Nem espetacular e tampouco desprezível. A extrema-direita, sob a liderança de Bolsonaro e figuras que competem por sua sucessão, expressou uma importante demonstração de forças na Avenida Paulista, domingo, dia 25 de fevereiro.

Por Renato Assad

Uma defensiva à ofensiva

Diante do avanço das investigações sobre a tentativa golpista – um movimento que começou com a articulação de um autogolpe (ou um golpe de novo tipo) e que depois evoluiu para uma provocação golpista em 8 de janeiro – de Bolsonaro, de seus ministros e de parte importante do alto escalão do militarismo, o ex-presidente de extrema direita certamente se encontra em uma situação pessoalmente desfavorável, na defensiva. No entanto, distante, todavia, de estar colado nas cordas do ringue, uma vez que a derrota de Bolsonaro se limita ao terreno eleitoral e, portanto, não termina por inverter a correlação de forças, Bolsonaro convocou às ruas pela primeira vez fora do poder executivo. E, mais uma vez, demonstrou capacidade de mobilização em sua tentativa de manter e (re)fortalecer o bolsonarismo e a extrema-direita como força política e social no quadro político nacional.

Como parte de uma disputa de narrativa para engrandecer ou diminuir a força política materialmente expressada no último dia 25 por Bolsonaro e pela extrema-direita, muitos números apareceram nos noticiários mundo afora e nas redes sociais. Por um lado, a Secretaria de Segurança Pública do governo do estado de São Paulo, liderada pelo governo de Tarcísio de Freitas que deve ir para o PL, partido de Bolsonaro, diz que naquele dia reuniram-se 600 mil manifestantes na Av. Paulista. Superestimado por razões políticas óbvias, esse número distorce a realidade, sem dúvida alguma. Por outro lado, um grupo de pesquisa da USP afirma que estiveram presentes no ato de extrema-direita 185 mil pessoas, número que nos parece se aproximar de maneira mais precisa à realidade.

Para efeito comparativo, no #EleNão, em seu maior ato no Largo da Batata, calculava-se à época a presença de um pouco mais de 100 mil manifestantes. Contudo, a narrativa da esquerda da ordem, do campo da situação, foi a de menosprezar a realidade e deixar de lado uma apreciação cuidadosa do significado político e social dessa demonstração de forças da extrema-direita e de seus possíveis desdobramentos na situação política brasileira.

Diferentemente do dia 7 de Setembro de 2021, maior ato até hoje do bolsonarismo, também na Avenida Paulista, em que ainda como presidente do país Bolsonaro dobrava a aposta e subia o tom numa ofensiva dizendo abertamente que não iria se submeter a mais nenhuma decisão da Suprema Corte Federal (STF), pôde-se notar, no último dia 25, um recuo importante em sua intervenção e uma posição politicamente à defensiva: uma tentativa de colocar panos quentes sobre a articulação golpista com um pedido de anistia para os presos que invadiram Brasília no dia 8 de janeiro e, consequentemente, para o ex-presidente também.

Contudo, é importante destacar que podemos caracterizar que o bolsonarismo hoje, uma expressão política e social ainda com influência de massas, e a figura individual de Bolsonaro, se enquadram atualmente em um par dialético: uma postura defensiva em relação ao avanço das investigações federais contra a tentativa de golpe combinada com uma ofensiva para ganhar prefeituras este ano, fortalecer o bolsonarismo no parlamento e nas igrejas.

Quer dizer, há uma combinação entre uma importante demonstração de forças pelas ruas, mesmo com a derrota eleitoral e a ilegibilidade de Bolsonaro até 2030, para fortalecer a extrema-direita como força atuante orgânica, não só pela superestrutura (pelo parlamento, estados e municípios), com a tentativa de evitar uma possível prisão de Bolsonaro e/ou que as punições não se ampliem ao campo dos militares – fato que poderia levar à desmoralização desse setor que goza de irrestrita e permanente impunidade na história do Brasil. Em outras palavras, na ausência de um movimento nas ruas para garantir pela luta direta a prisão de Bolsonaro e de todos os feches golpistas, abre-se uma campanha defensiva pela anistia para os golpistas combinada com uma campanha ofensiva para aumentar a influência política, social e ideológica do bolsonarismo .

Assim, mesmo que o ex-presidente seja preso pelos arranjos e negociatas feitas no tabuleiro das instituições burguesas e por seus agentes, algo que impede uma mudança substancial na correlação de forças sociais, fortalecendo o Estado burguês nacional e suas instituições e enfraquecendo o movimento direito dos trabalhadores e oprimidos por suas lutas e interesses -, Bolsonaro poderá seguir sendo uma liderança política orgânica da extrema-direita; e, diante da tendência a maiores choques entre as classes, uma polarização internacional crescente, o possível e provável retorno de Trump nos EUA, a depender do desfecho da batalha histórica aberta na Argentina de Milei e etc., seu retorno direto à Presidência ou uma sucessão subordinada ao mesmo, algo que nos levaria novamente à uma situação política abertamente reacionária, não podem ser descartados de maneira alguma!

Das intenções golpistas à tentativa de golpe

As evidências, que antes implicavam Bolsonaro apenas no campo das intenções golpistas de um novo tipo, diferente àquelas do século XX com quarteladas e tanques nas ruas[1], descolando-o da invasão à Brasília do dia 8 de janeiro, avançam e de maneira explícita o colocam no campo prático das coisas – das intenções à prática. É dizer, não se tratou apenas de uma vontade ou de provocações, houve de fato movimentações no terreno prático para o fechamento do regime, como, por exemplo: após a apresentação de uma minuta golpista em reunião convocada por Bolsonaro com ministros e militares de alta patente, o almirante da reserva Almir Garnier Santos, então ex-comandante da Marinha, deixou claro que suas tropas estavam à disposição de Bolsonaro e seu plano golpista redigido no documento da minuta.

Como se não fosse o suficiente, o plano de golpe bolsonarista incluía a prisão do presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD), e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. Moraes era vigiado permanentemente por uma inteligência paralela da ABIN e os voos em que embarcava eram monitorados.

Assim, com o avanço das investigações feitas pela Polícia Federal, fica claro e evidente que a trama do golpe envolvia militares de alta patente, ex-ministros militares de Bolsonaro, como os generais da reserva Augusto Heleno e Walter Braga Netto (candidato a vice-presidente em 2022), além do ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira, o já mencionado o ex-comandante da Marinha, Almir Garnier e o então comandante de Operações Terrestres do Exército, Estevam Theophilo Gaspar de Oliviera.

Portanto, o desfecho negativo do golpe não se deu por conta da resistência pelas ruas por parte da esquerda (praticamente inexistente, ao não ser o papel espontâneo e progressivo que cumpriram as torcidas organizadas com as “tropas fura bloqueios” nas estradas) ou muito menos pela “virtude” da conformação da frente amplíssima que quase terminou por perder as eleições no segundo turno[2], mas, sobretudo, por cálculos políticos e uma divisão da classe dominante brasileira e pela negativa de apoiar a movimentação golpista do imperialismo estadunidense e em menor escala europeu.

Novamente, assim como 2002 na primeira eleição de Lula, marcada pelo início do ciclo de rebeliões populares, todavia aberto (do Argentinazo em 2001 à Primavera Árabe na década passada, ao Black Lives Matters nos EUA mais recentemente), agora em uma nova etapa da luta de classes, em um mundo em desequilíbrio, o terceiro governo de Lula, mais à direita, invertendo a ordem dos fatores sociais-liberais para liberais-sociais, apresenta-se como ferramenta da classe dominante brasileira e pelo próprio imperialismo para tentar normalizar o regime burguês por um lado. Por outro lado evidencia sua natureza preventiva para que as coisas não saiam do controle diante da polarização estrutural que exerce a extrema-direita.

Essa combinação de liberalismo-social do governo, que não permite que problemas significativos alguns da vida das massas exploradas e oprimidas possam ser resolvidos, com ataques constantes da extrema-direita, que Lula e seu governo tem cedido cada vez mais espaço, é uma combinação que pode se tornar explosiva no próximo período, impedindo ou dificultando que a agenda burguesa avance sem a erupção de fatores externos. Mas por hora, se todas as contrarreformas de Temer e Bolsonaro seguem vigentes, e se a isso se somam novas contrarreformas como o novo teto de gastos, o Marco Temporal, o novo e perigosíssimo Estatuto das Polícias Militares e uma reforma fiscal regressiva, qual seria o interesse da classe dominante brasileira trucar sob o risco de uma explosão social?

Uma conjuntura com novos elementos e uma situação política em disputa

Mantém-se, todavia, uma conjuntura de tentativa de normalização do regime, mas que conta agora com elementos transicionais que podem materializar uma nova conjuntura nacional por direita a depender da resiliência e táticas do bolsonarismo e, por esquerda, se jornadas nacionais pela punição exemplar de Bolsonaro e de todos os golpistas se materializarem (algo que neste momento nos parece difícil pelo papel traidor e conciliador que cumpre o governo e as direções sindicais e juvenis ligadas ao lulismo).

Já a situação política nacional, mesclada de possibilidades e perigos, portanto, de indefinições, certamente ainda é mais favorável à luta contra a direita e a extrema-direita a partir da derrota eleitoral de Bolsonaro, mas também para lutar contra as reformas de dito campo do atual governo Lula e Alckmin. Contudo, nesse mais um ano de governo o que vemos é uma apatia generalizada da esquerda em geral, produto da natureza política e de classes do Lula 3 e das capitulações históricas como o caso do PSOL e, assim, com as lutas sequestradas pela superestrutura, um sentimento de expectativa todavia para com o governo, as ruas mais uma vez são presenteadas ao bolsonarismo e sua base social que, apesar de uma posição defensiva hoje, podem dar volta à essa situação e empurrá-la à direita.

Vivemos um governo de normalização do regime, de tentativa contenção político-social que pela sua opção em não chamar nenhum movimento social, abre cada vez mais espaço para o avanço da extrema-direita nas eleições municipais de outubro, para pautas reacionárias no Congresso e ao avanço da agenda burguesa sobre a classe trabalhadora.

Um desafio de natureza histórica

Assim, temos hoje um desafio de natureza histórica, de impacto profundo na luta de classes mundial: esmagar a cervical da extrema-direita. Como? Organizando e construindo nas bases estudantis e de todas as categorias de trabalho que atua a esquerda da ordem e independente um calendário nacional de lutas, na mais ampla unidade de ação, pela prisão de Bolsonaro e de todos os golpistas – Isso quer dizer, também de todos os militares que se somaram à trama golpista e contra todos os ataques que vem de cima, seja de Lula, da extrema-direita ou dos patrões, ou mesmo aqueles que unificam esses setores.

Não é a primeira vez na história que podemos colocar militares no banco de réus. Sabemos o quão caro foi o processo conciliatório de 1985 em nossa história, processo que manteve as condições políticas, sociais e institucionais por mais de três décadas para alçar Bolsonaro ao poder e quase consumar outro golpe em nossa história. É dizer, para repetir a história em forma farsesca.

Portanto, a luta contra a anistia não pode ser apenas palavras ao vento, intervenções vazias de uma militância exclusivamente virtual. Sem a  prisão de Bolsonaro e outras medidas que de fato derrotem a extrema-direita, iremos repetir o cenário estadunidense que coloca Trump como candidato favorito. Assim, essa tarefa deve ser encarada com coerência, estabelecendo táticas efetivas de unidade de ação para fortalecer a luta direta pela prisão de Bolsonaro, mas também lutando para que o programa da nossa luta não fique apenas na prisão do neofascista, mas que avance para a expropriação de todos os golpistas, particularmente os empresários e chefes militares, para o fim dos tribunais militares, que só servem para inocentar os agentes da necropolítica contra negros e trabalhadores, e de qualquer entulho autoritário na constituição – logicamente que a outra parte da nossa luta é enfrentar todas as demais contrarreformas.

Compreendendo a dimensão histórica dessa batalha, ela deve ser levada até às últimas consequências para romper a cervical da extrema-direita, amassá-la na lata de lixo da história junto com os militares golpistas. Essa é a tarefa das atuais gerações, essa é a tarefa que nos permitirá avançar para uma saída independente contrária às contrarreformas do atual governo e a todo tipo de exploração e opressão: uma saída anticapitalista.

[1] O caso de Viktor Orbán, primeiro-ministro da Hungria, reflete aquilo que podemos chamar de aproximações sucessivas que materializam golpes e governos autocráticos neste século XXI.

[2] No primeiro turno, Lula fechou a apuração dos votos com 57.259.504 (48,43%) votos enquanto Bolsonaro teve 51.072.345 (43,20%). Já no 2º turno, com acenos cada vez mais à direita por parte de Lula, o mesmo e sua frente amplíssima viram Jair Bolsonaro (PL)  ganhar 7.134.009 votos a mais que no primeiro turno: o dobro do que Luiz Inácio Lula da Silva (PT). O petista somou 3.086.495 votos em relação ao 1º turno da disputa.