O genocídio dos povos originários em nosso país é uma herança ainda presente desde os tempos da colonização. Para os indígenas, o Brasil segue sendo o mesmo de 500 anos atrás: sua terra segue sendo violentamente tomada e invadida; suas culturas apagadas e negadas; seu povo alvo de massacre com apoio do Estado e aval da Justiça.
Carolina Baldo e Eugênia Andrade – Vermelhas
Hoje, além de todas as ameaças e violações à existência dos indígenas, como a constante presença de pecuaristas e garimpeiros ilegais, ainda há outra preocupação, o Covid-19 cada vez mais atinge suas terras. A comunidade vive em extrema vulnerabilidade e não está recebendo qualquer auxílio ou proteção por parte dos entes públicos que deveriam garantir sua sobrevivência.
Em março uma portaria foi assinada estabelecendo medidas temporárias de prevenção à infecção e propagação do novo vírus, dentre as medidas adotadas está a suspensão por tempo indeterminado das autorizações para ingresso em terras indígenas e de todas as atividades que impliquem a aproximação com comunidades indígenas isoladas. A portaria não surtiu efeito, uma vez que se comprova que o contato destes povos com a nova doença se deu através do garimpo ilegal na área.
O território nativo e a invasão dos garimpos…
A Terra Yanomami é o maior território indígena do país, é dividido entre Roraima e o Amazonas, também é alvo da disputa entre a manutenção das terras pelos povos originários e a invasão dos garimpeiros. Em 2018 o exército estabeleceu bases nos rios Uraricoera e Mucajaí para ajudar no combate, mas em dezembro do ano passado, após a eleição de Jair Bolsonaro – o candidato que desde às eleições colocava a questão indígena como obstáculo ao agronegócio, as operações foram suspensas.
Em razão da luta permanente e intensificada pela proteção de suas terras em detrimento de suas próprias vidas, houve a mobilização e a iniciativa da campanha global #ForaGarimpoForaCovid com o objetivo de forçar o governo a se posicionar e expulsar cerca de 20.000 garimpeiros ilegais que permanecem em suas terras mesmo em tempo de pandemia.
Enfatizamos que os indígenas em território brasileiro não têm direito efetivo à propriedade sobre suas terras, mesmo com o reconhecimento do governo, nossa legislação traz garantias especificas sobre o tema, como à Convenção n.º 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Neste cenário, discussões parlamentares ainda cogitam a possibilidade de adentrar esse patrimônio natural desses povos e legitimar o genocídio dessas pessoas. Um desses – apresentado pelo próprio Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro – o Projeto de Lei n.º 2633, vulgo “PL da grilagem” é um manifesto fomento a invasões às terras indígenas e aniquilação do seu povo.
Desde o contato aniquilador com os colonos, os indígenas foram expostos às doenças até então desconhecidas por eles, como, por exemplo, a malária. Os garimpeiros poluem seus rios e florestas com mercúrio, os pecuaristas desmatam seu território e destroem a biodiversidade ali existente, além das denúncias relativas à prostituição por mulheres das tribos como consequência das tensões estabelecidas nos locais e exposição às doenças sexualmente transmissíveis. A todos esses fatores somam-se o precário atendimento assistencial e de saúde.
Uma pesquisa divulgada juntamente com a campanha supracitada, apontou que milhares de indígenas Yanomami que estão em zonas de mineração ilegal poderiam ser infectados, também apresenta que a Terra Indígena Yanomami é a mais exposta e indefesa ao coronavírus dentre toda Amazônia brasileira, agravada pelos recursos insuficientes como a ausência de leitos, respiradores e dificuldades no traslado dos doentes para locais com melhor infraestrutura de saúde.
O descaso com que os órgãos governamentais tratam a pauta se comprova mais uma vez quando além da contaminação pela Covid-19, a comunidade ainda está à margem da violência as suas tradições culturais e espirituais.
Desrespeito às vidas e suas tradições
Como se não bastasse todo esse dramático quadro, a população Yanomami está convivendo com a dor e o sofrimento da perda de dois de seus membros recém-nascidos e com a ocultação de seus corpos, que de acordo com a tradição indígena dessa nação, necessitam voltar a comunidade.
Três mães Sanöma – grupo da etnia Yanomami – vivem um verdadeiro horror. Seus bebês foram levados da comunidade para Boa Vista, capital de Roraima, sob suspeita de pneumonia, foram internados em um hospital com um grande número de contaminados de Covid-19, após nenhuma comunicação ou informação às mães – que não falam português – os corpos de seus filhos desaparecem. O Conselho Distrital de Saúde Indígena Yanomami e Ye’kuana (Condisi-Y) tomou conhecimento dos casos neste sábado (27).
O presidente do conselho, Júnior Hekuari Yanomami, afirmou que os bebês morreram vítimas de Covid-19. Eles foram retirados da Terra Yanomami para fazer outros tratamentos, mas foram infectados pelo coronavírus nas unidades de saúde.
O Ministério Público Federal afirmou que as investigações iniciais apontam que três bebês indígenas foram enterrados no Cemitério Campo da Saudade, em Boa Vista. O órgão disse ainda que acompanha os óbitos e vai garantir a identificação dos corpos e retorno à terra indígena quando for “sanitariamente seguro”.
Além de enterrar os corpos sem qualquer informação, retirar os filhos de suas mães sem prestar qualquer informação ou noticiar seu paradeiro, toda comunicação com as mães foi inócua, pois se realizou sem a presença de um tradutor, que é um direito garantido a indígenas que não falam português, para assegurar que todas as informações serão repassadas.
O povo Yanomami nunca enterra seus entes, na realidade, realiza um ritual funerário de seus mortos com a cremação dos ossos e ingestões de cinzas. Para eles a despedida é ainda mais complexa e importante. Segundo o antropólogo José Kelly: “Para os Yanomami um ritual tão elaborado, tão fundamental, torna esse problema intenso. O ritual é altamente emotivo. E as comemorações que passam, são de fato um ritual funerário importante, que dura vários dias. Um momento fundamental de aliança, articulação e reprodução social”.
PARA SE TER UMA IDEIA DA IMPORTÂNCIA DE ENTERRAR SEUS MORTOS PARA ESSA POPULAÇÃO. EM 2008, FORAM DEVOLVIDAS AMOSTRAS DE SANGUE DOS ÍNDIOS YANOMAMI COLETADAS NO BRASIL, EM 1967 PARA SUA DEVIDA REPATRIAÇÃO.
Ainda sobre os rituais o líder indígena Dario Yawarioma Urihithëri explica: “Quando uma pessoa morre, nosso parente, nosso irmão, nosso primo, nós temos cultura, rituais para chorar, para ficar mais ou menos 15 dias isolado o corpo no mato. A realidade do povo Yanomami, a gente tem isso… sentir muita saudade, chorar bastante. Durante um mês, 30 dias, a gente crema o corpo e a gente para de chorar, para matar a saudade. Nós temos isso, tem que respeitar a nossa diversidade cultural, isso é muito importante, a gente mantém segurança nesse ritual, a gente precisa disso, é como a gente vive na nossa cultura”.
Existe em meio à crise um embate cultural e sanitário, por um lado não se pode simplesmente entregar os corpos sem observar os protocolos de segurança sanitária e expor os nativos ao vírus, por outro negar as tradições ao não permitir que as mães e todo o povo realizem seus rituais é negar o direito garantido pela Constituição, de manter seus costumes ancestrais.
No contexto atual, com o colapso do sistema de saúde e do sistema funerário falta diálogo entre o Ministério da Saúde e os líderes das tribos indígenas para a criação de um protocolo específico, que garanta não somente a informação adequada e segurança, mas também, respeite as tradições da tribo.
Os líderes indígenas não negam a importância dos protocolos de biossegurança, mas exigem informações mais efetivas, como Dario Kopenawa diz: “Queremos saber onde estão e quando poderemos desenterrar os corpos para levá-los para a aldeia, onde nasceram e cresceram, onde seus pais, seus tios, seus primos estão morando, onde a alma das crianças pode ser feliz. Entendemos a necessidade dos protocolos [de biossegurança], mas precisamos ter informação e compreender o que vai acontecer. Precisamos saber quando os corpos serão devolvidos. Queremos saber quanto tempo o vírus sobrevive no corpo. Se os infectologistas nos explicam, a gente entende e pode respeitar. E podemos transmitir essa informação para a comunidade”, asseveram.
Ou seja, as lideranças pedem o mínimo de respeito das autoridades brasileiras, mas o que se observa é a falta de interesse em compreender e dialogar com estes povos e, novamente, o descaso com que as minorias são tratadas em nosso país. Não há interesse em preservar a vida, não há respeito ao lidar com a morte.