Questões de Estratégia – III

“Na experiência histórica que conhecemos mais de perto, a do velho MAS – que havia ‘resolvido’ as relações de forças no seio da esquerda – em poucos anos alcançou seu espaço de ação para além da vanguarda. Mas a tremenda contradição foi quando começou a roçar no peronismo: entrou em uma espiral de crise que o levou à dissolução. Teve um projeto errado para dar o salto para influenciar setores amplos das massas: um projeto basicamente eleitoralista de área geográfica, em vez de um projeto orgânico-estrutural-de trabalho. Esse desvio oportunista na questão da organização – junto com um conjunto de outras razões – o liquidou ”(Roberto Sáenz, ”Lenin no século XXI”).

Reivindicações, partido e poder

Roberto Sáenz, revista internacional SoB, 28 de abril 2014

5. Problemas estratégicos em matéria de construção partidária

A seguir, abordaremos alguns dos problemas estratégicos da construção de nossos partidos: sua construção orgânica em oposição a uma mera construção “eleitoralista”, sua “engorda” e não seu crescimento estrutural. Também para o caráter politicamente de vanguarda que deve sempre manter, mesmo quando se lança para uma influência mais ampla entre as massas, tomando o cuidado de não se diluir no atraso político que inevitavelmente arrasta os setores mais amplos das massas. Por fim, o caráter do partido revolucionário como partido de combate, no sentido de sempre ser, em última instância, um instrumento a serviço da luta de classes.

5.1 A construção orgânica de nossos partidos

Preocupa-nos levantar primeiro o problema da tradução dos votos e cargos obtidos em influência orgânica. Aqui nos vem à mente uma reflexão de Trotsky sobre as relações entre o Partido Socialista e o Partido Comunista no início dos anos 1920 na França. O peso militante do PS era relativamente pequeno; no entanto, eleitoralmente manteve grande força e, além disso, expressou certas correlações políticas, refletindo um núcleo da classe trabalhadora que não estava radicalizado. A burocracia stalinista, à frente da Terceira Internacional, tendia a afirmar que os socialistas eram “nada” e que, como o PC tinha muitos mais militantes, atingir a maioria da classe trabalhadora era algo que inevitavelmente ocorreria. Trotsky pensava o contrário, colocando sobre a mesa a complexidade dos problemas da hegemonia política: “Se levarmos em conta que o Partido Comunista tem 130.000 membros, enquanto os Socialistas são 30.000, então o enorme sucesso do comunismo na França é evidente. Mas se colocarmos esses números em relação à força numérica da própria classe trabalhadora, à existência de sindicatos reformistas e tendências anticomunistas nos sindicatos revolucionários, então a questão da hegemonia do Partido Comunista no movimento operário se nos representa como uma questão complexa que está longe de ser resolvida por nossa preponderância numérica sobre os dissidentes (socialistas) ”(Leon Trotsky, “Introdução aos Cinco Anos da Internacional Comunista”).

Juntamente com a questão da hegemonia, surge o problema da construção de nossos partidos. Os problemas de sua construção orgânica, estrutural e territorial estão colocados aqui. Ou seja: a que pressões político-sociais está sujeito principalmente, se ao trabalho orgânico ou ao popular territorial, que são de natureza muito diferente.

Certamente, qualquer partido que pretenda influenciar setores mais amplos é inevitável que tenha um desenvolvimento e inserção territorial crescente. Mas isso deve ter um certo equilíbrio: o centro deve ser a construção orgânica no local de trabalho, para arrastar desde aí o elemento do bairro. Este não é um dogma doutrinário: é uma análise materialista de a quais pressões pretendemos submeter a partido.

Existe uma correlação: o peso territorial excessivo segue uma orientação puramente eleitoral. As eleições desenvolvem, como dissemos, suas próprias necessidades. A participação eleitoral tem leis próprias; não se pode participar das eleições sem fazer campanha, sob pena do infantilismo pequeno-burguês. Mas, outra coisa é ordenar toda a atividade do partido e inclusive sua estrutura interna em torno do que mais produz em matéria eleitoral, o território. Esse atalho é um caminho para o desastre que já foi percorrido por outras formações do trotskismo; um câncer que vive agora, por exemplo, o NPA francês.

Depois, há a questão da proletarização dos colegas no movimento operário. O PO da Argentina se vangloria de que “não precisa fazê-lo” porque, pelo peso eleitoral alcançado, “resolve o problema de sua relação com a vanguarda dos trabalhadores” desde cima e desde fora “politicamente“. Obviamente, o peso político mais objetivo que um partido alcança facilita suas relações, impacto e capacidade de tração entre setores mais amplos; entre eles a vanguarda dos trabalhadores. Mas acreditar que, nas atuais condições históricas, onde o movimento operário não é socialista, a questão se poderia ser resolver de maneira tão epidérmica é enganar-se a si próprio e enganar a militância. Não se pode entender por que hoje o maior partido do trotskismo argentino não pode estruturar companheiros jovens nos locais de trabalho, aproveitando o peso político maior para ganhar setores independentes da vanguarda dos trabalhadores.

Aqui subsiste um problema ligado ao baixo grau de politização das novas gerações. Isso não será resolvido da noite para o dia, nem depende de um ou dois fatores, mas de um conjunto de condições objetivas. Portanto, os quadros politicamente treinados que entram na fábrica podem ser qualitativos para ganhar uma grande fração dos trabalhadores em cada local de trabalho, algo que não será alcançado sem essa orientação. A teorização da construção epidérmica do partido pode ter pernas muito curtas.

5.2 Como não quebrar o pescoço no salto às massas [27]

Em nosso texto “Lenin no século XXI“, nos referimos aos problemas complexos do salto do partido de vanguarda para a influência de massas. Assinalávamos que a perspectiva deveria ser a da passagem não a de ser “um partido de massas”, senão que em Lenin a concepção era de que o partido de vanguarda deveria adquirir influência entre os setores mais amplos das massas, mas sem perder esse caráter organizacional que deve sempre representar politicamente os setores mais avançados da classe trabalhadora; isto é, de organização de vanguarda.

Na ideia do “partido de massas”, pode-se perder de vista o fato de que, no seio da classe trabalhadora, inevitavelmente, setores avançados e atrasados coexistem no que diz respeito à sua consciência, razão pela qual, se o partido se transformasse, suave e plenamente, em um “partido de massas”, se colocaria o perigo de deixar de ser revolucionário. Mesmo na transição para o socialismo, sob a ditadura do proletariado, o partido deve evitar diluir politicamente os setores mais avançados da classe trabalhadora nos mais atrasados, mantendo seu caráter de organização de vanguarda (Lenin colocou o problema de organizar ” trabalhadores sem partido ”, mas como um problema amplo, não dentro do partido bolchevique).

Por essa mesma razão, o partido não deve ser confundido com o Estado proletário como tal; deve manter sua independência política e organizativa como organização, mesmo que seja o partido no poder. O objetivo é não se confundir com a classe como um todo, e muito menos diluir-se entre as outras classes exploradas e oprimidas, que até certo ponto o estado proletário também representa. [28]

Dito isso, vamos ao nosso ponto: os problemas complexos da passagem do partido de vanguarda para um com influência entre as massas e as leis internas específicas deste último.

Aqui estão várias questões. A primeira coisa a ser observada é que, na operação das leis do partido de vanguarda propriamente dito e o que se lança a uma influência mais ampla entre as massas, ocorre uma transformação, tanto em termos das leis de crescimento do partido como no que tange ao regime interno do partido. Porque se a organização de vanguarda é, em certa medida, uma espécie de “brigada de combate”, um partido que está começando a influenciar os setores das massas, obviamente deve ter uma série de critérios próprios em matéria de organização que moldam em muitos uma espécie de “inversão dialética” das leis que governam o estágio propriamente dito de vanguarda.

Isso não nega que, ao mesmo tempo, as leis do desenvolvimento desigual e combinado governem todos os estágios. Se é ruim confundir os estágios construtivos do partido, isso não significa que não haja circunstâncias em que núcleos muito pequenos cumpram um papel de grande importância, com uma projeção no campo político bem acima de suas forças organizacionais; algo que vemos e vivemos todos os dias (algo semelhante ao que Moreno havia apontado em um texto sobre a situação na Bolívia no início dos anos 80).

Mas digamos algo sobre as leis de crescimento de um partido com maior peso entre as massas. Os multiplicadores em termos de número de militantes, inserção e escopo político e organizacional do partido em época revolucionária variam substancialmente em relação ao período em que a organização é um partido de vanguarda. Essas são outras leis que regem o salto às massas: operam leis de multiplicação geométrica e não aritmética, que é o que caracteriza o partido no estágio de vanguarda.

Ou seja, o partido de vanguarda recruta indivíduos ou, no máximo, dezenas. O partido que se volta a ter influência entre os setores das massas recruta conjuntos de companheiros: captar núcleos, grupos, organizações e/ou setores inteiros de trabalhadores ou estudantes. A esse respeito, os critérios estabelecidos por Lenin para os bolcheviques na época da revolução de 1905 são ilustrativos: levantou a necessidade de criar centenas de novas organizações partidárias e insistia que ele não o dizia em sentido figurado, mas literalmente, sob pena de ficar por trás dos acontecimentos, não apenas politicamente, mas construtivamente.

A questão dos multiplicadores é um debate que faz as leis dialéticas, em termos de construção partidária, do salto de quantidade para o de qualidade. Porque esse salto requer uma acumulação quantitativa prévia para produzir-se.

Em segundo lugar, a questão dos multiplicadores é difícil de pensar em abstrato: geralmente está ligada à busca de algum meio para produzir esse salto de qualidade. A coisa decisiva aqui é se vão ou não no sentido estratégico de construir a organização como um partido revolucionário. Para que não seja um salto para o vazio, por mais meio que exista, é necessário um acúmulo prévio em matéria de construção partidária. Existem inúmeros momentos em que essa possibilidade se apresenta ao partido. Mas se não houver um partido organizado anteriormente, é como querer tomar sopa com um garfo: não se pode aproveitar o momento de forma construtiva e as centenas ou milhares de simpatizantes potenciais escorrem como água entre os dedos. Em suma: o salto em direção às massas exige uma acumulação anterior sob pena de que, mesmo que exista um meio para dá-lo, não possa se concretizar.

Aqui opera, em terceiro lugar, a variação das leis de construção, no caso do partido que se lança a ter influência de massa, o que muitas vezes leva a dar com a cara na parede. Pode se dar caso de se ter tanto o meio como a acumulação necessária, mas o grau de politização da militância do partido de vanguarda é muito diferente, e os métodos de direção, mais “personalizados”, que caracterizam a organização de vanguarda, também são muito diferentes. Quando o partido cresce, se torna “impessoal”; tudo repousa nos quadros, no grau de educação que receberam e na capacidade de ação autônoma, dentro dos parâmetros da política geral da organização. Esta acumulação de quadros anteriores se transforma então em um elemento-chave.

Além disso, o partido transformado já, até certo ponto, em um fato objetivo, tem a tendência de desenvolver interesses próprios de maneira muito forte, o que levanta o problema de que o partido nunca deve ser pensado independentemente da luta de classes. É o perigo típico do “grande” partido: considerá-lo “um fim em si mesmo”, ter medo de arriscar, ignorar os problemas da sociedade e da classe como se o partido pudesse se construir independentemente da luta de classes (o caso extremo foi o da social-democracia alemã, caracterizada como um “Estado dentro do Estado”). Ou seja, um equilíbrio correto deve ser estabelecido entre a vida interna do partido e sua vida habitual, que está voltada – e não pode deixar de estar – ao serviço da luta de classes. Voltaremos a isso mais adiante.

Vejamos um quarto problema: o das “âncoras” do partido, os contrapesos que deve adquirir para que as pressões sociais que uma faixa das massas começa a exercer sobre a organização, com todos os seus elementos de atraso político, não o levem a desbarrancar.

Essas âncoras são: o grau de politização de seu núcleo partidário, sua composição social, a autoridade de sua administração, as tarefas às quais costuma se dedicar (não é a mesma coisa um cotidiano partidário voltada à intervenção nas lutas dos trabalhadores em relação a que sua atividade básica seja a eleitoral), o suporte teórico-estratégico da organização e seu caráter internacionalista. Porque, caracteristicamente e dialeticamente ligado ao anterior, existe outro problema que é absolutamente fundamental: o grau de flexibilidade do partido em termos de nutrir-se do melhor da geração jovem que entra na luta. Ou seja: o partido deve deixar para trás toda a inércia conservadora e se lançar totalmente para intervir política e construtivamente na luta de classes incrementada. É aqui que a capacidade de adaptação do partido, sua flexibilidade revolucionária, sua capacidade de se livrar de toda inércia conservadora, de qualquer estrutura que não seja capaz de se nutrir dos impulsos revolucionários da realidade.

E aqui há uma exigência a mais. Em situações de assenso da luta de classes, o partido corre o risco de ficar à reboque da situação, tanto política como organizativamente, ao invés de ser a vanguarda. Como dizia Lenin em 1905, citado por Marcel Liebman em Leninismo sob Lenin” (p. 46) : “Necessitamos aprender a ajustar-nos s este completamente novo alcance do movimento” E, segue Liebman: “Esta adaptação aos eventos significa que a distinção entre a organização e o movimento, entre a ‘rede horizontal’ e a ‘rede vertical’, e, finalmente, entre a vanguarda e a classe trabalhadora, começava a fazer-se mais tênue”.

Isto ocorre quando há um assenso revolucionário: o partido deve abandonar toda a inércia, revolucionar-se junto com a classe. Há, até certo ponto, e como já assinalamos, uma inversão dos princípios estabelecidos acima. Mas para que esse salto não seja no vazio, o estágio de partido de vanguarda deve ter sido resolvido de maneira satisfatória. O partido só manterá seu caráter revolucionário somente se, quando se ”funde” com as massas (como Lênin assinala no “Esquerdismo …”), tenha uma espinha dorsal firme como organização revolucionária. Ai, um círculo dialético inteiro já estaria se fechando, que até agora apenas o bolchevismo conseguiu transitar satisfatoriamente, mas que certamente terá novos capítulos neste século XXI.

5.3 A degeneração da socialdemocracia alemã

 “Por trás de todas as considerações [se refere à luta de Rosa Luxemburgo. RS] sempre se descobre sua necessidade de quebrar a estrutura de auto-absorção do partido. Tal problema só poderia apresentar-sedentro de um partido como o SPD, uma organização de massa tão importante, disciplinada e legal a ponto de criar um Estado dentro do Estado ”(JPNettl,“ Sobre o imperialismo ”, no Desafio de Rosa Luxemburgo).

A experiência da social democracia alemã no início do século XX é de enorme valor educativo para entender alguns dos problemas que surgem da obtenção de parlamentares por parte da esquerda. Obviamente, as diferenças entre ontem e hoje são siderais, no entanto, um estudo crítico dos problemas dessa organização oferece lições universais que devem ser incluídas no debate estratégico.

A evolução do SPD (Partido Social Democrata da Alemanha) levou a várias análises a esse respeito, as mais importantes realizadas por Rosa Luxemburgo, Lenin e Trotsky. No entanto, tomados com as devidas precauções, queremos retornar aqui aspectos da obra clássica de Robert Michels (1876-1936), “Os partidos políticos”, obra inspirada no Partido Social Democrata Alemão do qual ele era membro, embora suas simpatias fossem depois para o fascismo encarnado por Mussolini. [29]

Sua tese se referia a uma suposta “lei de ferro” que, por razões “inevitáveis”, levaria à burocratização das organizações de trabalhadores. Ele via na divisão do trabalho dentro da organização e na participação dos estratos dominantes nas instituições da democracia burguesa uma tendência “oligárquica” incontrolável que não podia fazer outra coisa senão burocratizar o partido.

Sua abordagem baseou-se  no fato de que a “massa explorada” nunca poderia ser elevada à auto-emancipação: ela sempre deveria ser “dirigida” (e substituída no governo dos negócios) pois seria irremediavelmente “incompetente”. Sua visão não era apenas errada, mas reacionária até a medula: transformava em “impossibilidade técnica” (isto é, naturalizada), o que era apenas um subproduto de certos processos históricos. Além disso, estabeleceu uma tese essencialista contra o potencial de auto-emancipação dos explorados e oprimidos que, alguns anos depois, foi desmentido rotundamente com a imensa gestão da Revolução Russa (sua obra data de 1911).

Em Michels, a burocratização das organizações de trabalhadores é um produto forçoso que emerge de “invariantes” de base “técnica”. Como parte das tradições da sociologia burguesa reacionária da época (Mosca, Pareto, Weber [30]) e dos dirigentes, não menos reacionários, da escola de “psicologia de massas” (Le Bon), transforma em um a priori  um resultado de certas circunstâncias históricas: a burocratização das organizações políticas da classe trabalhadora. [31]

Com Marx, sabemos que nas sociedades de classes a divisão técnica do trabalho implica uma divisão social do trabalho, mas não precisa ser assim ao longo da história. Não há nada na “natureza humana” que impeça a humanidade de atingir os mais altos níveis de desenvolvimento, superando a divisão do trabalho, mesmo no próprio campo técnico. Ou, pelo menos, que uma nova divisão funcional se coloque em parâmetros que seriam impensáveis hoje. Pierre Naville tem indicações sugestivas sobre este assunto.

Por outro lado, é verdade que a dialética entre a base, os quadros e os líderes e os problemas de representação da “vontade popular” é complexa e cobre todo o período da luta pela revolução socialista e pela transição, e é o que dá substância à concepção de partido de Lenin, à criação de organismos de poder e assim por diante. Entre eles, a problemática da ditadura do proletariado.

Mas todos esses processos são historicamente determinados e não se referem a nenhuma essencialidade a priori; nada que não possa ser superado na experiência da luta de classes; sem fatalismo, sem fechamento de perspectivas históricas que dizem que “a liberdade de cada um será a condição para a liberdade de todos” (como Marx queria sob o comunismo).

No entanto, se os pressupostos teóricos de Michels estavam completamente errados, ele foi muito perspicaz na descrição dos processos em funcionamento. Queremos destacar dois aspectos. Um, Michels estava certo quando apontou como o partido social-democrata, à medida que crescia, acrescentava elementos de conservadorismo: “A vida do partido (…) não pode ser posta em perigo (…). O partido cede, vende abruptamente sua alma internacionalista e, impulsionado pelo instinto de autopreservação, torna-se um partido patriota ”(citado por Lipset na introdução a “Os partidos políticos”, volume I: 18). Não é que todo partido, pelo mero fato de crescer, adicione elementos de conservadorismo, suposta “lei de ferro” que nos condenaria a ser uma seita. Acontece que toda organização desenvolve, em certa medida, seus próprios interesses, que fazem a lógica de sua construção, e que devemos prestar atenção para que não se tornem um fim em si mesmos, distanciados das razões finais de sua existência: a luta pela transformação socialista da sociedade.

Vamos dar uma olhada mais de perto neste problema. O partido revolucionário é essencial para a revolução social, algo que atesta toda a experiência histórica. Também é fato que, se os revolucionários não constroem o partido, ninguém o constrói: é o menor “objetivo” que existe. Isso inclui inevitavelmente que o partido deve ter sua própria agenda e desenvolva inevitavelmente os interesses de sua própria construção.

Mas devemos estar atentos a uma derivação indesejada disso: que o partido acabe se separando da realidade, desconsiderando seus objetivos, as necessidades e lutas da classe trabalhadora, de ser uma ferramenta a serviço da luta emancipatória da os trabalhadores.

Essa perda de seus fins, ou uma compreensão mecânica de sua própria construção, como se isso pudesse ser feito entre quatro paredes, separadamente da experiência da própria classe trabalhadora, é o que pode adicionar inércias conservadoras se se perder de vista que o partido é, em suma, uma organização que luta pela transformação social.

Lenin, em sua luta contra os “homens de comitês” na revolução de 1905, não dizia outra coisa. Trotsky também quando insistiu repetidamente no perigo de que o partido estivesse por trás dos acontecimentos da luta de classes e, em vez de desempenhar um papel de liderança, seria um contrapeso conservador. Isso se tornou particularmente agudo no momento da insurreição, quando, como lei, era inevitável que elementos retardatários surgissem no partido, como já apontamos.

Em Michels (e outros autores como Nettl, biógrafo de Rosa Luxemburgo), há outra observação sugestiva sobre a social democracia alemã, quando ele aponta que ela era considerada um “Estado dentro do Estado”. Com base nas pressões objetivas do crescimento econômico e de uma vida política puramente parlamentar, essa concepção transmitiu a ideia de uma autossuficiência que levava ao conservadorismo e o distanciava do caráter de um partido de combate nas lutas da classe trabalhadora que a organização revolucionária deve ser.

A idéia do partido como um “Estado” transmite uma compreensão de totalidade, de um conjunto de relações políticas da classe trabalhadora já resolvidas no partido como tal. Se o partido é um “Estado”, uma organização “totalizada”, por que se preocupar em transformar a realidade? Qualquer intervenção na realidade, na medida em que envolve riscos, é vista como “perigosa”, problemática, prejudicial. Por que arriscar tudo se o partido já é uma “sociedade dentro da sociedade”, é “autossuficiente”? Daí para a adaptação conservadora ao parlamentarismo, havia apenas um passo, e o SPD o deu.

Em suma, as questões de estratégia dos revolucionários se colocam tanto no campo político quanto no construtivo, como acabamos de ver. Questões que ficarão cada vez mais quentes quando a esquerda revolucionária ganhar posições entre a vanguarda dos trabalhadores e mais além. Um processo que parece estar acontecendo em vários países; sem dúvida, na Argentina atual entre outros, e a serviço da qual colocamos este ensaio, em primeiro lugar, para a construção de nossa Corrente Socialismo ou Barbárie e de cada um de seus componentes.

NOTAS:

 [27] .- Esta seção é uma versão corrigida de um mesmo nome, parte do nosso texto “Cien anõs del ‘Que Hazer?’”, que publicamos aqui novamente porque aborda os objetivos deste ensaio.

[28] .- No início dos anos 20, em relação ao chamado “debate sindical”, houve uma discussão interessante entre Lenin e Bukharin quando o primeiro definiu o caráter do estado proletário como “estado operário e camponês” e depois se corrigiu definindo que o estado dos trabalhadores na URSS era um país com deformações burocráticas. De qualquer forma, expressou todos os problemas de “representação” levantados no estado pós-revolucionário e como o partido deve evitar “se fundir” com ele.

[29] .- Sua avaliação foi de que a democracia de massas era “impossível” e que uma “lei de ferro das oligarquias políticas” sempre foi imposta, inevitavelmente. Michels passou do reformismo para o culto de figuras carismáticas como Mussolini, chamadas a resolver acima dos problemas “irresolúveis” da democracia política.

[30] .- Lembremos que Weber falara da “jaula de ferro” à qual as massas estavam sujeitas ao capitalismo e que tornava “organicamente” impossível que elas tomassem seu próprio destino.

[31] .- Em “Los orígenes de la violencia nazi, Enzo Traverso afirma a mesma coisa que destacamos aqui: que, na base de sua brilhante análise da social-democracia alemã, Michels colocou a suposta “impossibilidade” da classe trabalhadora de se emancipar por si mesma.