Campismo versus cretinismo imperialista. Um debate com as posições da esquerda internacional sobre a guerra na Ucrânia

ROBERTO SAENZ

A guerra na Ucrânia continua a desencadear discussões nas fileiras do marxismo revolucionário sobre seu caráter. Toda guerra envolve uma enorme complexidade, o que desafia a um uso sutil das ferramentas do marxismo que coloca no centro o método dialético com sua capacidade de apreciação concreta das tendências e contradições em curso.

Em uma recente viagem à França, pudemos corroborar que, embora a guerra na Ucrânia seja onipresente na mídia, isso não acontece entre a população, que de qualquer forma é afetada indiretamente pelo conflito em termos do salto inflacionário e da deterioração das condições de vida.

No que se segue, tentarei fazer um resumo crítico – e um tanto resumido – de algumas das posições sobre a guerra na Ucrânia, tanto na Europa como em algumas correntes latino-americanas.

Quadro geral das posições

O primeiro ponto a ser observado é que o conflito é complexo por basicamente três razões. A primeira é que uma guerra legítima de autodeterminação nacional contra o invasor russo se sobrepõe à contradição que se desenvolve sob o pano de fundo de um conflito – que não se transformou em guerra aberta – entre os Estados Unidos e os países tradicionais imperialistas da OTAN contra a Rússia. Em outras palavras: estamos na presença de dois conflitos sobrepostos que devem se combinar corretamente para não perder a posição política principista [1].

Simultaneamente, outro elemento de enorme complexidade é que esta não é uma guerra de autodeterminação nacional e/ou de libertação nacional dirigida por uma liderança anti-imperialista como a maioria deste tipo de conflitos no século passado, mas uma luta legítima pela autodeterminação nacional dirigida por uma liderança abertamente pró-imperialista como a de Zelensky (o que está confundindo muitas correntes de esquerda que vão no rastro de tal direção).

Além disso, o terceiro elemento que não pode se perder de vista é que entre a Ucrânia e a Rússia existe um pano de fundo histórico de enorme densidade no fato de que durante uma parte significativa do século XX a Rússia foi a URSS, ou seja, um país considerado um “estado socialista” que sob o estalinismo relançou os mecanismos gran russos de opressão nacional (incluindo o extermínio pela fome do Holodomor no início dos anos 30[2]), questão que permanece na consciência do povo ucraniano até os dias de hoje.

Em vista destas complexidades do atual confronto bélico, é evidente que é necessário um manejo sutil de nossas ferramentas marxistas, repetimos, manejo que desafie todo esquematismo a fim de se situar corretamente no conflito.

Neste contexto, quatro posições sobre o conflito vêm expressando-se dentro do marxismo revolucionário (um conflito que, dadas suas enormes contradições, é difícil de ser lido à esquerda e confunde a maioria especialmente na região sul do mundo).

Esta declaração refere-se ao fato objetivo de que se a resistência do povo ucraniano desencadeou manifestações de solidariedade internacional, estas manifestações – em muitos países – são dominadas por forças imperialistas reacionárias ou pró-imperialistas. Além disso, Volodimir Zelensky, o elemento de liderança visível, ao apelar dia e noite à OTAN e às potências imperialistas ocidentais, torna difícil, obviamente, uma leitura do conflito desde a esquerda.

Uma primeira posição só vê a luta pela autodeterminação ucraniana, perdendo de vista os elementos do conflito inter-imperialista – mas não guerra, insistimos inter-imperialista. Uma segunda reduz o conflito a um mero confronto inter-imperialista, perdendo de vista os direitos do povo ucraniano à autodeterminação. Uma terceira tem um ângulo campista que – aberta ou vergonhosamente – escorrega na defesa da Rússia contra o imperialismo ocidental, ignorando qualquer legitimidade para a reivindicação ucraniana. E a quarta, que é a nossa e a de algumas outras correntes também, considera que existe uma guerra legítima pela autodeterminação ucraniana (progressiva) combinada com um conflito inter-imperialista entre o imperialismo tradicional e o imperialismo atípico – por assim dizer – russo em reconstrução (sendo este último um conflito reacionário).

Cegueiras “eurocéntricas”

A primeira posição pode ser observada – centralmente – nas correntes enquadradas na corrente mandelista internacional (assim como em algumas correntes latino-americanas, a UIT e a LIT-CI, tradicionalmente marcadas pelo objetivismo) [3]. Estas são correntes que defendem corretamente o direito à autodeterminação ucraniana, mas, negam o alinhamento de Zelensky com os Estados Unidos e a União Européia, e têm uma visão crítica dos envios de armas que essas potências proporcionam.

Este alinhamento é grave, especialmente quando se trata de correntes cujo assentamento na Europa Ocidental deveria forçá-las a ter uma delimitação mais baseada em princípios de seu próprio imperialismo. Ou seja: evitar uma escorregada nacional-imperialista que só pode ser explicada por uma visão eurocêntrica dos assuntos internacionais: a incapacidade de dar conta desde onde se fala e se emite posições [4].

É o caso, por exemplo, de Pierre Rousset, um importante dirigente da corrente mandelista que, num texto inicial próprio, perde de vista as referências elementares: ele não estabelece nenhuma demarcação com a liderança de Volodimir Zelensky, nem problematiza o envolvimento da OTAN no conflito.

Em outras palavras, não consegue dar conta da contradição específica da luta atual pela autodeterminação ucraniana. Ao contrário de outras lutas pela autodeterminação nacional no século passado, a luta atual do povo ucraniano é dirigida por uma liderança imperialista pró-ocidental, que introduz uma série de problemas específicos, dado que o curso do processo ucraniano não é independente, mas é, orientado, pelo menos até agora, de cabeça para o lado da UE e da OTAN.

Aplicam-se aqui duas considerações. A primeira é que o caráter da liderança reconhecida do processo – ao menos por cima; por abaixo as coisas são mais complexas, que retomaremos- não anula o elemento da legitimidade da causa nacional ucraniana. Tampouco sela automaticamente um resultado de direita para o processo. No entanto, ela carrega um peso imenso que nenhuma abordagem independente do conflito pode perder de vista. Isto nos leva de volta ao caráter não independente de Zelensky e sua equipe, uma questão que – vergonhosamente – não é problematizada na abordagem de Rousset, além de levar muito levianamente os envios de armas pelos países imperialistas [5].

Ademais, o segundo problema é a cegueira frente ao posicionamento da OTAN. Posição agora corrigida e aumentada na última reunião em Madri, que sim se for autojustifica na ação bélica de Putin – embora a pressão da OTAN sobre a Europa Oriental tenha vindo antes, o que tampouco não justifica a invasão de Putin – não é menos real. A OTAN, o instrumento inimigo dos povos, está aproveitando a desculpa para se fortalecer e se reposicionar: a votação na Alemanha para aumentar o orçamento militar de 1,5% para 2,0% do PIB, o plebiscito pelo qual a Dinamarca se juntou ao esforço militar europeu (há décadas se recusava a fazê-lo), o plano dos EUA de destacar mais tropas para a Europa Oriental, o pedido da Suécia e da Finlândia para aderir à OTAN, etc., são todos dados relevantes a este respeito, – embora nem tudo que reluz é ouro, e tanto a Alemanha como a França, por exemplo, não possuem armas pesadas suficientes para fazer entregas substanciais à Ucrânia.

Rousset tira conclusões mecânicas sobre uma eventual vitória ucraniana no conflito com a Rússia. Como o cenário é tão complexo, deve-se ser cauteloso nos prognósticos e não afirmar esquematicamente – como Gilbert Achcar fez em seus primeiros textos, os mais recentes ainda não pudemos rever – que uma derrota russa não fortaleceria a OTAN.

Entretanto, esta é uma visão simplista das questões. Nossa defesa da resistência ucraniana é incondicional. Mas também é verdade que sem um curso independente de parte da luta ucraniana, sem o surgimento de uma alternativa da esquerda no terreno, sem que o povo ucraniano se recuse a ser o fantoche de alguém – o que é uma questão em aberto e não pode ser descartada; dependerá dos detalhes da luta – é difícil para o imperialismo ocidental não se fortalecer, mesmo que, por enquanto, o cenário pareça misto, com a Rússia assumindo a liderança no leste e sul da Ucrânia neste terceiro momento da guerra e o Ocidente capitalista sentindo os rigores das consequências econômicas de suas próprias sanções…

A cegueira com o próprio imperialismo volta a este mesmo ponto: a falta de uma abordagem crítica à liderança de Zelensky, mesmo que seja um fato que por baixo, na própria Ucrânia, parecem estar se desenvolvendo em certas cidades e regiões – mesmo na época em Kiev e talvez em Kharkov – elementos de ação e organização independentes.

Le Monde dedicou um longo relatório em sua edição de 31/05/22 a Mykolaïv, uma cidade que se apresenta como um “modelo de resistência popular à invasão” (que não podemos confirmar). Até cita pessoas da resistência como dizendo que “A era soviética foi um dos períodos mais prósperos para nós graças às forças navais russas“, mas acrescenta que a opinião mudou desde a ocupação da Crimeia e que agora os locais dizem que “não cederemos um metro de território aos russos“.

A nota continua dizendo que existem numerosas associações voluntárias desde baixo que cobrem o que o Estado não consegue alcançar; que voluntários e voluntárias fazem bombas artesanais, assim como se tem vários comentários que exigem o envio de armas ao Ocidente….

A segunda posição é aquela que, clara e simplesmente, nega o direito à autodeterminação ucraniana. Vê apenas o conflito inter-imperialista entre a OTAN e a Rússia, transformando-o em uma guerra inter-imperialista simples que não é tal (pelo menos ainda não). Esta posição, simetricamente oposta à da corrente mandelista, é mantida pelo SWP na Grã-Bretanha entre outras organizações. Embora denunciando corretamente seu próprio imperialismo, eles repetem sua habitual cegueira aos problemas de autodeterminação nacional e não parecem defender o direito do povo ucraniano à sua própria nacionalidade.

Contraditório, mas real, a Ucrânia conquistou sua independência na época da restauração capitalista, em 1991. E se uma coisa ficou clara desde o início da ofensiva russa contra a Ucrânia, é que o sentimento nacional ucraniano, forjado em mil e um problemas gerados no passado pelo czarismo e sobretudo pela opressão estalinista durante o século XX, é um sentimento profundamente enraizado que parece englobar toda a população, tanto os falantes de língua ucraniana quanto os falantes de língua russa [6].

Ocorre que um dos elementos mais ridículos e que mais hão ficado expostos do discurso de Putin é que ninguém recebeu o exército russo com flores na mão aplaudindo os “libertadores”. Ainda menos depois que ele optou pela tática de martelar com a artilharia cidades e vilarejos reduzindo-os a pó (é impossível conquistar alguém para a própria causa dessa maneira!).

Putin desembarcou na Ucrânia com o discurso de que é o verdadeiro “descomunizador”. Além disso, ele passou a criticar Lênin, que segundo Putin foi responsável pelo plantio da “bomba” que fez com que a União Soviética implodisse ao propor o direito à autodeterminação das nações. Em outras palavras, Putin defende a nova Rússia como um imperialismo emergente; uma versão renovada do histórico cárcere dos povos que foi o Estado russo desde o czarismo.

Assim, a posição que vê apenas um confronto inter-imperialista, que se transforma em uma guerra simples, e perde de vista a justa luta do povo ucraniano pela autodeterminação, cai em outra simplificação anti-dialética.

É impressionante que uma corrente que descreveu a ex-URSS sob o estalinismo como “capitalismo de estado” devido a sua degeneração (uma definição que não compartilhamos, mas isto é outra questão), perca de vista estas questões elementares. No mínimo, eles deveriam ter percebido que, desde a estalinização – após o momento do colapso nos anos 90 – a Rússia recuperou elementos característicos do czarismo, mais uma vez se configurando como cárcere dos povos; como uma estrutura estatal baseada na opressão nacional das populações não russas (uma característica típica do expansionismo russo): “O sistema não se tornou profundamente burocrático por causa da necessidade de controlar nacionalidades; ele controlava nacionalidades, assim como a economia, a cultura e tudo mais, porque era burocrático – e isto por muitas razões (…) Em última análise, o regime quebrou e caiu por causa de sua essência burocrática” (Russia/USSR/Rusia. The drive and drift of a superestate. The New Press, New York, 1995, pp. 272).

O problema de compreender as formas específicas de cada formação social e não permanecer com as formas dominantes no Ocidente capitalista é fundamental para uma visão internacionalista das questões. Isto é algo que é muito falado, mas poucas correntes conseguem alcançar e que deve encarar-se indo contra as pressões nacionais da localização principal de cada corrente.

Repetimos a propósito de nossa viagem recente: em geral, as consequências extremamente danosas da inexistência de uma verdadeira internacional revolucionária não são – na realidade – compreendidas. Isto é algo que não pode ser respondido apenas pela vontade dos socialistas revolucionários, é claro, mas depende de certas condições da luta de classes que hoje ainda não estão dadas. Entretanto, esta falta pode fazer-se consciente para tentar evitar os males do “provincialismo” (ou seja, para tornar universais as próprias circunstâncias).

O retorno do campismo  

A terceira posição é a que se inclina para a Rússia na disputa com a Ucrânia (uma posição característica do PO argentino e também – agora do PTS). É uma posição – escandalosa – onde a defesa principista do direito ucraniano à autodeterminação desaparece.

A lógica desta posição é totalmente instrumental: uma visão típica de cima que perde de vista as coordenadas fundamentais do marxismo, que está sempre ancorado na luta de classes. As pessoas de carne e sangue, seus interesses e subjetividades não existem, apenas seriam marionetes dos poderes conflitantes.

Assim, o que estaríamos vendo, visto da posição campista, é uma guerra de agressão da OTAN contra a Rússia, um país considerado por Emilio Albamonte (líder do PTS argentino) como dependente. Agressão que ocorre em solo ucraniano, mas na qual, os ucranianos não teriam nem arte nem parte na questão

Ao contrário do que Albamonte pensa, o confronto entre a Rússia e a Ucrânia é essencialmente sobre a invasão opressiva da Ucrânia – o verdadeiro país dependente envolvido no conflito, o mais pobre da Europa [7] – por um imperialismo atrasado em reconstrução, a Rússia, um país imperialista finalmente, embora atípico, com características específicas.

É verdade que esta guerra está ocorrendo no contexto de um conflito crescente entre a Rússia e o imperialismo ocidental, mas não – pelo menos ainda não – evoluiu para uma guerra aberta entre eles. Toda esta complexidade da questão escapa a Albamonte em sua recaída campestre.

A posição do PTS sobre o conflito parecia envolver nuances mais ricas entre os textos de Maiello e Mercatante, mais equilibrados, e os de Juan Chingo, que eram extremamente campistas. No entanto, no recente congresso desta organização, a posição parece ter mudado radicalmente para o campismo.

O izquierda diario publicou uma intervenção de Emilio Albamonte, “A guerra na Ucrânia e o método de análise da situação mundial“, onde, em resposta a um debate gerado por algum setor da militância que sustentava que a Rússia tem características imperialistas, ele acaba inclinando brutalmente o bastão em direção ao campismo, negando que a Rússia é imperialista e negando qualquer legitimidade à resistência ucraniana [8].

Já criticámos o campismo de Albamonte em outros textos (“Un relato apologético del estalinismo. Una polémica con Emilio Albamonte sobre el balance del siglo veinte, el estalinismo y la revolución socialista “). Uma polêmica com Emilio Albamonte sobre o balanço do século XX, o estalinismo e a revolução socialista”) [9]. Neste caso, sob o pretexto de uma análise da “totalidade”, os direitos nacionais da população ucraniana são impunemente pisoteados, uma séria capitulação política.

O problema começa com uma caracterização economicista da Rússia atual. É evidente que a Rússia não é um imperialismo tradicional, ou seja, moderno. Sua estrutura econômica e social é altamente dependente da produção e exportação de matérias-primas, embora também mantenha ramos de ponta nos campos militar e aeroespacial (neste campo, porém, aparentemente, depende fortemente da importação de peças, especialmente microchips, entre outros).

No entanto, várias de suas empresas envolvidas em operações de commodities têm alguma posição internacional: Lukoil, petróleo e gás; Gazprom, petróleo e gás; Hosnett, petróleo e gás; Sovkomflot, transporte; Severgroup, conglomerado; En (mas), conglomerado; Atomenergoprom, energia nuclear; Evraz, aço; RussianRailways, transporte; TMK, aço; Eurochen, química; Sistema, conglomerado; NLMK, aço; Zarubezhneft, petróleo e gás; Polimetal, metais não ferrosos; etc. (“Sobre la dinámica de la guerra en Ucrania“, Izquierda Web), e nos escapam aqui as empresas envolvidas na produção e exportação de armas, um ramo no qual a Rússia seria – é – o segundo a nível internacional atrás dos Estados Unidos.

Para além do exposto, a abordagem economícista torna-se cega, abstrata, diante das características específicas do – em reconstrução – imperialismo russo. Lênin tinha advertido em 1914 que a Rússia era um “imperialismo bárbaro”. Ou seja: um imperialismo retrógrado baseado não centralmente na exportação de capital, mas no poder militar e na lógica territorial (está claro que Lenin não foi um defensor da Rússia na Primeira Guerra Mundial; foi Plekhanov!)

O marxista polonês Zbigniew Kowalewski insistiu muito – e com conhecimento de campo – no caráter extensivo da exploração imperialista dentro da própria Rússia. Sua expansão histórica sobre vastos territórios além do núcleo europeu do país, etc., uma característica específica – ou seja histórico-concreto – da Rússia, além de que, lembremos, hoje em dia todas as relações econômicas na Rússia, apesar de suas características estatais-capitalistas, o que também implica uma certa mistura de economia e política, são relações econômicas baseadas nas relações de valor-trabalho (no mercado).

A restauração do capitalismo na Rússia completou parcialmente e substituiu parcialmente os monopólios extra-econômicos, enfraquecidos e truncados após o desmembramento da URSS, com o poderio do capital financeiro monopolista sustentado pelo aparato estatal. O imperialismo russo reconstruído sobre estas bases continua sendo um fenômeno interno e externo, operando em ambos os lados da fronteira russa, que está começando a se mover novamente. As autoridades russas construíram megacorporações estatais que têm o monopólio da colonização interna do leste da Sibéria e do extremo oriente. Essas regiões possuem poços de petróleo e outras fontes de matéria-prima. E têm acesso privilegiado a novos mercados globais na China e no Hemisfério Ocidental” (“Russian Imperialism. From the Tsar to today, via Stalin, the imperialism will marks the history of Russia “, Zbigniew Marcin Kowaleski, 02/03/22).

Outro argumento da posição campista é o geopolítico: os EUA querem desmembrar e semicolonizar a Rússia. Nas últimas décadas, as políticas do imperialismo ocidental têm mudado. Eles começaram com a tentativa de semi-colonização nos anos 90 sob Yeltsin, mas depois, com o giro de Putin restabelecendo a Gran Rússia, trataram conviver com isso, ainda que mantendo a expansão da OTAN até suas fronteiras.

Está claro que agora estamos entrando em um terceiro momento em que a OTAN está buscando reforçar-se estratégicamente e está lançando um plano de dez anos que coloca a Rússia (e a China) como seus principais adversários; este foi o tema da recente reunião em Madri.

Mas um confronto geopolítico entre potências imperialistas mais fortes e/ou mais fracas – ou imperiais – que dominam cada uma das partes do mundo, suas esferas de influência, não muda a natureza das coisas. Os Estados Unidos e a União Europeia encontraram com a invasão da Ucrânia uma justificativa para enfraquecer a Rússia e, por elevação, algo muito mais difícil: enfraquecer a China (mesmo correndo o risco de enfraquecer a globalização, uma contradição…) [10].

Mas se os imperialismos tradicionais ou imperialismos em construção ou reconstrução procuram em seus confrontos enfraquecer uns aos outros, isso não muda seu caráter: “A teoria da revolução permanente aplica-se aos países de desenvolvimento burguês atrasado e, fundamentalmente, aos países semicoloniais. A Rússia [Trotsky] a considera como um país de desenvolvimento burguês atrasado, ou seja, não imperialista (…) Se  são impostas sanções à China, por menores que sejam, começa uma tendência para dois blocos, um bloco imperialista liderado pela OTAN e um bloco de países como a China e a Rússia. Isto poderia criar uma nova situação mundial, e eu acho que esta é a perspectiva mais provável à medida que a situação mundial está se desenvolvendo. É muito difícil voltar ao status quo anterior”. (Albamonte, idem). E acrescenta: “(…) se fosse pelo problema da autodeterminação nacional estaríamos com a Ucrânia (…) Mas a Ucrânia não é apenas um país dependente ou uma semicolônia qualquer, mas que por votação, porque realizaram um golpe, etc., etc., se propôs como um apêndice da União Européia e se possível da OTAN” (Albamonte, idem).

Estas definições são um escândalo político demolem qualquer posição independente e caem no campismo mais crú! Não se sabe de onde se tira isso para Trotsky “A Rússia não era imperialista“: “(…) A Rússia, como grande potência que era, não podia ficar distante daquelas disputas dos países capitalistas mais avançados, da mesma forma que, na época anterior, não tinha conseguido se abster de introduzir no país fábricas, ferrovias, fuzis e aviões (…) No fundo, o imperialismo da burguesia russa, com sua dupla face, não era mais do que um agente mediador de outras potências mundiais mais poderosas” (Historia de la Revolución Rusa, vol. 1, pp. 41/2, Antídoto-Red Horse, Argentina, 2021).

Como se pode ver nesta simples citação, a definição básica de Trotsky apontava para o desenvolvimento extremamente desigual do último período dos czares, onde enormes fábricas como Putilov se combinam com a extrema dependência do capital financeiro estrangeiro, especialmente do francês, razão pela qual ele fala da “dupla face” da burguesia russa… Em todo caso, esta exegese é o menos importante (e para a época as posições de Lênin nos parecem mais substantivas).

O que é importante ressaltar são duas coisas: primeiro, que ao passar para a posição de que a Ucrânia seria uma espécie de “enclave do imperialismo ocidental” (algo como os kelpers britânicos nas Ilhas Malvinas Argentinas!), se lhe nega qualquer direito à autodeterminação de sua população e legitima a invasão russa (os ucranianos teriam se proposto como uma espécie de “apêndice da OTAN” por algum capricho desconhecido…). Esta posição do PTS é nova. E é um escândalo porque a tradicional natureza pró-imperialista de Zelensky não pode superar – em uma operação superestrutural desencarnada da experiência das massas – as relações estruturais e históricas da opressão gran russa sobre a Ucrânia (que têm muito a dizer sobre a dinâmica das questões).

Em segundo lugar, o outro escândalo é que se prevê um confronto (mesmo militar) entre as potências imperialistas tradicionais, por um lado, e a China e a Rússia, que são consideradas não-imperialistas, por outro. Assim, se desenha um cenário campista que não tem bases materiais. Peca pelo provincialismo, perdendo de vista o conjunto das relações de exploração e dominação que a China e a Rússia estabeleceram em seu próprio campo de ação e cuja política externa é expressão disso: nada mais nada menos que a cena eurasiática e o sudeste asiático, competindo com os Estados Unidos e seus consortes (que continuam sendo o imperialismo mais forte).

É verdade que um retorno ao status quo pré-ucraniano é praticamente impossível, mas isto admite duas nuances. Primeiro, a UE não tem exatamente a mesma política em relação à Rússia que os EUA, embora seja em grande parte subserviente a ela. Em segundo lugar, se a dinâmica estrutural eventualmente levar a um grande conflito, é necessário avaliar as circunstâncias concretas que o envolvem antes de assumir definições (todo conflito deve ser avaliado concretamente, e as guerras ainda mais).

No momento, o conflito concreto que existe é na Ucrânia, como resultado da invasão russa. Estaríamos prestando um mau serviço se, em vez de uma resposta revolucionária, cegássemos nossos olhos para a justa luta ucraniana com uma lógica campista ou se, por outro lado, perdêssemos de vista o problema real da OTAN e sua expansão, esquecendo cretinamente o imperialismo no próprio país.

NOTAS

[1] Atentemos que, até agora, a única guerra como tal é a desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia, qualquer que seja a real “ajuda” militar que a OTAN esteja realmente prestando à Ucrânia.

[2] A este respeito, recomendamos a leitura de nossas “Apuntes metodológicos a propósito de la colectivización forzosa estalinista“.

[3] O objetivismo neste caso seria a crença de que a legítima luta pela autodeterminação nacional se traduziria automaticamente em uma leitura à esquerda do conflito no terreno – algo contrário aos fatos devido à espessura dos problemas históricos pós-estalinistas da Ucrânia. O objetivismo, além disso, devido a uma cegueira dramática ao aprovitamento pela OTAN para rearmar-se da desculpa da invasão russa da Ucrânia, uma OTAN que acaba de realizar uma reunião em Madri para implementar planos de expansão e reforço.

[4] A delimitação do próprio imperialismo é um dos mais importantes critérios de princípio da política revolucionária, especialmente para as correntes baseadas nesses países.

[5] “Nesta hora de grave perigo, em solidariedade à resistência ucraniana, reconstruamos o movimento internacional antiguerra“, Mark Johnson e Pierre Rousset, 29/03/22.

O problema das armas é complexo porque se você for para o terreno ucraniano, as pessoas da resistência certamente o questionariam sobre isso. Mas a questão não pode ser separada do caráter do governo de Zelensky, que, se tivesse outra orientação política, obviamente apelaria para outros pontos de apoio, outras ajudas, mesmo no campo militar, que não as do imperialismo tradicional.

[6] É bastante óbvio que se você for bombardeado dia e noite, você não será muito favorável ao que eles estão fazendo….

[7] Desde 1991, a produção da Ucrânia caiu de 450 bilhões de dólares para os atuais míseros 150 bilhões de dólares. Não está claro para nós como a população ucraniana distribui a responsabilidade por isto, mas parece claro que a população mais jovem do país olha mais para a Europa Ocidental do que para a Rússia em termos de perspectivas. E na política revolucionária devemos partir da realidade, não das fantasias. Além da maior prosperidade, é evidente que os desastres do estalinismo na Ucrânia pesam sobre tudo, mesmo que se sobreponham a alguns momentos de prosperidade também ligados ao “estado de bem-estar” pós-estalinista e aos elementos da industrialização do pós-guerra.

[8] Como critério metodológico de que a Rússia não teria características imperialistas porque não exportou capital, Albamonte apresenta o marxismo como “uma ciência positiva” e toma a dialética como “a ciência dos limites“… Tomar fatos simples como válidos é perigoso, porque retira o ângulo crítico do marxismo. (A insistência de Daniel Bensaïd sobre o marxismo como uma “ciência alemã”, ou seja, uma ciência crítica, e não apenas positiva, parece certa neste aspecto, Marx intempestivo).

Além disso, a definição de dialética como uma “ciência de limites” é interessante se, ao mesmo tempo, se afirma que é também a ciência da contradição e do desenvolvimento concreto-histórico dos fenômenos. Ou seja, dos limites que de tempo em tempo transbordam (Trotsky, Escritos sobre Lenin, dialéctica y evolucionismo), o que é importante para não cair no doutrinarismo.

[9] A lógica do campismo é a do terceiro excluído: haveria apenas dois lados e um deles teria que ser escolhido. Manter uma posição independente seria impossível – fora da agenda. Algo característico da Quarta Internacional no período do pós-guerra.

[10] Parte das preocupações do imperialismo ocidental sobre a China é o movimento contraditório pelo qual seu mercado é grande demais para ser ignorado e, ao mesmo tempo, se pôs em marcha uma dinâmica de certa relocalização de algumas empresas fora da própria China dados os sinais de alerta do conflito na Ucrânia. Um equilíbrio muito difícil, que ainda não foi completamente quebrado e cuja evolução final ainda é difícil de prever (a tendência estrutural é para o conflito; a dinâmica real deve ser avaliada passo a passo).