É preciso mobilizar para atender as necessidades reais da nossa classe e fazer com que a classe dominante pague pela conta

Na sua atual composição, a PEC 15 chamada “PEC do desespero”, mas que poderia se chamar “PEC do golpe”, que tramita na Câmara dos Deputados, é uma verdadeira armadilha. Em nome de aliviar a condição de penúria de milhões de brasileiros, joga o custo das medidas para os mais pobres, isenta totalmente os mais ricos, não muda a política de preços da Petrobrás e não apresenta nenhuma solução para combater o desemprego e a inflação dos alimentos. Votar nesta medida, como fez o conjunto da esquerda da ordem no Senado, e não mobilizar para mudar seu teor, apenas serve para sedimentar o caminho golpista do bolsonarismo.

ANTONIO SOLER e RENATO ASSAD

Em uma operação monumental para catapultar a candidatura de Bolsonaro, o  Senado semana passada, quinta-feira (30), aprovou a PEC 1 (numeração inicial da PEC 15) que se for aprovada na Câmara dos Deputados aumentará em cerca de R$ 41,25 bilhões as despesas com programas até o final deste ano. A PEC 1 prevê a ampliação temporária do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600  visando, também, zerar a fila desse benefício, repassar um valor de R$1000 para caminhoneiros autônomos, dobrar o valor do Auxílio Gás, um benefício para taxistas que custaria R$2 bilhões e ampliar recursos em R$ 500 milhões para o programa Alimenta Brasil. 

Uma vez que esse pacote de “bondades” não poderia ser criado em um ano eleitoral  (a legislação não permite a criação de novos programas em ano eleitoral) e fura o teto de gastos (só se pode gastar o valor do ano anterior corrigido pela inflação do mesmo período), para que Bolsonaro use a máquina pública sem consequências legais, a PEC para blindá-lo prevê a criação de um estado de emergência. Além disso, como se trata de um projeto de emenda constitucional, a propositura tem que ser aprovada em duas votações com 2/3 no Senado Federal e 2/3 na Câmara dos Deputados. No primeiro turno, no Senado, a proposta teve 72 votos a favor e 1 contra e no segundo 67 votos favoráveis e o mesmo voto contrário. 

Agora, na Câmara dos Deputados, o projeto denomina-se PEC 15 e teria que passar por ritos na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) antes de ser votada – de acordo com o Regimento Interno da Câmara deve passar por ao menos 10 sessões -, mas já se articula um processo relâmpago de discussão na CCJ para que possa ser encaminhada ao Plenário da Câmara passando por somente duas votações. A julgar pelo processo de votação no Senado, que costuma ser mais resistente às propostas do governo, na Câmara, o governo não encontrará dificuldades para aprovar o projeto.

Bolsonaro não pode ganhar as eleições por via institucional

Bolsonaro sabe que não tem condições estruturais – sociais, políticas e econômicas – de ganhar as eleições de outubro dada a cartografia geral. Ele e seu bloco de poder foram responsáveis pela contrarreforma da Previdência que praticamente acaba com o direito de se aposentar da classe trabalhadora, abriu as portas definitivamente ao ecocídio dos nossos biomas, fez uma gestão genocida da pandemia, seu governo comanda a necropolítica que elimina de forma orquestrada a população negra, periférica e trabalhadora e é responsável para que o Brasil tenha voltado a figurar com destaque no mapa da fome. 

Tudo isso não pode deixar de ter um preço na popularidade do governo e por essa razão Bolsonaro e sua base política no Congresso sabem que não podem vencer a eleição presidencial por meios normais (institucionais). O caso do indulto a Daniel Silveira, o decreto assinado pela Advocacia Geral da União para livrar Bolsonaro de qualquer ilegalidade no ano eleitoral, os sistemáticos ataques às urnas eletrônicas e ao TSE, bem como as ameaças crescentes de não respeitar decisões do STF, a preparação de mais uma demonstração de forças nas ruas no próximo 7 de Setembro e outros não devem ser tomados de forma leviana ou displicente. Diante da apatia da esquerda e da classe trabalhadora, o golpismo bolsonarista tem reservas de poder capaz de tomar as ruas até outubro e  tentar impor com medidas de força a vontade da minoria diante da instalação do medo

Além das medidas institucionais e extra-institucionais que vêm sendo tomadas para blindar Bolsonaro e seus apoiadores para suas aventuras bonapartistas, a PEC 15 constitui-se como uma manobra eleitoreira do bolsonarismo para criar condições institucionais (melhoria dos índices de intenção de voto) que permitam cobrir com alguma legitimidade às medidas extra-institucionais (questionamento nas ruas do resultado eleitoral de outubro, por exemplo) que vem preparando à luz do dia. Assim, em que pese que essa PEC coloque uma medida que podem trazer alívio momentâneo para os mais pauperizados, em uma situação em que temos cerca de 33 milhões de pessoas na condição de fome e extrema pobreza, mais de 10 milhões de desempregados e 40 milhões de precarizados, ela, na verdade, é uma verdadeira armadilha do ponto de vista econômico e político para a nossa classe. 

Em relação ao primeiro aspecto, como se trata de uma “medida emergencial” – até dezembro deste ano – e não significa uma ruptura com o teto de gastos, não prevê outra fonte de financiamento dos auxílios, como o fim da isenção fiscal das grandes empresas, taxação do capital financeiro (lucros e dividendos) e das grandes fortunas. Portanto, quem irá pagar a conta – além de R$ 17 bilhões em cortes orçamentários, com a retirada de verbas das áreas sociais do governo durante a vigência da PEC e redução de investimentos nas mesmas áreas com o seu término – será a enorme massa de explorados e oprimidos. 

Fica cristalino que o objetivo do governo é tentar recuperar popularidade, ainda que momentânea, na faixa da população mais pobre (que ganha até dois salários mínimos), pois essa é responsável por 44% dos eleitores, sendo fundamental para o resultado eleitoral em outubro. Assim, do ponto de vista político, diante da possibilidade de Lula ganhar no primeiro turno, considerando que as pesquisas lhe dão 48% das intenções de voto contra 28% de Bolsonaro, a PEC apenas serve como medida eleitoreira,  uma última tentativa desesperada para tentar ir ao segundo turno e ter melhores condições para questionar os resultados eleitorais através da agitação golpista que está sendo desenvolvida sistematicamente desde 2018 e que tem se intensificado com a proximidade das eleições deste ano.

Mobilizar para não se prostrar diante do golpismo

Como podemos ver, a PEC 15 contém armadilhas que vão se voltar necessariamente contra os interesses políticos e econômicos da nossa classe. Por essa razão, esse tema deve ser enfrentado pela esquerda – dentro e fora do parlamento – e pelos movimentos sociais como um todo, com a maior seriedade

Para se ter uma ideia do quanto está longe de resolver os problemas dos setores mais empobrecidos da classe trabalhadora, enquanto o bloco de poder quer ganhar o voto dos mais pobres com um auxílio de R$ 600, o valor da cesta básica em São Paulo de acordo com o DIEESE é de R$ 777,93. Ao mesmo tempo em que é preciso uma forte denúncia dessa manobra bolsonarista sobre suas intenções e limites – uma sistemática e pedagógica denúncia política dessa medida -, é preciso lutar por programa de auxílio que de fato dê conta das necessidades das 33 milhões de pessoas que passam fome no Brasil e dos mais de 10 milhões de desempregados

Do ponto de vista sócio-político-eleitoral, não se trata apenas de retirar receitas dos setores sociais, que já perdeu cerca de R$ 14 bilhões em contingenciamento para  transferir aos mais pobres medidas assistencialistas de baixa eficácia, mas da retirada de investimento público na saúde e na educação para compensar o preço do combustíveis para caminhoneiros e taxistas em vez de derrubar a paridade internacional (ao dólar) para os preços dos combustíveis – tomemos como orientação as radicalizadas mobilizações no Equador que derrubaram a dolarização do petróleo. E não para por aí: com a aprovação do estado de emergência – do contrário os novos programas não poderiam ser criados – o governo e o centrão que o apoia têm em mãos um cheque em branco para fazer populismo de extrema-direita usando a máquina pública e se perpetuar no poder, por vias institucionais e não-institucionais.  

Da mesma forma que durante a pandemia, é necessário ter sensibilidade com a situação das milhões de famílias que passam fome, mas não podemos resolver a situação  dessa população com um auxílio de apenas R$ 600 até dezembro e nem do custo do combustível tirando dinheiro da saúde e da educação sem taxar a burguesia e mudar a política de preços da Petrobras. Assim, a esquerda não pode aceitar, de nenhuma forma, que sua tramitação ocorra de forma relâmpago como quer Arthur Lira e sua base bolsonarista e nem que passe a atual configuração dessa PEC.

É preciso abrir um amplo debate durante a tramitação da PEC 15 na Câmara dos Deputados na base dos movimentos sociais, dos sindicatos e partidos, no sentido de nos levantarmos contra um projeto que retira investimentos dos serviços públicos, retirando dos pobres para dar aos miseráveis, e não onerar um centavo aos bilionários – uma estratégia que fortalece e favorece Bolsonaro e sua manutenção no poder. A função da esquerda nesse processo deve ser a de não aceitar que a classe trabalhadora pague a conta, de denunciar os seus limites e caráter golpista e exigir medidas que de fato tirem essas famílias das situação de miséria e pobreza através de um projeto de renda mínima equiparado ao salário mínimo do DIEESE e do congelamento dos preços das cesta-básica, assim como o congelamento e mudança da política de preços dos combustíveis que contribua com os trabalhadores autônomos dos transportes. Além disso, precisamos de uma drástica redução da jornada de trabalho sem redução salarial e o congelamento das tarifas públicas. Também é necessário romper com com a medida draconiana do teto dos gastos, com a paridade de preços internacionais dos combustíveis e com a reforma trabalhista taxando o lucro das grandes empresas e dos grandes investidores.

Como fruto do ingresso do PSOL na chapa Lula-Alckmin e da construção da federação partidária com a Rede, o PSOL liquidou totalmente o seu caráter classista, o que leva a perda da sua capacidade de se diferenciar politicamente do PT, de organizar e exigir de Lula e da CUT que mobilizem, para além de usar o parlamento para fazer pressão extraparlamentar – elemento decisório no combate ao golpismo. Por essa situação, o Senador da federação PSOL/REDE, Randolfe Rodrigues, votou favoravelmente à PEC sem nenhuma denúncia das suas armadilhas golpistas e necessidade de mobilizar para mudar o seu teor. Aqui fica evidente, mais uma vez, as consequências políticas que o giro à direita do PSOL representa na luta de classes, ou seja, dificultando o enfrentamento ao bolsonarismo. Isso reafirma a necessidade de apresentar uma candidatura independente com um programa anticapitalista a serviço da mobilização que não se renda à conciliação de classes.

É preciso mudar totalmente o curso da orientação política e não aceitar que, em nome de um alívio temporário e insuficiente das mazelas do povo, seja aberto um caminho para o golpismo bolsonarista. Em síntese, a esquerda socialista, com todas as suas candidaturas, precisa através de uma frente política mobilizar e exigir que a direção burocrática do movimento de massas impulsione a luta a fim de que sejam feitas emendas nessa PEC para que de fato atendam aos interesses dos trabalhadores, principalmente dos mais de 30 milhões que passam fome no Brasil, de forma que sejam os ricos que paguem a conta e não através desse estelionato golpista que está sendo montado a olhos vistos sem que a esquerda denuncie e nem se mova para mobilizar as bases. 

Está, então, colocada para a ordem do dia, frente a escalada golpista de Bolsonaro, a necessidade de edificar um calendário nacional de lutas – a começar pelo indicativo do próximo dia 16 de julho – que acumule condições sociais e políticas com a perspectiva de construir um verdadeiro tsunami no 7 de setembro, um contra ato às mobilizações  convocadas por Bolsonaro e pela extrema-direita para aplacar sua aventura golpista.