da propriedade privada, e que a partir daí o processo poderia avançar em uma direção socialista “automaticamente”.

Toda a experiência do século XX mostrou que isso não é assim: que a propriedade capitalista seja expropriada é uma condição absolutamente necessária, mas não suficiente para abrir o caminho para uma sociedade e uma economia em transição efetiva para o socialismo. Também é necessário que o poder político passe efetivamente para as mãos dos trabalhadores, para que haja uma verdadeira ditadura do proletariado, e não de uma burocracia.

Porque se, como tentamos mostrar, a transição é marcada pela relação inextricável dos três elementos mencionados acima, seu destino depende não apenas do contexto econômico, mas também da natureza do poder político do Estado. Não basta definir uma economia como “de transição socialista” que a propriedade seja supostamente “da classe trabalhadora”, mesmo que de fato esteja nas mãos da burocracia, como a generalidade do trotskismo manteve no período do pós-guerra. A propriedade e a posse dos meios de produção, o poder político e a capacidade de planejamento eficaz devem estar nas mãos dos trabalhadores para que a transição siga na direção socialista. Esta é uma das principais lições que a experiência do século 20 legou às revoluções socialistas do novo século.

4. Os problemas da acumulação socialista

4.1 O caráter do giro estalinista

” Os princípios básicos sólidos, como as resoluções da 16a Conferência do Partido sobre industrialização e coletivização, nas condições da administração burocrática, quando a classe é suplantada pelos burocratas transformados em um setor governante isolado, não ajudam a avançar, mas a frustrar a construção socialista” (Carta dos Quatro, “Exigimos”, Rakovsky, Kosior, Muralov e Kasparova, abril de 1930).

Como podemos caracterizar o giro estalinista à coletivização forçada do campo e à industrialização acelerada no final da década de 1920? A priori, estas foram medidas “esquerdistas”: dos “camponeses, enriqueçam-se” dos anos anteriores à “liquidação do kulak como uma classe”, e do crescimento industrial a um “ritmo de tartaruga” para uma taxa de crescimento brutal. Na superfície, as medidas visavam fortalecer a economia de transição e a ditadura proletária, liquidando o perigo da orientação direitista anterior. O historiador trotskista Pierre Broué dá conta das discussões que se abriram após o giro de Stalin na Oposição de Esquerda.

Esta circunstância produziu a mais grave divisão nas fileiras da Oposição de Esquerda, com uma seção acreditando que as medidas de industrialização de Stalin visavam o “fortalecimento automático das posições da classe trabalhadora”. Assim surgiu a cisão de Preobrajensky, Radek e Smilga, que passaram para a fração estalinista. A controvérsia girou em torno de se o giro de Stalin serviria, apesar de seu caráter burocrático, para reforçar a economia da transição, ou melhor, para inaugurar uma dinâmica de acumulação burocrática. A maioria da oposição liderada por Trotsky resistiu: a chave para o caráter destas medidas era quem as executaria e como.

Há dois elementos a serem observados aqui. A primeira é que as medidas foram tomadas de forma frenética: o campo russo foi simplesmente destruído por décadas. A forma como a coletivização foi realizada nada teve a ver com o que foi postulado pela tradição de Marx e Engels e o próprio bolchevismo: a assimilação voluntária das formas de produção social no campo pelos pequenos proprietários de terras. Para piorar a situação, o ritmo furioso da industrialização não teve problemas em recorrer aos métodos mais draconianos de exploração de mão-de-obra.

Tudo isso estava acontecendo, além disso, num cenário muito preciso: qualquer indício de democracia dos trabalhadores havia sido liquidado; a classe trabalhadora, para todos os fins práticos, havia sido deixada fora do poder; os organismos de representação de massa, completamente esvaziados; a Oposição de Esquerda, em banimento, prisão ou exílio….

Mas estas circunstâncias, de tipo político-social, teriam imensas consequências econômicas: a apropriação do sobreproduto social, da mais-valia estatificada, ficou sob o controle absoluto da burocracia, inaugurando assim o que podemos chamar o período de acumulação burocrática.

Trotsky chegou ao ponto de dizer que “hoje a economia soviética não é nem monetária nem planejada”. É uma economia quase puramente burocrática. A industrialização exagerada e desproporcional minou as bases da economia agrícola. O campesinato tentou encontrar a salvação na coletivização. A experiência logo mostrou que a coletivização desesperada não era coletivização socialista. O subsequente colapso da economia agrícola foi um duro golpe para a indústria. Os ritmos aventureiros e exagerados exigiam uma intensificação ainda maior da pressão sobre o proletariado. A indústria, liberada do controle material do produtor, adquiriu um caráter supra-social, ou seja, burocrático. O resultado foi que perdeu sua capacidade de satisfazer as necessidades humanas” (Leon Trotsky, “A degeneração da teoria e a teoria da degeneração”, 29-4-1933, em Escritos, IV, 2).

Em resumo: nas mãos da burocracia, medidas à primeira vista “esquerdistas” serviram para estabelecer os primeiros marcos de uma acumulação burocrática.

4.2 A coletivização forçada e a industrialização acelerada. Uma acumulação de Estado

“Não é difícil adivinhar quão sedutora é a coletivização total e taxas mais altas de industrialização para a burocracia. Eles ampliariam o exército da burocracia, aumentariam sua participação na renda nacional e fortaleceriam seu poder sobre as massas” (Carta dos Quatro).

A industrialização assumiu uma série de características que não perderia praticamente até o colapso da ex-URSS. Uma das fundamentais foi a prioridade absoluta dada ao setor I, de bens de produção, em detrimento do setor II, de bens de consumo.

Mais uma vez, a prima facie parecia plausível que, para avançar em acumulação e conseguir uma reprodução ampliada da economia, não era suficiente apenas na dotação de capital fixo herdado do czarismo, antes da guerra mundial. Uma renovação e ampliação de escala era urgentemente necessária. O cerco imperialista e os tambores de guerra que vinham batendo quase desde o início dos anos 30 também faziam forte pressão.

Tais foram as desculpas da burocracia para a priorização dos planos quinquenais. Mas aqui surgiram problemas marcados desde o início pela oposição liderada por Trotsky, que viu além destes condicionamentos.

Se a revolução socialista tivesse algum sentido para as massas exploradas e oprimidas, ela tinha que estabelecer pelo menos uma tendência na melhoria de seu padrão de vida. Não foi e não é correto defender – como fez Mandel no segundo pós-guerra – que todo período de acumulação primitiva, seja ele capitalista ou socialista, tinha que operar com base nas privações das massas, e que não havia “nada de particularmente antissocialista nisso”.

Sem dúvida, em um país atrasado, mesmo em um processo de autêntica transição socialista, pode haver privações. Mas estas exigem duas condições que estavam ausentes nos anos 30 na ex-URSS: o consentimento dessas mesmas massas para se privarem a si mesmas a fim para a acumulação, e que essa acumulação deve servir às gerações futuras. Sem estas condições inevitáveis, a “poupança forçada” que a acumulação socialista inevitavelmente coloca em seus primeiros passos é transformada em simples exploração.

Preobrajensky estava ciente deste dramático problema quando apontou que “esta expansão quantitativa das relações socialistas, uma vez que requer uma certa parte do sobreproduto social da economia estatal e subordina o crescimento dos salários à acumulação, limita o crescimento da qualidade das relações socialistas e mantém uma lacuna entre o nível dos salários e o valor da força de trabalho” (La nueva economía, p. 73).

Mas mesmo em meio a todas as dificuldades e privações, pelo menos uma tendência para a melhoria do padrão de vida deve ser afirmada. Se isto não acontecer, o que acaba sendo imposto é uma apreciação “racionalizada” da economia, onde seu caráter de “transição socialista” é sustentado apenas como expressão de desejos, como petição de princípio ou diretamente como fetiche ideológico sem correlato prático.

Também não é válida a acusação estalinista de que as exigências apresentadas pela Oposição de Esquerda eram “corporativas”. A propósito, o mesmo está se repetindo hoje pela Central de Trabajadores de Cuba em defesa do plano do governo Raúl Castro de deixar um milhão de trabalhadores sem trabalho…

Agora, qual é o significado da opção sistemática para o ramo I de produção? Comecemos esclarecendo que Trotsky tinha uma posição diferente da de promover o desenvolvimento da indústria pesada além das medidas. Acusado de ser um “superindustrialista” nos anos 20 por ter sido o primeiro a levantar o problema da industrialização e do planejamento, diante da virada estalinista para a industrialização forçada nos anos 30, ele expressou a preocupação de não quebrar a proporcionalidade elementar entre os ramos econômicos, algo chave para não negligenciar o padrão de vida das massas. Desde o início ele sustentou que o “ótimo” do crescimento não era a obtenção a todo custo de sua taxa potencial máxima, mas aquele que respeitasse esses critérios: “Preste atenção ao uso, duas vezes na mesma página, da palavra ‘equilíbrio’. Há quem pense que esta palavra foi usada apenas por Bukharin e seus ‘direitistas”’ (Alec Nove, escritos sobre Trotsky e a Oposição de Esquerda).

Outra falha de acumulação burocrática, como vimos, é a prioridade absoluta da quantidade em detrimento da qualidade. Aqui, além da baixa produtividade geral da economia que resultou disso, foi o total desrespeito pelos interesses dos consumidores (principalmente os próprios trabalhadores) e a satisfação de suas necessidades.

Rakovsky também insistiu neste ponto: “Era uma produção praticamente sem controle de qualidade. Segundo Rakovsky, “não estamos falando de defeitos específicos, mas de uma fabricação sistemática de produtos defeituosos” (em R. Paulino, cit., p. 133).

Trotsky acrescentará fortemente: “Quanto mais [a produção] avança, maior o choque com o problema da qualidade, e a este problema a burocracia escapa como à sombra”. A produção parece estar marcada pelo selo cinza da indiferença. Na economia nacionalizada, a qualidade pressupõe a democracia dos produtores e consumidores, liberdade de iniciativa e crítica; tudo isso é incompatível com o regime totalitário do medo, da mentira e do panegírico” (Ibid., p. 135).

Estas características concretas da industrialização burocrática apontam para uma desnaturalização do processo de acumulação socialista. Como a burocracia não tinha títulos formais de propriedade, não tinha outra escolha senão acumular como Estado: seus interesses parecem identificados ou fundidos com os do Estado, em condições nas quais o Estado não está realmente nas mãos dos trabalhadores.

A opção pelo reforço de um estado que deixou de ser um estado de trabalhadores ou está em processo de deixar de o ser é, portanto, uma função de seu próprio reforço como única camada social privilegiada e dominante na ex-URSS.

Por essa razão, a acumulação estatal não é igual à acumulação socialista: “Em uma alocação de recursos que se tornaria um padrão na ex-URSS por décadas, já durante o primeiro Plano Quinquenal os setores da indústria pesada, energia e infraestrutura de transporte receberiam a mais alta prioridade, absorvendo 78% do total dos investimentos (…) As altas taxas de investimento no setor de bens produtivos, que só poderiam ser alcançadas através de imensas economias forçadas, é outro elemento explicativo para tão altos níveis de crescimento. A prioridade absoluta do que Marx chamou de setor I da economia implicava a desvalorização da indústria leve, bem como também a construção de moradias populares. Isto se tornou um padrão histórico na economia da ex-URSS, impondo todo tipo de escassez, sacrifícios e restrições tanto aos camponeses (…) quanto às cidades, onde tudo estava faltando, a começar pela moradia” (idem, pp. 122 e 126).

Aqui Paulino não consegue lidar com seu gênio deutscheriano e, apesar desta descrição vívida, tirada dos estudos de Moshe Lewin, ele acaba justificando o estalinismo por causa da chamada “acumulação primitiva socialista”: “O crescimento acelerado também foi possível graças à exploração dos músculos e nervos da classe trabalhadora, em níveis talvez só comparáveis com os primeiros tempos do capitalismo. Toda uma geração foi penalizada por assegurar a industrialização e modernização do país em tempo recorde. Como durante a acumulação capitalista primitiva, o que foi dado em parte foi o sacrifício de uma geração, que constrói a riqueza e os equipamentos sociais que serão herdados pelas gerações seguintes” (idem, p. 127).

Este é um verdadeiro sofisma: não foram as “gerações seguintes” que foram as principais beneficiárias do sacrifício da geração de seus pais e avós, mas a burocracia estalinista. A “poupança forçada”, a serviço da acumulação no setor I e fonte de todo tipo de carências, sacrifícios e restrições às massas trabalhadoras, não implicava então uma acumulação que progride no sentido socialista, mas uma acumulação burocrática ou estatal.

Esta forma de acumulação transformou em uma suposta “lei” uma relação particular entre os setores I e II da produção. As proporções foram as seguintes: em 1928, o setor I ocupava 39,5% da produção e o setor II 60,5%; em 1940, o setor I 61,2% e o setor II 38,8%; em 1965, o setor I 74,1% e o setor II 25,9%; e em 1973, o setor I 73,7% e o setor II 26,3%, de acordo com Nove (El sistema…, cit., p. 468).

De outro ângulo, Moreno também fez uma descrição afiada do funcionamento da acumulação burocrática, neste caso referindo-se à acumulação de estoques e à irracionalidade de sua gestão: “Uma das leis [econômicas] de todos os estados [burocráticos] de trabalhadores é o estoque. Tudo, inclusive a mão-de-obra, é estocado. Cada gerente diz: ‘Em minha fábrica, preciso de mil trabalhadores”. Vou ver se consigo convencer o burocrata a me dar dinheiro para três mil trabalhadores’. Exatamente o oposto do capitalista. Por quê? Para quando chegar a data de cumprimento do plano. O plano é cumprido por mês. Então, no primeiro dia do mês, o burocrata chama o gerente e diz: ‘Então, você vai cumpri-lo?’… E o gerente pensa]: ‘Você vai ver se eu vou ou não cumpri-lo! Entregarei quando quiser, porque já te enganei quando você fez o plano: consegui convencê-lo de que só posso produzir com três mil trabalhadores, e posso trabalhar com mil trabalhadores sem problemas’. Então eles fazem um estoque de mão-de-obra. O mesmo se faz com as matérias primas. (…) A proporção é diretamente invertida, em relação ao mundo capitalista. No mundo capitalista, de todas as matérias primas de um país, um terço está em estoque. Por outro lado, nos estados dos trabalhadores (…) dois terços de tudo o que é produzido está em estoque. Portanto, há falta de tudo, porque tudo está em estoque. Todos estocam e estocam a fim de poder cumprir o plano (…). Todo setor burocrático de produção é mais importante quando tem um investimento maior. Prestem atenção a isso. Uma fábrica ou um setor burocrático, uma filial, um ministério econômico, são mais importantes quando têm mais investimentos do plano. Portanto, cada plano é uma luta infernal de todas as fábricas para pedir investimentos. Eles manobram de todas as maneiras para pedir investimentos. Quando o plano é feito a cada cinco anos, há uma verdadeira luta para ver quem recebe mais investimentos. É uma luta: ‘Precisamos de muito dinheiro, temos que expandir a fábrica, comprar máquinas, construir um novo prédio etc.’. E os outros também vêm para pedir. O plano é uma bagunça, uma luta infernal sobre os investimentos. Eles têm uma tal mania pelos investimentos que isso liquidou a divisão do trabalho. Essa luta interburocrática faz com que qualquer fábrica produza qualquer coisa (…) na ânsia de ter investimentos, a fábrica de lençóis decide (…) fazer um tipo especial de máquina de lavar (…) são produzidas monstruosidades (…) Há onze ministérios que produzem refrigeradores (…) Como você pode ver, é o oposto da divisão do trabalho. Há uma tendência a fazer o máximo possível, e cada fábrica, se puder, faz tudo, para pedir investimentos” (N. Moreno, em uma seleção de cotações para o Seminário sobre a transição).

Passemos para a coletivização forçada do campo. Há muitos estudos que se referem ao desastre que significou para a produção agrária e ao campesinato em geral, não apenas para as camadas privilegiadas, desde o abate de milhões de cabeças de gado antes de entregá-las ao Estado até a morte pela fome – os piores anos foram 1932 e 1933 – de seis milhões de camponeses. Com tal destruição das forças produtivas, só nos anos 60 é que o campo russo parecia se recuperar deste desastre: “Até 1 de outubro de 1929, apenas 7,3% das parcelas camponesas haviam sido coletivizadas, a um ritmo relativamente lento. Depois disso, porém, houve uma reviravolta radical: 13,2% em 1º de dezembro; 20,1% em 1º de janeiro de 1930; 34,7% em 1º de fevereiro do mesmo ano; 50% no dia 20 do mesmo mês; 58,6% em 1º de março […]. No espaço de apenas cinco meses, entre outubro de 1929 e fevereiro de 1930, aproximadamente 60% dos camponeses pobres foram agrupados compulsivamente em organizações de produção coletiva. No final de 1935, 98% dos mujiks atrasados estavam trabalhando à força em formas coletivas de produção. [Se tratou] de uma completa ausência de limites” (Moshe Lewin, 1985). Uma verdadeira loucura pela magnitude das transformações impostas de cima, pelo espírito de aventura, pelo puro voluntarismo (…) e que será a característica dos grandes planos quinquenais da década de 30 (…). Os camponeses reagiram à coletivização forçada através de rebeliões armadas contra os representantes do governo do PCUS (somente durante 1930 houve 14.000 revoltas, rebeliões ou manifestações em massa contra o regime, com a participação de cerca de 2,5 milhões de camponeses), destruindo estoques de grãos, equipamentos, abate de gado, queima de instalações e propriedades. O estalinismo não procedeu simplesmente para eliminar um grupo de camponeses ricos; ele desencadeou uma violência indiscriminada e sem precedentes contra a grande massa de camponeses pobres e médios que se recusaram a ceder suas terras, a ‘coletivizar’ obrigatoriamente” (R. Paulino, cit., p. 117).

Uma orientação que, para limitar tudo isso contra a vontade da massa do campesinato, destrói as forças produtivas em vez de desenvolvê-las, não pode ser muito “progressiva”, muito menos socialista. De fato, na produção de cereais, o nível de 1928 só será atingido novamente em 1939. Além disso, durante o primeiro Plano Quinquenal, o rebanho bovino foi reduzido em mais de 50%, e em 1940 ainda não havia se recuperado. E vários estudos sérios sugerem que, em meados dos anos 80, a produtividade do campo russo estava entre 10 e no máximo 20% da produtividade da agricultura americana.

A respeito desta comparação, Moreno observa: “No campo, todos os males da produção russa são muito piores, a produção é extensa e rende cada vez menos. Há um rendimento decrescente, o mesmo que no resto da economia, mas muito mais grave. Por exemplo, na URSS, as sementes de trigo consomem 16,5% da produção de trigo. Ou seja, se você conseguir 100 de colheita, 16,5% devem ir para as sementes. Nos EUA, é 4%. Quatro vezes mais na URSS! (…) Há o problema das pequenas parcelas de terra dadas aos camponeses. Estas pequenas parcelas de terra representam 3% de todas as terras na Rússia. 97% estão nas mãos dos kolkhozes e sovkhozes, mas estas pequenas parcelas produzem 40-60% de muitas culturas! (…) A batata e a beterraba são as grandes culturas dos estados do Leste Europeu; são tradicionais, são os grandes alimentos populares. Em parcelas individuais, eles produzem 4,7 toneladas por hectare, contra 1,6 toneladas em kolkhozes e sovkhozes. Três vezes mais”! (seleção de citações para o Seminário de Transição). Vale a pena comparar esta diferença de produtividade de pequenas produções privadas e parcelas estatais com o que está acontecendo hoje em Cuba (veja o trabalho de M. Yunes nesta edição).

No fundo, o que está em jogo é o próprio caráter das formas de propriedade que a coletivização colocou em movimento. A propriedade privada do campo é uma forma herdada do capitalismo; o programa socialista revolucionário é a socialização da terra. Quando os bolcheviques chegaram ao poder, o fizeram com um “compromisso” com as massas camponesas pequeno burguesas. Por esta mesma razão, a nacionalização da terra foi feita sob a forma de usufruto “perpétuo” pelos camponeses.

Como transição para a socialização, é bem conhecida a insistência de Lênin em seus últimos anos em formas cooperativas de produção agrária. Agora, que forma social é a cooperativa agrária forçada? Se a propriedade já tivesse sido nacionalizada, isso não implicava uma mudança de status nesse sentido. É verdade que, no final dos anos 20, era preciso tomar medidas diante do lock out do campo para as cidades. Mas apresentar a coletivização do estalinismo como uma medida “socialista” era ir longe demais, como alertou Trotsky.

Rakovsky foi ainda mais longe: ele falou de “pseudo-cooperativas”, implicando que elas eram uma forma em aparência análoga às cooperativas reais, mas assumiam um conteúdo diferente: elas não eram consentidas por seus próprios participantes, nem seu produto excedente era realmente apropriado pela classe trabalhadora (ou pelos camponeses pobres e médios). Assim, serviram ao fundo de acumulação burocrática e não realmente à transição socialista, já que “por trás da ficção do proprietário kolkhoze, o problema é que os trabalhadores kolkhozes não trabalham para si mesmos” (en Luis Paredes, “Las ‘Cartas de Astrakán‘”, en Socialismo o Barbarie 21).

Para ter uma medida gráfica do desastre que a coletivização burocrática significou, vejamos alguns dados: “A violência exercida contra os camponeses permitiu que o estalinismo experimentasse, exercitasse, os métodos de terror indiscriminado que mais tarde seriam aplicados contra outros grupos sociais que se opunham ao regime. O Estado soviético sob a liderança de Stalin havia declarado uma verdadeira guerra contra uma nação inteira de pequenos produtores. Nicolas Werth estima que neste processo mais de dois milhões foram deportados para regiões desérticas inóspitas do Norte ou da Ásia Central (1.800.000 só em 1930-1931); seis milhões de camponeses morreram de fome e centenas de milhares perderam suas vidas durante a deportação. Tais números dão uma medida aproximada da tragédia humana que foi “o grande assalto” contra os camponeses (…) O que o regime de Stalin fez foi expropriar dos camponeses o que a Revolução lhes havia concedido, quebrando assim o acordo feito em 1917. Em uma avaliação posterior do processo como um todo, Trotsky aponta que a coletivização em si não era questionável, mas os métodos de terror cego e irresponsável com os quais foi realizada” (R. Paulino, cit., p. 119).

Dando um passo adiante, deve-se dizer que estes métodos acabaram por desnaturalizá-lo completamente, tirando qualquer caráter progressivo. Assim, a caracterização deste giro estalinista como uma “revolução complementar”, apontada por Trotsky, mas desenvolvida até a caricatura por Isaac Deutscher, é posta em questão: “[Durante a década de 1930] a liquidação maciça de todos os restos do antigo proletariado [de 1917] tinha começado. A escala real da repressão estalinista de 1930-1956 ainda é desconhecida. David Rousset estima que entre 7 e 8 milhões de pessoas, das quais um milhão de membros do partido e jovens comunistas foram executados entre 1935 e 1941. A isto devem ser acrescentadas várias dezenas de milhões de deportados para os campos. O resultado da repressão e da extensa industrialização estalinista (…) foi a constituição de uma nova classe trabalhadora que não teve a experiência de suas antecessoras, uma classe de extração camponesa, sujeita a condições desumanas de vida e trabalho, a uma repressão onipresente, totalmente atomizada (…) Como se poderia imaginar que a ‘revolução social’ poderia sobreviver ‘na consciência das massas em trabalho’ (…) Trotsky teria sem dúvida corrigido isto se tivesse sido capaz de rever sua caracterização após o resultado da guerra” (Jan Malewski, “Analizando la sociedad de la mentira desconcertante”, IV Online, octubre 2000).

A esta derrota da classe trabalhadora da geração da revolução e do surgimento de uma nova, sem essa tradição, podemos acrescentar a liquidação física da geração de outubro em geral e da Oposição de esquerda em particular, uma questão que merece um tratamento específico que não vamos desenvolver aqui.

4.4 A emancipação das mulheres como medida de emancipação geral

Sabe-se que o socialista utópico Charles Fourier foi o primeiro a formular que a medida da emancipação geral era dada pela emancipação das mulheres, a camada mais oprimida da sociedade. Por esta mesma razão, a evolução dos direitos da mulher em geral e do aborto em particular na URSS é uma medida de grande importância para avaliar o sentido da evolução das forças produtivas e das relações de produção na época da virada dos anos 30, bem como para diferenciar uma verdadeira acumulação socialista de sua degeneração em acumulação burocrática.

A este respeito, nos anos 20 na Rússia ocorreu uma tendência emancipatória, ainda que limitada pelas condições materiais e culturais herdadas do atraso do país e das devastações da guerra mundial, da revolução e da guerra civil subsequente. Sobre este aspecto, não há grande controvérsia. Mas há controvérsia sobre o verdadeiro caráter da virada stalinista dos anos 30 e suas consequências para a emancipação da mulher.

Muitos autores destacam a urbanização geral do país e o acesso maciço das mulheres ao local de trabalho como um sinal inequívoco de passos na direção de sua emancipação. De fato, por um lado, deixar o sair da letargia camponesa e entrar no mundo do trabalho criou melhores condições materiais potenciais para avançar em um processo emancipatório. Mas o fato é que o estalinismo inibiu completamente esta possível tendência por meio de um conjunto de medidas que deixaram esta promessa em letra morta.

Por exemplo, não apenas o direito ao aborto foi proibido em 1936 – apenas restabelecido no final dos anos 50 – mas o acesso das mulheres ao trabalho coincidiu com uma queda dramática nos salários reais: “O novo entusiasmo pela libertação das mulheres desencadeado pela transformação radical da economia [a industrialização forçada dos anos 30] foi de curta duração. Embora o desemprego tenha desaparecido, o número de creches tenha aumentado e as oportunidades de educação e treinamento profissional tenham aumentado, a promessa de independência feminina nunca foi cumprida. As estratégias de acumulação que moldaram o primeiro e o segundo Plano Quinquenal deixaram as mulheres quase tão dependentes da unidade familiar em 1937 como tinham sido há uma década. Os índices de dependência diminuíram com a entrada das mulheres na força de trabalho, mas a dependência real da unidade familiar não caiu. Entre 1928 e 1932, os salários caíram 49%. Como resultado, a renda real per capita não aumentou à medida que mais membros da família entraram na força de trabalho, mas na verdade caiu para 51% do nível de 1928. Em outras palavras, havia dois trabalhadores empregados pelo custo de um. Dois salários eram necessários quando um tinha sido suficiente anteriormente. Se o “salário familiar” masculino fortaleceu a unidade familiar assegurando a dependência das mulheres em relação aos homens, a queda abrupta dos salários teve um efeito semelhante: os indivíduos dependiam das contribuições totais dos membros da família para assegurar um padrão de vida decente (…) A entrada das mulheres na força de trabalho pode ter tido menos a ver com novas oportunidades do que com uma necessidade desesperada de compensar o declínio da renda familiar. Os planejadores podem ter provocado conscientemente uma queda nos salários reais para mobilizar as reservas de mão-de-obra feminina na família urbana. Embora seja necessário trabalhar mais na relação entre salários e recrutamento de mão-de-obra feminina, uma coisa é clara: a política salarial não incentivou a “extinção” da família, mas confiou na unidade familiar como um meio eficaz de exploração do trabalho. Em um período claramente definido pela intensificação da acumulação em todas as indústrias e fábricas, foi a instituição familiar que permitiu ao Estado obter a mão-de-obra excedente de dois trabalhadores pelo preço de um” (Wendy Z. Goldman, Mulheres, o Estado e a Revolução. Política familiar e vida social soviética 1917-1936, Buenos Aires, IPS, 2010. p. 292-3).

Como pode ser visto, nada poderia estar mais longe do caráter emancipatório da transição socialista do que a acumulação burocrática. Mas, além disso, toda a legislação destinada à emancipação da mulher e à superação das características mais patriarcais e retrógradas da família foi revertida. Das tentativas ou esboços de socialização das tarefas domésticas nada foi deixado no altar da glorificação da “família socialista”.

Tudo sugere que a explicação subjacente a esta inversão, acompanhando a reviravolta reacionária do estalinismo em todos os campos, foi que a burocracia se assustou com a queda sistemática da taxa de natalidade após a revolução de 1917, ligada à modernização dos laços sociais na sociedade como um todo e também na família. Isto não diminui o fato de que as formulações iniciais “idealistas” foram submetidas ao peso da experiência concreta da tendência para a extensão da família. Tudo isso foi muito debatido na URSS na década de 1920. No entanto, na década de 1930 foi mais uma questão do fato de que a virada para a acumulação burocrática acelerada exigiu um aumento da taxa de natalidade. Se todos os índices fossem de crescimento bruto, se o que prevalecia era a kul’t bala (política de produto bruto), apenas uma taxa de natalidade crescente poderia ser funcional à acumulação burocrática: “O Estado prosseguiu sua própria agenda através da lei de 1936, que não era necessariamente compartilhada pela população soviética. Tadevosian admitiu após a Segunda Guerra Mundial que “a alta fertilidade da família soviética foi um dos propósitos básicos do Estado socialista com a publicação do decreto de 27 de junho de 1936 sobre a proibição do aborto” (…) A ênfase pro natalista da lei, que elogiava as famílias de 7 ou 8 filhos, ridicularizava as condições sociais e acrescentava imensamente ao pesado fardo do trabalho e da maternidade já suportado pelas mulheres” (idem, p. 314).

Este processo de recolocação da mulher na família, que segundo Moshe Lewin não perdeu seu caráter patriarcal, foi funcional à acumulação burocrática e, portanto, à inversão quase completa das tendências emancipatórias que ocorreram na década de 1930.

4.5 Acumulação primitiva, socialista e burocrática

“Eu já vi tudo isso antes. Já ouvi as mesmas discussões. Na Rússia, onde ocorreu a maior revolução da história, havia um partido com 20 milhões de pessoas à frente. Mas o que aconteceu, por que foi derrubado? Isso aconteceu porque a qualidade não podia ser alcançada na área onde era mais importante, nos bens produzidos para consumo humano. Para satisfazer as necessidades do povo” (Juan Sanchez Monroe, ex-embaixador cubano na Iugoslávia, citado por A. Woods).

Isto nos leva de volta à discussão sobre o tipo de acumulação a ser promovida na transição. Classicamente, a discussão tinha sido estabelecida por Preobrajensky em A Nova Economia. Corretamente, ele argumentou que dado o baixo desenvolvimento das forças produtivas na ex-URSS nos anos 1920, a acumulação deveria ser baseada na transferência de mão-de-obra excedente e/ou mais-valia e renda (esta última, um componente da mais-valia agrária) desde a produção agrária para o complexo industrial estatizado. Parte desses mecanismos era também o monopólio do comércio exterior, embora aqui as transferências de valor (em um sentido ou outro) operem com a economia mundial.

A analogia foi feita com o capitalismo, cuja acumulação primitiva foi o período que precedeu a acumulação capitalista propriamente dita e ocorreu sob outros métodos que não aqueles específicos do capitalismo. Ou seja, não se tratava de acumulação sob formas puramente econômicas de extração de mais-valia, mas uma espécie de acumulação anterior sobre bases “políticas” que tinham a ver com a força: apropriação da propriedade agrária dos camponeses, exploração colonial etc. Analogamente, o mesmo aconteceria com a produção agrária camponesa na transição, embora ao mesmo tempo promovendo a industrialização para garantir a aliança operária e camponesa com base em ter cada vez mais produtos industriais abundantes e eficientes para o campo.

Agora, se a acumulação capitalista primitiva tivesse sido uma condição para a acumulação capitalista como tal, no caso da ex-URSS a “acumulação socialista primitiva” da década de 1920 na ex-URSS derivou, através da ascensão do estalinismo, para a acumulação burocrática, não para a acumulação socialista.

Observemos de passagem que, devido às interpretações errôneas a que o conceito de acumulação socialista primitiva poderia dar origem, Trotsky não estava muito convencido de usá-lo. O conceito foi criado pelo economista bolchevique V. M. Smirnov, entre outros usos, foi utilizado para justificar o relançamento de mecanismos de exploração de mão-de-obra ou mesmo a coletivização forçada da produção agrária. Quase toda violência burocrática destinada a aumentar a base produtiva poderia ser incluída neste acúmulo. Por outro lado, vale a pena esclarecer que Preobrajensky tinha muito claro a distinção entre a acumulação socialista primitiva e a acumulação socialista propriamente dita. Seu erro não foi teórico, mas político: a apreciação errônea do giro stalinista dos anos 30 como uma forma de “acumulação socialista primitiva”, quando na verdade configurou o lançamento da acumulação burocrática, como corretamente caracterizada por Rakovsky.

Mandel cai neste mesmo erro, que também justifica como “acumulação socialista primitiva” a acumulação da burocracia com um argumento quase trans-histórico: “É verdade que a industrialização rápida toma a forma de uma “acumulação primitiva” realizada por uma subtração violenta do consumo operário e camponês, da mesma forma que a acumulação primitiva do capitalismo se baseava no aumento da miséria popular. Mas, exceto no caso de uma contribuição estrangeira em grande escala, qualquer acumulação acelerada só pode ser realizada pelo aumento do produto social excedente não consumido pelos produtores, qualquer que seja a sociedade onde tal fenômeno se manifeste. E não há nada especificamente capitalista sobre isso” (en R. Sáenz, “Las revoluciones de posguerra y el movimiento trotskista”, Socialismo o Barbarie 17/18).

O que Mandel esquece é o “detalhe” de que este “aumento do sobreproduto social não consumido pelos produtores” deve ser uma decisão livre e consciente destes últimos, sob pena de se transformar em pura exploração. Preobrajensky, pelo menos, e apesar de certas afirmações mecânicas neste campo,  deixou claro que “esta extensão quantitativa das relações socialistas (…), com subordinação do aumento dos salários à função de acumulação, leva à limitação da elevação da qualidade das relações socialistas e mantém a disparidade entre o nível dos salários e o valor da força de trabalho (…) A acumulação socialista é uma necessidade para a classe trabalhadora, mas se manifesta aqui como uma necessidade conscientemente entendida (…) Durante este período [o da acumulação socialista primitiva], a lei do salário está subordinada à lei da acumulação socialista, que encontra sua expressão nas restrições às quais a classe trabalhadora se submete conscientemente” (A Nova Economia).

No entanto, como vimos, Preobrajensky, pressionado pelo imperativo da acumulação, acabou colocando em segundo plano o papel regulador dessa decisão consciente, e postulou um processo de acumulação que se impôs espontaneamente num sentido socialista.

Com o giro do estalinismo na década de 1930, a polissemia do conceito de “acumulação socialista primitiva” poderia dar lugar a interpretações que funcionassem como uma racionalização da acumulação burocrática. Pelo contrário, a acumulação socialista deve necessariamente incluir o critério geral de melhorar o nível de vida das massas. Assim, com base em uma economia que ainda tem como base a produção de valor e uma mais-valia estatizada, a acumulação socialista tem duas condições: quem está encarregado da administração dessa mais-valia estatizada – isto é, para que fins ela é acumulada – e, intimamente relacionada a isso, a acumulação deve, pelo menos tendencialmente, resultar em um progresso no padrão de vida das massas trabalhadoras.

Na ausência destes dois critérios, e na própria base da subsistência de uma economia de valor, o que acontece é algo muito diferente: mecanismos de acumulação burocrática que bloqueiam a transição no sentido socialista e a transformam em acumulação estatal.

A este respeito, Roberio Paulino apresenta um gráfico do especialista francês Jaques Sapir em sua obra As flutuações econômicas na URSS, 1941-1985, que é extremamente ilustrativa da acumulação burocrática (cit., p. 128). Ela se debruça na evolução de uma série de índices da década de 1930, construídos com base em especialistas em cada campo de pesquisa econômica na ex-URSS.

Cobrindo o período 1928-1940, mostra que a indústria cresceu numa faixa entre 300 e 500%; o PIB, cerca de 200%; a agricultura, após uma queda brutal na metade da década, permaneceu praticamente no mesmo lugar, ou seja, crescimento zero, e os salários reais pagos aos operários e empregados mostraram uma queda média de 50%.

Ainda no quarto Plano Quinquenal (1946-1950), o setor I de produção levou 87,9% dos investimentos, enquanto o setor II de bens de consumo levou apenas 12,1%. É verdade que este foi o período imediatamente após a Segunda Guerra Mundial, mas a burocracia sempre encontrou desculpas para as prioridades da acumulação burocrática: “O fim da guerra e o período de reconstrução, ao contrário das esperanças do povo soviético, não trouxe alívio em termos de privação. Os esforços dedicados à reconstrução e, consequentemente, a direção da maior parte dos recursos para o setor de bens de produção e para a indústria militar, mais uma vez limitaram a elevação do padrão de vida do povo soviético, pois significava mais uma vez uma economia forçada subtraída ao consumo” (R. Paulino, cit., p. 167).

Com a morte de Stalin em 1953 e o início das revoltas populares nos países orientais, a burocracia começou a ensaiar o ciclo de reformas “socialistas de mercado”, que não a tirariam do atoleiro, mas abriram o caminho para a restauração capitalista.

Durante o período da economia “clássica”, os anos mais críticos foram 1933 (crescimento de apenas 6,5%); 1942, em meio à ofensiva nazista, com uma queda de 28,3%; 1945 e 1946, com quedas de 5,7% e 6% respectivamente; 1953, com crescimento de 9,8%; e, finalmente, 1959, com crescimento de 7,4%. Já sob as tentativas de reformas de mercado, os anos mais difíceis foram 1962 e 1963, com um crescimento de 5,6% e 4,1% respectivamente; 1972, com 3,9%; e 1979, com 2,2% (observe que o índice dos anos “ruins” é cada vez mais baixo). Finalmente veio a queda restauracionista, com quase estagnação em 1985, 1986 e 1987 (crescimento de 1,6%, 2,3% e 1,6% respectivamente) até o colapso de -4% em 1990.²⁴

Refletindo isto, nos anos 80 Gorbachev mesmo denunciou que a economia soviética estava caindo aos pedaços sob o peso de seu atraso tecnológico, o crescente desperdício de matérias-primas e energia, a baixa qualidade de muitos produtos industriais (o que implicava baixa competitividade no mercado mundial), o baixo rendimento de investimentos excessivos em grande parte orientados para obras sem fim, e um planejamento desequilibrado e cada vez mais desajustado. Mutatis mutandis, argumentos semelhantes estão sendo invocados hoje por Raúl Castro para impor suas próprias diretrizes restauracionistas.

Portanto, a acumulação primitiva, socialista e burocrática deve ser claramente distinguida para entender o rumo a ser tomado por uma economia verdadeiramente transicional, que só pode operar eficientemente e na direção da satisfação das necessidades humanas com base na democracia dos trabalhadores.

4.6 Sobre o caráter da URSS depois do triunfo de Stalin

“O ritmo de trabalho é moderado, mais baixo do que nos países ocidentais. (…) os primeiros dez dias não se faz absolutamente nada nas fábricas russas. Eles começam a se preparar. No meio de dez dias, eles começam a trabalhar e a organizar o trabalho. E os últimos dez dias têm um nome especial, que significa “tempestade”, que é tradicional. Essa palavra é uma instituição, se diz: “Você entrou na tempestade”. Isso significa que você entrou nos dez dias anteriores ao cumprimento do plano. Assim você trabalha dia e noite, não vai para casa para dormir. O problema é cumprir a norma. Você entende o que isso significa para a qualidade do produto… eles quebram as máquinas, eles fazem tudo. O outro problema é a mão-de-obra marginal, que tem variantes diferentes; por exemplo, o roubo. Os trabalhadores roubam todos os materiais que podem, para levá-los para casa ou para trabalhá-los dentro da fábrica. Outra forma de resistência individual dos trabalhadores é que eles tendem a não trabalhar. A embriaguez é a coisa mais geral na Rússia. O álcool, vodka clandestina, é feito em grande produção. Isto expressa a resistência individual. Assim como os camponeses fazem uma resistência individual através das parcelas, aqui também se expressa a resistência individual dos trabalhadores: eles roubam tudo o que podem, não consideram a fábrica como sua, e depois trabalham fora” (N. Moreno, seleção de citações para o Seminário de Transição).

Quanto à definição da ex-URSS como consequência do processo de burocratização, bem como das sociedades não capitalistas emergentes das revoluções do pós-guerra, desenvolvemos toda uma elaboração que não é necessário repetir em detalhes aqui. Também escrevemos extensivamente sobre a disputa de definições a que o próprio processo de burocratização deu origem, criticando as noções alternativas de ‘coletivismo burocrático’ e ‘capitalismo de estado’ para substituir o que foi substituído por eventos históricos do ‘estado dos trabalhadores burocratizados’.

De nossa parte, avançamos a definição de “estado burocrático com restos proletários e comunistas”, extraída de Cristian Rakovsky. Mas não estamos nos agarrando a ela como um talismã teórico que resolve todos os problemas. Em todo caso, o que sempre quisemos enfatizar é que manter a definição tradicional de Trotsky, uma vez deixada para trás por eventos históricos, prestou um mau serviço para um balanço marxista e um equilíbrio consistente das lições da experiência da luta pelo socialismo no século XX.

Basicamente, nosso ponto de vista é que a caracterização de Trotsky era adequada no momento em que foi apresentada. Refutou a apologia oficial do “socialismo realizado”, evitou as armadilhas das teorias do capitalismo de estado e do coletivismo burocrático e forneceu instrumentos para a batalha contra o despotismo burocrático. Entretanto, à luz do colapso da ex-URSS, foi necessário rever as limitações de uma visão que já havia perdido sua relevância no período do pós-guerra.

Esta inadequação tornou-se visível no final do período do terrorismo estalinista. Como Claudio Katz afirma corretamente a este respeito, o Thermidor foi mais um momento na degeneração da Revolução de Outubro  do que um conceito suficiente para explicar esse regime. Perdeu sua validade quando a contrarrevolução dos anos 30 foi consumada. Esse resultado modificou substancialmente o cenário contraditório que Trotsky procurou retratar.

Havia dois fatos decisivos. Primeiro, que a classe trabalhadora foi derrotada naquela década, e apesar das ‘faíscas’ esporádicas nas décadas seguintes, ela nunca conseguiu se recuperar como um todo. Segundo que as purgas estalinistas tinham um conteúdo mais profundo do que se pensava na época: elas eram a expressão de uma contrarrevolução profunda, não apenas política, mas também social.

Após esmagar toda oposição, o grupo governante se consolidou no poder e fortaleceu sua gestão despótica do excedente econômico através da exploração dos trabalhadores. Esta mudança não resultou na formação de uma classe proprietária, mas modificou o regime que procurava captar a noção de um Estado operário burocratizado. Esta definição já apresentava vários problemas que não poderiam ser ignorados.

Primeiro, a noção de estado operário burocratizado subestimou a extensão da regressão política criada pelo terror estalinista. Durante este período de massacres paranoicos, a geração de revolucionários foi exterminada sob a barragem da humilhação, insanidade e despotismo que entre 1930 e 1953 incluiu 3,7 milhões de prisões e 786.000 fuzilados. Com estas purgas, a tradição bolchevique foi enterrada e a revolucionária classe trabalhadora de 1917 foi definitivamente derrotada.

Em segundo lugar, a URSS não poderia ser um estado operário ou uma ditadura do proletariado porque a tirania de uma burocracia sobre milhões de trabalhadores e nações oprimidas não pode ser definida como um Estado desses trabalhadores, nem como um poder da maioria contra os inimigos capitalistas. Desde o triunfo de Stalin, o regime não podia mais ser caracterizado com esses termos, e os adjetivos de burocratizado, degenerado ou deformado não eram suficientes para corrigir essa contradição.

Em terceiro lugar, a inexistência de um Estado operário não é apenas uma conclusão teórica, mas um resultado da observação empírica, uma vez que os trabalhadores da URSS não consideravam o regime em vigor como algo que lhes pertencia. Se as conquistas de outubro viveram na consciência da população até o período entre guerras, eles perderam definitivamente este lugar no período do pós-guerra. A grande maioria dos cidadãos soviéticos percebeu o regime como alheio e como um instrumento da burocracia, e é por isso que não o defenderam quando ele entrou em colapso. A noção de Estado operário burocratizado omitiu esta dimensão subjetiva e limitou-se a desenhar um retrato sociológico das classes e estratos predominantes na URSS.²⁵

Em quarto lugar, a definição do Estado operário degenerada reforçou uma crença equivocada na superioridade econômica do planejamento, mesmo burocrático, sobre qualquer gestão capitalista. Com base nesta ideia, os sucessos das economias centralizadas foram ampliados, omitindo-se que estas realizações foram resultados específicos de certas fases e certas circunstâncias. Mas como várias comparações adversas (Coréia do Norte e do Sul, Alemanha Oriental e Ocidental) provam, este postulado não era generalizável. As vantagens do plano sem dúvida existiam, mas eram limitadas e tendiam a ser revertidas com a consolidação da gestão burocrática.

Finalmente, falar de um Estado operário burocratizado levou a ignorar o fato de que o grupo dominante na URSS foi embarcado na impossível construção de um sistema completamente distante da perspectiva socialista. É por isso que os privilégios da burocracia foram minimizados e muitos não puderam perceber o giro para a restauração que prevaleceu na última etapa destes regimes. Este foi sobretudo o caso do mandelismo; outras correntes do movimento trotskista mostraram mais reflexos.

Notas:

2 Não queremos deixar de assinalar que se Preobrajensky, com sua capitulação, deu um tremendo golpe à oposição de esquerda, num momento muito difícil, ele teve a dignidade de não testemunhar contra Trotsky e os outros opositores nos Julgamentos de Moscou, razão pela qual foi sumariamente assassinado sem comparecer ao tribunal.

3 – A este respeito, nos diferenciamos da abordagem do camarada Claudio Katz, que em O Futuro do Socialismo afirma erroneamente que as abordagens de Bukharin, Preobrajensky e Trotsky seriam simplesmente “complementares”.

4 Como temos apontado em outras oportunidades, o PTS na Argentina chega ao ponto de postular uma racionalidade per se do planejamento. Nahuel Moreno, por exemplo, foi mais sensível quando, nas antigas escolas do quadro do MAS, mostrou claramente a irracionalidade do planejamento nas mãos da burocracia.

5 Isto não parece ser totalmente compreendido por Roberio Paulino, antigo militante do PSTU e atual membro do Socialismo Revolucionário (do CWI em nível internacional), que em um livro recentemente publicado, Socialismo no século 20: o que deu errado? apesar das observações agudas e de uma obra histórica meritória, não consegue superar a abordagem deutscheriana do estalinismo: a burocracia teria sido o agente da transição socialista. Assim, ele afirma, por exemplo, que “a nova visão de um Estado fortemente modernizador cumprindo uma função essencialmente econômica -sugerida por Lenin, defendida durante o debate econômico dos anos 1920 pela Oposição de Esquerda e finalmente imposta depois de 1929, mas através de métodos coercivos- desempenhara um papel decisivo na história econômica de muitos países no século XX” (cit., p. 123). Mas a “visão” que foi imposta nesses casos não era nem a de Lenin nem a da Oposição de Esquerda, mas a do Estalinismo. A abordagem de Paulino acaba tendo um viés estatista em desacordo com a verdadeira tradição do marxismo revolucionário.

24 – Dados citados por R. Paulino, cit., p. 205. É indiscutível que desde meados dos anos 70 todos os índices começaram a desacelerar. Renda nacional, renda per capita, produção industrial, produção agrícola, investimento de capital, produtividade da mão-de-obra… tudo estava caindo, independentemente da fonte.

25 Nos desenvolvimentos que estão ocorrendo agora em Cuba, será possível verificar o caráter dessa sociedade com base no mesmo critério apontado para a ex-URSS. Em todo caso, apressemo-nos a esclarecer que, em nossa opinião, em Cuba há duas imensas conquistas a serem defendidas: a independência do imperialismo ianque e a expropriação da burguesia, o que a torna uma sociedade não capitalista. No entanto, defender estes dois ganhos é uma tarefa que deve ser realizada independentemente da burocracia, levando a classe trabalhadora verdadeiramente ao poder. A crise social e moral da própria classe trabalhadora cubana é tão intensa que por enquanto não há muitos pontos de apoio para esta tarefa. Mas a brutalidade do ajuste restauracionista que o castrismo procura aplicar poderia abrir caminhos para esta evolução, na medida em que a sociedade trabalhadora não está tão golpeada quanto parece. Em qualquer caso, essa deveria ser a aposta dos socialistas revolucionários.

Tradução para o português Renato Assad

Link para o texto completo: http://socialismo-o-barbarie.org/revista_25/110228_revista_sob25_p141_transicion.pdf