Neste texto, Jacqueline De Martini discorre sobre os temas que cercaram e cercam a existência de mulheres lésbicas e bissexuais. No decorrer da nota, são apresentadas as opressões sofridas por essas nos mais diversos casos e contextos. A heterossexualidade compulsória, a heteronormatização de relacionamentos lésbicos e a fetichização de mulheres que se relacionam com mulheres, são alguns dos exemplos de opressão citados que visam estabelecer um modelo único e heterossexual de vivência afetiva e sexual.
Jacqueline De Martini – Vermelhas
“O amor entre mulheres não é somente lindo, é revolucionário“
A frase acima é bonita, não? Ela é verdade, mas na grande parte do tempo, a vida de mulheres que amam mulheres não é rodeada por flores e outras coisas bonitas. Para entendermos o peso da frase, primeiro é preciso que deixemos de lado a enorme romantização existente sobre o que é uma revolução. Neste texto, aos que não vivenciam esse árduo processo revolucionário, esperamos conseguir explicitar um pouco da nossa caminhada.
Relacionamentos sáficos (esperem! Esperem! Já já contamos a origem desse belo termo) já se fazem presentes em nossa sociedade bem antes do que os moralistas vêm nos pregar com seus discursos sobre depravação moral dos dias atuais e suas outras bobajadas dogmáticas. Um ótimo exemplo (porém não o mais antigo) é a própria origem do termo “Sáfico”.
A história de Safo
Nascida em Lesbos (opa! Olha aí mais uma referência), uma ilha grega no mar Egeu, em meados do ano 612 E.C., Safo é considerada a maior poetisa lírica da Antiguidade. Muitos ainda quiseram chamá-la de musa, mas nós não achamos correto chamá-la assim. Era só uma mulher alcançar o reconhecimento, que os gregos já queriam enfiá-la goela abaixo o título de musa. Curioso que nunca vimos Homero, Hesíodo, Eurípides, nenhunzinho desses poetas gregos, sendo chamados de “musos das letras gregas”.
Mas continuando, para ela, todo o amor e desejo de suas canções líricas eram direcionados a pessoas diversas. Algumas podemos identificar já nos trechos, outras nos serão eternamente desconhecidas.
Vocês repararam que dissemos “pessoas”? Sim! Safo colecionava paixões com mulheres e também com homens, mas o termo acabou se generalizando dentro da comunidade lésbica.
Safo ficou tão conhecida pelas lésbicas que ganhou até uma homenagem em nosso Kama Sutra! A posição Ode à Safo consiste em uma das parceiras estar deitada de costas sobre um apoio, repousando as pernas sobre a cabeça da outra companheira, que fica com acesso completo à sua região da vulva.
Mas era óbvio que em dado momento, os grandes sentimentos de Safo indignariam alguém, claramente não os gregos, que já estavam acostumados com relações homoafetivas, essas estando presentes até mesmo em sua mitologia! (A propósito, uma bela — porém trágica, como de costume aos gregos — história é a do deus Zéfiro com ciuminhos do mortal Jacinto se engraçando com Apolo. Pobre Jacinto… Morreu com um frisbee testa).
Apesar da notoriedade das obras de Safo, o alto teor de erotismo presente nelas provocou na Era Medieval a censura de sua poética, o que infelizmente resultou na perda de grande parte dos seus textos, que foram queimados pela Igreja Católica.
Repressões aos relacionamentos lésbicos pela Igreja Católica Medieval
Como vocês puderam ler, acima está uma brevíssima pincelada acerca da história de Safo, mostrando que na Grécia Antiga já haviam relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo.
Não somente na região, há relatos dessas mulheres em diversas partes do mundo Antigo. Até mesmo durante a Idade Média foram criadas punições para mulheres que se relacionavam umas com as outras.
A chamada “sodomia” era visada pelo Tribunal do Santo Ofício (ou “Inquisição” para os que não gostam de aliviar a barra da Igreja Católica), e o período de maior perseguição foi durante o reinado de Dom Fernando e Dona Isabel, casal que uniu os reinos ibéricos de Aragão e Castela no final do século XV. A homossexualidade, durante o reinado dos Reis Católicos, era vista como um crime de lesa-majestade (que feria diretamente a pessoa do rei, olhem só quanta fragilidade), além de ser considerada contrária à natureza. A punição para o chamado “pecado nefando” era a fogueira.
O tratado legal em francês antigo Li Livres de Jostice et de Plet (datado de 1260 E.C) é a mais antiga referência à punição para a lesbianidade, semelhante à homossexualidade masculina. Ele previa o desmembramento e também, como citado anteriormente, a fogueira.
Na Espanha, Itália, e Sacro Império Romano-Germânico, as relações homoafetiva entre mulheres foram incluídas em atos considerados como não-naturais e puníveis pela queima até a morte. No Sacro Império governado por Carlos V, uma lei sobre crimes sexuais proibia especificamente atos sexuais entre mulheres.
Um dos primeiros exemplos de uma mulher executada por atos lésbicos ocorreu em 1477, quando uma mulher em Espira, na Alemanha, foi afogada. Um exemplo mais tarde, em Pescia na Itália, envolveu uma abadessa, Benedetta Carlini, que foi documentada em inquéritos entre 1619 e 1623 como tendo cometido crimes graves, incluindo um caso de paixão erótica com outra freira quando possuída por um espírito masculino chamado “Splenditello”. Ela foi declarada vítima de uma “obsessão diabólica”, e colocada na prisão do convento durante os últimos 35 anos de sua vida.
Ai, ai… Essas igrejas com mania de justificar seus atos sempre botando a culpa no Diabo… Mas claro, se seus líderes da época somente dissessem “eu não gosto, então não façam” todo mundo tiraria uma com a cara daqueles velhinhos carecas, em seus vestidos coloridos e crucifixos no peito.
Falando no Diabo, podemos encontrar menções de repúdio às relações homoafetivas femininas até mesmo na Bíblia tal como é hoje! Em Romanos 1:26-27, Paulo de Tarso — conhecido por ser o mais patriarcal e controverso seguidor daquele carinha lá, um tal de Jesus de Nazaré, que nunca sequer escreveu uma linha desse livro tão adorado pelos cristãos (ou deveríamos chamá-los de “paulinistas”?) — escreve: “Por causa disso os entregou Deus a paixões infames, porque até as suas mulheres mudaram o modo natural de suas relações íntimas, por outro contrário à natureza; semelhantemente, os homens também, deixando o contato natural da mulher, se inflamaram mutuamente em sua sensualidade, cometendo torpeza, homens com homens, e recebendo em si mesmos a merecida punição do seu erro”. Mas acreditamos que esse “asco bíblico”, principalmente vindo de Paulo de Tarso — que em outras de suas famosas cartas aos romanos, legitima a submissão feminina, entre outras atrocidades que não nos cabe citar aqui — não é novidade para ninguém.
Agora que expomos algumas das brutalidades cometidas contra mulheres que se relacionavam com mulheres em um passado aparentemente distante, vamos falar sobre elas em num contexto mais atual.
A primeira de nossas atuais opressões: A heterossexualidade compulsória
Com toda a certeza, todas vocês, leitoras lésbicas e bissexuais, e até mesmo héteros, passaram por no mínimo um dos fatores do processo de heterossexualidade compulsória. Mas o que é esse processo?
A heterossexualidade compulsória é a influência que uma sociedade patriarcal exerce, mais especificamente sobre as mulheres, para que essas, desde suas infâncias, se entendam enquanto heterossexuais e sigam os padrões de heteronormatividade.
Quantas de nós não éramos vidradas nos filmes da Barbie quando mais jovens? Sonhando com o dia em que usaríamos aqueles belos vestidos para bailar com nosso príncipe?
E os contos de fadas? Em sua maioria, sempre nos induzindo a acreditar que um homem nos salvaria de todos os males dessa vida e nos faria feliz — mas a nível de curiosidade somente, propomos aos que não saibam da verdadeira raiz dos contos de fadas, que a busquem! Vocês se surpreenderiam ao saber como o tio Walt Disney maquiou muito bem a origem deles.
E a brincadeira de casinha? Onde encenávamos o que era ser uma “boa mãe” e uma “boa esposa”? Até mesmo nossos pais, comentando o quanto sua bela filhinha de cinco anos iria formar um casal lindo com o filho de seus amigos, faz parte do processo de heterossexualidade compulsória.
Quantos adornos não nos foram enfiados para que exalássemos nossa feminilidade até mesmo enquanto crianças? Algumas de nós estão presas nesse ciclo até hoje! Se vêem forçadas a reproduzir o padrão “agrada-macho” por medo de nunca encontrarem seu príncipe encantado.
Toda essa influência, resulta em uma mulher adulta que nunca teve contato com nada que não fosse heteronormativo. Desde cedo ela foi coagida a acreditar que o único futuro possível, era o de mulheres que amam homens e que se portam da maneira que os agrada.
Isso sem falar das que tiveram uma criação religiosa. Que além de todas essas influências midiáticas e parentais, ainda passaram anos reprimindo seus sentimentos por medo de um Diabo de chifre e rabo, que passaria toda a eternidade correndo atrás delas com um tridente pelas chamas ardentes do inferno, simplesmente por elas terem chupado uma buceta. Na moral? Esses crentes inventam cada coisa, né?
De uma forma ou de outra, todas nós já fomos coagidas a acreditar que nosso amor romântico e erótico deve ser puramente direcionado ao sexo oposto, quando rompemos com essa doutrinação, sofremos por parte de terceiros inúmeras tentativas de nos fazer “voltar” ao estado de heterossexualidade.
Vocês já ouviram falar em “estupro corretivo”?
O estupro corretivo se dá quando um homem, na tentativa de provar para uma lésbica que ela pode sim gostar da anatomia masculina, coage e força essa a ter relações sexuais com ele. E as constantes ocorrências dessas atrocidades dentro da própria família das vítimas é amargurante.
Agora vocês são capazes de entender o porquê da frase “ah mas como você sabe que é lésbica se nunca ficou com um homem?” na — gigante — maioria das vezes proferida por homens que querem ficar com a lésbica em questão, não ser tão inocente quanto parece?
A heteronormatividade imposta aos relacionamentos lésbicos
“Qual de vocês é a ativa?”
É impossível descrever o ódio que sentimos toda vez que temos que ouvir essa frase, que quase sempre é seguida por uma outra também muito conhecida por nós, a “ah, mas vocês não sentem falta de alguma coisa no sexo lésbico?”.
Inclusive, adivinhem a qual sexo pertencem os indivíduos que nos bombardeiam com essas perguntas. Sim, aquele mesmo em que muitos de seus indivíduos mimadinhos não suporta a realidade de que existem mulheres que não querem transar com eles.
Achamos que também é do consenso de todas, que pelo menos uma vez na vida, ouvimos da boca de homens que as relações sexuais lésbicas não são relações sexuais de verdade, pois adivinhem? Adivinhem? Para eles é impossível que uma relação sexual exista se não tiver um pau no meio. Ah! Vamos aproveitar o momento para fazer um adendo aqui: caro leitor do sexo masculino, se você é do tipo que profere algum comentário daquele tipo, sentimos muito — na verdade, não sentimos não — em lhe informar, mas você transa muito mal.
São pouquíssimas as mulheres (18,4%) que alcançam seus orgasmos somente com a penetração, então não, meu caro, não nos faz diferença alguma a ausência de um pênis.
E respondendo à pergunta do começo deste subtema: não, nós não somos divididas entre “ativas” e “passivas”, porque não desempenhamos os papéis que vocês julgam como “o da mulher” e “o do homem” em nossas relações sexuais. Nunca mais ouse nos dirigir aquela pergunta.
E a indústria pornográfica?
Como também não poderíamos deixar de apontar as problemáticas da pornografia, falaremos dela agora. Vamos ver se vocês acertam a posição de procura por “lesbian” no ranking de pesquisas de 2019 do Pornhub? Se vocês chutaram “3º lugar”, parabéns, vocês acertaram.
E no Brasil? Será que vocês conseguem adivinhar? Isso mesmo, 1º lugar. Inclusive, é válido lembrar que até 2015, se você pesquisasse por “Lésbicas” na ferramenta de procura do Google, as sugestões de sites seriam todos pornográficos (tirando a Wikipédia).
Bem sabemos nós, que todos os conteúdos produzidos hoje pela indústria pornográfica são para o agrado de homens (não, nós não caímos no conto do “pornô feminista”). Um exemplo que inclusive se usa para justificar a prática de estupros corretivos, e reforçar aquela frase lá, aquela mesma, a de que “falta alguma coisa no sexo lésbico”, é o recorrente uso de dildos e vibradores em formatos penianos nas cenas desses filmes. Porque claro, a indústria pornográfica, feita por homens e para homens, faz o possível para que fique bem enraizado que absolutamente tudo gira em torno de uma piroca.
E ainda pegando o gancho sobre pesquisas no Pornhub, vamos falar também sobre a busca por conteúdo envolvendo mulheres bissexuais. Como dissemos acima, a maioria dos homens rejeita a possibilidade de não estar no meio de uma relação entre mulheres, pois seria uma ofensa muito grande à sua masculinidade.
O tema “threesome” — termo norte-americano para “ménage” — ficou em 13º lugar no ranking. À primeira vista pode parecer que a pauta não é tão problemática assim, dada a posição do termo no ranking de pesquisas, mas lembrem, só no ano de 2019 foram 42 bilhões de visitas no site.
Isso nos mostra a tamanha fetichização exercida também sobre mulheres bissexuias, mas elas têm plena consciência disso. Apostamos 50 reais e um litro de cerveja que não tem uma mulher bissexual aqui com mais de 25 anos (e muitas mais novas) que nunca recebeu uma proposta para participar de um ménage.
Por favor não nos interprete mal, com certeza nossa intenção aqui não é fiscalizar as transas alheias, mas atentamos para o fato de que a grande maioria dessas propostas é mais para o agrado do integrante masculino do casal do que para a própria mulher bissexual.
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O casamento para pessoas do mesmo sexo
Apesar da origem conturbada da instituição, o casamento segue sendo da vontade de muitos casais lésbicos. Mas essa conquista só foi alcançado há poucos anos.
Em maio de 2011, o STF mudou o entendimento do Código Civil de que a família era formada apenas por um homem e uma mulher. A partir daí, as uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo passaram a ser permitidas.
A partir do entendimento de que as normas deveriam ser as mesmas, casais homoafetivos passaram a pedir também a conversão da união estável em casamento, como prevê o documento.
Com a resistência dos cartórios em reconhecer esse direito e até mesmo o que foi explicitamente garantido pelo STF, o CNJ aprovou, em 2013, uma resolução determinando que todos realizassem, além do reconhecimento da união estável, o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo.
Em 2017, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado aprovou, em turno suplementar, projeto de lei que altera o Código Civil para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo e possibilitar a conversão dessa união em casamento.
Mas o que é a união estável e qual era diferença entre ela e o casamento?
A união estável não precisa de um documento para existir, ela é a relação entre duas pessoas que se caracteriza como uma convivência contínua e duradoura, que tem o objetivo de constituir família. Pode, contudo, ser registrada no cartório, com definição do regime de bens.
O casamento, por sua vez, só existe se for registrado. Outro ponto é que só há alteração de estado civil com o casamento.
Mesmo a diferença sendo puramente simbólica, mais ligada ao valor que a sociedade dá ao casamento, a burocracia para alcançar o direito à união estável e, futuramente, o casamento, só nos reforça o quanto ainda somos um país que bebe — muito — na fonte do moralismo religioso.
Para finalizarmos
Já é chegada a hora de nos despedirmos, mas não fiquem tristes! Logo menos voltaremos com mais uma nota novinha!
Esperamos que esse texto tenha representado parte da indignação e sofrimento de todas nós mulheres lésbicas / bissexuais. Nossa batalha não se restringe somente às poucas situações aqui descritas, ela é diária nas mais diversas possibilidades.
Somos violentadas todos os dias pelo machismo e pela lesbo/bifobia, e mesmo assim resistimos, mesmo assim continuamos de pé! Não calarão nossas vozes e tão pouco nossa luta. Fomos, somos e seremos resistência até o fim!