Colapso da saúde em Manaus e mutações do vírus

Enrico Bigotto, Gabriel Mendes e Deborah Lorenzo

Desde o início da pandemia do novo coronavírus, o Brasil sofre com o negacionismo e incompetência do governo Bolsonaro, que acaba por se transformar em um genocídio, alcançando fatalmente os mais pobres. Desde a chegada de Bolsonaro ao poder, ele e seus ministros seguem uma cartilha de desmembramento dos serviços públicos e descaso pelo meio ambiente necessária ao projeto neoliberal ao qual está vinculado. O SUS (Sistema Único de Saúde), sob responsabilidade do Ministério da Saúde, foi inspirado em um modelo europeu de serviços públicos, com a manutenção garantida pelo Estado nacional concebido no “wellfare state”, na segunda metade do século XX. Desde a redemocratização do Brasil nos anos 80, o SUS, assim como a Educação, funciona como uma complexa engrenagem, que agora passa por seus piores momentos devido ao desmonte dos serviços públicos. O casamento entre as ideologias de ultradireita na identidade política de Bolsonaro e a loucura neoliberal de mercantilização dos serviços essenciais deu origem a uma prole asquerosa – o genocídio da população brasileira pelas consequências da pandemia da Covid-19.

Após os dois primeiros ministros da saúde deste governo, que pouco após serem exonerados apontaram para o negacionismo do governo, assumiu Eduardo Pazuello, general do exército que foi escolhido por se provar um fiel defensor do “tratamento precoce”, que recomenda o uso de medicamentos sabidamente ineficazes segundo o consenso científico internacional de alto escalão. Antimaláricos, como a hidroxicloroquina, anti helmínticos, como a Ivermectina, e antibióticos, como a azitromicina, já são página virada nos quatro cantos do mundo onde se pratica ciência baseada em evidências de alto nível.

A venda de medicamentos rejeitados por entidades de saúde foi transformada em campanha por Pazuello, que esteve em Manaus na véspera do dia em que o governo manauara declarou que faltava oxigênio nos hospitais. Enquanto era iminente a falta de um item vital para o crescente número de infectados, uma força-tarefa de auxiliares de Pazuello percorria unidades de saúde pressionando pelo uso da hidroxicloroquina e os demais itens do chamado “kit Covid”.

A situação atual do estado do Amazonas a respeito dos insumos médicos da rede de saúde é calamitosa, tendo faltado tanto oxigênio como leitos em UTI’s para os infectados com a Covid-19. O estado tem o terceiro maior índice de casos do país, mesmo sendo um dos menos populosos,e foi o primeiro a ter um colapso no sistema de saúde estadual em abril de 2020. No mês de janeiro de 2021 já soma mais de 5.000 casos e acrescenta mais um colapso no sistema de saúde, que já conta com mais de 90% dos leitos de UTI ocupados, e transferiu pelo menos 100 pacientes para outros estados. A falta de oxigênio foi responsável pela morte de várias pessoas, levando o país vizinho, a Venezuela, a fazer doações para o estado por meio de comboios de caminhões, mesmo com a delicada relação diplomática entre os governos.

Enquanto o sistema público de saúde entra em colapso, os hospitais privados lucram com internações de muitos que não conseguem vagas no SUS lotado. Numa reportagem da BBC Brasil¹ fica exposto o desespero para conseguir uma vaga diante da grande fila por leitos, contas hospitalares na casa de centenas de milhares de reais ficam para familiares enquanto os governos continuam se recusando em determinar que os leitos de hospitais privados sejam colocados à disposição do Sistema Único de Saúde. Outros relatos que retratam as cenas de barbárie foram feitos por enfermeiras que atuam na rede pública de Manaus, pacientes infectados com Covid-19 fugindo de hospitais ou pedindo para “morrer em casa”.

Ao passo que o governo retarda estrategicamente medidas emergenciais para conter o avanço da pandemia e posterga a implementação de um programa nacional de imunizações, o vírus adquire novas características que permitem adaptações para a sua sobrevivência, as chamadas mutações. Este é o caso das novas linhagens ou, também conhecidas, novas cepas do coronavírus. Cerca de 180 novas linhagens já foram identificadas pelos cientistas, mas existe uma, sequenciada em meados de 2020, que demonstrou maior capacidade de infectar. Isto significa que esta nova cepa pode aumentar mais rapidamente o número de casos, o que implica proporcionalmente mais internações, mais casos graves, mais complicações e mais óbitos. Tudo isto paralelamente ao colapso do sistema público de saúde.

Outro aspecto importante das novas cepas é que o vírus continuará a realizar mutações conforme encontre barreiras à sua sobrevivência. Portanto, caso uma estratégia de imunização em massa não seja adotada tão logo todos os esforços para a formulação, em tempo recorde, de vacinas contra o coronavírus serão em vão, visto que uma linhagem mutante pode desenvolver resistência aos mecanismos imunológicos desenvolvidos pelas vacinas atuais.

O compromisso deste governo com a morte é tamanho que apenas nos últimos de dias de 2020, quando diversos países do mundo iniciaram a vacinação,o Brasil ainda começava a se preocupar com os insumos das vacinas. No início de janeiro apenas 2,9% dos insumos necessários para a vacinação da população haviam sido cotados. Isto sem mencionar as diversas tentativas de barrar a aquisição destes materiais pelo governo federal, os inúmeros obstáculos para a aprovação dos imunizantes pela Anvisa, as campanhas anti-vacina, que disseminaram uma série de mentiras acerca de efeitos colaterais das vacinas, e os desastres diplomáticos que nos deixam ainda mais distantes de obter condições viáveis para um plano nacional de imunização.

No Amazonas, o governador Wilson Lima (PSC) faz parte do grupo minoritário de governadores que ainda estão completamente alinhados com o governo federal e suas políticas negacionistas durante a pandemia, e que poderia ter antecipado esse segundo colapso do sistema de saúde caso tivesse se preparado, ouvindo os alertas de pesquisadores sobre o assunto. Assim, o governo federal tenta desovar o mais rápido possível o estoque que adquiriu de medicamentos ineficazes para lhes conferir alguma utilidade fantasiosa. Em entrevista recente ², o governador do Amazonas afirmou que a responsabilidade pelo novo colapso recai sobre a população que não cumpriu corretamente as medidas de segurança e isolamento, e das empresas fornecedoras dos insumos médicos. O colapso foi de tal magnitude que levou ao poder judiciário, a partir do STJ, a determinar que a distribuição do oxigênio do estado passe a ser decidida judicialmente, por vara federal, alegando grande quantidade de processos jurídicos estaduais contraditórios com a empresa.

Diante dessa tragédia já anunciada em Manaus o governo federal em acordo com seus aliados locais procura isentar-se de qualquer responsabilidade. Bolsonaro, que num aparente ato falho lamentou a aprovação da vacina Coronavac pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), afirmou que seu governo “está sempre fazendo o que tem que fazer”. O vice-presidente não ficou para trás, em declarações para o jornal Folha de São Paulo, Mourão responsabilizou a nova cepa do vírus que teria deixado a situação sanitária imprevisível e destacou que a estação chuvosa que passa a região provoca o aumento de doenças respiratórias³.

O legislativo segue como signatário do governo federal, ao contrário do que afirmam setores da esquerda que buscam refazer alianças com partidos tradicionais da burguesia e hoje reforçam a disputa pela superestrutura como caminho para derrotar Bolsonaro. É preciso dizer que o legislativo atual, eleito no mesmo contexto que elegeu Bolsonaro, cumpre um papel fundamental para avançar em medidas contra os trabalhadores numa situação marcada pela permanência da crise recessiva potencializada pela pandemia de Covid-19.

Sobre o segundo colapso do sistema de saúde em Manaus, Rodrigo Maia definiu como “erro original” o negacionismo do Executivo[4]. De fato, Maia, no entanto, tanto o atual presidente da Câmara dos Deputados – com uma pilha de pedidos de impeachment engavetados – como o candidato apoiado por este para sucessão na casa legislativa não sinalizam nenhuma medida contundente para de fato combater os interesses por trás do governo genocida.

Baleia Rossi (MDB), hoje concentra um bloco com praticamente todos os partidos de oposição e segue sua candidatura de “independência” da Câmara sem se comprometer com pontos-chave que os partidos de esquerda encampam. Para entrar no bloco “Democracia e Liberdade” de Maia e Baleia, a esquerda da ordem (PT, PCdoB, PDT) parece que está contando com o histórico destes deputados e de seus partidos em votar SIM quando o assunto é derrubar presidentes.

Nesse sentido, foi importante a decisão do PSOL em lançar candidatura própria para presidência da câmara pautando a necessidade do impeachment para salvar vidas, da revogação da EC95, a emenda do teto de gastos, do combate à PEC32, a “reforma administrativa” e outros pontos que são peça-chave da agenda ultraliberal que unifica extrema-direita e direita. É sabido que a esquerda hoje não tem condição de fazer uma disputa eleitoral em que saia vitoriosa, independentemente do resultado, a tarefa central será retomar a mobilização nas ruas como forma de salvar vidas, efetivar um plano de emergência que garanta vacinação já para todos, emprego e renda.

 

¹https://www.bbc.com/portuguese/brasil-55726745

²https://www.metropoles.com/brasil/wilson-lima-responsabiliza-populacao-e-empresas-por-colapso-no-amazonas-e-poupa-bolsonaro

³https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2021/01/nos-fizemos-a-nossa-parte-diz-bolsonaro-em-meio-a-crise-de-falta-de-oxigenio-em-manaus.shtml

4https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/para-maia-caos-no-amazonas-e-consequencia-do-erro-original-do-negacionismo,62e0d96cde9d7c2a80d19601b47d2ac0j5ky4qt3.html