Morte de criança negra aprofunda debate sobre seletividade e luta antirracista

    JUSTIÇA POR MIGUEL OTÁVIO

    As medidas de retorno gradual para a retomada da economia, além de prematuras, ignoram as trabalhadoras mães, que estão sendo exigidas a para volta ao trabalho mesmo com escolas e creches fechadas, e sem auxílio econômico para deixar os filhos com um cuidador. Estados como o do Pernambuco incluíram o trabalho doméstico na lista de serviços essenciais e tem levado muitas mulheres a terem que improvisar com os próprios filhos para não ficarem desempregadas. Essa foi uma das razões que possibilitaram a morte de uma criança no trabalho da mãe em Tamandaré (PE).

    EUGÊNIA ANDRADE* – Vermelhas

    Miguel Otávio Santana da Silva, uma criança de apenas cinco anos, morreu após uma queda no Píer Maurício de Nassau, um edifício de luxo em Recife. O pequeno Miguel era filho de Mirtes Renata Souza, empregada doméstica, que trabalhava em meio à quarentena na casa do prefeito da cidade de Tamandaré no litoral sul do estado, Sergio Hacker Corte Real (PSB). A criança estava no trabalho porque mãe não tinha com quem deixá-lo em casa.

    Está sendo averiguado se morte foi provocada por uma queda de 35 metros foi resultado da negligência e da desumanização racista da patroa de Mirtes. Sarí Gaspar Corte Real, a primeira-dama de Tamandaré, que não somente permitiu como auxiliou que a criança fosse sozinha a procura da mãe que havia saído para levar o cachorro da família para passear.

    A morte gerou revolta e vem repercutindo em decorrência do racismo estrutural somado à pandemia discriminatória, que faz com que muitas mulheres mães em nosso país, ao não terem amparo institucional, estão saindo de casa para trabalhar levando consigo filhos pequenos em meio ao surto provocado pelo COVID-19.

    Ao serem impedidas de seguir as orientações de isolamento social, agrava-se a situação, principalmente, das mulheres negras como Mirtes, as mais fragilizadas nas relações de trabalho. Em sua maioria relegada ao trabalho doméstico subvalorizado, produto da nossa famigerada herança escravocrata ainda tão presente de norte a sul do país.

    A primeira-dama, Sarí Gaspar Corte Real, foi detida em flagrante por homicídio culposo, ou seja, sem intenção de matar, e mediante pagamento de fiança de R$20 mil, ficou poucas horas na delegacia e foi liberada. Além do pouco caso com a dor de mais uma mãe negra, o que mais causa revolta é a naturalização do racismo que as próprias repartições e instituições públicas reproduzem.

    Imagens do momento exato em que Sarí Gaspar Corte Real aperta botão do elevador com a criança dentro. Versão diferente da que patroa contou a mãe.

    Corte Real teve sua identidade muito bem preservada pela polícia civil, o delegado responsável pelo caso, Ramon Teixeira, informou à imprensa que o motivo para não expor publicamente o nome da empregadora seria pelo cumprimento à Lei de Abuso de Autoridade.

    No entanto a mãe da criança, disse em reportagem – talvez, a fala que mais evidencia a sociedade racista e seletiva em que vivemos: “Fosse o contrário, não teria direito a fiança” e “se fosse eu, meu rosto estaria estampado, como já vi vários casos na televisão. Meu nome estaria estampado e meu rosto estaria em todas as mídias. Mas o dela não pode estar na mídia, não pode ser divulgado”, em entrevista à TV Globo. Somente a justiça e a reparação dos danos emocionais a essa mãe podem fazê-la superar a imagem de ver seu filho caído no chão já sem vida. 

    Logo após evidente parcialidade da polícia, a revolta diante do caso se intensificou nacionalmente nas mídias sociais que usam as hashtags #justiçaparaMiguel e #justiçaporMiguel. O crime ocorre em meio aos protestos ao redor do mundo por conta da morte de George Floyd nos EUA, homem negro assassinado por um policial branco, no último dia 25/05, uma luta de combate antirracista e antifascista contra o racismo estrutural posto em prática através da violência policial causada contra negros.

    O prefeito de Tamandaré Sergio Hacker Corte Real e a sua assessoria fingem que nada aconteceu e não se pronunciaram até o momento. Mesmo estando evidente a culpabilidade da primeira-dama no acontecimento e tendo ocorrido em propriedade da família na capital pernambucana. Pelas imagens das câmeras do edifício é possível ver a primeira-dama, em um gesto consciente, apertando aleatoriamente os botões e deixando a criança entrar sozinha no elevador.

    Uma verdadeira combinação, de racismo, coisificação e preconceito de classe. Primeiro ao Sarí Gaspar, abandonar o filho da empregada, uma criança negra a própria sorte em um edifício desacompanhado, e segundo, pelo tráfico de influência que a fez sair ilesa pagando apenas fiança e tendo a garantia da preservação de sua identidade e imagem, tanto pela polícia, quanto pela imprensa.

    Toda uma sequência vergonhosa de eventos que somente foi possível graças ao privilégio branco e de classe que não pode ser deixado impune, crimes de racismo são inaceitáveis, vitimando uma criança e marcando para sempre a vida de uma mãe preta, pela impunidade.

    Por isso nos solidarizamos imensamente com a dor de Mirtes e nos somamos à revolta e denúncia desse crime. Somente sendo feita a justiça efetiva a casos como este, poderemos considerar uma sinalização positiva do Estado contra o racismo. Pois enquanto mães negras choram sem seus filhos nos braços, o racismo estrutural e a desumanização de vidas negras seguem sendo rotina. Vidas negras importam!

    Justiça por Miguel Otávio!

    *Eugênia Andrade é advogada militante dos Direitos Humanos e constrói as Vermelhas no Pernambuco

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