Guia de estudo sobre a situação mundial: Uma nova etapa começou (parte 1)

Por Roberto Sáenz

“A teoria e a história ensinam que uma sucessão de regimes sociais pressupõe a forma mais elevada de luta de classes, isto é, a revolução (…) ‘ A força é a parteira de toda velha sociedade grávida de uma nova’. Ninguém foi até agora capaz de refutar esse dogma básico de Marx na sociologia da sociedade de classes. Somente uma revolução socialista pode abrir o caminho para o socialismo”. (Leon Trotsky citado em “Marx, Trotsky y Mandel.  El debate sobre la dinámica del capitalismo”, izquierda web)

Apresentamos abaixo o informe da última reunião internacional da corrente Socialismo ou Barbárie que, após o bem-sucedido Acampamento Anticapitalista e internacionalista realizado em Luján, Argentina, com jovens de delegações de vários países e que teve amplo impacto midiático, acaba de se reunir em Buenos Aires entre os dias 25 e 28 de fevereiro.

  1. A teoria do imperialismo retorna

 A primeira definição da situação mundial é que tudo indica que uma nova etapa se abriu na luta de classes no nível internacional (tomando aqui a ideia de luta de classes como um conceito geral). Não é uma mera conjuntura ou uma situação; nem uma nova etapa que se abriu mecanicamente como um subproduto da ação direta da luta de classes. O que aconteceu foi uma modificação dramática nos fatores objetivos da realidade material mundial (nos elementos que condicionam todos os desenvolvimentos). Há um conjunto de determinações que já configuram outro período da luta de classes e que expressam uma diferença marcante em relação à etapa anterior. Estamos em outro estágio: de acentuação, de agravamento, de mudança de signo de todas as contradições econômicas, geopolíticas, políticas, culturais, ecológicas que marcam a situação mundial.

Uma nova etapa onde a dinâmica é o que acabamos de apontar: à acentuação de todos os elementos críticos, a todas as contradições ou linhas de fracasso do sistema neste século XXI, o que não significa, obviamente, qualquer colapso automático do sistema dominante (o catasfofismo sempre foi um mau conselheiro para as correntes revolucionárias[1]). Mas em qualquer área do globo para onde olhamos (em qualquer uma das esferas sistêmicas), o que se vê é um acúmulo de tensões e problemas difíceis de se resolver por parte do sistema dominante. O que se abriu é muito diferente e até oposto ao período anterior após a queda do Muro de Berlim, onde a característica dominante era a atenuação das contradições. Este período, que se estendeu, se preferirem, nas últimas décadas do século passado e no início deste, poderíamos defini-lo como um “período kautskiano”. Karl Kautsky foi o principal teórico da  social-democracia alemã e internacional no início do século XX, a quem Lenin considerava um de seus professores. No entanto, as pressões do período de estabilidade do capitalismo, que foi, grosso modo, entre 1890 e o início da Primeira Guerra Mundial (1914) foram expressas nele e em toda a direção da II Internacional na forma de uma apreciação evolutiva dos desenvolvimentos e de uma ideia ingênua e burguesa de progresso:  o capitalismo estava aparentemente progredindo suavemente e, por um curso puramente parcimonioso, o socialismo seria alcançado. A democracia burguesa já  imperialista era uma panaceia e só era necessário ganhar uma maioria parlamentar para que o proletariado fosse humildemente colocado no poder. Uma lógica que, em matéria de dialética, se expressava em um evolucionismo grosseiro e mecânico: a realidade se desdobrava em mera gradualidade;  cortes, quebras, saltos de qualidade, etc., foram excluídos.

Logicamente, daí derivou uma apreciação do imperialismo como um fenômeno puramente político, não estrutural: as guerras entre Estados seriam um fenômeno passageiro, ao contrário da visão de Lenin de que o imperialismo expressava, entre outras coisas, uma crise estruturalmente ligada a uma luta entre Estados dominantes pela divisão de um mundo em áreas de influência que já estavam distribuídas. Ou seja: qualquer novo imperialismo teria que lutar sangrentamente para ganhar espaço.

Dito de forma geral, é bastante evidente que as décadas de dominação unipolar dos Estados Unidos no sistema-mundo foram anos “kautskianos” (isso dito descritivamente, obviamente: a teoria de Kautsky falha por seus fundamentos[2]), enquanto o estágio aberto atualmente atualiza as análises clássicas de Lenin no sentido de que a época pela qual estamos passando é de crise, guerras e revoluções. Quer dizer: os elementos da atual época nos cobram novamente a atualidade na etapa que se está abrindo (questão que não é uma afirmação menor ou geral: é um fato categórico, estrutural do que está por vir).

É significativo que, em décadas anteriores, intelectuais marxistas de várias origens e tradições (de Toni Negri a vários marxistas vernáculos) tenham se expressado no sentido de que a teoria do  imperialismo era demodê, que a globalização econômica, o desenvolvimento internacional das cadeias de suprimentos e assim por diante, excluíam a possibilidade de grandes guerras entre os Estados (admitiam a possibilidade de um Estado único mundial, quer dizer, de um Imperium como nomeou o próprio Negri junto com Hardt em uma obra famosa no começo do atual século).  Todos os desenvolvimentos da nova etapa em geral, e a guerra na Ucrânia em particular, além das crescentes contradições entre os Estados Unidos e a China, estão aqui para demonstrar a não veracidade e o impressionismo dessa afirmação. Os problemas do capitalismo são estruturais e, embora cada etapa dele nos obrigue a repensá-los e a não repetir fórmulas de forma doutrinária, uma atenuação de suas contradições só pode ser um evento transitório: as falhas estruturais que o atravessam como um sistema de exploração, opressão e espoliação, além do sistema de  competição entre Estados poderosos e subordinação dos fracos, evidentemente não podem ser resolvidas pacificamente, sem grandes lutas, crises, guerras e revoluções.

  1. Uma tendência a eventos sangrentos

As contradições e problemas que estão na base do sistema-mundo para este século XXI, tendem a ser cada vez mais críticos. Ainda não estamos diante de novas revoluções; as crises econômicas ainda não são tão dramáticas como a de 1929, ainda não estamos perante uma guerra mundial inter-imperialista (embora a dinâmica ucraniana esteja aberta e a sua face de guerra por procuração tenha se agravado), mas, no entanto, todas as tendências são para o agravamento das contradições.

Como subproduto do conflito ucraniano e das crescentes contradições entre os Estados Unidos e a China, reaparece algo hoje que havia sido excluído décadas atrás do cenário mundial: rearmamento, remilitarização, uma nova corrida armamentista que inclui até mesmo a luta pelo domínio do espaço sideral. Logicamente, esse rearmamento parte de níveis muito baixos de estoques existentes. Tirando os Estados Unidos, a primeira potência mundial indiscutível, e tirando a China, que já tem o segundo orçamento militar, e também deixando a Rússia em um lugar especial (a Rússia tem um orçamento militar medíocre em comparação com os Estados Unidos e a China, mas tem uma vasta experiência militar acumulada que vem da era “soviética”), as outras potências imperialistas começam a partir de níveis muito baixos,  quase ridículo, de estoques (veja agora as dificuldades da OTAN em enviar tanques para a Ucrânia).

Nada disso nega o retorno da luta contra a guerra por procuração na Ucrânia (bem como o apoio crítico dos direitos de autodeterminação do povo ucraniano), a luta contra o rearmamento e o renovado (embora ainda atenuado) perigo nuclear, a mobilização contra a OTAN e todos os tratados militares dos velhos e novos imperialismos ou proto-imperialismos,  etc. Ou seja: todo um novo conjunto de tarefas que foram excluídas para todos os efeitos práticos na etapa anterior; o que inclui, insistimos, o retorno do espectro do perigo nuclear, algo completamente fora do horizonte por décadas (algo que não estava presente na geração atual e que, juntamente com a destruição do planeta, propõe novamente a ideia da eventualidade de eventos catastróficos gerados pelo sistema capitalista).[3]

É difícil,  senão impossível,  pensar que essas novas contradições serão resolvidas sem sangue, por pura convenção ou consenso (elas são agudas demais para isso; o choque de interesses e contradições é muito estrutural). Estamos mais próximos do que décadas atrás de eventos sangrentos; eventos em que as relações de forças entre classes e entre Estados são estabelecidas de fato, no campo físico, não no da mediação.

Claro, há países altamente mediatizados onde a democracia burguesa permanece forte. Mas,  mesmo neles, há  novos elementos como o assalto trumpista ao Capitólio, o assalto a Brasília pelo bolsonarismo há dois meses, etc. Em outras palavras, especialmente no que diz respeito aos Estados Unidos, há um questionamento de instituições seculares e sacrossantas da democracia imperialista. E logicamente há países mais dramáticos, mais brutalizados, como o Peru, onde tentaram esmagar a rebelião com um massacre (o caso de Puno-Juliaca, para não esquecer Sakaba e Senkata durante o golpe na Bolívia).

Então, o que temos? Que, tanto ao nível das relações entre os Estados como ao nível da luta de classes, começa-se a derramar sangue, há uma tendência para romper mais habitualmente os limites da institucionalidade (seja a institucionalidade do direito internacional, seja a da democracia burguesa) se transita mais “facilmente” aos acontecimentos diretos da luta de classes ou às guerras entre Estados onde o que decide as coisas são as relações de forças nuas  (as forças materiais em conflito). A tendência à bonapartização dos regimes políticos faz parte disso, veremos adiante.

  1. Da barbárie nas palavras à barbárie nos atos e, eventualmente, à revolução

Nesta nova etapa há elementos de degradação política e geopolítica, mas também nas condições de vida e de trabalho, onde a ofensiva capitalista é feroz. Na Argentina isso é discutido: como dar um salto qualitativo na exploração do trabalho? (as contrarreformas estruturais pendentes, além de liquidar as relações de forças ainda herdadas de 2001). E embora a priori não haja condições para isso, os perigos estão crescendo: quem vai fazer o ajuste feroz que é balbuciado? Por que meios? Apenas como exemplo, no Peru eles acabaram de votar em uma Comissão do Congresso, a aposentadoria aos 75 anos… A simples eliminação da mesma. Isto num país onde 60% de Lima votou em Fujimori e onde o presidente da Câmara de Lima, membro do Opus Dei, se açoita chicoteando-se em frente às câmeras (e onde, também, o golpe de Estado parlamentar convive com uma rebelião popular; tudo isso faz parte do quadro).

Que se compreenda bem: esta nova etapa da luta de classes ainda não anula os elementos da mediação, mas acentua todas as contradições. E essa acentuação é uma dinâmica de estágio, ou seja, de período mais longo. Todas as análises falam de uma situação que vai ficar mais dura, e nossa corrente é ultra jovem e devemos colocá-la em sintonia diante dos acontecimentos (primeiro intelectualmente, por assim dizer).

Mandel afirmou precisamente que a brutalidade nas palavras precede a brutalidade nos atos; elas criam as condições para legitimar a brutalidade de fato. Por enquanto, muitas dessas palavras são “gás” (invectivas e ataques nas redes sociais). Mas a brutalidade nas palavras não estava na etapa anterior, por isso deve ser notada como um fato novo (e não casual). Na etapa anterior, o centro político dominou inquestionavelmente  – que continua a dominar, para não nos confundir -, mas com mais espreita, com crescente polarização política, social, econômica e interestatal; com uma brutalização nas palavras que setores burgueses de tamanho regular tomam pra si (no Ocidente capitalista-imperialista continua a ser uma minoria da burguesia que apoia a extrema direita; a maioria todavia defende soluções centristas mais ou menos inclinadas mais à direita, embora haja desenvolvimentos também nesse sentido em que governos como o de Biden, internamente, se inclinam de certa forma para a “esquerda”, veremos).

As soluções consensuais, a democracia burguesa, mesmo enfraquecida, ainda prevalecem (logicamente excluímos a  China, a  Rússia e até, de certa forma, a Índia). No entanto, a brutalização do discurso político, a chegada da extrema direita (ainda basicamente operando no quadro institucional e sem raízes inteiramente organizadas a partir de baixo, embora isso possa mudar rapidamente), o questionamento das liberdades democráticas e mesmo do regime democrático burguês pela direita, constitui um perigo que seria muito sério subestimar.

Poderíamos dizer que a extrema direita faz um movimento preventivo contra a eventualidade de um crescente questionamento do capitalismo voraz do século XXI. Questiona as liberdades democráticas, questiona os avanços nos direitos das mulheres e LGBTQIA+, questiona qualquer arbitragem mínima do Estado, as conquistas sociais que restam, a organização dos trabalhadores, etc.; quer impor o reinado da escravidão do trabalho, bem como o retrocesso em termos de relações e ideias humanas (incentiva interpretações irracionais do mundo: terraplanismo, empreendedorismo ultraliberal, a ideia de que a mudança climática é uma invenção da “esquerda cultural”, etc.).

E  se, em qualquer caso, houver contratendências evidentes (a persistência da rebelião popular, por assim dizer); ou seja, polo e bipolo da luta de classes local, regional e internacional, o crescimento da extrema direita e as tentativas bonapartistas (muitas delas por enquanto fracassadas), expressa essa tendência a soluções não consensuais na luta de classes e nas relações entre os Estados.  Uma tendência para resolver as contradições com “sangue”, embora a dialética das coisas também se aplique e é por isso que não é a principal solução mais lúcida da burguesia porque sem dúvida, encoraja o retorno das revoluções sociais no século XXI. A sociedade humana não é um corpo inerte, é um corpo vivo: você balança o pêndulo muito longe para um lado e, sem dúvida, o  pêndulo se recuperará, mas não para ficar no centro, mas para ir para  o  outro extremo; isso faz parte de uma inevitável “física política”. Por isso, repetimos, que o mais maduro e lúcido da burguesia, seus “quadros dirigentes”, não os burgueses das classes médias altas, continuam a preferir soluções consensuais, se possível aprofundando a onda de contrarreformas.

  1. Retorna o fenômeno das guerras interestatais e por procuração – indiretamente interimperialistas

 O elemento geopolítico é avassalador, tem uma presença enorme, e para nós é insuportável, uma porcaria porque não é o nosso terreno: não somos um Estado, e se fôssemos não teríamos como centro as relações entre Estados, mas sim entre classes. Não somos um daqueles marxistas que celebram a chegada do “Exército Vermelho” stalinista a Berlim como se isso fosse a expansão mecânica da “revolução socialista”… Nosso vetor não são Estados; e não seriam nem mesmo se administrássemos um Estado operário: nosso vetor é a luta de classes. É por isso que a geopolítica soberanamente nos incomoda, porque desloca a luta de classes e coloca os Estados como atores da história.

A ideia de que os vetores da história são os Estados é um legado da Revolução Francesa onde, além disso, o Estado e as pessoas comuns (os sans culottes) estavam sobrepostos. O sujeito do marxismo revolucionário é a classe trabalhadora, nem mesmo qualquer Estado “operário”.

Além disso, e logicamente, enormes pensadores como Hegel, inspirados pela própria Revolução e, também, pelas tarefas pendentes de seu tempo na Alemanha (a falta de sua constituição como um Estado nacional), eram estatistas. Por isso, ele sofreu com a crítica rigorosa de Marx em ensaios brilhantes, como a Crítica da Filosofia do Estado de Hegel, em que Marx colocava no centro das coisas a sociedade civil (o entrelaçado das massas e a economia).

Dito o anterior, há que mostrar imediatamente que o fio dialético invisível une, de certo modo, a guerra e a revolução, assim como as guerras, toda guerra, não é mais que a continuação da política por outros meios. O que significa de maneira simples que há que diferenciar os tipos de guerras: as justas guerras como as revolucionárias ou as guerras pelo direito de autodeterminação nacional, assim como as guerras civis (guerra entre classes), e outras que não são: as guerras interimperialistas ou por procuração: guerras que há que lutar por transformá-las de guerras reacionárias nas ditas anteriores que são um evento revolucionário contra a própria guerra[4].

Está claro que quando condenamos a geopolítica o que estamos condenando são, melhor dizendo, as guerras interimperialistas ou reacionárias que se colocam por cima dos interesses das massas; que buscam romper esse fio invisível entre a guerra e a revolução; guerras materializadas por Estados reacionários em detrimento dos interesses das massas.

No entanto, a confusão da luta de classes e da geopolítica tem uma longa história no marxismo, com autores como o recentemente falecido Domenico Losurdo renovando a abordagem estatista das questões (a definição de relações entre Estados é uma questão de geopolítica por definição. Logicamente, as relações entre as classes sociais é matéria da luta de classes direta): “Trotsky, que olha para o poder conquistado pelos bolcheviques na Rússia como um trampolim para a revolução no Ocidente, é o mais eminente representante do marxismo ocidental. Acusado pelo seu opositor por sua pretendida angústia nacional e provinciana, Stalin seria a encarnação do marxismo oriental: nunca saiu da Rússia e, já entre fevereiro e outubro de 1917, apresenta a revolução proletária como instrumento necessário não só para edificar uma nova ordem social, como também para reafirmar a independência nacional da Rússia (…)”(Domenico Losurdo, O marxismo occidental. Como nasceu, como morreu, como pode renascer; 2018; 43)

Ao que poderíamos adicionar, “e construir um Estado pleno no sentido da palavra” (Losurdo questiona a ideia marxista sobre a tendência necessária de desaparecimento do Estado na transição ao socialismo).

O fato é, no entanto, que as tensões entre os EUA, a China e a Rússia aumentaram de maneira monumental (uma característica central da nova etapa). As relações não foram quebradas (funcionários desses Estados se reúnem periodicamente), mas no momento na Ucrânia há uma “guerra dupla” onde o elemento de autodeterminação nacional dos ucranianos, que defendemos, é grandemente sobredeterminado (ofuscado) pelo elemento de guerra por procuração e conflito interimperialista (a complexidade do conflito tem sido um elemento de confusão e dispersão na esquerda internacional). [5]

Na discussão de Rosa com Lenin, Rosa afirmou que todas as guerras nacionais são por procuração na época do imperialismo, e Lenin disse que não, que cada guerra deve ser vista em concreto, porque se não se negaria todo o direito legítimo à autodeterminação quando nem todos os povos estão no mesmo estágio histórico:  países imperialistas e outros submetidos ao imperialismo.

No entanto, não se pode perder de vista o fato de que o elemento da guerra por procuração ou que o elemento interimperialista existe e cresce hoje nessa nova etapa. Na Ucrânia, neste momento, este elemento domina mais e os ucranianos estão sendo bucha de canhão: destroçam o país como subproduto da invasão russa e também pela política pró-imperialista de Zelensky, que não tem nada de independente, é um idiota útil da OTAN, que está disposto a afundar a Ucrânia por interesses que não lhe pertencem. (embora, insistimos, o elemento da autodeterminação nacional, de auto defesa nacional é legítimo e subsiste embora neste momento subordinado).[6]

Assim, a chave para o momento atual nesta guerra de desgaste, destrutiva, é a proposta de cessar-fogo, paz sem anexações, exigir a retirada das tropas de Putin, o desarmamento da OTAN (sua dissolução), etc. (“Declaração da corrente internacional Socialismo ou Barbárie. Por uma paz justa sem anexações”,  esquerdaweb).

A outra grande bagunça geopolítica é a do Sul da China meridional, que envolve Taiwan (quer dizer: o problema de Taiwan aumentou após a subjugação de Hong Kong). Estes são problemas que, com a queda do stalinismo e o retorno ao capitalismo, devem ser olhados novamente, com uma cabeça diferente. O marxista chinês-honconguês Au Loong Yu defende a autodeterminação de Taiwan, não a independência, mas a autodeterminação (“Um lugar legítimo para Taiwan neste mundo”, izquierdaweb). Seguimos Au Loong Yu porque tentamos seguir os marxistas dos países que estudamos para não teorizar em abstrato (sobre o direito da autodeterminação de Taiwan veja: “¿Estalla China?”, izquierdaweb).

Sobre o confronto com a China, Biden disse que sua política (que expressa a unidade burguesa ianque neste ponto, outro elemento novo: um elemento de confluência entre democratas e republicanos) é de “competição [disputa], não conflito”. Isso é como tentar colocar um limite no desenvolvimento dos acontecimentos, embora o giro de 180 graus na política dos EUA para frear a China seja evidente.[7]   

Entretanto, o ministro das relações exteriores chinês acaba de responder que isto “não é verdade”, que se os “EUA não mudarem sua política agressiva para com a China”, “se irá inevitavelmente ao conflito” (parafraseio aqui suas palavras, não são textuais, mas creio que seja fiel ao conteúdo de suas declarações).

Por sua vez, o projeto do PC chinês é nacional-imperialista, não emancipatório (uma coisa ridícula para aqueles que enxergam seu curso como “antiimperialista”). O partido mudou o projeto anticapitalista com elementos de defesa nacional que tinha em suas origens para um projeto capitalista imperialista em construção (o marxista francês Pierre Rousset é sensível a isso, mas sua posição equivocada sobre a Ucrânia afunda sua credibilidade)[8].

É uma coisa delicada, porque ninguém sabe se a China e os EUA cabem nesse mundo  (evidentemente não, daí a dinâmica do conflito). O mundo é menor, por isso o problema ecológico também emerge: o mundo não é mais infinito, esse é outro fato do século XXI. No século XX, o “marxismo” em geral (não Marx, Engels ou Trotsky[9]) era produtivista. Isso chegou ao nível em que o stalinismo (que, obviamente, não era marxista) não considerava o capital constante, sua depreciação e matérias-primas como custo – algo delirante. A natureza estava lá, literalmente, para “fazer dela qualquer coisa” bem como para fazer o que bem entender com a força de trabalho (um bom “Estado operário” o do stalinismo… ). Neste século, o elemento mais materialista da ecologia é esse: a infinidade do mundo acabou[10].

Este fim da infinidade do mundo evidentemente dá um quadro para a discussão sobre as relações metabólicas humano/naturais completamente diferentes do século passado, e que a pressão da mudança climática é muito real e fisicamente sentida no ambiente cotidiano da vida de enormes massas de pessoas. De qualquer forma, embora voltaremos a eles, a ecologia e a pandemia tornam a vida cotidiana distópica de certa forma, mas não como um  filme que é visto nas redes ou na Netflix, mas na vida real, que coloca todo um novo conjunto de percepções e potencialidades anticapitalistas muito concretas. Voltaremos com o tema[11].

  1. Quando os Estados se colocam acima da economia

Vendo a disputa hegemônica entre os Estados Unidos e a China, que mudança houve? Que os Estados se colocaram de volta acima da economia. Os Estados não tinham desaparecido e voltaram por seus próprios foros (outro elemento da teoria do imperialismo que é extremamente atual).

Para que se compreenda bem, a teoria do imperialismo é uma em que a análise do capitalismo combina suas duas realidades estruturantes: não só a economia, mas também a competição entre Estados (para não esquecermos, claro está, a luta de classes). Isso significa, estruturalmente, que a tendência ao mercado mundial nunca pode ser levada até o seu fim lógico: a atual globalização que vive o mundo, a mais estendida na história do capitalismo, encontra os seus limites. entretanto, no que precisamente os Estados subsistem e voltam por seus foros: explicitam os seus direitos.

Um mercado realmente mundial apenas pode ser conquistado com o socialismo (com o desaparecimento dos Estados e das fronteiras).

Quando a globalização estava crescendo, o capital foi para a China feliz em reduzir seus custos; foi a era do offshoring, dos centros imperialistas tradicionais, uma era que durou várias décadas e internacionalizou as cadeias de suprimentos. No entanto, quando os Estados são colocados de volta acima da economia (relocalização por razões geopolíticas, não especificamente produtivas), se coloca um gravíssimo problema (muito longe, todavia, de estar resolvido), porque a economia, o “livre mercado”, é mais competitiva quando é estendida no mercado mundial (a divisão do trabalho é global e se cada Estado ou região fizesse o que é mais competitivo do ponto de vista mundial,  embora não do ponto de vista dos próprios Estados, a competitividade global venceria, isso é óbvio ainda que impossível de se levar sob o capitalismo ao seu limite lógico[12]). No entanto, os Estados existem e requerem bases materiais que se encontram dentro de suas fronteiras (se eles pudessem abrir mão completamente disso, eles desapareceriam). Da mesma forma, os Estados são numericamente menores do que as empresas, e necessariamente tendem a fixar mais geograficamente os capitais produtivos, porque dominam territórios, têm contas nacionais, além de terem o monopólio da violência sobre esse território particular, etc., e nessas condições, a luta entre os Estados é, por definição, cem vezes mais concentrada do que a luta entre empresas; portanto, as guerras  entre empresas, monopólios, etc., são guerras econômicas, concorrência feroz, mas as guerras entre Estados são militares, sangrentas, o que faz uma diferença óbvia (não se pode confundir guerra econômica e guerra militar, são coisas distintas, planos distintos das relações humanas). Embora, logicamente, os Estados também concorram e de maneira multiplicada, a questão é que a barreira entre a concorrência econômica ou comercial e a competição militar que não é apenas econômica, mas também nacional, por território, geográfica, as fronteiras entre um e outro começam a se confundir.

Ressaltamos que estamos falando de novas tendências, ainda não há uma modificação completa da configuração globalizante; as cadeias de suprimentos mundiais seguem presentes, é muito difícil “desenterrar” capital constante, etc, mas muitos capitalistas como Mark Moebius, por exemplo, agora declaram que “apenas muito circunspectamente favoreceriam os investimentos na China”, isso além do fato de que, sendo o maior mercado do mundo, não há como evitar investir nele (o caso da Alemanha, por exemplo). Mas algo diferente é continuar a realocar filiais inteiras para esse país ou que nele estejam os nós fundamentais das cadeias ocidentais de abastecimento (já existe uma migração para outros países do sudeste asiático).

Isso nos leva a um segundo fato, não mais tão novo (eclodiu, por assim dizer, durante a pandemia): há uma crise na globalização sem limites e cadeias de suprimentos universais. Se você é um grande burguês, como acabamos de dizer, hoje você pensa duas vezes antes de ir para a China. Parte disso é que há uma mudança com Biden que devemos estudar mais a fundo, em que ele apresenta uma política expressa de reindustrialização dos Estados Unidos: essa é outra novidade. As relações de trabalho são tão neoliberais quanto têm sido (embora Biden pareça encorajar a sindicalização; devemos terminar de estudar exatamente o porquê), mas essa política não é (tão) neoliberal; the Economist reclama que isso não é livre mercado (Biden estabeleceu uma série de programas de apoio em termos de semicondutores, infraestrutura, etc., bem como barreiras tarifárias e não apenas contra a China). A Europa também se queixa da política protecionista dos Estados Unidos. O marxista ianque Dan Le Boz afirma que em questões domésticas Biden tem um discurso a “esquerda”.

Por outras palavras, concorrência e eventualmente conflitos sangrentos no lugar da cooperação; realocação de cadeias produtivas. Um único circuito de valorização global ou um circuito duplo sobreposto? Circuito duplo significa “dois mercados  mundiais em um”, o que é improdutivo.  (exageramos a nota para que se entenda o que está em jogo, mas dada a profundidade da estrutura produtiva mundial ainda não existe um mundo bipolar, mas uma polarização assimétrica que se desloca da disputa entre Estados para a economia – com os Estados Unidos e a China como atores exclusivos dessa competição).

A teoria do imperialismo retorna por seus próprios foros, com o elemento clássico da competição entre Estados, que não existia quando os EUA eram hegemônicos. O imperialismo surge quando termina a primeira onda de liberalização de 1870 a 1914; Depois veio uma longa onda de protecionismo até 1970, quando chegou a nova etapa liberal, o que chamamos de neoliberalismo, que não terminou de longe, mas há novos elementos competitivos.

  1. O capitalismo voraz do século XXI (quadro geral)

Do ponto de vista estritamente econômico, coexistem tendências opostas (além da conjuntura que não abordaremos aqui) [13]. Por um lado, uma monumental revolução tecnológica cada vez mais difundida pelos vários ramos produtivos (negar isso seria paleolítico), que convive com um capitalismo muito abstrato, “incompreensível”, onde há pessoas que se tornam milionárias da noite para o dia, com um desenvolvimento exuberante de ferramentas financeiras abstratas que sobem e descem; de outro, a mais brutal escravidão laboral dos jovens trabalhadores. São duas experiências diferentes. (O caso do Peru é um extremo de uma experiência global: extrativismo sem limites, trabalho informal em quase 80% da força de trabalho, colapso da taxa de sindicalização, o legado do império neoliberal fujimorista logicamente, é um país bastante “marginal” na economia mundial, mas ilustrativo, talvez, extremo, das tendências mundiais).

Junto com isso, obras arquitetônicas monumentais como inventar países inteiros como o Catar ou os Emirados Árabes Unidos, etc.

Imagens altamente opostas do capitalismo coexistem: formas ultramodernas de exploração por plataformas do século XXI  (exploração por algoritmo, IA, etc.) e condições de trabalho do século XIX sem direitos de nenhuma natureza. Monumental desenvolvimento capitalista em questões tecnológicas e urbanas, juntamente com a brutalização e barbárie das relações humanas em grandes partes do mundo. Extrema riqueza em um polo e pobreza categórica no outro, o capitalismo é mais do que nunca um “mundo de contrastes”; a lei do desenvolvimento desigual e combinado aplica-se a ele como nunca antes no  mercado mundial. E o específico é que se faz mais voraz não somente porque não está todavia o contrapoeso de novas revoluções sociais como na segunda metade do século passado, mas desde o ponto de vista econômico, porque o mundo também, se faz “finito” desde o ponto de vista estritamente econômico: o específico das tendências às crises atuais é que o lucro logrado com a restauração do capitalismo em um terço do globo se está esgotando e há que encontrar as novas fontes de valorização (atenção: existe por onde, já veremos[14]).

O capitalismo não está fraco, é uma besta muito difícil de domar (a mercantilização do mundo é monumental; tudo é uma mercadoria, tudo é comprado e vendido). Seus contrastes são infinitos, apresenta falhas, mas não é fraco: continua sendo uma história de revolução constante das forças produtivas, além de forças destrutivas ferozes e atrozes, destruição do planeta e da força de trabalho. Quando o espectro da revolução desapareceu, todo o capitalismo tornou-se feroz  (homogêneo e feroz). Na Argentina, não vemos isso porque há paleocapitalismo aqui. Mas no mundo há  um enorme e extremamente desigual processo de modernização que convive com uma feroz superexploração, e com todo tipo de estratificação, não só de classe (ainda que o conflito de classes, atenção, é o que ordena todo o resto, o que estrutura as demais relações sociais): um capitalismo armado até os dentes, com bairros privados, com repressão, com massacres: se você é negro, gay, imigrante, mulher, eles descriminam, te superexploram (inclusive, literalmente, te matam[15]).

Há uma discussão, também nova, que é a da “transição ecológica”. O capitalismo verde é um grande negócio. De qualquer forma, com a guerra na Ucrânia, a produção de combustíveis fósseis aumentou. O consumo de combustíveis fósseis não está caindo, mas o consumo de combustíveis verdes  tende a crescer, embora isso não signifique que eles não sejam poluentes: baterias de lítio, o lítio é uma nova história de predação e extrativismo (“Litio: el material del futuro”, izquierda web). Infelizmente não temos aqui espaço para desenvolver esta questão, mas, em todo o caso, apontamos que a desigualdade é hoje uma das principais discussões sobre o anticapitalismo;  da imundície insuportável que o capitalismo é hoje para os explorados e oprimidos.

Há uma discussão sobre a taxa de lucro do capitalismo, se ele se recuperou e quanto em relação aos anos 70 (a verdade, me deixa entediado um pouco esse tema). Os capitalistas estão ganhando como nunca antes porque a classe trabalhadora está muito atrás, então o capitalismo está à vontade. A classe trabalhadora está muito atrás porque o século XX terminou mal. Eles aumentaram ferozmente os critérios de exploração, e essa ofensiva continua, não há concessão em lugar nenhum (a retirada das velhas concessões e a não outorga de novas, é uma característica do capitalismo atual[16]). Não haverá concessões se não fuzilarmos eles ou os agarrarmos pelo pescoço; a rebelião deve ser transformada em revolução. Caso contrário, podemos alcançar algumas conquistas democráticas que o capitalismo pode absorver, como as conquistas de gênero que foram alcançadas em alguns países; mas as conquistas econômicas, se a revolução não retornar, não haverá: modificar a linha entre o trabalho necessário e o trabalho excedente significa uma luta sangrenta.

De qualquer forma, não se trata apenas da taxa de exploração, que seria uma explicação vulgar para a crise capitalista. Há sérios problemas com a valorização do capital. A exuberância do capital fictício expressa isso. Além disso, o elemento competitivo entre os Estados também expressa que o enorme lucro geográfico do capitalismo após a queda do Muro  de Berlim e com a restauração capitalista de 1/3 do globo para a criação de mais-valia e mercantilização tem seus limites. É verdade, no entanto, que a próxima história de sucesso poderia ser a África, ainda em grande parte inexplorada em termos de exploração capitalista baseada no desenvolvimento das forças produtivas e na mais-valia relativa (por não dizer que seguramente na Índia, todavia, existe muito campo não explorado, está a questão da conquista do espaço sideral, etc.[17]).

Mas, em qualquer caso, a taxa de lucro sem dúvida se recuperou nas últimas décadas, mas os elementos óbvios do parasitismo, ferramentas fictícias como o Bitcoin, mais do que a produção proporcional voltada para a construção de imóveis não reprodutivos (isto é, de capital  improdutivo), etc., indicam a coexistência dramática entre tendências produtivas e improdutivas,  além das forças produtivas e destrutivas e do drama ecológico (o assalto à natureza).

Mas, em qualquer caso, há duas visões polares que não funcionam em relação à dinâmica capitalista. Uma delas é a ideia vulgar de que as forças produtivas deixaram de se desenvolver. Ernest Mandel deu anos atrás (em outro cenário econômico mundial) uma boa resposta a essa abordagem vulgar não por acaso com um texto escrito por um marxista que vivia no centro imperialista: O capitalismo tardio (Nahuel Moreno, da periferia sul-americana e da Argentina, um país, de fato, em crise permanente, embora socialmente muito moderno), tinha a posição de que as forças produtivas haviam deixado de se desenvolver em… 1914 (em seus últimos anos de vida ele mudou essa posição). Outras tendências trotskistas continuam a ter as mesmas ou mais equivocadas posições (os grupos vindos do lambertismo e do altamirismo com sua defesa do “catastrofismo” e fontes teóricas que não são as do marxismo revolucionário, mas sim pelo debate a respeito do ocorrido na Segunda Internacional que terminou em uma via morta[18]).

Lenin e Trotsky nunca defenderam o catastrofismo, com o primeiro chegando ao ponto de afirmar fortemente que “nunca há situações absolutamente sem saída para a burguesia” se não a derrotamos, e Trotsky recordando o prognóstico de raíz engelsiana e luxemburguista, de socialismo ou barbárie.

No período entre guerras, Henryk Grossman produziu uma obra profunda cheia de nuances sobre o “suposto colapso do capitalismo” (La ley de acumulación y el derrumbe del sistema capitalista), mas, lembremo-nos, seu esquema deixou de fora a luta de classes (assim dizendo: deixava estabelecida algumas mediações). A ideia de Trotsky da “curva do desenvolvimento capitalista” é mais profunda e mais terrena porque atribui às tendências internas do sistema as condições histórico-objetivas em que opera e que não podem ser excluídas da análise total.

Por outro lado, as análises que embelezam o sistema também são inúteis. Aqueles autores que não veem crises no capitalismo, que o veem desenvolvendo forças produtivas como se fosse um sistema em “crescimento eterno”, sem história. Vinte anos atrás, desenvolvemos um debate com um daqueles marxistas vernaculares (Rolando Astarita, sério, mas desprovido de qualquer critério político), que com uma abordagem positivista perdeu de vista a dimensão histórica do sistema: a crescente acumulação de forças produtivas e destrutivas, um sistema em que todo progresso é acompanhado por uma regressão:  “o fato de que o capitalismo continua a oscilar ciclicamente (…) indica, de maneira simple, que ele ainda não morreu e que ainda não estamos confrontados com um cadáver. Até que o capitalismo seja derrotado pela revolução proletária, ele continuará a viver em ciclos, subindo e descendo. Crises e booms são característicos do capitalismo desde o dia de seu nascimento; eles o acompanharão até o túmulo. Mas para definir a era do capitalismo e seu estado geral, para estabelecer se ele ainda está em desenvolvimento, ou se já amadureceu, ou se está em declínio, é preciso diagnosticar o caráter dos ciclos, como se julga o estado dos organismos humanos, de acordo com a maneira como respira: calmamente ou sem fôlego, profundo ou suave, etecetera”” (Trotsky citado em “Marx, Trotsky y Mandel: fuerzas productivas y época de decadencia capitalista”). Astarita critica Trotsky por suas avaliações da crise capitalista nos anos 30, mas com o jornal de segunda-feira é fácil. É bastante óbvio que os anos 30 foram uma década bastante catastrófica, mas então o capitalismo superou esse gargalo (não sem a ajuda do stalinismo que afundou a URSS e as perspectivas emancipatórias).

Em suma: o capitalismo continua a ser uma história de sucessos e fracassos, de “progresso” e regressão cujo nó górdio não será quebrado por nenhum mecanismo interno do capitalismo, mas pela luta de classes, além de suas crises serem geradas pelas próprias leis que o regem. Mas sua superação emancipatória não pode ser resolvida por qualquer colapso automático do sistema,  caso contrário, a revolução social ou a humanidade cairão em circunstâncias de crescente barbárie.

Daí que o debate sobre a crise do capitalismo, sobre a nova etapa, nos coloca, de maneira direta, os problemas da estratégia revolucionária, questões que veremos na segunda parte deste informe.

  1. Polarização multiplicada (entre classes, entre Estados e no seio da classe dominante)

Há uma polarização crescente na luta de classes porque os acordos consensuais, que continuam, todavia, em vigência, estão em crise. Há uma polarização entre classes, entre Estados, e um novo elemento: há mais divisão burguesa. Esse terceiro elemento de polarização, talvez tenhamos mais incorporado no Brasil onde estava Bolsonaro, que teve o apoio da burguesia no início, mas que o abandonou. Na Argentina, essa crescente divisão burguesa é chamada de “rachadura” (uma divisão não apenas eleitoral, mas também em termos do tipo de reformas e também mais estrutural).

As divisões entre os setores burgueses são às vezes econômicas, às vezes políticas, mas em todo o mundo há uma “rachadura”,  em primeiro lugar nos EUA: a  política dos EUA tem sido “divisiva” por um longo tempo, embora eles tenham chegado a um acordo sobre a China e isso atenuou parcialmente pelo menos essa parte estratégica da rachadura. Mas não há grandes estadistas que gerem consenso em todos os setores da classe dominante e em todas as “tribos” capitalistas: há diferenças que são reais, daí a crise do consenso tradicional.

Existem duas diferenças estruturais muito importantes (dois critérios gerais de “organização” para as diferenças). Uma delas é a globalização tout court –  neoliberalismo e livre mercado sem limites – ou Estados (elementos de intervenção estatal ou “capitalismo de Estado”)[19] – “cuidado que também administramos um país”, este último setor poderia dizer. A outra divisão é: democracia burguesa, sim ou não? O consenso mundial para a democracia burguesa está em crise, embora permaneça na maioria no mundo ocidental. Na primeira entrevista de Biden com Xi Jinping, o último  disse ao primeiro: “A democracia tem muito custo, eles têm que negociar, concordar; aqui nós expulsamos do congresso Hu Jintao e pronto” (a última parte eu que adicionei, mas em substância é assim: aqui nós resolvemos de cima e pronto).

Na Argentina, em nota do jornalista Morales Solá, diz-se que Milei sonha que, se se tornasse presidente, já que não teria maioria nas câmaras, faria tudo por referendo (ou seja, por meios bonapartistas). É tudo um exagero porque Milei dificilmente chega ao segundo turno (embora não possa ser excluído), mas o debate que Xi Jinping faz, “a democracia burguesa tem muito custo”, é o debate clássico da extrema direita: “os deputados cobram”, “e ainda você tem que discutir” mais ou menos em face da sociedade, “perde-se tempo”: se “você liquidar tudo isso,  você não precisa discutir com ninguém e executa as tarefas muito mais facilmente” (síntese: bonapartismo, para não mencionar o fascismo ou o nazismo que colocaria as coisas em um plano que não está lá: não há revoluções por enquanto). Claro que nada termina, porque as contradições sociais seguem surgindo da mesma forma (é como o que é reprimido na psicanálise: os problemas irrompem da mesma maneira, não podem ser eliminados); o Estado chinês tem medo de uma rebelião, ainda tem medo de Tiananmen trinta anos depois (em geral, todo regime autoritário tem medo do surto de raiva popular). Mas, por enquanto, eles te prendem, te esbofeteiam e pronto (é claro que os fundamentos da potencial crise do regime do PC chinês é se o elemento legitimador do crescimento, que está enfraquecendo, continuará;  A China anunciou um crescimento para este ano de 5%, além do peso que a legitimação nacionalista pode ter)[20].

Na Argentina, não estamos acostumados com a ascensão da extrema direita, que está emergindo em todos os lugares (embora percam eleições, sobrevivem como uma força importante; embora ganhem eleições, também não se tornam forças fascistas; atenção, sua irrupção é perigosa, mas também tem limites). No Brasil era mais óbvio, ou na França com Marie Le Pen, mas também acontece na Argentina: dominam as redes sociais e dizem qualquer coisa (a emergência eleitoral de Milei é um perigo, não algo para se pensar que não é nada). Manuela Castañeira, por exemplo, é atacada de tudo nas redes sociais (respondemos quando conveniente, claro, mas eles têm um multiplicador milionário porque têm fundos milionários por trás); Manuela sofreu dois ataques físicos na rua durante a greve dos trabalhadores de fabricação de pneu, e isso pode acontecer com qualquer companheira ou companheira que seja figura pública nos outros países da corrente.

A conjuntura internacional deslocou-se muito ligeiramente para o centro, com as derrotas de Trump e Bolsonaro, mas parece-me que ainda é basicamente reacionária. Mesmo pela quadratura do círculo que é a Ucrânia, que é insolúvel porque não há expressão independente, embora a luta pela autodeterminação nacional seja justa, mas é arregimentada desde o governo Zelensky e instrumentalizada pelo imperialismo tradicional enquanto Putin os esmaga dia e noite (quadratura da situação como está por hora, sem possibilidades emancipatórias no momento).

Há uma conjuntura reacionária, mas com um aumento da polarização em todos os sentidos: entre os Estados, dentro da classe dominante, e na luta de classes, onde até mesmo as tendências à rebelião popular sobrevivem e se radicalizam (embora com a rebelião não seja suficiente, a reabertura do ciclo de revoluções é necessária. Veja o caso do Peru a este respeito)[21].

Na luta de classes, então, coexistem duas tendências opostas. Há esse novo fenômeno de golpe de Estado e rebelião popular coexistindo para além do novo fenômeno da recomposição operária nos Estados Unidos, novos setores jovens da classe trabalhadora organizando-se, surgimento inicial de frações da juventude onde se implanta o discurso anticapitalista, etc., todas questões referentes à segunda parte deste informe.

Bibliografia

Gilbert Achcar, “Apoyo a Ucrania, pero sin dar un cheque en blanco”, Viento Sur, 20/02/23.

Valerio Arcary, “Nâo há ‘solucão’ militar na guerra de Ucrânia, esquedaonline, 24/02/23.

Claudia Cinatti, “A un año de la guerra en Ucrania”, izquierda diario, 26/02/23.

Corriente internacional Socialismo ou Barbárie, “Por uma paz justa sem anexações”, izquierda web, 22/02/23.

Adreu Coll, “La gauche anticapitaliste et l’Ukraine”, Contretemps, 12/01/23.

Domenico Losurdo, O marxismo occidental. Como nasceu, como morreu, como pode renascer, Boitempo, São Paulo, 2018.

Ernest Mandel, O capitalismo tardio, Nova Cultural, São Paulo, 1985,

Roberto Sáenz, “Hacia el mundo de la hiperpolarización”, izquierda web, 17/12/22.

“¿Estalla China?”, izquierda web, 3/12/22.

“Marx, Trotsky y Mandel: fuerzas productivas y época de decadencia capitalista”, izquierda web, 21/08/19.

Maxi Tasán, “Litio: el mineral del futuro”, izquierda web, 16/02/23.

Au Loong Yu, “Un lugar legítimo para Taiwán en este mundo”, izquierda web, 11/02/23.

Marcelo Yunes, “China hoy: problemas, desafios y debates”, izquierda web, 03/12/22.

“La economía mundial: hoy inflación, ¿mañana recesión?”, izquierda web, 21/05/22.

Notas

[1] Certas formas de catastrofismo, de que o capitalismo estava sempre à beira do colapso, têm sido pares similares do objetivismo; ambas características do trotskismo no século passado.

[2] Lenin considerava Kautsky um de seus mestres e por fundamentos bem considerados: Kautsky havia se formado ao lado de Marx e Engels (este último ele apreciava mais do que o primeiro). Entretanto, rapidamente surgiram desavenças com ele e Bernstein (paradoxalmente, este é mais apreciado por Marx) por conta dos limites e cuidados (censura dizer as coisas de fato como são) que ambos impuseram a determinados textos do socialismo revolucionário.

Ademais, as pressões da época trouxeram confusões  nele assim como em toda a direção socialdemocrata razão pela qual os elementos naturalistas, evolucionistas e mecanicistas foram se impondo  dramaticamente    no pensamento kautskiano. A capitulação da 1914 foi o ponto de ruptura de todos eles como parte da bancarrota da Segunda Internacional diante da guerra imperialista. Lars T Lih e outros estudiosos mostram textos valiosos de Kautsky até aquela época e assim de fato foi. Mas daí a querer apresentá-lo como um revolucionário  por toda sua vida ou perder de vista a aguda crise pela qual passou Lenin e a ruptura que este operou, não só política como também metodológica, com esse tipo de marxismo evolutivo, isto expressado entre outros textos, em suas geniais notas do Caderno Filosófico: Hegel (setembro-dezembro 1914), é um completo exagero.

[3] Muitas das distopias futuristas no período pós-guerra estavam amarradas em torno do perigo nuclear. Atualmente, elas estão amarradas em torno de eventos como a pandemia e as mudanças climáticas. Mas agora temos que adicionar o espectro nuclear a elas novamente. Ou seja, a especulação distópica ganha vida não apenas literária, mas uma viabilidade que foi excluída nas duas últimas gerações.

[4] Para esclarecer as relações dialéticas entre guerra e política veja (“La política revolucionaria como arte estratégico”) do mesmo autor dessa nota. Agora sobre o caráter das guerras, especialmente da Segunda Guerra Mundial, veja “A propósito del carácter de la Segunda Guerra Mundial” (ambos textos em izquierdaweb).

[5] Temos criticado em nossas elaborações tanto a posição do mandelismo ou pós-mandelismo, especialmente francês (a antiga maioria do NPA) de apoiar incondicionalmente o envio de armas, à direção de Zelensky, ao não se delimitarem da OTAN e de outras aberrações (deve-se notar que internamente com sua autoproclamada “Quarta Internacional” vozes dissidentes crescem contra esta posição, veja o último texto de Andreu Coll em Contretemps: “La gauche anticapitaliste et l’Ukraine”), bem como as posições campistas que vêem a Rússia de Putin como um vetor “antiimperialista” (o Partido Obrero da Argentina, por exemplo) e não como o que é:  um império em reconstrução (em reconstrução significa marcado por enormes fraquezas visíveis agora na própria guerra ucraniana.)

Característica de algumas correntes como a do PTS (Fração Trotskista) é ter várias posições dentro dela, o que é explicado pela complexidade do conflito, mas não se justifica, porque está ancorado na total falta de balanço crítico do século passado. O debate sobre o balanço tem sido substituído pelo debate de “estratégia”, valioso em si mesmo, mas mais instrumental (é difícil chegar corretamente a um plano instrumental se os fins não forem repensados). Trata-se de um debate varrido para debaixo do tapete que parece colocar uma posição contra a outra (cada texto que eles emitem sobre a Ucrânia vai para um lado diferente; não há continuidade em suas abordagens. “Um ano depois da guerra na Ucrânia”, de Claudia Cinatti, parece muito mais equilibrado do que os textos campistas que Juan Chingo emite regularmente da França).

[6] Outra abordagem unilateral é agora a de Valério Arcary, do PSOL e da Resistência, que inicialmente levantou o duplo caráter do conflito, mas agora ele diz que conflito “se trata [exclusivamente] de uma guerra interimperialista” (“Não há ‘solução’ militar na guerra da Ucrânia”, esquerdaonline, 24/02/23), posição evidentemente exagerada porque não existe uma guerra direta entre a OTAN e a Rússia, pelo menos por agora.

[7] Para esta análise ver o grande trabalho de Marcelo Yunes: “China hoy: problemas, desafíos y debates”, en izquierdaweb.com

[8] É insólito como, no meio da campanha da OTAN sobre a “bondade” do imperialismo ocidental, eles continuam a pedir armas para a Ucrânia (é verdade que existe alguma delimitação interna em suas linhas com Gilbert Achcar, que não participou diretamente da quarta mandelista, mas simpatiza com ela, apontando agora que o apoio à Ucrânia não deve ser um “cheque em branco”) Embora o prêmio do ridículo vá para o PSTU do Brasil que não só pede armas, mas “armas pesadas”… Praticamente nenhuma corrente do trotskismo escapou da turbulência produzida pela complexidade do conflito ucraniano, uma complexidade típica do novo mundo em que vivemos: o século XXI, agravado pela total falta de balanço do século anterior.

Por último, apesar de tudo, Rousset tem razão quando coloca a exigência para entender o “novo mundo” em que vivemos pelo “fazer balanço” do século passado (“Imperialismo(s), Rusia, China. Contexto histórico del debate”, viento sur).

[9] Daniel Tanuro acusa injustamente Trotsky de “produtivista”.

[10] A ecologia de Marx, de Bellamy Foster, é um trabalho muito bom para abordar a ecologia de uma forma geral a partir do marxismo. De resto, devemos evitar os ridículos deslizes dos “colapsistas” (outra forma de catastrofismo vulgar), bem como o de autores e correntes europeias como Michael Lowy que apelam ao “decrescimento” tout court, um olhar que soa muito eurocêntrica, embora devamos defender o crescimento produtivo de outras maneiras e para outros fins. É evidente que em países dependentes, metade do mundo ou mais, não se pode reivindicar o decrescimento, mas sim o crescimento de outra maneira.

[11] Sem ir muito longe, enquanto escrevemos este texto em Buenos Aires, a onda de calor que está sendo vivida é insuportável e não parou por várias semanas. Além do fato de que a Argentina está literalmente caindo aos pedaços, as ondas de calor são características dos verões em mais e mais países (bem como o frio polar no outro extremo das estações em vários lugares).  Aquecimento global e mudanças climáticas (quer dizer, temperaturas extremas em ambos polos), são características de nossa época.

[12] Como indicamos, o mercado mundial tem o limite da subsistência dos Estados nacionais. Ver a este respeito, nessa mesma edição (Marx, Trotsky y Mande. “El debate sobre la dinámica histórica del capitalismo”).

[13] É evidente que uma das principais tendências é o aumento dos preços gerado pelo pós-pandemia e pela guerra na Ucrânia, entre outras coisas nas matérias-primas (para uma análise mais detalhada da situação ver Marcelo Yunes: “Economía mundial: hoy inflación, ¿mañana recesión?”, izquierda web).

[14] Colocar limites mecânicos ao desenvolvimento capitalista é complexo. Apenas pensar o campo do desenvolvimento e valorização que poderia significar a conquista do espaço sideral mostra que a combinação de crescimento e crise é intrínseca ao sistema que acumula elementos de parasitismo e depredação, mas cujos limites intrínsecos sempre são dinâmicos: apenas a luta de classes pode acabar com ele; não morrerá de morte natural.

[15] Escrevemos a este respeito no ano passado em relação aos casos diferentes de França e Brasil, por exemplo.

[16] Desenvolvi isso de maneira propagandística em ”Esta geração vai ser a protagonista de tudo o que está por vir”, esquerdaweb.

[17]Não queremos repetir aqui todo o que já dissemos em nosso texto “Marx, Trotsky y Mandel. El debate sobre las perspectivas históricas del capitalismo” que já citamos e que tem uma abordagem mais profunda da que podemos fazer aqui.

[18] Tanto os reformistas quanto os revolucionários como Rosa Luxemburgo em seu seio colocavam as posições catastróficas: que, no limite, o capitalismo cairia por suas contradições. Essa abordagem é equivocada: o capitalismo não vai cair apenas por suas tendências intrínsecas em efetivamente à crise: é necessário derrubá-lo, questão que convoca a ação política revolucionária (coloca sobre a mesa os problemas de estratégia).

[19] O capitalismo de Estado como tal existe na China e na Rússia, por exemplo, no ocidente capitalista, sob Biden acima de tudo (embora insistamos que temos que estudar mais isso), parece haver uma certa lógica de maior intervenção estatal na economia do que nas últimas décadas, embora isso não seja capitalismo de Estado; não chega a isso.

[20] No ano passado, a China cresceu agonicamente 3%, algo muito baixo para seus padrões e o número mais baixo desde os anos 70. De resto, o crescimento de 5% para este ano continua, no entanto, a tendência para a normalização dos seus índices que já ninguém espera voltar aos dois dígitos como anos atrás.

[21] De certa forma, a rebelião no Peru, que ainda está em curso, recuou até certo ponto. A dificuldade é óbvia: a rebelião veio do “mundo” Andino” e do interior do país; isto é, do leste, sudeste e sul do Peru, mas Lima é um bastião de Fujimorismo de certa forma.

Tradução: Ana Paula Scandola e Renato Assad