“O socialismo, certamente, não é uma doutrina indo-americana. Mas nenhuma doutrina, nenhum sistema contemporâneo é, nem pode ser. E o socialismo, mesmo que tenha nascido na Europa, como o capitalismo, não é específico nem particularmente europeu. É um movimento mundial, ao qual nenhum dos países que se movem dentro da órbita da civilização ocidental pode escapar. Esta civilização conduz, com uma força e meios que nenhuma outra civilização jamais teve, à universalidade. A Indo-América, nesta ordem mundial, pode e deve ter individualidade e estilo; mas não uma cultura particular ou um destino particular… Certamente não queremos que o socialismo na América seja um decalque e cópia. Deve ser uma criação heróica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, em nossa própria língua, ao socialismo indo-americano”.

Mariátegui no texto “Aniversário e Equilíbrio” (1928)

FEDERICO DERTAUBE

Infelizmente, há relativamente poucos estudos sobre as obras de Mariátegui dentro do marxismo. O que abunda são os “estudos” sobre sua “atualidade” entre os “socialistas” e “marxistas latino-americanos” que procuram usar o peruano contra ele mesmo. Não há uma única aspas de reserva na frase anterior. Para muitos daqueles que durante anos reivindicaram para si mesmos a “reivindicação” de Mariátegui, dedicaram-se a mutilar seu pensamento.

Estamos falando fundamentalmente dos teóricos que se referenciam no chavismo, alheios ao marxismo e à tradição da qual faz parte o socialismo peruano. Tanto eles como suas forças políticas se cobriram com o manto de autoridade de alguns teóricos importantes para se apresentarem como o marxismo “latino-americano” em oposição ao marxismo “eurocêntrico” e “dogmático”. Para eles, as posições que reivindicam a independência de classe da classe trabalhadora para a política “nuestramericana” nada mais seriam do que anacronismos típicos daqueles que querem “copiar e imitar” o “modelo” das revoluções europeias. E aí estariam Mariátegui, Mella e Gramsci para demonstrar que algo superador, não dogmático, é possível. Não podemos deixar de nos perguntar se eles já leram esses autores fora das frases soltas que eles gostam de citar e usar para cartazes universitários.

O debate é longo. Esses “teóricos” que criticamos há anos apresentam como “marxismo” sua própria versão mutilada do mesmo, depois mutilaram a autores como Mariátegui para os oporem ao marxismo assim apresentado por eles, endossaram a eles suas próprias posições e assim chegaram ao resultado que esboçamos aqui em algumas linhas. Esta operação ideológica se assemelha àquela proposta pelo astrólogo em “Los 7 locos” de Roberto Arlt: “Não sei se nossa sociedade será bolchevique ou fascista. Às vezes estou inclinado a acreditar que a melhor coisa a fazer é preparar uma salada russa que nem mesmo Deus pode entender”. Onde diz “fascista”, coloquemos “nacionalista pequeno-burguês” e a proposta fictícia terá se tornado realidade. Nossa intenção é fazer um breve esboço crítico do pensamento de Mariátegui, opondo-o a esta imagem distorcida. E para ilustrar o debate, vamos polemizar com dois artigos. A primeira é “Vigência de José Carlos Mariátegui”, de Miguel Mazzeo. O segundo intitula-se “85 anos de criação heroica”, que apareceu na página da Internet “Notas”.

Seu lugar na história

A primeira coisa a dizer é que o que é interessante sobre Mariátegui é que ele era um marxista que efetivamente pensava com sua própria cabeça e que era um ponto de referência importante para a geração sul-americana de revolucionários dos anos 1920. Naqueles anos, o subcontinente havia sido marcado por um importante surto de lutas como a Revolução Mexicana e a Reforma Universitária. Estes eventos abalaram uma importante vanguarda nascida naqueles anos e foram a base para seu surgimento.

Mas o que mais balançou a cabeça e marcou os desenvolvimentos ideológicos de seus teóricos, que procuraram construir organizações revolucionárias para a emancipação das massas latino-americanas, foi um evento que não foi especificamente latino-americano: a Revolução Russa.

Este foi para Mariátegui o foco que iluminou sua concepção do mundo. A verdadeira história é que ele não era nem um teórico “camponês” inspirado nas façanhas de Pancho Villa nem um líder universitário cujo ponto de referência era o “Manifesto Liminar”. Suas elaborações políticas e teóricas visavam um objetivo muito preciso: construir na “Indoamérica” a Terceira Internacional fundada pelos bolcheviques. Sua revista Amauta foi uma ferramenta construída nessa direção, como um andaime para o Partido Socialista Peruano que fundou em 1928. Nas próprias palavras de Mariátegui (em seu livro “Defesa do Marxismo”):

“A revolução russa constitui, quer os reformistas a aceitem ou não, o evento dominante do socialismo contemporâneo. É neste evento, cujo escopo histórico ainda não pode ser medido, que devemos procurar a nova etapa marxista”.

O que queremos enfatizar é que um autor e dirigente que fez um esforço real e sério para compreender a realidade de nossa região não o fez do ponto de vista de uma dinâmica puramente regional, mas sim mais profunda e global, um corte histórico de magnitude universal do qual os bolcheviques foram protagonistas e uma referência mundial.

É por isso que afirmações como a de Mazzeo que Mariátegui teria criticado “a primazia eurocêntrica e bolchevique do marxismo” estão completamente deslocadas. Vamos pedir à Mazzeo que nos mostre uma única citação para apoiar tal asserção. Nunca conseguiremos uma resposta. Vamos anotar um detalhe. Para este teórico, “primazia eurocêntrica” é sinônimo de “primazia bolchevique”. O início da citação no topo deste artigo parece destinado a refutar um tal imbróglio com oito décadas de antecedência.

Um “universalista” entendendo a América Latina

A confusão reside no fato de que Mariátegui tentou fazer seu próprio estudo documentado da realidade latino-americana. Seu “Sete Ensaios sobre a Interpretação da Realidade Peruana” é talvez o melhor e mais conhecido de seus trabalhos sobre o assunto. Isto não se opõe de forma alguma ao marxismo. O artigo em “Notas” diz que Mariátegui teria abandonado “as noções mais ortodoxas para se colocar como parte de uma corrente de renovação que se espalhou tanto na América Latina quanto na Europa; esses jovens fizeram parte de toda uma tendência internacional que discutiu com as posições hegemônicas para configurar um marxismo novo, baseado na filosofia da práxis e no distanciamento das noções do determinismo econômico”.

Muito ao contrário da conversa barata sobre “um marxismo novo”, seus escritos fazem parte da bagagem teórica muito ampla do primeiro período pós-guerra e dos primeiros anos da Terceira Internacional pré-Stalinista. Isto apesar de estar em uma situação contraditória, já que Mariátegui não fazia parte da histórica luta de Trotsky contra a burocratização da URSS e da Internacional, mas não se adaptou ao desastre ideológico e político que o estalinismo representou. A consumação definitiva da degeneração da Terceira Internacional ocorreu naqueles anos e o socialista peruano não chegou a compreender seu alcance.

Como não poderia ser de outra forma, o ponto de partida dos “Sete Ensaios” é o estudo do desenvolvimento e da história econômica do Peru. Este documento é de grande interesse, embora tenha duas definições que, em nossa opinião, estão equivocadas: define o Império Inca como “socialismo” primitivo e a colonização como “feudal”. Mas este erro é quase puramente de categorias. Sua análise da estrutura da economia e da sociedade peruana é muito rica e tem algum alcance regional. Ele diz, sobre o processo de independência:

“O impulso natural das forças produtivas das colônias foi o de romper este vínculo. A economia nascente das formações nacionais embrionárias da América precisava, imperativamente, para alcançar seu desenvolvimento, desprender-se da rígida autoridade e emancipar-se da mentalidade medieval do rei da Espanha… Focalizada no plano da história mundial, a independência sul-americana foi determinada pelas necessidades do desenvolvimento da civilização ocidental, ou melhor dito, capitalista”.

Longe da retórica “latino-americana” em voga, Mariátegui analisa a história local com base nos acontecimentos globais, “Focada no plano da história mundial”. Alguns considerarão isto como “eurocêntrico”, nós o chamaremos de realista.

Com tudo isso, queremos mostrar que é completamente falso que Mariátegui tenha pretendido construir um “marxismo latino-americano” diferente do europeu, com uma matriz teórica divergente ou oposta. Porque, embora seja fundamental conhecer e fazer parte da política revolucionária, da história e das formações sociais de cada país, o ponto de partida do marxismo é o capitalismo como um todo. Cada país e região individualmente tem sua própria história, tradições, etc. Mas a sociedade burguesa moderna se caracteriza pelo fato de forçar todas as regiões do globo a uma realidade maior: o mercado mundial. As populações nativas e as antigas formações sociais são destruídas ou integradas de uma forma ou de outra em uma cadeia de dependência mútua de todas as nações.

Sua forma final é a cristalização da divisão internacional do trabalho. As populações nativas são integradas nas modernas relações de produção, vale dizer, assalariadas, ou suas antigas relações sociais ao mercado. Este é o caso dos remanescentes das unidades de produção social indígena que Mariátegui analisa. Em última análise, os destinos de todos os países estão ligados entre si. E o antagonismo entre a classe trabalhadora e a burguesia é cada vez mais um antagonismo mundial. É por isso que não pode haver um marxismo europeu, um marxismo americano, um marxismo asiático, e assim por diante. Isto não significa que não haja desigualdades entre países e regiões, mas que cada “desigualdade” está ligada a uma realidade maior.

É assim que Mariátegui aborda as coisas. Profundamente interessado no problema indígena, ele afirma a realidade de que a esmagadora maioria da população peruana é “indígena” e está ocupada pelo “gamonalismo”, produção agrária latifundiária. Entretanto, ele não hesita em definir o modo de produção dominante como definitivamente capitalista. Naqueles anos, a produção agrícola havia deixado de ser a principal fonte de exportação e havia dado lugar à mineração. A própria produção capitalista moderna era centralmente urbana e costeira, ocupando uma porcentagem minoritária da população. Entretanto, mostra que existe uma relação de subordinação do campo à cidade. A produção do “índio” depende do consumo urbano e, portanto, de sua economia de exportação. Assim, as relações sociais rurais pré-capitalistas, incluindo os remanescentes da sociedade inca e das comunidades indígenas, são parte integrante do desenvolvimento da sociedade burguesa moderna com seus antagonismos de classe. A consequência natural desta visão é a estratégia defendida por Mariátegui e a mecânica de classe da revolução na América Latina.

Mariátegui e a classe trabalhadora

O fato indiscutível de que o marxista peruano analisou e assumiu o estandarte da emancipação “índia” faz com que alguns autores ofusquem e expressem sua incompreensão de formas indecorosas. De acordo com Mazzeo, “De certa forma, Mariátegui ‘antecipa’ o tema da dominação étnica, a noção de um sujeito plural revolucionário, entre outros. Ele não diz mais nada, mas não é difícil entender o que nosso autor quer dizer com “sujeito plural revolucionário”.

O artigo na página “Notas” é ainda mais claro: “Marginalizado desde o início pela ortodoxia soviética que consagrou absolutamente o proletariado industrial como a vanguarda do processo revolucionário, Mariátegui sofreu o mesmo destino que seu homólogo italiano e foi rapidamente excomungado da igreja estalinista. Para o escritor peruano, postulados como estes não tinham base em um país que, na época, mal tinha um punhado de trabalhadores submersos em um mar de camponeses e povos indígenas que constituíam a esmagadora maioria do universo popular”. Estas linhas podem ser marcadas por profunda ignorância ou deturpação maliciosa. Não duvidamos da honestidade do autor, por isso iremos para a primeira opção.

Para nossos autores, o “povo” é indivisível e a classe trabalhadora seria o “sujeito revolucionário”, na medida em que sua porcentagem da população oprimida está acima de 50%. Aparentemente, é assim que eles pensam que as coisas seriam para os marxistas. Mas não é. O proletariado, devido a seu lugar na produção capitalista, está socialmente em posição de questionar a grande propriedade e o modo moderno de produção. A grande produção, o transporte, as comunicações podem estar nas mãos de duas classes sociais: ou da burguesia ou do proletariado. As outras classes, devido ao seu lugar intermediário nesta disputa central na sociedade contemporânea, podem ser lideradas por uma ou outra das classes fundamentais. A classe trabalhadora não é para os marxistas um “sujeito revolucionário” único, mas um sujeito central, o líder de todos os oprimidos, a classe que pode colocar os ganhos do capitalismo à disposição da sociedade como um todo e assim construir uma sociedade historicamente superadora.

Mas vejamos o que Mariátegui mesmo opinava. No programa do Partido Socialista Peruano de 1928, escrito por ele, podemos ler:

“A emancipação da economia do país só é possível através da ação das massas proletárias, em solidariedade com a luta mundial anti-imperialista….

“… Mas isto, assim como o estímulo dado ao livre renascimento dos povos indígenas, à manifestação criativa de suas forças e espírito nativos, de forma alguma significa uma tendência romântica e anti-histórica de construir ou ressuscitar o socialismo inca, que correspondia a condições históricas completamente superadas e das quais somente restam, como fator utilizável dentro de uma técnica de produção perfeitamente científica, os hábitos de cooperação e socialismo dos camponeses indígenas. O socialismo pressupõe a técnica, a ciência, a etapa capitalista, e não pode significar o menor retrocesso na aquisição das conquistas da civilização moderna, mas, ao contrário, a aceleração máxima e metódica da incorporação dessas conquistas na vida nacional…..

“…. Cumprida sua etapa democrático-burguesa, a revolução torna-se, em seus objetivos e doutrina, revolução proletária. O partido do proletariado, fortalecido pela luta para o exercício do poder e pelo desenvolvimento de seu próprio programa, realiza nesta fase as tarefas de organização e defesa da ordem socialista”.

É possível ser mais categoricamente claro? No programa escrito por ele para o Partido que fundou, Mariátegui afirma que a revolução socialista e a revolução proletária são sinônimos.

Por outro lado, a afirmação de que a “ortodoxia soviética” era defensora da centralidade da classe trabalhadora nas revoluções dos países semicoloniais é uma falsificação grosseira da história. Foi justamente naqueles anos que foram impostos aos partidos da Internacional, o slogan da “ditadura democrática operária e camponesa”, da formação dos partidos bipartidários “operários e camponeses” e do caráter “revolucionário” das burguesias dos países coloniais 

Como já citamos, foi assim que Mariátegui formulou seu programa: “Tendo completado seu estágio burguês-democrático, a revolução torna-se, em seus objetivos e doutrina, uma revolução proletária”. Esta é a maneira da Terceira Internacional pré-estalinista de colocar as coisas. Se existe alguma ambiguidade na forma de colocar as “etapas da revolução”, ela se torna “proletária” necessariamente. Esta posição é, de fato, próxima da teoria de Trotsky sobre a Revolução Permanente.

Na verdade, a realidade foi exatamente a oposta do que Mazzeo e companhia tentam nos ensinar: na Conferência Comunista Latino-americana de 1929, os delegados peruanos defenderam a perspectiva do programa que citamos, enquanto o estalinismo oficial vetou-o. Nossos autores estão equidistantemente afastados do marxismo e da realidade histórica, sem um único centímetro de diferença.

O ponto de partida do “Programa” que estamos citando é a unidade da economia mundial e, portanto, o caráter internacional da revolução. Nela, a classe social que conduz todos os oprimidos na luta para varrer os remanescentes do atraso pré-capitalista e da dominação imperialista é a classe trabalhadora. Tudo isso é parte integrante da luta pelo poder contra a burguesia e pela construção do socialismo. Os pontos em comum com a teoria da revolução permanente não poderiam ser mais marcantes.

Nosso lugar na história

Mariátegui foi um bom representante de uma geração de revolucionários que lutaram pela independência política da classe trabalhadora, inspirados pelo exemplo dos bolcheviques. Por isso ele se opôs a um projeto como a APRA, liderado por Haya de la Torre. Este “partido” tinha uma estratégia de conciliação de classe e um programa “anti-imperialista” que não ia além de formar uma versão “esquerdista” do nacionalismo burguês. Ao mesmo tempo, pretendia ser o marxismo “realista” latino-americano. Em seu artigo “Ponto de vista antiimperialista”, Mariátegui polemizou com eles com estas palavras: “Nem a burguesia nem a pequena burguesia no poder pode fazer uma política anti-imperialista… somente a revolução socialista se oporá ao avanço do imperialismo com uma barreira definitiva e verdadeira”.

Mazzeo faz malabarismos teóricos tentando colocar no mesmo saco as tradições opostas do marxismo de Mariátegui e autores como John W. Cooke, defensor do peronismo, a fim de dar um manto de autoridade aos seus artigos insuportavelmente pedantes onde ele sempre e sem falta defende uma estratégia oposta à do marxismo e à da independência política da classe trabalhadora. Para a construção de partidos revolucionários com uma estratégia de independência de classe, devemos fazer como Mariátegui fez. Nosso ponto de partida são as lutas globais de nossa classe. E os grandes divisores de água são as grandes lutas históricas. A luta contra a degeneração da prática e teoria revolucionária nas mãos do estalinismo mundial, liderada por Leon Trotsky, teve uma magnitude de significado histórico semelhante à luta contra o reformismo liderada pelo bolchevismo.

O estalinismo, como nossos teóricos chavistas, vinculou seu destino ao do nacionalismo burguês. E enquanto o significado histórico da luta contra a burocratização da URSS e da Internacional Comunista nunca foi compreendido por Mariátegui, a tradição que ele representava e sua defesa permanece definitivamente nas mãos do trotskismo, pois somente o trotskismo continua a defender a bandeira histórica da independência política e revolucionária da classe trabalhadora. Neste sentido, também é importante integrar criticamente as contribuições de Mariátegui nas mais importantes elaborações do marxismo internacional. Incluídas nisto, e de particular interesse, estão as próprias contribuições de Trotsky sobre a América Latina.

A Igreja Católica Italiana inventou que, em seus últimos dias, Gramsci se converteu ao cristianismo após décadas de luta contra ele. Uma teoria semelhante nos é apresentada pelos teóricos do populismo “nuestroamericano” em relação a Mariátegui. A diferença é que os católicos ao menos têm a honestidade de reconhecer que Gramsci foi ateu e revolucionário a maior parte de sua vida, não para apresentá-lo a nós como um ideólogo manso da Imaculada Conceição.

Tradução de José Roberto Silva do original em https://izquierdaweb.com/mariategui-y-el-marxismo-latinoamericano/