Por Víctor Artavia

Nos últimos anos, foram eleitos na América Latina diferentes governos considerados “à esquerda” pela imprensa burguesa, embora em nosso caso preferimos descrevê-los como sociais-liberais ou liberais-sociais (mais sobre essa definição adiante). Devido a isso, abriu-se um debate na vanguarda da esquerda sobre as perspectivas desses governos na atualidade, principalmente em torno a suas perspectivas para repetir e aprofundar as reformas feitas pelos seus antecessores no início do século.

Neste artigo vamos analisar a natureza política dos novos governos sociais-liberais e, particularmente, estabelecer os limites que os caracterizam e sua incapacidade para consolidar um novo ciclo progressista ou reformista, tanto pela situação econômica mundial adversa, como pelas contradições internas que apresentam.

Polarização e crise dos consensos

Na região prevalece uma crescente instabilidade, devido à erosão dos pilares econômicos e políticos sobre os quais seu “modelo de desenvolvimento” neoliberal foi construído. A América Latina enfrenta uma crise que, além da deterioração de seus indicadores estatísticos, expressa fundamentalmente uma ruptura no consenso social que determinou a política regional nas últimas décadas.

Durante os anos 80 e 90, nos países latinos,  prevaleceu um ciclo político neoliberal, durante o qual a direita tradicional foi hegemônica, com base na implementação do Consenso de Washington – o famoso “decálogo” do neoliberalismo americano – e prometeu uma ascensão social baseada no estímulo do mercado livre e da democracia liberal; isto não aconteceu e, ao contrário, durante aqueles anos a pobreza e a miséria social aumentaram, na medida em que a região é atualmente a mais desigual do planeta.

Segundo a CEPAL, na América Latina há 201 milhões de pessoas (32,1% da população total) em situação de pobreza, dos quais 82 milhões (13,1%) estão em pobreza extrema. Mas as porcentagens são maiores nos casos das crianças e adolescentes, visto que a taxa de pobreza atinge ao 45% da população total na região. Além disso, a taxa de desemprego teve um retrocesso de quase 22 anos, afetando fortemente as mulheres, setor em que esta passou de 9,5% em 2019 a 11,6% em 2022.

Por isso, nas últimas décadas o status quo derivado do consenso neoliberal tem sido cada vez mais questionado. Primeiro, ele se expressou na onda de rebeliões populares do início do século, da qual surgiu uma série de governos “progressistas” que, embora aplicassem reformas e planos de bem-estar para redistribuir a riqueza e reduzir os níveis de desigualdade social, não implementaram medidas anticapitalistas ou reverteram o caráter semicolonial de seus países, de modo que as causas estruturais da desigualdade persistiram – embora ligeiramente atenuadas.

Por esta razão, os pequenos avanços sociais alcançados pelos governos reformistas e nacionalistas burgueses foram rapidamente reabsorvidos pelos efeitos das crises econômicas internacionais que ocorreram após 2008. Isto levou ao desgaste do ciclo progressista e, consequentemente, facilitou o retorno da direita na maioria dos governos, com características reacionárias ainda mais acentuadas – resultado do mal-estar social acumulado e da instalação de um clima de polarização política.

Talvez o caso mais emblemático seja o Brasil, onde o ciclo de quatro governos consecutivos do Partido dos Trabalhadores (PT) terminou abruptamente com o impeachment que derrubou a Dilma Rousseff em 2016, um movimento reacionário que colocou Michel Temer (então vice-presidente da Dilma) na presidência – político tradicional burguês que se concentrou em aprovar uma série de medidas draconianas de austeridade contra a classe trabalhadora. Portanto, o impeachment deu lugar a uma escalada autoritária entre setores da burguesia e dos militares, propiciando o surgimento do governo de ultradireita de Bolsonaro, que, além de reivindicar a ditadura militar que controlou o país entre 1964-1985, ameaçou dar um golpe no final de seu mandato, tudo como parte de sua aspiração de “refundar o país” em um sentido reacionário e autoritário.

A chegada dos governos sociais-liberais

Até 2022 eram 12 governos desse tipo na região e, as economias sob seu controle, representaram 60% do PIB da área; mas seu peso se acrescentou com a eleição do Lula no Brasil ao final do ano passado, pelo qual somaram à principal economia do subcontinente, que representa 31,9% do PIB regional (2021)[2].

Os dados descritos acima parecem confirmar que uma nova “maré rosa” – como foi chamado o ciclo anterior de governos progressistas – está em andamento, que iria da Terra do Fogo à própria fronteira dos Estados Unidos. Mas, para além desses dados quantitativos, é necessário analisar as complexidades da situação atual, a qual está determinada pela crescente polarização e pela crise econômica, dois fatores que dificultam a estabilização dos ciclos políticos. Por esta razão, os “curtos-circuitos eleitorais” são cada vez mais recorrentes na região, interrompendo a continuidade dos governos em exercício – seja da direita ou da esquerda – pelo que o pêndulo a nível governamental oscila entre os dois polos.

Para explicar melhor, é útil analisar a incapacidade da direita de consolidar o poder após o sucesso dos progressistas, em grande parte porque sua agenda consistia em rejeitar o “populismo” de esquerda e, imediatamente depois, aplicar novos ajustes neoliberais (de mãos dadas com o FMI e outras agências imperialistas), ou seja, aprofundaram os ataques contra os setores explorados e oprimidos. Por isso mesmo, foram governos de curta duração que, em muitos casos, foram mortalmente feridos pelas mobilizações populares provocadas por suas políticas reacionárias. Na Argentina, o governo Macri foi derrotado nos dias de mobilização em dezembro de 2018 contra a reforma previdenciária; Piñera e Duque perderam seu capital político ao reprimir as rebeliões e terminaram seus mandatos com a contenção/traição do reformismo dos protestos; as forças golpistas na Bolívia não consolidaram seu regime devido à resistência popular contra o governo racista e conservador de Jeanine Añez, que agora está na prisão após o retorno do MAS ao poder nas eleições de 2020; etc.

Tudo isso explica os recentes triunfos da centro-esquerda ao capitalizarem o voto de protesto contra os governos no poderPor esta razãocaracterizamos o fato de que não se abriu um novo ciclo progressivo ou reformista, uma vez que os novos governos “esquerdistas” podem não ser capazes de se consolidar ou garantir sua continuidade no poder, dada sua incapacidade de adotar medidas radicais – ou seja, anticapitalistas – para enfrentar a profunda crise econômica e social que está varrendo os países da região. Além disso, eles nem sequer se qualificam como reformistas se os compararmos com a experiência de seus predecessores progressistas – como Chávez ou Evo Morales – uma avaliação que é confirmada ao aferirmos suas ações quando chegam ao poder.

Um caso muito ilustrativo é Gabriel Boric no Chile, cuja eleição gerou grandes expectativas de mudança que duraram até sua posse em março anterior. Mas não demorou muito para que o verdadeiro caráter de seu governo fosse revelado, devido a sua tentativa de combinar algumas reformas de muito baixa intensidade e, ao mesmo tempo, não romper com o modelo capitalista neoliberal herdado da ditadura. Por exemplo, diante dos protestos e reivindicações do povo mapuche de recuperar suas terras tomadas por grandes corporações transnacionais e grandes latifundiários, o governo de “esquerda” militarizou a Araucanía para preservar a “segurança pública” – medida aplicada por seu antecessor e criticada por Boric quando era deputado da oposição -, demonstrando na prática que não apoia a devolução das terras usurpadas a seus legítimos proprietários, uma vez que teria que expropriar um setor da burguesia imperialista e chilena.

Como resultado, o governo de Boric está cada vez mais enfraquecido e sua popularidade sofreu uma forte queda dos 56% de votos no segundo turno das eleições em dezembro para uma rejeição de 70% nas primeiras semanas de janeiro. Além disso, o projeto da nova Constituição – bastante moderado com relação à radicalização e às exigências da rebelião – foi derrotado no plebiscito de 2022, provocando uma desmoralização de muitos setores da juventude e setores populares que lideraram as mobilizações em 2019, além de acentuar a crise do governo.

O reformismo sem reformas

 Dado o acima exposto, surge a pergunta: por que os novos progressistas não implementam reformas como seus antecessores e, ao contrário, aplicam ajustes que não ficam atrás de seus rivais neoliberais? A primeira geração de governos progressistas teve o boom das commodities a seu favor e, além disso, a situação econômica internacional foi impulsionada pelo crescimento explosivo da China e pela estabilidade dos outros centros do capitalismo mundial. Isso lhes permitiu realizar reformas para redistribuir a renda extrativista e, embora tenham tido confrontos com o imperialismo e setores da burguesia local, conseguiram negociar com esses setores e garantir o lucro capitalista.

cenário atual é muito diferente. Primeiro, porque há uma recessão nos Estados Unidos e na União Europeia, enquanto o crescimento da China desacelerou e, portanto, sua capacidade de tração da economia mundial diminuiu. Em segundo lugar, embora o valor das commodities tenha aumentado desde a guerra na Ucrânia, desta vez as entradas da “renda extrativista” são contrabalançadas pela abrupta espiral inflacionária em nível internacional, cujo resultado é uma depreciação acelerada dos salários reais e, consequentemente, do consumo entre a grande maioria dos trabalhadores e dos setores populares.

Neste contexto de crise econômica e polarização, os novos governos progressistas não têm espaço para reformas moderadas para redistribuir a riqueza e, ao mesmo tempo, garantir o enriquecimento da burguesia. Por isso, não demoram a ceder às pressões do capital imperialista e local para implementar planos de ajuste, pois a outra alternativa seria contar com a mobilização social para avançar para medidas radicais e anticapitalistas, como o não pagamento da dívida, rompimento com o FMI, impostos sobre o grande capital e fortunas, reforma agrária radical contra os grandes latifundiários, entre outros.

Por esta razão, os novos governos de “esquerda” são sociais-liberais, ou seja, realizam algumas reformas e planos de bem-estar moderados, mas sem atacar as bases estruturais do capitalismo neoliberal, extrativista e semicolonial latino-americano. É até possível defini-los como liberal-sociais, uma inversão dos fatores que denota a transformação do produto político. Isto é muito evidente no governo do Lula que, como parte da construção de uma ampla frente contra Bolsonaro, girou à direita e incluiu políticos burgueses tradicionais em sua chapa, como seu candidato a vice-presidente Geraldo Alckmin.

Na realidade, esses governos são uma variante “esquerdista” do ajuste neoliberal, que eles não questionam fundamentalmente e, no máximo, procuram diminuir seu impacto alterando alguns pontos (embora isto não seja útil, como demonstrado pela renegociação de Fernández com o FMI no caso da Argentina). Isto significa que sua “lua-de-mel” com os movimentos sociais e o eleitorado de esquerda é muito curta, perdendo rapidamente sua popularidade e minando suas chances de ser reeleito – seja diretamente ou através de uma figura substituta – consolidando um ciclo político.

Outro aspecto a ser analisado é que os novos governos sociais-liberais regrediram em sua capacidade de pensar em si mesmos como parte de um projeto regional/internacional, algo que o progressismo fez através das plataformas regionais articuladas por Chávez e Lula, que transformaram a Venezuela e o Brasil em dois pólos de atração para a esquerda reformista.[3] Agora, pelo contrário, os novos governos “esquerdistas” se destacam por suas perspectivas estreitas, pois estão entrincheirados em negociações internas com setores da burguesia e, além disso, não têm nenhum projeto de transformação reformista para exportar.

 Construir uma saída anticapitalista diante a crise na América Latina

A crise atual que atinge a América Latina é muito profunda, porque se mistura uma agitação social acumulada e uma quebra dos consensos econômicos e políticos sobre os quais foram estruturadas as sociedades latino-americanas nas últimas décadas. O questionamento do status quo está crescendo, tanto pela esquerda com as rebeliões populares, mas também pela direita com o fortalecimento da extrema direita. Por trás desta polarização há uma disputa latente sobre a natureza da refundação dos países latino-americanos, ou seja, se ela será baseada em novos fundamentos sociais anticapitalistas ou, ao contrário, em uma base reacionária e autoritária.

Os novos governos sociais-liberais ou liberais-sociais são incapazes de garantir uma saída para a crise econômica e para a polarização política em curso. Seu reformismo é de muito baixa intensidade, na medida em que seu objetivo é administrar ou “renegociar” os planos de ajuste neoliberal e imperialista com o FMI. Isto os condena ao fracasso desde o início, pois não têm espaço de manobra para negociar com a burguesia e conceder algumas reformas significativas para os setores explorados. Por esta razão, caracterizamos que não há um novo ciclo progressivo na região; é muito provável que a oscilação eleitoral entre a direita e a centro-esquerda persista.

Isto não impede que os partidos e figuras do centro-esquerda desempenhem um papel de contenção em meio ao surto de mobilizações populares ou rebeliões, como mostraram as experiências do Chile e da Colômbia, ou mesmo Lula no Brasil. Por isso, a luta política e teórica contra a esquerda reformista é fundamental, assim como sustentar iniciativas de unidade de ação com esses setores quando necessário, particularmente para afrontar nas ruas os embates da ultradireita.

Por todas as razões acima, a tarefa estratégica de construir organizações revolucionárias que lutem pela independência de classe e uma solução anticapitalista para a crise, permanece válida. Em meio à situação atual, é muito possível que no futuro se desenvolvam novas rebeliões populares na América Latina, para as quais será muito importante ter a maior acumulação política e construtiva, a fim de influenciar a orientação das lutas. Estamos assumindo esta tarefa a partir da Corrente Socialismo ou Barbárie (SoB), cujo esforço é construir partidos e correntes em diferentes países da região (além de nosso desenvolvimento na França e na Espanha).

 

Referências:

“América Latina: no todo lo que brilla es un «ciclo»”. Em https://nuso.org/articulo/america-latina-no-todo-lo-que-brilla-es-un-ciclo/ (Acesso em 17 de julho de 2022).

“América del Sur: una periferia convulsionada”. Em https://nuso.org/articulo/america-del-sur-una-periferia-convulsionada/ (Acesso em 17 de julho de 2022).

“La nueva nueva izquierda”. En NUSO Nº 299 / JUNIO – JULIO 2022NUSO Nº 299 / JUNIO – JULIO 2022 (Acesso em 06 de agosto de 2022).

“The jet set and the rest”. The Economist, AUGUST 13TH–19TH 2022, p. 34-36.

«Os riscos da ascensão da esquerda na América Latina». Em https://www.estadao.com.br/internacional/os-riscos-da-ascensao-da-esquerda-na-america-latina/ (Acesso em 18 de agosto de 2022).

«‘Os governos de esquerda na América Latina estão com as mãos atadas’». Em https://www.estadao.com.br/internacional/os-governos-de-esquerda-na-america-latina-estao-com-as-maos-amarradas-diz-cientista-politico/ (Acesso em 18 de agosto de 2022).

«Esquerda ‘pós-moderna’ enfrenta choque de realidade no Chile». Em https://www.estadao.com.br/internacional/esquerda-pos-moderna-enfrenta-choque-de-realidade-no-chile/ (Acesso em 18 de agosto de 2022).

“Las tasas de pobreza en América Latina se mantienen en 2022 por encima de los niveles prepandemia, alerta la CEPAL”. Em https://www.cepal.org/es/comunicados/tasas-pobreza-america-latina-se-mantienen-2022-encima-niveles-prepandemia-alerta-la#:~:text=El%20informe%20Panorama%20Social%202022,se%20encuentran%20en%20pobreza%20extrema. (Acesso em 14 de fevereiro de 2023).

[1] Este artigo é uma versão editada de um texto de análise sobre a conjuntura da região, intitulado Aonde vai a América Latina? (disponível no site da Esquerda Web: <www.esquerdaweb.com>).

[2] No momento que escrevemos este artigo desenvolve-se uma rebelião popular no Peru contra o golpe de Estado que tirou o Pedro Castillo da presidência, que, até esse momento, era parte dos governos “progressistas”.

[3] Embora houvesse diferenças marcantes entre os dois. Chávez encarnou um projeto nacionalista burguês, enquanto Lula era um governo social-liberal com amplos planos assistencialistas.