Victor Artávia

Em 11 de julho, protestos espontâneos irromperam em sessenta cidades e vilas em Cuba, durante os quais milhares de pessoas reclamaram da falta de medicamentos e alimentos, bem como de cortes prolongados de energia.

Em resposta, o governo Díaz-Canel rapidamente reprimiu os protestos, acusando os manifestantes de serem “vândalos” e “agentes contrarrevolucionários” ao serviço dos Estados Unidos. Até o momento, centenas de pessoas foram presas e pelo menos uma morreu na repressão policial.

Mas a realidade é mais complexa do que a cúpula castrista a retrata. As mobilizações foram lideradas por milhares de jovens e trabalhadores que, dia após dia, enfrentam as duras condições de vida na ilha caribenha, e o governo até aceitou que o país está passando por uma situação econômica muito crítica, mas, como de costume em sua retórica, culpou inteiramente o bloqueio imperialista e não assumiu nenhuma responsabilidade por ele.

Neste artigo analisaremos as causas – estruturais, mediadoras e imediatas – que desencadearam o surto social e, sem perder de vista a devastação do bloqueio imperialista na ilha, demonstraremos a enorme parcela de responsabilidade da burocracia castrista na crise que aflige o povo cubano.

PARTE I

A REVOLUÇÃO CUBANA, O BLOQUEIO IMPERIALISTA E O PLANEJAMENTO BUROCRÁTICO

A revolução cubana e o surgimento de um estado burocrático

A revolução cubana de 1959 representou um ponto de viragem na história da América Latina, pois tomou um rumo anticapitalista e expropriou o imperialismo e a burguesia cubana. Neste sentido, ela representou um desafio direto ao controle do imperialismo americano sobre a América Latina, justamente quando estava no auge de sua hegemonia após a Segunda Guerra Mundial.

A revolução garantiu um enorme número de ganhos sociais para as massas exploradas e oprimidas, que se materializaram em importantes avanços como o acesso universal à educação, saúde e moradia; também deu à ilha independência dos Estados Unidos que, até então, tinham tratado a ilha como um grande cassino e bordel de férias.

Entre maio de 1959 e o final de 1960, o governo cubano promulgou as quatro leis que marcaram o curso anticapitalista da revolução e sustentaram os ganhos sociais na ilha: a lei de reforma agrária de 17 de maio de 1959, com a qual confiscou as propriedades dos latifundiários e as distribuiu aos camponeses; a lei 890 sobre a “nacionalização através da expropriação forçada de todas as empresas industriais e comerciais” e a lei 891 sobre a nacionalização dos bancos, promulgada em 13 de outubro de 1960; e finalmente a lei de reforma urbana de 14 de outubro de 1960, através da qual as casas dos grandes latifundiários foram expropriadas para entregá-las aos seus inquilinos. [1] Por causa disso, durante muitas décadas a revolução teve o apoio de amplos setores da população, pois eles identificaram suas conquistas com a expropriação do capitalismo e do imperialismo estadunidense.

A expropriação do capitalismo em Cuba consumou uma virada progressiva e histórica da revolução, que defendemos sem hesitar diante dos ataques imperialistas. Apesar disso, desde Socialismo ou Barbárie, não o caracterizamos como dando lugar ao surgimento de um Estado operário burocrático ou deformado – uma tese mantida pela maioria das correntes trotskistas até hoje – mas, ao contrário, colocou no poder a burocracia castrista que, desde o início da revolução, gerenciou o poder de forma antidemocrática, já que transferiu para a esfera estatal a ordem militar da guerrilha, sintetizada no slogan “Comandante em chefe, ordene“.

Por esta razão, é falso que em Cuba a classe trabalhadora tenha conquistado o poder, pois nunca teve instâncias reais de controle democrático sobre o planejamento do Estado. Isto é claramente retratado pelo historiador Samuel Farber, para quem o governo cubano estabeleceu uma forma de mandato legitimada pela mobilização e participação “consultiva” das massas, mas que nunca proporcionou espaços para um controle democrático efetivo sobre as decisões fundamentais do país [2].

Como explicaremos mais adiante, isto se vê claramente no planejamento burocrático da economia cubana, onde a burocracia coloca claramente seus interesses – ou seja, garantir as fontes de seus privilégios materiais – antes de resolver os problemas que afligem as massas cubanas. Isto, apesar de a Constituição cubana não ignorar os adjetivos socialistas para definir seu sistema econômico; em seu artigo 18 afirma que na ilha “um sistema de economia socialista governa, baseado na propriedade por todo o povo dos meios de produção fundamentais como principal forma de propriedade, e a direção planejada da economia, que leva em conta, regula e controla o mercado de acordo com os interesses da sociedade“.

O bloqueio imperialista e sua devastação à economia cubana

Quando o Haiti conquistou sua independência em 1804, o imperialismo francês não se intimidou em descarregar sua fúria contra os ousados insurrecionistas, impondo-lhes o pagamento de 150 milhões de francos ouro em “reparações” (equivalentes a 21,8 bilhões de dólares em 2010), uma dívida que a nação caribenha acabou pagando até 1947 a um alto custo no desenvolvimento humano e social.

Sob esta mesma lógica imperial, os Estados Unidos decretaram o bloqueio a Cuba após a revolução de 1959, com o objetivo de punir o povo cubano por se emancipar de sua tutela e afetar os interesses das corporações norte-americanas. Após seis décadas de bloqueio, os prejuízos econômicos são enormes e, de acordo com as estimativas do governo cubano, atingiram 144,4 bilhões de dólares até setembro de 2020[3].

O bloqueio consiste em seis leis e vários regulamentos, cujo objetivo é proibir ou restringir as relações econômicas com Cuba. Ela teve origem em 1960 durante a administração Dwight Eisenhower, em resposta à expropriação dos ativos das empresas americanas na ilha e ao estabelecimento de relações comerciais com a URSS. Em resposta, o governo americano impôs um embargo comercial parcial e cortou as relações diplomáticas com Havana.

Mais tarde, sob a administração John F. Kennedy, os EUA impuseram um embargo total, com exceção de alimentos e medicamentos. Após a queda da URSS, o bloqueio foi intensificado com a aprovação da Lei Torricelli em 1992, que proibiu o comércio com Cuba por filiais de empresas americanas em outros países, assim como as viagens de cidadãos americanos à ilha.

Em 1996, a Lei Helms-Burton foi aprovada, principalmente com a aplicação extraterritorial de sanções para empresas de outros países que negociavam com Cuba; ela também estabeleceu que o Congresso teria a última palavra sobre o levantamento do bloqueio, fechando a porta para que qualquer presidente americano o fizesse por decreto.

A partir de 2000, o bloqueio foi “relaxado”, principalmente para facilitar o comércio de alimentos, produtos agrícolas e medicamentos. Durante a administração Obama, as restrições às viagens e remessas foram relaxadas, mas com a chegada de Trump esta abordagem foi revertida, pois o bloqueio foi apertado durante sua administração.

De acordo com um relatório de 2018 da Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação, uma em cada nove pessoas em Cuba é afetada pelo déficit alimentar gerado pelo bloqueio, principalmente porque este impõe que todas as importações tenham que ser pagas no local (ou seja, proíbe as vendas financiadas para a ilha), também limita as possibilidades de acesso para a importação de medicamentos contra o câncer e outras doenças, devido às restrições comerciais que pesam sobre os laboratórios farmacêuticos americanos. [4].

Diante disso, é inegável que o bloqueio imperialista está sufocando a economia cubana e representa um ataque à sua soberania nacional, sendo, portanto, uma tarefa de princípio lutar por seu levantamento. Mas isto deve ser feito com independência política da burocracia castrista, que usa o bloqueio para instalar uma narrativa na qual todos os problemas da ilha são produto de interferência imperialista, um ângulo unilateral que não admite causas internas na crise e circunscreve tudo a um conflito geopolítico regional. Desta forma, o governo está agitando uma narrativa campista onde a política cubana é reduzida a um choque entre setores “revolucionários” – o governo e seus agentes – contra “mercenários” pró-imperialistas – qualquer um que critique o governo -, justificando assim a repressão de qualquer setor dissidente sob o rótulo de contra-revolucionário, sem diferenciar entre aqueles que têm uma perspectiva anti-imperialista de esquerda e aqueles que efetivamente defendem a restauração capitalista em Cuba.

O planejamento burocrático da economia e os problemas de escassez

Seria desonesto não ligar a crise econômica da ilha ao criminoso bloqueio imperialista imposto pelos Estados Unidos, e ignorar os efeitos da pandemia. Mas também é errado ignorar a gestão da burocracia castrista, que governa através de um regime de partido único antidemocrático que lhe traz enormes privilégios e, ao mesmo tempo, amplia os efeitos da crise sobre a grande maioria da população cubana. Isto é o que chamamos de planejamento burocrático da economia cubana, cuja irracionalidade – e consequências terríveis – foram desmascaradas em meio à crise atual. É um assunto muito complexo e, no momento, vamos nos concentrar em um dos setores determinantes do Estado cubano, a saber, a cúpula militar.

Como é bem conhecido, o alto comando militar representa um dos setores mais privilegiados da ilha, que ganhou terreno no governo após a ascensão de Raúl Castro ao poder em 2008. A principal fonte de seus privilégios é o Grupo de Administração Empresarial SA (GAESA), uma empresa criada em 1995 e ligada ao Ministério das Forças Armadas Revolucionárias (FAR), que administra uma complexa rede de empresas, incluindo hotéis, albergues, restaurantes, lanchonetes, centros recreativos, agências de viagem, agências imobiliárias, companhias de aviação, importadoras, locadoras de automóveis, armazéns, empresas de navegação, serviços de courier e encomendas, atacadistas, bancos, empresas financeiras, serviços de auditoria, empresas de construção, assim como toda a rede de lojas de varejo na CUC, e agora na MLC. [5]

Assim, GAESA representa um núcleo fundamental de atividade econômica na ilha e, embora em teoria seja uma empresa estatal de caráter socialista, na realidade é dirigida por uma burocracia militar sem prestar contas a nenhum órgão estatal, já que as propriedades sob seu controle não estão subordinadas à Controladoria Geral da República e, portanto, suas auditorias são internas e os resultados não são acessíveis ao público.

Além da falta de controles democráticos sobre suas empresas, o consórcio GAESA se beneficia do investimento de enormes somas de recursos públicos, como pode ser visto a partir de uma análise do orçamento estatal de 2019, onde 37,3% dele foi destinado à área de “serviços empresariais, imobiliários e atividades de locação”, o setor onde a grande maioria de suas atividades econômicas (muitas ligadas ao turismo) são realizadas. Por outro lado, no mesmo orçamento, os valores para saúde, ciência, ajuda social, pecuária, agricultura e silvicultura foram cortados, afetando a produção e importação de alimentos básicos e medicamentos. O gráfico seguinte mostra o investimento desequilibrado do orçamento do Estado cubano como resultado de um planejamento burocrático.

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Este desequilíbrio no investimento do orçamento do Estado, juntamente com os problemas causados pelas restrições do bloqueio imperialista, explicam os problemas de abastecimento de alimentos e remédios em Cuba, dois dos principais desencadeadores do surto social de 11 de julho. O governo cubano prioriza um modelo econômico ligado ao turismo e à entrada de moeda estrangeira – que beneficia as empresas controladas pela GAESA – mas relega o desenvolvimento dos setores industrial e agrícola para segundo plano.

Isto coloca o país em uma posição altamente vulnerável, pois importa uma enorme quantidade de produtos básicos para o consumo diário, algo extremamente complexo quando está sobrecarregado com um bloqueio imperialista que, para piorar a situação, foi endurecido com as medidas tomadas pela administração Trump (que Biden tem mantido até hoje).

Por exemplo, Cuba praticamente não produz arroz, feijão, carne ou legumes, portanto importa 80% dos alimentos que consome (para os quais gasta 2 bilhões de dólares), o que aumenta significativamente o custo para a população. Além disso, o governo retirou vários alimentos básicos do racionamento “libreta”, que agora são vendidos no mercado ilegal a preços exorbitantes: uma libra de frango custa sete dólares, quando seu preço de importação dos Estados Unidos ou do Brasil é de um dólar; o leite em pó aumentou 120 vezes em valor nos últimos meses, enquanto uma garrafa de óleo aumentou quatro vezes e as salsichas três vezes.[6]

Apesar desta fraqueza estrutural na produção e fornecimento de alimentos, o governo cubano não prioriza os investimentos no setor agrícola, uma medida básica para evitar a escassez e reduzir os custos para a população, bem como para evitar a investida do bloqueio imperialista na ilha. Isto dá origem a uma situação inconcebível, já que os Estados Unidos são um dos principais exportadores de alimentos para Cuba, fornecendo 80% da carne bovina e do frango consumido na ilha. De fato, no decorrer de 2021, as exportações para a ilha aumentaram 60%[7].

Algo semelhante está acontecendo com os medicamentos, pois nos últimos meses tem havido uma escassez angustiante de medicamentos para tratar doenças crônicas como a doença de Parkinson, pressão alta, diabetes mellitus, asma brônquica e condições nervosas, assim como antibióticos e analgésicos. Segundo as autoridades sanitárias, isto se deveu a duas razões: primeiro, o sistema sanitário cubano se concentrou em garantir produtos do protocolo Covid-19 e o desenvolvimento de vacinas; segundo, as medidas de bloqueio foram intensificadas, tornando mais difícil a aquisição de medicamentos, matérias-primas, tecnologias, equipamentos médicos e reagentes. Estes argumentos são inquestionáveis, mas é necessário acrescentar mais um que se refere às decisões governamentais: durante 2020, o investimento em ciência e inovação tecnológica foi reduzido, o que foi setenta e duas vezes menor do que o orçado para a área de “serviços empresariais, bens imóveis e atividade de aluguel” (que inclui o investimento turístico), limitando as possibilidades financeiras para adquirir e produzir medicamentos [8].

É falso, portanto, afirmar que a falta de alimentos e medicamentos se deve apenas ao bloqueio; a política da burocracia castrista também desempenha um papel, e muito importante, combinando ajustes contra a população e investimentos nas áreas onde seus negócios estão localizados, que não prestam contas perante nenhuma instância e onde se especula que os burocratas ganham comissões suculentas pelos investimentos feitos.[9] Isto explica que, em meio a uma situação de crise causada pelo bloqueio imperialista e os efeitos da pandemia, o governo cubano priorizou os investimentos na infraestrutura de hotéis e complexos turísticos desocupados, em vez de concentrar seus esforços na garantia de alimentos e remédios para a população.

A configuração do orçamento do Estado em Cuba é um exemplo de planejamento a serviço da acumulação burocrática, que não tem nada de classe operária ou socialista (como algumas correntes trotskistas insistem em apontar contra todas as evidências). De fato, é muito semelhante ao que aconteceu em outros estados burocráticos como a URSS ou os países do Leste Europeu, onde persistiram enormes desequilíbrios no planejamento estatal, pois o estalinismo aumentou a produção econômica em detrimento do nível de vida da classe trabalhadora, priorizando exageradamente a indústria pesada (setor I) em detrimento da produção de bens de consumo e da agricultura (setor II), indispensável para elevar as condições de vida[10].

PARTE II

CRISE ECONÔMICA, PANDEMIA E EXPLOSÃO SOCIAL

Elementos conjunturais da crise e suas repercussões econômico-sociais

Na seção anterior detalhamos o impacto do bloqueio imperialista e do planejamento burocrático sobre a economia cubana. Além dessas causas estruturais, houve outras causas políticas, resultando em um agravamento da crise no último período.

Em primeiro lugar, há as medidas tomadas pela administração Trump para apertar o bloqueio (que a Biden mantém até hoje), que gerou perdas de 5,6 bilhões de dólares entre abril de 2019 e março de 2020, um aumento de 1.226 milhões de dólares em relação ao período anterior.

Além disso, a chegada de Bolsonaro ao poder no Brasil afetou os cofres do Estado cubano, pois implicou o fim dos contratos de envio de médicos para esse país desde o final de 2018, ao qual a Bolívia foi acrescentada após o golpe de Estado contra o governo de Evo Morales. Este não é um detalhe menor, pois a venda de serviços médicos é uma das principais fontes de recursos para o governo cubano e a principal fonte de divisas: somente em 2018 faturou 6,4 bilhões de dólares para este item, uma soma que excede em muito a renda relatada pelo turismo naquele mesmo ano.

A terceira causa é a recessão econômica que afeta a Venezuela, que, junto com a China, é o principal parceiro comercial da ilha. Como resultado, a cooperação econômica entre os dois países foi substancialmente reduzida, afetando a economia cubana em três áreas muito importantes: uma redução de 24% na exportação de serviços médicos profissionais, a perda de US$ 8 bilhões em investimentos estrangeiros e uma contração de 62% nos embarques de petróleo venezuelano (de 104.000 para 40.000 barris por dia), o que desencadeou “apagões” de eletricidade de até sete ou mais horas por dia, uma situação não vivida desde a crise dos anos 90[11].

Em meio a este cenário complicado, surgiu a pandemia da Covid-19 que, somada às restrições de viagens e remessas impostas por Trump, levou a uma paralisia do turismo internacional e a uma queda nas remessas. No que diz respeito ao setor turístico, em 2020, registrou perdas de 80% em comparação com 2017; no caso das remessas, elas sofreram uma queda de 35% em comparação com o ano anterior.

O acima exposto explica o desempenho sombrio da economia cubana sob, praticamente, qualquer ponto de vista. Por exemplo, o Produto Interno Bruto (PIB) experimentou uma estagnação de 2016 a 2018, sofreu uma leve contração de 0,2% em 2019 e, em 2020, sofreu uma queda chocante de 10,9%, a maior desde 1993 (o pior ano da crise do “Período Especial”). Da mesma forma, a produção industrial caiu para 61,3% em 2019, um declínio de 38,7% em relação ao nível de 1989; quanto ao comércio internacional, as exportações em 2019 caíram 62% em relação a 1989, enquanto as importações aumentaram 22%, resultando em um crescimento de 187% no déficit da balança comercial de mercadorias.

Da mesma forma, a inflação atingiu níveis muito altos nos últimos anos e, embora os números variem, os analistas estimam que esteja entre 270% e 470%, atrás apenas da venezuelana. Isto gerou uma depreciação abrupta dos salários, que em 2019 equivaliam a 64,3% do nível salarial em 1989 (uma queda no poder de compra de 36%); para este ano, a tendência não mudará, já que se prevê uma queda de 50% nos salários reais. O mesmo se aplica às pensões que, em 2019, eram metade do que eram em 1989. Por esta razão, embora o governo tenha recentemente decretado um aumento dos salários e pensões, esta medida não teve um impacto importante porque a inflação os depreciou em poucos instantes.

Finalmente, deve-se observar que, entre 2011 e 2019, a taxa de participação da mão-de-obra caiu de 76% para 65%. Embora Cuba tenha tido historicamente taxas de desemprego declarado muito baixas em todo o mundo (cerca de 1,3%), a situação muda quando se adiciona o desemprego oculto ou subemprego, que é de cerca de 29%, dando um total de 30% da força de trabalho em condições de desemprego visível e oculto, um número que reflete a precariedade da situação de trabalho na ilha.

O “plano anti-crise” da burocracia cubana

Apesar da crise econômica, do aperto do bloqueio e do surto da pandemia em 2020, a burocracia castrista não redirecionou o investimento estatal para conter a situação e aliviar as dificuldades do povo cubano. Pelo contrário, aumentou os investimentos na área de “serviços comerciais, imobiliários e atividades de aluguel” e persistiu em suas medidas para desregulamentar a economia.

Assim, entre janeiro e março de 2021, o governo destinou 50,3% de seus investimentos ao setor imobiliário, algo absurdo porque praticamente não há turismo na ilha devido à pandemia e os hotéis relatam taxas de desemprego muito altas; por outro lado, nesse mesmo período, investiu apenas 0,6% em inovação tecnológica, 2,6% na agricultura e 9,5% na indústria, deixando sem solução os problemas de abastecimento de alimentos e remédios que explicamos anteriormente [12].

Por outro lado, embora não haja dados oficiais disponíveis sobre os níveis de pobreza no país, não há dúvida de que eles aumentaram nos últimos anos como resultado da crise econômica. Apesar disso, o governo cortou o orçamento para assistência social para pessoas em condições de maior vulnerabilidade social, de 2,3% do PIB em 2005 para 0,4% em 2019 (assim como aumentou o investimento em infraestrutura turística); como resultado, a taxa de pessoas beneficiadas por esses programas caiu de 5,3 para 1,5 por 1.000 habitantes.

O governo apresentou um plano “anti-crise” em outubro de 2020, que se concentrou em uma “ordem monetária” para unificar as diferentes moedas que circulam na ilha (o peso cubano CUP, o peso conversível CUC e as moedas livremente conversíveis MLC). Esta medida teve como objetivo reduzir as importações e incentivar as exportações, e assim atrair a moeda internacional para a economia cubana. Mas ao unificar a moeda e as taxas de câmbio, provocou uma forte desvalorização do peso cubano em relação às moedas estrangeiras, o que aumentou significativamente o preço dos alimentos e desvalorizou ainda mais o poder de compra dos salários. Sabendo disso, o governo decretou um aumento salarial compensatório, mas devido à alta inflação não teve o menor impacto [13].

Além disso, para aumentar as exportações, assinou um acordo com mais de 100 empresas privadas cubanas que, embora canalizem suas exportações através de empresas públicas, como tal a medida fortalece a dinâmica de restauração, enfraquecendo o monopólio estatal sobre o comércio exterior.

Um dos aspectos mais regressivos do plano foi a eliminação do que, nas palavras da burocracia castrista, são “subsídios excessivos e gratificações indevidas”. Desta forma, os cortes no orçamento da assistência social (que detalhamos acima) foram verbalizados – e politicamente justificados. Isto cria um precedente muito perigoso, pois implica na abolição do princípio da universalidade dos subsídios sociais, sob o argumento de que devem recebê-los aqueles que realmente precisam deles, uma definição que se torna muito caprichosa nas mãos de uma burocracia ávida por ajustes orçamentários.

Finalmente, como parte do “ordenamento monetário”, o governo propôs promover incentivos salariais em empresas capazes de obter moeda estrangeira, uma medida que, a médio prazo, aprofundará as diferenças sociais de acordo com a empresa onde os trabalhadores trabalham, beneficiando os trabalhadores das empresas exportadoras que, pela natureza de sua função, terão maiores oportunidades de obter moeda estrangeira.

Todas estas medidas, além de corroer muitos dos ganhos materiais da revolução de 1959, representam um avanço programático-discursivo de soluções individuais e pró-mercado, em detrimento dos critérios de solidariedade, cooperação e gestão social diante da crise; uma abordagem que está de acordo com as tendências restauracionistas de setores da burocracia cubana.

Dinâmica e caráter da explosão de 11 de julho

Basta olhar para portais de opinião crítica e blogs cubanos para perceber que, dada a gravidade da situação econômica e social da ilha, havia muitos sinais que pressagiavam uma explosão como a que ocorreu em 11 de julho. Muitos jornalistas e intelectuais independentes vinham alertando sobre isso há meses, mas suas denúncias se depararam com a parede de indiferença tão característica da burocracia, além de serem rotulados como “mercenários” pelos defensores do regime castrista[14].

Como muitas vezes acontece neste tipo de situação, não há causa direta para o que aconteceu; é mais relevante identificar os principais gatilhos que detonaram essa crise.

Os protestos atuais representam um evento sem precedentes na ilha, pois não houve mobilizações em massa críticas ao governo castrista desde a revolução de 1959; o único precedente é o chamado “Maleconazo” em agosto de 1994, uma revolta que ocorreu em Havana em meio às dificuldades causadas pelo “Período Especial” após a queda da URSS, que foi contida pelo próprio Fidel Castro, que foi ao local para conversar com os manifestantes e convencê-los a voltar para casa.

Atualmente, as mobilizações ocorreram quando não há nenhum Castro no poder e a “velha guarda” revolucionária está praticamente fora do governo, deixando um punhado de burocratas sem o prestígio de um “passado revolucionário heroico” para conter a agitação social, um fator que provavelmente levará a um reforço da repressão policial e da perseguição judicial aos presos.

Além disso, as redes sociais desempenharam um papel central na divulgação das manifestações em toda a ilha. Desde 2018, é possível conectar-se à Internet através de telefones celulares em Cuba, o que estendeu a conectividade a cerca de 4,4 milhões de pessoas através de dispositivos móveis, uma medida que efetivamente quebrou o monopólio do governo sobre a informação. Isto explica o surgimento de muitos blogs e portais de opinião crítica em Cuba que, para além de suas diferenças, foram capazes de fornecer uma ampla gama de informações sobre a ilha.

De acordo com os relatórios que reunimos sobre os eventos, os protestos abrangeram seis das catorze províncias do país – Havana, Bayamo, Manzanillo, Camagüey, Santiago de Cuba e Holguín – o que mostra o caráter nacional da agitação social acumulada. O primeiro foco de protesto ocorreu na cidade de San Antonio de los Baños entre 9 e 11 da manhã, de onde se espalhou para outras partes do país durante a tarde. No caso de Havana, as marchas eram compostas principalmente por jovens e habitantes de bairros populares com grandes problemas sociais, assim como artistas, intelectuais e membros da comunidade LGBTIQ+[15].

As estimativas do número de pessoas variam de acordo com as fontes, o que é compreensível dada a dispersão dos protestos e os problemas de comunicação interna na ilha devido ao fechamento da internet e das redes sociais por parte do governo nos dias seguintes ao 11 de julho. No caso da marcha central em Havana, as estimativas variam entre três e cinco mil pessoas, um número pequeno em termos quantitativos, mas significativo em termos qualitativos dado o contexto repressivo do país, indicativo de uma crescente perda de legitimidade do governo cubano aos olhos de amplos setores da população.

De acordo com a crônica publicada no Blog Comunistas Cuba, no caso de Havana, os protestos inicialmente passaram com relativa calma (embora com detenções ocasionais), mas depois surgiram confrontos de manifestantes com a polícia e grupos pró-governamentais. Possivelmente isto foi influenciado pelas declarações do Presidente Díaz-Canel à tarde, quando apelou aos partidários do governo para enfrentar os protestos, para os quais apelou à linguagem militar que o castrismo tanto gosta: “Apelamos a todos os revolucionários do país, a todos os comunistas, para saírem às ruas e irem aos lugares onde estas provocações vão ocorrer (…) A ordem para lutar foi dada: os revolucionários às ruas“.

Este discurso exemplifica a narrativa maniqueísta da burocracia cubana, onde os conflitos reais no país são diluídos em um confronto entre revolucionários e mercenários pró-imperialistas. Mas os protestos de 11 de julho não foram organizados nem liderados por setores contrarrevolucionários na ilha, como atestam os relatos que começam a circular nos blogs e portais críticos cubanos; pelo contrário, tudo aponta para o fato de que sua motivação central era o verdadeiro mal-estar do povo cubano diante das terríveis condições econômicas que enfrenta diariamente: o aumento dos preços dos alimentos e dos transportes públicos, a falta de medicamentos para doenças crônicas e, muito importante, o precipício sanitário causado pela pandemia de Covid-19 com milhares de casos de contágio todos os dias.

Além disso, setores com queixas particulares contra o governo aderiram, em particular denunciando a repressão estatal em várias esferas da vida na ilha (cultural, intelectual ou contra o povo LGBTIQ+). Da mesma forma, é inegável que setores restauracionistas, pró-imperialistas com vínculos com os grupos de vermes em Miami, aproveitaram o surto para se juntar às marchas e instalar seus slogans reacionários, tais como “Pátria e Vida” ou demandas terríveis contra a “ditadura” desde uma postura liberal (ou seja, a mesma que Biden assume em nome do imperialismo).

Mas isto não deve dar lugar a uma abordagem sectária das mobilizações que, além de todas as confusões políticas que poderiam ser expressas, refletem o cansaço de setores da população em relação à gestão da burocracia cubana. Em resumo, os protestos atuais não podem ser circunscritos pela lógica binária de “revolucionários contra mercenários”, uma narrativa que a burocracia castrista usa para negar as motivações legítimas do povo que se manifesta em Cuba e para justificar a repressão. Também não devemos perder de vista o fato de que o imperialismo e seus agentes procuram canalizar os protestos de acordo com sua agenda, uma tarefa facilitada pelo governo cubano com suas medidas de ajuste e repressão policial, pois desmoraliza a população cubana – particularmente a juventude – que se identifica cada vez menos com uma revolução ocorrida há 62 anos e cujas conquistas têm sido gravemente corroídas.

NOTAS: 

[1]”¿Qué implica el Ordenamiento monetário en Cuba?”, en http://www.marxist.com/que-implica-el-ordenamiento-monetario-en-cuba.htm (Consultada em 16/07/2021).

[2] Entrevista: Samuel Farber y la crítica socialista de la realidade cubana, en http://izquierdaweb.com/entrevista-samuel-farber-y-la-critica-socialista-de-la-realidad-cubana/(Consultada em 17/07/2021).

[3]”Protestas en Cuba: cuánto afecta realmente a la isla el embargo de Estados Unidos”, en https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-57857337  (Consultado el 16/07/2021).

[4]Las consecuencias del bloqueo de EE.UU. contra Cuba, en https://www.telesurtv.net/news/cuba-consecuencias-bloqueo-estados-unidos–20181019-0043.html(Consultada em 17/07/2021).

[5] “Economía militar en Cuba”, en https://jovencuba.com/economia-militar/(Consultada em 15/07/2121).

[6] “¿Por qué estallaron las protestas en Cuba?”, en https://www.eldiplo.org/notas-web/por-que-estallaron-las-protestas-en-cuba/(Consultada em 16/07/2021)

[7] “Protestas en Cuba: cuánto afecta realmente a la isla el embargo de Estados Unidos”, en https://www.bbc.com/mundo/noticias-america-latina-57857337(Consultado el 16/07/2021).

[8] “Petición a las autoridades ante la crisis de medicamentos”, en https://www.comunistascuba.org/2021/07/peticion-las-autoridades-ante-la-crisis.html(Consultada em 15/07/2021).

[9] Al respecto, en Cuba hay casos sonados de corrupción vinculados al ejército, como fue la “Causa I” de 1989, cuando se descubrió una red de tráfico de diamantes y marfil que articularon un grupo de militares –incluido un general- en el marco de la guerra en Angola.

[10] Sobre el tema, remitimos a nuestra investigación Las “democracias populares” del Este europeo, disponible en http://izquierdaweb.com/las-democracias-populares-del-este-europeo/.

[11] “¿Por qué estallaron las protestas en Cuba?”, en https://www.eldiplo.org/notas-web/por-que-estallaron-las-protestas-en-cuba/(Consultada em 16/07/2021).

[12] “Protestas en Cuba: ¿por culpa del bloqueo estadounidense?”, en https://www.dw.com/es/protestas-en-cuba-por-culpa-del-bloqueo-estadounidense/a-58262398(Consultada em 15/07/2121).

[13] “¿Qué implica el Ordenamiento monetario en Cuba?”, en http://www.marxist.com/que-implica-el-ordenamiento-monetario-en-cuba.htm (Consultada em 16/07/2021). Los datos sobre el plan anti-crisis del gobierno los extrajimos de esta nota.

 [14] Referimo-nos a espaços de opinião como La Joven Cuba, Blog Comunistas Cuba, La Tizza, Tremenda Nota, entre outros.

[15] Para escrever esta seção contamos com duas fontes principais: “Acerca de las protestas en Cuba del 11 de julio”, em https://www.comunistascuba.org/2021/07/acerca-de-las-protestas-en-cuba-del-11.html(Consultado em 17/07/2021) e o podcast “Las protestas en Cuba: cómo las vivió la comunidad LGBTIQ+”, produzido por La Potajera (de Tremenda Nota) e disponível em Spotify. Não compartilhamos todas as avaliações políticas de ambos os meios de comunicação, mas elas fornecem uma valiosa reflexão direta dos protestos e expressam os pontos de vista do pensamento crítico dos jovens em Cuba (junto com outros meios de comunicação como La Joven Cuba ou La Tizza).

Original em http://izquierdaweb.com/que-pasa-en-cuba/

Tradução de José Roberto Silva