ELEIÇÕES ARGENTINAS: MACRI, A POLARIZAÇÃO E A FIT

O que mostram os números da eleição

31 de outubro, 2019

MARCELO YUNES

O “crescimento” de Macri

Muitos já apontaram que a primeira diferença que se destaca no que diz respeito às PASO é a recuperação de Macri, que até desencorajou muitos Kirchneristas e deixou um certo sabor amargo, já que esperavam uma vantagem semelhante ou até maior que a de agosto e quando o escrutínio final estiver concluído, ficará em torno de 9 pontos (aproximadamente 49 a 40). Embora essa diferença seja muito clara e indiscutível, ela não chega nem perto da verdadeira surra das PASO.

A diferença final não apenas torna a derrota de Macri mais apresentável e digna, algo que já tem seu impacto político. Essa diferença mais moderada também modifica a composição das duas casas do Congresso, onde as projeções indicam que Fernández terá um quórum adequado no Senado, mas em Deputados os dois maiores blocos serão quase iguais, de cerca de 120 deputados cada. Embora seja provável que o novo partido no poder obtenha o apoio dos partidos provinciais para obter a aprovação das leis, é sem dúvida um relação muito mais equilibrada do que o Kirchnerismo esperava.

No entanto, essa recuperação parcial do Cambiemos não se deveu à perda de votos da fórmula Fernández-Fernández em números absolutos, mas porque Macri melhorou seus números em praticamente todos os distritos. Enquanto o FDT repetiu essencialmente a porcentagem das PASO, Macri subiu mais de 10 pontos em distritos como Córdoba, Santa Fé e Mendoza, e mais de 8 em CABA, Entre Ríos e Tucumán. Esse fluxo lhe permitiu encurtar distâncias e conquistar quatro distritos (Santa Fé, Entre Ríos, San Luis e Mendoza), onde havia perdido em agosto.

Resta esclarecer, como Macri alcançou essa melhora, que foi particularmente visível nos grandes centros urbanos, contra o que havia acontecido nas PASO e nas eleições provinciais deste ano, nas quais o macrismo foi derrotado em quase todas as capitais e cidades importantes.

Aqui se combinam elementos de pura “técnica eleitoral” com outros mais políticos. Por um lado, é verdade que o macrismo decidiu deixar de lado a engenharia eleitoral duranbarbista dos algoritmos e as postagens nas redes sociais e retornar aos atos de massa no estilo da “velha política”. A campanha das “30 cidades” e as marchas “sim, se pode” visavam galvanizar a base eleitoral do macrismo, consolidando os 33% das PASO e recuperando votos de macristas desencantados que lhe haviam dado as costas em agosto. Dessa forma, Macri reduziu a diferença com os Fernández de quatro para dois milhões de votos. A origem numérica desses votos é bastante clara quando comparamos o quadro de votos nas PASO com a eleição de outubro:

Como se pode ver, embora os Fernández tenham aumentado um pouco o número total de votos (cerca de 250.000), Macri certamente capturou a maioria dos novos eleitores (quase 800.000) e daqueles que pararam de votar em branco (quase 800.000 a mais). Se acrescentarmos que os votos perdidos pelas opções de direita, perto de 400.000, foram quase inteiramente para Macri, e que algo semelhante terá acontecido com os meio milhão de votos que Lavagna perdeu, completam-se os números da melhoria eleitoral de Macri.

Mas esta é a explicação aritmética, não política, da recuperação de Macri. Os motivos políticos devem ser encontrados, sem dúvida, na incrível passividade do Kirchnerismo, cuja única estratégia eleitoral entre as PASO e outubro foi simplesmente não fazer nada. Não fazer onda, evitar declarações e congelar a foto das PASO, essa era toda a ciência do Kirchnerismo. Que poderia ser pior: na luta eleitoral, como na guerra, se alguém não avançar nas posições conquistadas e permanecer parado, permite que o adversário avance, correr o risco de perder o que obteve. Mas para o Kirchnerismo, em setembro-outubro, como no restante do mandato de Macri, a institucionalidade está sempre primeiro. Denunciar o desastre social macrista, expor a natureza antipopular e criminal de sua política econômica, apelar à mobilização em defesa de salários, trabalho e direitos populares? Nada disso – que, por outro lado, teria liquidado todas as aspirações macristas de se levantar eleitoralmente – aconteceu. Nisso, como desde 2015, quando toda a política do Kirchnerismo era apostar nas eleições e não enfrentar o governo com a mobilização, houve total continuidade. O grande slogan de Alberto entre as duas eleições foi “não saiam às ruas”. Assim como desde dezembro de 2015, a política de Cristina era “existe 2019”, e depois das PASO a política de Alberto foi “há 27 de outubro”. Dessa forma, durante dois meses e meio, “perdoaram a vida” do macrismo e deram a ele toda a iniciativa política, eleitoral e de mobilização de sua base. O fato dessa passividade ter custado ao Kirchnerismo apenas reduzir sua vantagem pela metade é a medida do nível de deterioração de um governo que estava à beira do nocaute.

Encerramos esta parte assinalando que, ainda que formalmente fosse o primeiro turno, a eleição, devido ao seu nível de polarização, foi um semi segundo turno. A polarização foi muito contundente: entre as duas chapas mais votadas, que levaram quase 90% dos votos. Isso reduziu Lavagna, terceira força, a uma votação quase testemunhal 6% (anteriormente 8%), e as outras forças, que caíram para pouco mais de 2% (FIT), menos de 2% (Nuevo MAS) e menos 1,5% (Espert). As forças de direita foram completamente apagadas e engolidas pela polarização.

FIT: uma política e um balanço ainda mais fracos que a eleição

Longe de crescer e se beneficiar do fluxo das forças de esquerda que, como o Novo MAS, não excederam 1,5% nas PASO, a FIT não conseguiu sequer manter o nível de votos das PASO. Caiu de 720.000 votos em agosto para cerca de 570.000 votos em todo o país, sem colher um único cargo parlamentar nacional. Embora se encaixassem nisso as generalidades da lei da polarização, que era muito difícil de resistir e com tantos fenômenos objetivos, a política do FIT e centralmente do PTS não ajudou em nada. Pelo contrário, sua campanha eleitoralista e oportunista, focada quase exclusivamente em conseguir a entrada de Bregman no Congresso, obscureceu o perfil da FIT e implicou uma oportunidade política totalmente perdida de se posicionar como o polo de resistência às política que serão implementadas pelos Fernández, que estarão muito longe das medidas esperados pelos seus eleitores.

O corte desproporcional de votos na Capital para a candidatura de Bregman, mais que o dobro – 119.000 a 58.000 – em comparação à presidencial, algo que não foi verificado nem de perto em outros distritos, confirma que a campanha em CABA foi praticamente parlamentar. Algo completamente oportunista em uma eleição que não somente era presidencial, mas, devido ao seu caráter articulado de mudança de governo, representava uma grande possibilidade de colocar na mesa o perfil e as ideias da esquerda revolucionária no quadro de uma tremenda crise em que todo o país discute os problemas gerais. Que, nesse contexto, a política da FIT – que, insistimos, era essencialmente a do PTS, já que o PO nunca questionou seriamente essa orientação e se limitou a segui-la – se concentrou em “alçar Bregman” é um verdadeiro absurdo eleitoralista, que ao fim, não teve sucesso.

É preciso dizer que essa orientação não foi uma surpresa. Uma vez resolvido o cenário eleitoral nas PASO, lamentavelmente, deve-se dizer que a própria imprensa burguesa refletia qual era a política do PTS-FIT com muito mais fidelidade do que as declarações, manifestos e flashs para a tribuna. Vejamos como sintetizava essa mudança de orientação da FIT um jornal de direita e já na noite mesmo das PASO: “Além das especulações e negociações frustradas, os dirigentes do FIT-U já sabem que o foco de sua campanha daqui até outubro é conseguir assentos de esquerda no Congresso. Até agora, o foco estava na ideia de uma votação como uma “mensagem” contra o FMI e os candidatos da polarização. Se for confirmada uma tendência clara a favor da Frente de Todos, a ideia central será apelar para a divisão da cédula de votação, para que os deputados de esquerda limitem o Kirchnerismo no Congresso” (Perfil, 11-8-19).

Este resumo impecável e muito claro nega qualquer discurso “vermelho” que se pretenda improvisar após o fiasco de outubro. “Até agora”, isto é, até as PASO, o “foco” era razoavelmente político, a denúncia ao FMI e aos candidatos capitalistas. Mas, com a contenda definida no sentido de uma eleição quase definitiva a favor do Kirchnerismo … adeus a todos os remanescentes de política marxista, boas-vindas ao oportunismo parlamentar mais assustador e à “ideia central de apelar à divisão da cédula“!

A melhor prova de que essa era a verdadeira orientação da campanha é dada pelo fato de eles nem sequer procurarem garantir a aposta mais viável, a de assegurar pelo menos um deputado por província de Buenos Aires. Mas, é claro, o chefe da lista era Pitrola, do PO, então o PTS concentrou todas os canhões na mais difícil – mas mais lucrativa em sua lógica de aparato – de Buenos Aires. E levou a “ideia do corte da cédula” até o fim! Podemos não ter todos os dados, mas simplesmente não nos lembramos, desde 1983, de uma eleição da esquerda em que houve muita diferença (2 a 1) entre a eleição para deputados e a eleição para presidente. Essa é a medida do oportunismo – ao final em vão – da campanha do PTS.

Por tudo isso, qual balanço faz o PTS da sua campanha? Não era de se esperar muita honestidade intelectual e política para admitir que toda a estratégia da campanha estava errada e que a colheita do oportunismo foi zero, mas supúnhamos pelo menos um pouco de critério. Vã esperança: o balanço é de pura autoproclamação, zero autocrítica e disparates.

O destaque do La Izquierda Diario sobre o resultado da eleição é uma nota assinada por Ruth Werner e Federico Puy, por outro lado nada ambiciosa e um tanto jornalística, que deixa duas definições como saldo e ambas são absurdas. A primeira é o próprio título: “Myriam Bregman e uma eleição histórica da FIT-Unidade a deputado“. A seguir, veremos com que base se fala de uma eleição nada menos que “histórica”, mas nos apressamos em esclarecer que, embora apareça na busca[1], quando se entra no link, verifica-se que o novo título é muito mais cauteloso (e realista) “Myriam Bregman e uma importante eleição da FIT-Unidade para deputado“.

A outra definição bombástica é “estamos ante a melhor eleição da esquerda na Cidade em décadas. Em 2011 e na área de deputados nacionais, foram obtidos 5,59%, em 2013, 5,64%, em 2015, 5,48%, e em 2017, 5,79%. Nesta eleição, Bregman levou 6,13%.” Tudo é um disparate aqui. Para começar, como indicado pelos números citados, longe de ser uma votação excepcional, foi uma eleição absolutamente alinhada com todas as anteriores da FIT desde 2011. A dispersão é mínima: 5,48% para a pior eleição e 6,13% para o melhor, uma diferença de 0,65%. É verdade que a porcentagem de 2019 foi a melhor, mas por uma diferença tão pequena que é desproporcional destacá-la como se tivesse sido um salto espetacular. Por exemplo, a diferença com a eleição de outubro de 2017 foi inferior a 10.000 votos. Por outro lado, tanta ênfase na eleição para deputados na CABA oculta convenientemente que foi a pior eleição para presidente na CABA da FIT desde que ela existe. Estranho, não é vangloriar-se do melhor número de deputados sem dizer que era o pior número para o presidente?[2] Desde quando são feitos assim os balanços, PTS?

Sem mencionar a afirmação disparatada da “melhor eleição em décadas”. Demos alguma precisão para a imprecisão do PTS: foi a melhor eleição desta década, apenas para deputados e somente na CABA. Se o PTS quer uma eleição verdadeiramente “histórica” para deputados da CABA, “a melhor em décadas”, aqui está. É a de 2001, há menos de duas décadas:

Agremiação               Votos                  Porcentagem

AyL (Zamora)            135.361                      10,1%

Izquierda Unida          94.460                         7,1 %

PO-MAS                     24.077                         1,8%

PTS                            15.954                         1,2%

TOTAL                        269.862                       20,2%

Mais de duas vezes e meia o número de votos de 2019, mais que o triplo da porcentagem e a eleição de três deputados da Capital (dois de AyL e um de UI), contra zero em 2019. E com os mesmos partidos, exceto o PC, então membro da UI. O FIT-PTS falta bastante para fazer história.

Preparar-se para o choque de expectativas e realidade

A vitória dos Fernández, mesmo com sua margem clara, sendo muito menos volumosa do que as PASO (o que a boca da urna vaticinava, e falhou novamente), não dá “carta branca” ao novo governo eleito. Que, provavelmente, usará como argumento a vitória relativamente estreita para redobrar seu compromisso com a concertação e o “acordo nacional”, com uma orientação provavelmente ainda mais conservadora do que se vislumbrou. De fato, foi o que se verificou nos primeiros sinais e declarações de todos os dirigentes da Frente de Todos. Eles já sabiam da herança envenenada deixada pelo macrismo, especialmente em questões de dívida externa e interna, que exigirão medidas muito mais conservadoras (em todos os sentidos) do que as propostas hiper cautelosas em que Alberto Fernández escorregou. A isto se acrescenta que seu caudal político, devido ao resultado de outubro, é menor do que se imagina, tanto em termos de legitimidade geral (não é a mesma coisa vencer com 48% do que com 54%) quanto em aritmética parlamentar.

Portanto, após o momento de satisfação pelo final do ciclo macrista, os trabalhadores e os setores populares que depositaram seu voto na Frente de Todos não terão muitas oportunidades de ver sua confiança recompensada com medidas “progressistas”. O que os espera é, como já demonstrado pela política de “barbas de molho” para a militância, alertando-os para as “dificuldades” e a profundidade da crise pela qual o governo deve passar desde o início, um choque com essas expectativas que, mais cedo que tarde, testará a confiança que as massas hoje depositam em uma alternativa 100% capitalista.


[1]      http://www.laizquierdadiario.com/Myriam-Bregman-historica-eleccion-del-FIT-Unidad-a-Diputados

[2]      Somando-se à onda de disparates do PTS, o candidato presidencial Nicolás Del Caño não teve idéia melhor do que comemorar que “fizemos uma eleição muito importante na categoria de deputados, com mais de 800.000 votos”. Uma abordagem otimista digna de livros de auto-ajuda, mas não de qualquer marxista sério, que deveria ser forçado a acrescentar imediatamente que, nas eleições presidenciais, o que mais importa é esse voto. E nessa área, os números não são “históricos” nem “muito importantes”, mas simplesmente bastante enxutos: menos de 600.000 votos, melhorando apenas a primeira (e mais modesta) eleição da FIT 2011 e muito abaixo a de 2015, que foi precisamente 800.000 votos para o presidente.

Tradução: José Roberto Silva