Caso Henry: sensacionalismo, silêncio do governo e a palmada que precisamos discutir

A violência contra a criança é um tipo particular de covardia, porque ela é praticada contra vítimas que não possuem autonomia para defenderem-se. Por isso, na maioria das vezes, é fundamental que alguém a defenda, mas também é importante que as escolas, Conselhos Tutelares, as assistências sociais e as creches estejam realmente preparadas não só para intervir, mas na formação dessas crianças, para que elas possam identificar os primeiros sinais de abuso de um adulto e que, principalmente, se sintam seguras para contar sobre a violência.

Por Rosi Santos SoB – Vermelhass

A trágica morte do pequeno Henry Borel de apenas 4 anos, vítima de espancamento pelo padrasto o médico e vereador Dr. Jairinho (ex Solidariedade) – com a conivência da própria mãe -, tem levado a uma enorme repercussão. O caso também choca porque muitas pessoas negligenciaram Henry: indícios de violência eram percebidos pela escola, psicóloga e médicos. Portanto, essa rede que deveria ser de apoio a criança, na verdade levou ao prolongamento do sofrimento da vítima e na proteção de um assassino perverso nesse, e outros casos em que ele vem sendo acusado. Tratativas deste tipo, vindo de pessoas ou instituições sejam públicas ou privadas, é resultado da desinformação e da naturalização da violência a criança. 

Do desrespeito à esta como sujeito de direitos e proteção, devido aquilo que é conhecido como cultura da palmada, em que uma parcela importante da sociedade, acredita ser natural “corrigir”, isto é, agredir crianças. Um efeito cascata que a médio prazo dinamiza o ciclo de violência na sociedade. Por isso, é importante – diferentemente do que faz a imprensa sensacionalista – dar lugar à responsabilidade do governo e fazer questionamentos sobre a ineficiência das políticas públicas vigentes no enfrentamento desse tipo de violência, atualmente os dados são preocupantes. E ano após ano vemos que há um progressivo esvaziamento das políticas referentes à infância e adolescência.

Da mesma forma, existe um volume inconsumível de notícias, atualizações, testemunhos e simulações da imprensa com imagens da vítima no contexto e circunstâncias que levam a esse tipo de brutalidade, que não desembocam em um real debate sobre a violência infantil no Brasil.

é preciso reconhecer que mães, pais, famílias podem ser abusivas e violentas.

Para isso, é necessário mais do que discurso e sentimentalismo, são vitais campanhas educacionais às famílias e inversão econômica na educação infantil e média, para que crianças e jovens não estejam a mercê de abusos ocorridos no ambiente familiar, assim como a difusão de informações institucional a toda sociedade. É absolutamente natural e necessário que a sociedade reaja com comoção diante de cada caso dessa natureza. Mas também fundamental juntar a indignação com exigências, e nesse caso e outros passa, por exigir explicações ao presidente Jair Bolsonaro e sua Ministra Damares Alves.

Uma dessas explicações é sobre a exclusão, sem qualquer explicação ou comunicação prévia, de mais de 85.837 denúncias de violência contra crianças e adolescentes registradas no ano de 2019 pelo Disque 100. Os crimes de transparência como esses e outros, que vem ocorrendo nesse governo, são extremamente prejudiciais, não só para o relato institucional do índice da violência no ano, como também interferem negativamente no orçamento dos anos seguintes destinado a prevenção e combate. Esse artifício fez com que diversas áreas ficassem “no escuro” com verbas muito inferiores, provocando assim aumento da vulnerabilidade em um momento de pandemia e isolamento social das crianças que não estavam frequentando a escola.

Imprensa: Informação ou publicidade da violência

Os crescentes casos de feminicídios, e as mortes de crianças denunciadas pela imprensa, não devem ser tratados apenas como um tema qualquer e, hoje, opcionais à montanha de informações jornalísticas sobre a pandemia, como vem ocorrendo. São apenas verborragia sem discussão de responsabilidade institucional e disputa por investimentos públicos na área. A violência é objetiva, e sem conscientização social não há debate midiático que contribua para diminuição da violência, e podem levar apenas para sua banalização.

Por exemplo. Em abril de 2014, o menino Bernardo de 11 anos, órfão de mãe, foi dopado, esganado e enterrado ainda vivo em uma cova rasa pelo pai e madrasta. Esse tipo de violência cabal provavelmente não é a primeira que Bernardo sofreu, mas a última de uma série de espancamentos e violências gratuitas. O caso foi largamente explorado, mas nenhum centavo a mais foi colocado no orçamento para o combate de abusos e em defesa das crianças.

Assassino e mãe da criança também envolvida no crime

As famílias deveriam saber como resolver seus conflitos e o Estado, por meio de suas instituições específicas, deve estar atento a todos os fatores de vulnerabilidade na infância. No caso acima, por exemplo, Bernardo já havia ido à justiça sozinho pedir socorro, contra o pai e a madrasta, mas foi completamente ignorado e abandonado pelo Estado.

Outro caso, que traz muita similaridade sobre como famílias, indivíduos e o próprio Estado podem representar perigo às crianças, ocorreu ano passado com menino Miguel Otávio de 5 anos, que morreu em uma queda do 9º andar de um prédio em Recife por negligencia de Sari Corte Real, empregadora da mãe da criança. Sem falar do caso mais “famoso”, o da menina Isabela Nardoni.

O que todos esses casos têm em comum, além da violência, é o tratamento da imprensa que, infelizmente, não dá o espaço para especialistas, poder público, autoridades reconhecidas e setores interessados da sociedade no debate. Universalizam apenas a indignação. Um jornalismo novelesco das desgraças sociais e, como toda novela, além de início, meio e fim tem como principal preocupação, não o levantar da reflexão, mas manter a audiência.

A banalização de crimes desse tipo, invariavelmente, passadas algumas semanas esgotam emocionalmente as pessoas e em pouco tempo não se quer falar nada sobre o tema. Então, passa-se a próxima “novidade trágica” antes mesmo que o acontecimento anterior tenha sido capaz de gerar qualquer massa crítica ou que se tenha tirado conclusões propositivas para além da indignação inicialmente gerada.

Perde-se então a oportunidade da imprensa cumprir um papel primordial para a sociedade: ser um vetor não só de propagação, mas de discussão, reflexão e proposição de medidas e políticas públicas que efetivamente aumentem o combate à violência infantil, seja ela qual for.

A ideia de “Família Tradicional Brasileira” que mata direta ou indiretamente

O espaço doméstico, como estamos vendo na pandemia, é ainda mais perigoso para todos em situação de vulnerabilidade, não só para as crianças, mas também de gatilho para a violência contra a mulher. No entanto, são as crianças as que possuem menos instrumentos para rechaçar os abusos praticados por um adulto.

A VIOLÊNCIA INICIA NA MANIPULAÇÃO OU INTIMIDAÇÃO. NO SILENCIAMENTO DA CRIANÇA, SEM INFORMAÇÃO COMO PARAR?

E o Brasil de Bolsonaro não ajuda a amenizar isso, muito menos nesse momento pandêmico. Em que passamos a investir ainda menos no enfrentamento à violência doméstica. Damares Alves, ministra evangélica da pasta da Família, usou apenas 1/4 de todo o orçamento destinado ao combate à violência conta Mulher e seus filhos em 2020. Menor montante gasto nos últimos 10 anos.

Para se ter uma ideia, somente em 2020 que o número de mortes violentas de crianças e adolescentes foi apresentado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com enfoque à vulnerabilidade nessa faixa etária, junto ao Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). A divulgação nesse âmbito é importante porque trazem mais detalhamento das violações de direitos infantis ou adolescentes.

Quer dizer, além da negligência convivemos com a subnotificação e invisibilização do problema. A falta de projeto de combate à violência é o que explica a morosidade e o que de fato contribui para a perda de vidas jovens em nosso país.

A ministra Damares – que opina ferozmente contra a legalização do aborto, a despeito das inúmeras mortes de mulheres por abortos clandestinos – mostra mais uma vez sua cara de indiferença com a criança já nascida.

Ela, como todo o governo Bolsonaro, sabem a plenos pulmões atacar professores, feministas e defensores dos direitos humanos, perseguir escolas e serem contrários a qualquer autonomia crítica, mas no momento que a realidade não pode ser escondida e se apresenta para a sociedade, como nesse caso, finge que o problema não não é possui relação com eles ou suas responsabilidades. Não se dignando sequer a se manifestarem no caso do Dr. Jairinho, eleito vereador no Rio de Janeiro com lemas bolsonaristas, o ano passado. 

O governo e sua mais fiel escudeira levam a sério o fisiologismo político que agrada o nicho político ligado às igrejas evangélicas e seu projeto obscurantista e conservador para as escolas públicas, instituição esta que é atualmente a única mediação entre as crianças e suas famílias.

A Educação Pública (pedagogos, psicólogos e educadores em geral do Brasil e do exterior) pode ajudar na condução de uma infância e adolescência sem violência, mas é hoje maior alvo do sucateamento desse desgoverno, logo após das “reformas” que retiram direitos dos trabalhadores.

Nesse sentido, a consternação recentemente expressa pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro vem muito tarde. Casos como o de Henry poderiam ser evitados se Câmaras Municipais e Assembleias Estaduais estivessem abertas para que a sociedade civil e Conselhos Tutelares apresentem em audiências públicas propostas voltadas para a defesa da infância, não apenas para que parlamentares criem projetos voltados aos seus currais eleitorais e às igrejas neopentecostais dirigidas por fundamentalistas.

É inadmissível que esses espaços ignorem que somente no ano de 2019, 10% do total de mortes violentas no Brasil foram de crianças. Sejam elas vítimas fatais da violência intrafamiliar ou das mãos do estado nas nefastas incursões da Polícia Militar e Exército no que chamam de guerra às drogas que só atinge as periferias.

E que fazem com que desse total 75% das vítimas sejam crianças negras. Sintetizando: a cada dez brasileiros mortos em atos violentos, um deles era uma criança. Quando mortas em intervenções policiais, três em cada quatro delas, foram crianças negras. Um desrespeito absoluto aos direitos garantidos no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que sofre inúmeros ataques nesse governo com as tentativas de implementação de projetos pela redução da maioridade penal.

Esses dados foram apresentados pelo 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, que também trouxe números de estupros de crianças e adolescentes. Foram pelo menos 25.984 casos registrados ano passado. Entre eles, o caso ocorrido em agosto do ano passado da criança de dez anos do Espírito Santo. Levada ao médico com dores abdominais, a criança contou ao médico e às assistentes sociais que vinha sendo abusada pelo tio desde os 6 anos de idade. Ficando demonstrado, então, que estava grávida fruto dessa violência cometida por um parente dentro da própria casa.

Investir no que é essencial para uma infância sem violência

Esse caso da menina capixaba repercutiu nacional e internacionalmente, mas a posição do negacionismo e machismo do governo Bolsonaro foi de tentar por “panos quentes” no caso e tentar fazer com a menina e sua família aceitassem levar adiante a gestação. Somente graças a organização do movimento feminista e sociedade civil a criança foi impedida de ser responsabilizada através da imposição de uma maternidade, de um crime brutal que poderia ter sido evitado se o Estado funcionasse em prol das crianças, não do reacionarismo religioso.

Sua defesa da família, da escola e da vida, como vemos com a pandemia, do dízimo dos pastores da defesa da economia capitalista, levada pelo governo e em diversos momentos pela própria imprensa. São contrários a uma educação pública de qualidade e diversa que garanta a segurança das crianças.

Por isso, lutamos no movimento feminista pela importância da participação de especialistas sobre esses tema, bem como a melhor formação de profissionais e professores para o ensino de educação sexual, laica e com perspectiva de gênero nas escolas. Conteúdo, já ensinado em outros países, que comprovadamente ajuda crianças a identificarem como e quando seus direitos são violados para que, independentemente das circunstâncias, sintam-se protegidas e seguras para denunciar. Somente enfrentando a fundo todas essas questões é que podemos dizer que estamos no caminho certo para uma infância e adolescência plena e totalmente saudável.