Ontem dois fatos foram fundamentais para mudar a conjuntura política nacional, particularmente em relação à situação de Bolsonaro e da extrema direita. Os depoimentos do ex-Ajudante de Ordens de Bolsonaro, Mauro Cid, e do hacker Walter Deugatti Neto, colocam elementos que ligam o ex-presidente diretamente a graves crimes durante o exercício da Presidência. Com as novas investigações e declarações de ontem, não sair a exigir a prisão de Bolsonaro é deixar totalmente a iniciativa política na mão da burguesia e do seu Estado e perder uma oportunidade de contribuir para mobilizar e obter uma vitória direta contra a extrema direita nas ruas.

ANTONIO SOLER

Desde o começo do ano, a questão da prisão de Bolsonaro como uma forma de colocar definitivamente a extrema direita na defensiva após a sua derrota eleitoral e o 8 de Janeiro  é central, mas a maior parte da esquerda socialista desconhece esse eixo político – um reflexo extremamente adaptado, economicista e contemplativo da realidade. É preciso romper com essa política e chamar a luta pela prisão de Bolsonaro e contra todos os ataques que estão em curso contra a classe trabalhadora e os oprimidos.

A atuação criminosa de Bolsonaro não se limitou aos ataques aos direitos, à política genocida durante a pandemia, aos ataques aos direitos democráticos dos trabalhadores através dos ataques às urnas eletrônicas – o que fez com que Bolsonaro perdesse a elegibilidade por 8 anos – e a utilização  da Policia Rodoviária Federal no 2º Turno das eleições para impedir que eleitores de Lula chegassem aos locais de votação.

As revelações na última semana sobre a apropriação por Bolsonaro e seu entorno de que joias doadas por governos estrangeiros que deveriam ser integradas ao patrimônio público federal foram desviadas, vendidas e o seu valor embolsado pelo ex-presidente, podem ser o elemento que faltava para que a justiça federal decrete a prisão do ex-presidente. No entanto, relegar essa tarefa aos poderes do Estado burguês, por fora da luta e da mobilização dos trabalhadores e oprimidos – as principais vítimas do neofascista -, é perder uma oportunidade de fazer com que a correlação de forças, bastante desfavorável nos últimos anos, seja alterada a nosso favor.

Não é novidade para ninguém que Bolsonaro, como todo bom político burguês de centro, direita ou extrema direita, tem sua carreira pautada na corrupção. Mas nos últimos dias, com o nome de “Lucas 12:2″[1], a Polícia Federal (PF), sob ordem de Alexandre de Moraes, levou a cabo mandados de busca e apreensão que, combinados com outros fatores, podem levar à prisão de Bolsonaro. 

O inquérito da PF que veio a público dá conta da quadrilha montada por Bolsonaro e seus auxiliares mais próximos. Foi utilizada a estrutura do governo federal, como o Gabinete Adjunto de Documentação Histórica da Presidência, o avião presidencial e a Apex[2] para desviar, vender e se apropriar dos valores correspondentes a presentes ofertados por autoridades estrangeiras.

O mesmo inquérito informa que as joias vendidas no exterior saíram do país no jato presidencial no dia 30 de dezembro, dias antes da posse de Lula; em relação a qual, Bolsonaro, em uma clara posição de não reconhecimento do resultado eleitoral, não quis passar a faixa presidencial. Porém, agora vemos que o golpismo não era o único motivo para Bolsonaro não passar a faixa presidencial… 

Do patrimônio público que Bolsonaro conseguiu desviar para se apropriar dos valores – um outro lote de joias que teria o mesmo destino acabou sendo apreendido pela Receita Federal após a comitiva de Bolsonaro desembarcar no aeroporto de Guarulhos no final de outubro de 2021 -, consiste em um kit de joias, um relógio da marca Chopard e um Rolex. Totalizando todos os itens, o valor chega a R$ 900 mil, segundo a PF. No caso do Rolex, Frederick Wasset, advogado de Bolsonaro, voltou aos Estados Unidos para recomprá-lo após queixa do TCU (Tribunal de Contas da União) para devolução ao patrimônio público. Após a venda, os recursos obtidos foram enviados em espécie para Bolsonaro com o objetivo de evitar o rastreamento pelos órgãos de controle financeiro. Esse modus operandi foi usado para retirar do país 4 conjuntos de bens recebidos em viagens internacionais.

Todo o entorno de Bolsonaro estava envolvido nessa operação, particularmente o general da reserva Mauro Lourena Cid que ocupava a diretoria da Apex, o ajudante de ordem de Bolsonaro Coronel Mauro Cid, seu advogado – e operador para toda forma de ação criminosa – Frederick Wassef e outras figuras. Mas, a grande novidade é que depois de mais de três meses preso por ter falsificado o cartão de vacina de Bolsonaro e de sua filha, Mauro Cid, que estava desde então em silêncio, segundo o seu advogado, Cesar Bittencourt, vai assumir que vendeu as joias, mas que o fez a mando de Bolsonaro e que entregou o dinheiro ao mesmo. Essa declaração muda totalmente a dinâmica e a velocidade das investigações e cai como uma bomba para a defesa de Bolsonaro.

Depoimento de Delgatti ajuda a formar o quebra-cabeça golpista

O outro fato explosivo da quinta-feira passada foi o depoimento de Walter Delgatti Neto[3] à CPI de 8 de Janeiro que investiga o ataque golpista à Praça dos Três Poderes.

O golpismo de Bolsonaro não é nenhuma novidade. Em que pese que tenha faltado correlação de forças – e algum nível de competência real para tanto – para efetivar um golpe de fato, temos, além dos ataques do dia 8 de janeiro, uma série de ações criminosas de Bolsonaro e do bolsonarismo cometidas antes, durante e depois das eleições com vistas a não reconhecer o resultado das urnas e se perpetuar de forma golpista no poder. 

O que Delgatti trouxe como novidade nesta quinta-feira foi o depoimento, sem ainda apresentar provas, que relata um plano para simular a invasão de uma urna eletrônica que teve a participação de Bolsonaro, dos seus ministros e das forças armadas. Segundo Delgatti, em uma reunião no dia 10 de agosto de 2022 no Palácio do Alvorada (residência oficial do Presidente da República) foi feito um plano para o hacker fazer um vídeo – que seria apresentado no dia 7 de setembro – simulando a invasão de uma eletrônica com o objetivo golpista de desacreditar o processo eleitoral. Para efetivar essa trama, Delgatti teria participado de reuniões com o então Ministro da Defesa, Paulo Sérgio, e com técnicos do Ministério que eram integrantes da Comissão de Transparência do TSE. Para criar um código fonte fake, os técnicos do Exército decoravam parte dos códigos fontes que eram testados no STF para informar Delgatti, pois não eram permitidas anotações durante os testes.

Além disso, em seu depoimento, afirmou que através da deputada federal Carla Zambelli, Bolsonaro pediu que ele assumisse o grampo mal explicado de conversas de Alexandre de Moraes[4]. Como ninguém confirma tal grampo, uma hipótese é de que esta história possa ter a ver com o plano golpista para gravar Moraes revelado pelo Senador Marcos do Val. Segundo ele, no dia 8 de dezembro a pedido de Bolsonaro participou de uma reunião para orquestrar um plano em que Do Val agendaria uma conversa com Moraes, na época presidente do TSE, objetivando gravar falas do Ministro que o comprometesse para colocá-lo sob suspeita. Versão que, somada à chamada “Minuta do Golpe” – documento encontrado na casa do ex-Ministro da Justiça de Bolsonaro, Anderson Torres, que previa decretar Estado de Defesa para fechar o TSE e impor a permanência de Bolsonaro no poder – encaixa-se perfeitamente a esse depoimento e ajuda a compreender todo o quebra cabeça golpista.

Esquerda entre o apoio político às instituições e a contemplação passiva dos fatos

A mudança de comportamento de Cid – que agora responsabiliza Bolsonaro pelo desvio e venda das joias – e o depoimento do hacker – que junta mais uma peça no quebra cabeça golpista -, somado à determinação por Moraes de quebrar do sigilo bancário de Bolsonaro e de Michelle Bolsonaro, coloca uma situação extremamente delicada para o ex-presidente, que pode levá-lo à prisão.

Esse processamento por cima, que está sendo operado pelo STF e pela PF, sem a participação explícita de Lula, do seu governo e do PT, tem o objetivo de evitar uma movimentação de massas que acabe despertando também a luta contra as contrarreformas em curso. Assim, a prisão de Bolsonaro, por fora da ação do movimento de massas, como uma ação exclusiva do regime e de suas instituições, faz parte de uma política que visa, ao mesmo tempo, normalizar a limitadíssima democracia burguesa pós-Bolsonaro e continuar a atacar os trabalhadores e os oprimidos.

Nesse terreno do necessário processamento, prisão e expropriação de Bolsonaro, a esquerda tem se dividido entre dois setores. Temos os oportunistas (PT, PSOL e cia), defensores abertos do regime, que atuam junto às instituições burguesas para que essas operem por cima para garantir a mínima punição do ex-Presidente – objetivando que o regime saia fortalecido e possa continuar a atacar os direitos dos trabalhadores. Do outro lado, temos a esquerda economicista que não propõe uma linha global de atuação da classe. Isso faz com que não percebam que a luta pela prisão de Bolsonaro, combinada com a luta contra o conjunto das contrarreformas, é central na atual situação – e agora na conjuntura. Assim, acabam relegando a ação política à classe dominante. Ao não realizar essa totalização através de um sistema de consignas que tenha a prisão de Bolsonaro como uma das bandeiras centrais, denunciam o processo de tentativa de legitimação do regime, mas o fazem de maneira propagandista e estéril, pois não chamam as massas à ação, o que permite que a classe dominante protagonize um momento decisivo para definir a correlação de forças entre as classes.

A prisão de Bolsonaro e das figuras golpistas de seu entorno significaria um duro golpe contra a extrema direita no Brasil e poderia contribuir com a mudança na correlação de forças de forma favorável à nossa classe, se a luta pela prisão do golpista fosse combinada com a luta contra os ataques que estão em curso pela ação das massas nas ruas. Por essa razão, não podemos apenas fazer uma denúncia passiva da crônica política que pode levar à prisão da principal liderança da extrema direita no Brasil, mas sim fazer uma campanha de exigências de que as direções dos movimentos de massas chamem à luta pela prisão e expropriação dos bens do neofascista, bem como contra todos os ataques do atual governo e dos anteriores.

Não aproveitar esse momento, convocando a luta independente do governo e de todas as instituições burguesas – sem alimentar nenhuma ilusão no judiciário que nos ataca diuturnamente – para colocar os trabalhadores à ofensiva, é um crime que comete a burocracia. Sem essa mobilização, a prisão de Bolsonaro – se efetivamente ocorrer – resultará como uma mera ação da burocracia estatal que servirá para legitimar o regime, mas que manterá a ultradireita como importante agente político-nacional, que continuará a ser uma espada de Dâmocles sobre o movimento de massas e a atacar os direitos mais fundamentais dos trabalhadores e oprimidos.

Nesse sentido, é necessário destacar que o movimento estudantil da USP acordou em uma Assembleia, realizada ontem, 17 de agosto, a construção de um Comitê Antifascista de Defesa do Espaço Estudantil e pela prisão de Bolsonaro. Nossos companheiros e companheiras da Juventude Anticapitalista Já Basta! batalharam para garantir que a prisão do miliciano fosse assumida como um eixo central do movimento estudantil, como parte de uma grande campanha antifascista a desenvolver na USP, depois de que aconteceram várias provocações da extrema-direita no vão da FFLCH, inclusive uma ameaça com arma de fogo por parte de um agente policial bolsonarista.

Assim, lutar para botar Bolsonaro na cadeia a partir da mobilização – de forma combinada com outras demandas, como a luta contra o teto de gastos de Lula, a reforma tributária regressiva e o marco temporal – é um desafio decisivo para obtermos uma vitória direta nas ruas e acabar de mudar a correlação de forças reacionária que vivemos nos últimos anos.

 

[1] O nome da operação policial é uma alusão ao versículo 12:2 da Bíblia, que diz: “Não há nada escondido que não venha a ser descoberto, ou oculto que não venha a ser conhecido”.

[2] O general da reserva Mauro Lourena Cid – pai do ex-Ajudante de Ordens de Bolsonaro Mauro Cid – tinha um cargo na Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex) em Miami onde recebia salário de cerca de R$ 63 mil.

[3] O denunciante é programador e conhecido como o hacker da Vaza Jato (o hacker de Araraquara) que revelou a maquinação ilegal do ex-juiz Sergio Moro para prender Lula.

[4] Bolsonaro teria dito que possuía grampos do ministro Alexandre de Moraes, do STF, mas que o hacker precisaria assumir a autoria do crime, garantindo-lhe indulto se fosse processado e preso.