Compartilho com vocês algumas reflexões depois de um ano tão duro, atípico e denso como 2020.
Renato Assad
Nenhum chefe de Estado e regime político na história das diferentes sociedades em nosso mundo, caíram ou tornaram-se pretéritos apenas pela força dos fatos políticos ou escândalos publicizados envolvendo os seus representantes. É comum ver na história deste e do século passado escândalos e barbaridades que envolvessem lideranças políticas internacionais serem rapidamente colocados na geladeira da “naturalização das coisas”.
São dois anos de um governo nacional que lava as suas mãos com sangue popular, que se afoga em escândalos, mas que persiste de maneira relativamente sólida no poder. Por que?
De onde surge a consciência daquilo que é aceitável ou não, daquilo que é bárbaro ou não para a sociedade? Para responder esta pergunta seria importante entendermos a história como produto social, isto é, sempre foi e será construída, modelada e materializada por pessoas que carregaram e carregam interesses de classe (aqui vale ressaltar que o marxismo antes de mais nada é uma ciência em que os interesses dos explorados e oprimidos são antagônicos aos dos exploradores e opressores), uma defesa direta ou indireta, aberta ou camuflada de determinada classe social.
São variados os tipos de interesses e as suas expressões, podem ser expressos no campo da economia, no terreno social, nas relações entre Estados e etc. Resumindo, a história não é um fato consumado, nada se materializa porque “as coisas são assim e ponto” e nem por uma força divina, mas sim a partir do choque efetivo entre as classes sociais nas suas mais variadas formas.
Avançando e exemplificando o questionamento acima: O que explica por exemplo a escravidão ter sido normalizada socialmente, como uma dinâmica aceitável que perdurou no Brasil por mais de 300 anos? É óbvio que não foram nem os povos originários brasileiros nem os escravos que tiveram esta nefasta, criminosa e genocida ideia de modelo social. Ora, se algo parecido fosse hoje proposto, obviamente haveria uma reação internacional imediata que certamente derrotaria e impossibilitaria a história de ganhar um novo capítulo escravocrata. Contudo, hoje as formas de escrevidão e justificativas para tal relação social foram alteradas, não se justifica mais a desigualdade social/racial, por exemplo pela biologia, mas como muito bem apontou Fanon, esta é viabilizada pela cultura. Os negros ainda são proletariados em todo o mundo, uma herança social e cultural da escravidão.
Outro exemplo que poderia aqui ressaltar é a jornada de trabalho de mais de 12 horas por dia paga aos trabalhadores em troca da sua força de trabalho passou a ser normalizada até a Revolta de Haymarket. No dia 4 de maio de 1886, os trabalhadores revoltosos conquistaram em Chicago a regulamentação da jornada laboral de 8 horas diárias que posteriormente foi internacionalizada.
Enfim, nenhuma dinâmica social, lei ou projeto que se materialize em nossa realidade surge do nada. Em sua grande maioria, os fatos da realidade são naturalizados como fato consumado. Mas a escravidão e as conquistas históricas da classe trabalhadora devem ser compreendidas pelo prisma da permanente relação de forças que pela via da política conduzem e materializam determinados interesses de classe e as suas necessidades sociais mais históricas.
É a partir de uma análise e síntese política sobre esta permanente correlação de forças, produto de lutas pretéritas, que entendemos o presente e por exemplo uma determinada conjuntura como a qual enfrentamos. Existem diferentes escalas temporais para se debruçar e arrancar ensinamentos construtivos, táticos e estratégicos para as lutas mais ou menos imediatas, mas o que se deve enfatizar é que nada se resolve de fato por fora da luta entre as classes, direta ou indiretamente. A correlação de forças não pode ser justificativa para não lutar, como fazem muitos partidos e tendências políticas, mas sim a identificação da forma mais adequada de como lutar em determinado momento.
Vejamos alguns dos fenômenos históricos mais recentes que expressam a luta de classes e essa correlação de forças: Teria sido possível que em um país como o Chile, que carregava consigo debaixo do braço por trinta anos uma constituição herdeira de uma das mais sanguinárias ditaduras da América Latina, uma nova constituinte (mesmo que reformista) sem as recentes mobilizações históricas da juventude chilena? Teria caído Dilma Rousseff se tivéssemos um fenômeno de rua aqui parecido ao chileno? Teria perdido Donald Trump sem a luta antirracista do Black Lives Matter no país centro do capitalismo? Teria voltado o MAS à presidência na Bolívia depois do golpe sem a rebelião dos povos originários deste país? Teriam feito história as mulheres na Argentina com a legalização do aborto, sem a mobilização da maré verde?
Nestes dois anos de governo Bolsonaro, não faltam escândalos e fatos políticos gravíssimos que em condições diferentes o colocariam como réu em inúmeros processos legais e que certamente levariam ao seu impeachment e até mesmo a sua prisão. Em um cenário de crise internacional do capital, a ex-presidenta Dilma Rousseff caiu por muito menos, pelas abstratas e ridículas acusações de pedaladas fiscais, maquiadas em um discurso anti-corrupção. As necessidades centrais da classe dominante foram então colocadas em pauta sob a figura de Temer.
Aqueles que até hoje caracterizam e encabeçam o campo da “esquerda” da ordem, mais precisamente o lulopetismo que chefiou o governo federal por 13 anos, abriram mão de um processo fundamental na construção de uma sociedade mais humanizada e sem desigualdades. Melhor dizendo, nunca esteve no horizonte de Lula, do lulismo e da “esquerda” da ordem, uma sociedade para além do capitalismo ou mesmo do neoliberalismo. O PT sempre foi uma corrente reformista sem reformas de fato que gozou de uma década dourada da economia nacional onde os recursos se fizeram suficientes para um programa de conciliação de classes. Mas este tipo de política, para além da necessidade de se fazer um balanço com a perspectiva de superação desta experiência, traz consequências graves na consciência das massas e que contribuíram para a eleição e certa estabilidade política do atual governo, ou seja, a sua naturalização em um estado de inércia das massas.
Foram 13 anos de um governo descolado da política de base e de alianças orgânicas junto ao capital financeiro. O partido dos trabalhadores se aliou àquilo que herdamos de mais perverso da política institucional e representação da classe dominante, que até hoje utilizam como desculpa e necessidade para se jogar o “jogo”, como se não houvesse outra maneira de se fazer política. Para além disso, sabotaram a histórica e mais eficaz ferramenta política dos de baixo: a permanente mobilização e construção da consciência de classe a partir de células e organismos políticos de organização dos trabalhadores.
Como não esperar então que as massas não comprassem o discurso dos meios de comunicação burgueses no período do impeachment ou mesmo nas eleições de 2018, por exemplo? Ora, cansei de ouvir de trabalhadores e trabalhadoras que por não poderem votar em Lula por estar preso votariam em Bolsonaro. Trata-se de um exemplo extremamente complexo, mas que nos mostra uma confusão política gigantesca de consciência das massas e que para piorar ainda tiveram que interpretar uma aliança entre o PT e o PSL nestas eleições em 100 municípios. A resposta está aí: para se ganhar o aparato vale qualquer coisa, inclusive aliança com o partido que elegeu este governo genocida. Com isso colocamos as massas sempre um passo atrás daquilo que é necessário para uma transformação social radical. Hoje vivenciamos as consequências deste tipo de política, dessa traição histórica para reparação é preciso que todos se entendam como sujeitos políticos para tornarem-se interventores políticos da realidade.
Talvez já neste ponto do texto, assim como eu, você já pode ter uma ideia do porque Bolsonaro ainda segue em seu cargo gozando de certa estabilidade e porque nenhum dos pedidos de impeachment protocolados foram aceitos pela Câmara dos Deputados, isto é, de maneira resumida porque enfrentamos uma desfavorável correlação de forças, que “nada” mais é do que um produto histórico e saber entender os variados agentes políticos responsáveis e tomarmos lições para enfrentar os desafios faz-se vital. De maneira alguma, quero aqui simplificar esta “resposta”, mas não poderia terminar um ano como este, em que milhares perderam as suas vidas por uma história feita por poucos e para poucos, sem esta tentativa de plantar essa semente, pensando nos desafios e responsabilidades do próximo período enquanto aqui escrevo.
Espero que a experiência obtida nos dois últimos anos deste governo genocida possa nos apontar, e que possamos aprender o perigo e o erro histórico de se retirar a política das ruas, mesmo quando se é governo. Que para o próximo período se construa pela prática uma mobilização permanente indissociada de um processo intenso de construção de consciência de classe e combater incansavelmente aqueles que empurram as responsabilidades mais imediatas para o próximo pleito eleitoral, pois para nada estamos derrotados. Espero ver e rever aquele ou aquela que lê este texto nas ruas, sentir em cada um a força e o ímpeto de luta que ainda abunda em nossas reservas de resistência que podem ser ampliadas nesse processo de mobilização e estabelecer, a depender do resultado concreto da luta, outra correlação de forças que permita expulsar o genocida do poder!