Em agosto de 1936 começaram os Julgamentos de Moscou, uma falsificação judicial em grande escala. Com ela, o stalinismo massacrou a velha guarda bolchevique e limpou o aparato do estado da URSS de todo o setor que construiu e concretizou a revolução russa. Um acontecimento histórico de consequências dramáticas em que a maioria do socialismo revolucionário não tirou as conclusões necessárias.

Por Roberto Saenz

Tradução Renato Assad

“De que maneira o assassinato dos ‘lideres’ deixaria o poder em mãos de pessoas que, mediante uma serie de retratações, haviam perdido toda confiança em si mesmos, haviam-se degradado, pisoteado e privado de toda possibilidade de cumprir um papel político importante?”

León Trotsky, Zinoviev, Kamenev, 31/12/1936

Uma das maiores perguntas dos expurgos stalinistas é a por qual razão alguns dos mais importantes ex-dirigentes bolcheviques, revolucionários, que como disse Trotsky eram pessoas “profunda, total e abnegadamente entregadas para a causa do socialismo”, cultivadas por mil batalhas, chegaram a confessar terríveis crimes que jamais cometeram (mas que nas condições da época a maioria acreditou [1]).  

Uma enorme quantidade de obras históricas e literárias abordaram o tema, um dos mais impactantes da contrarrevolução stalinista. Se de todas a maneiras estas abjurações subsistem com um fato desconcertante, isto se deve ao seu caráter extraordinário: a redução da flor e nata dos dirigentes da Revolução Russa a semelhante ignomínia, a confissão de crimes horrendos, a acusação a seus companheiros de luta, a delação: uma humilhação sem igual, uma queda aos infernos.

Um exemplo entre tantos é o de Yuri Piatakov, antigo dirigente da Oposição de Esquerda, especialista em economia industrial, que capitulou junto a Preobrajensky quando o giro industrializante de Stalin: em 27 de julho de 1936 redatava a seguinte nota: “A proposta de expulsar Sokolnikov como membro candidato do CC, assim como do VKP (B), por manter vínculos estreitos com o grupo terrorista de trotskistas e zinovievistas conta com minha inteira aprovação” (Getty e Naumov, idem., p. 231). Piatakov firmou esta “sentença de morte” de Sokolnikov (outro grande ex-oposição) somente quinze dias antes de ser expulso ele também do partido…

Como se pode explicar semelhante grau de degradação política e moral, é o que pretendemos abordar neste texto.

Os julgamentos de Moscou

Expliquemos muito sucintamente o que foram os julgamentos de Moscou. Se tratou de uma série de três grandes julgamentos realizados na cidade de Moscou (com participação da imprensa nacional e internacional), em que os que foram levados à cadeira dos acusados eram parte fundamental dos ex-dirigentes da época da revolução.   

O primeiro julgamento se realizou em agosto de 1936, o segundo em janeiro de 1937 e o último em março de 1938. Durante este período se levaram adiante outros julgamentos sumários que não foram públicos: a acusação e posterior assassinato do general Tujachevsky e de parte fundamental do plano maior do Exército Vermelho, assim como julgamentos de menor envergadura afetando a dezenas de milhares de funcionários da hierarquia secundária.

Nos julgamentos de Moscou compareceram ex-dirigentes da grandeza de Zinoviev, Kamenev, I. Smirnov, Piatakov, Radek, Bukharin, Rikov, Krestinsky, Christian Rakovsky, etcetera, todos estes integrantes de algumas das ex-oposições (esquerda, direita e unificada) que haviam capitulado previamente, e principais dirigentes da velha guarda bolchevique que dirigiu a revolução.

Todos eles, com poucas e honrosas exceções, fizeram públicas confissões monstruosas. Facilitaram a tarefa do tribunal, que se baseou quase exclusivamente em suas confissões, e naqueles contribuídos por personagens obscuros misturados entre os acusados ​​para servir como acusadores dos dirigentes caídos na desgraça [2].

Há que sublinhar, de todos os modos, que houve membros da velha guarda que salvaram o que restava de suas honras não se colocando ao jogo da confissão: nos vem a memória o caso de Evgueni Preobrajensky, que não compareceu e foi fuzilado secretamente.

Fora do plano bolchevique mais alto, os julgamentos serviram como chamado de atenção nas próprias fileiras stalinistas. Stalin não se esquecera que no “Congresso dos triunfantes” de 1934, onde se havia expressado um forte mal estar, sendo muito mais reduzida sua votação que a de Kirov, um representante mais “moderado” do aparato que era o favorito do partido naqueles momentos (Kirov foi assassinado no final deste mesmo ano em um fato obscuro que serviria para Stalin de desculpas para lançar a onda de terror que culminaria nos Grandes Expurgos).

A fiscalização do Estado foi encabeçada pelo ex-menchevique Andrei Vyshinsky, jurista e posteriormente diplomata stalinista que, paradoxos da história se existem, recuperaria prestígio integrando o tribunal de Nuremberg, que julgou a hierarquia nazi no final da Segunda Guerra Mundial. Um personagem sinistro que, apoiando-se nas confissões, cumpriria um dos principais papéis no show de terror que foram os julgamentos reivindicando em sua alegação final do primeiro julgamento “a pena de morte para cada um destes cachorros que ficaram loucos” … (lembremos que estavam falando de dois dos maiores dirigentes do partido bolchevique na sua época de ouro: Zinoviev e Kamenev). 

Para além dos julgamentos de Moscou, durante as purgas foram assassinadas ao redor de 700.000 pessoas, isto sem nos esquecermos dos milhões que passaram pelos campos de trabalho forçado; o velho partido revolucionário, o mais importante da história até hoje, havia morrido, outro havia tomado o seu lugar: o partido da burocracia[3].

Um processo de destruição da personalidade

Para entender como grandes revolucionários puderam chegar a semelhantes extremos de ignomínia, há que partir do processo de destruição de sua personalidade que viveram os integrantes da velha guarda a partir de suas abjurações.

Trotsky apontava que a comparação com os jacobinos não era pertinente: haviam sido tirados diretamente do campo de batalha para serem levados para a forca, não sofreram dez anos de brutal desgaste como a velha guarda: “Qual era a situação de Zinoviev e Kamenev diante da GPU e o tribunal? Estiveram dez anos em uma nuvem de calunias (…) Durante dez anos estiveram suspensos entre a vida e a morte, primeiro no sentido político, logo no sentido moral e por fim no sentido físico. Existe na história outros exemplos de um trabalho tão sistemático, refinado e diabólico destinado a romper a coluna vertebral, os nervos e o espírito? Tanto Zinoviev como Kamenev possuíam caráter mais que suficiente mais que suficiente para as épocas tranquilas. Mas, as tremendas convulsões sociais e políticas de nossa época exigiam uma firmeza fora do comum a estes homens cuja capacidade os havia colocado na frente da revolução. A disparidade entre as suas capacidades e as suas vontades teve consequências trágicas” (“Zinoviev e Kamenev”, 31/12/36).

Derrotada a Oposição Unificada (formada entre a Oposição de Esquerda e a liderada por Zinoviev e Kamenev), somada a crise da Oposição de Esquerda pelo giro “esquerdista” de Stalin (1928), muitos oposicionistas que haviam sido excluídos do partido pediram seu reingresso. A condição da burocracia: que abjurassem publicamente de seus posicionamentos.

Trotsky caracterizaria aos que se ajoelharam como “mortos políticos”: a renuncia das próprias convicções significava abandonar a própria razão de ser militantes, uma queda aos infernos do qual não haveria retorno. Apontemos aqui que o marxismo revolucionário rechaça o método burocrático da autocrítica: rechaça exigir a qualquer militante que renuncie aos seus posicionamentos. Claro que se pode mudar de opinião, qualquer um pode “autocriticar-se”. Mas isso deve acontecer livremente.

A burocracia buscava outra coisa: quebrar a personalidade dos opositores, desmoralizar, desacreditar estes frente ao partido e a nação: “Na cadeira dos acusados se sentavam homens quebrados, aplastados, acabados. Antes de os matar fisicamente Stalin os havia quebrado e matado moralmente” (afirmara Léon Sedov no seu Livro Vermelho sobre os julgamentos de Moscou).

Se haviam capitulado, isto se devia a uma combinação de elementos: a expulsão do partido em que haviam construído o seus melhores anos, a separação com os seus familiares, o exílio, assim como também um elemento eminentemente político: deixar-se impactar (de maneira impressionista) pelo desenvolvimento dos acontecimentos, sobre tudo pela marcha da coletivização e industrialização stalinista.

Nada disso pode servir como justificativa de um curso que apenas Trotsky teve a honra de não seguir (o mesmo que a jovem geração da Oposição de Esquerda, de cujas as fileiras praticamente não proveram capituladores). O colocamos a modo de explicação para as razões que pressionaram a velha guarda, que terminou curvando-se frente aos fatos consumados: “Agora quero falar de mim mesmo, dos motivos que levaram a me arrepender (…) Durante três meses permaneci fechado nas minhas negatividades. Depois iniciei o caminho da confissão. Por quê? O motivo se apoia, em que durante minha prisão, passei a limpo todo o meu passado. No momento em que um se pergunta ‘Se morrer, em nome do que morrerás?’, aparece de repente e com surpreendente clareza um abismo profundamente escuro. Não havia nada pelo que merecia a pena morrer, se pretendia fazê-lo sem confessar os meus erros. Pelo contrário, todos os feitos positivos que brilhavam na União Soviética tomavam proporções diferentes em minha consciência. Isso foi o que em definitivo me desarmou, o que me obrigou a dobrar os meus joelhos ante o Partido e ante o país” (Nicolai Bukharin, “Última declaração nos Processos de Moscou” março 1938) [4].   

“Um crime com contra a História” [5] 

Os Grandes Expurgos configuram um salto qualitativo na dinâmica da capitulação. Já não se tratava de conservar a membrana no partido: se tratava de salvar a própria vida. E sim a própria vida já esta “sentenciada”, ao menos se tentaria proteger os familiares [6].

De todos os modos as coisas não foram tão “simples”: os níveis de abjuração ao que chegaram expressavam  categórica quebra moral, fato que deveria haver explicações suplementarias.

Uma primeira razão tem a ver com o “fetichismo de Estado” que muitos dos acusados terminaram professando: a impossibilidade de pensar sua existência fora da URSS: “Dado o seu status especial, sua lealdade ao partido e para com a revolução e a situação política, Bukharin tinha ao que parece pouco aonde escolher. Pouco depois, fazendo uma evidente alusão a sua situação pessoal, citava as palavras de Engels acerca do dilema com que se havia enfrentado Goethe: ‘existir em um ambiente que necessariamente depreciava, e sem embargo estar acorrentado a ele como o único que poderia funcionar” (Stephen F. Cohen, Bukharin e a Revolução bolchevique, Século XXI Editores, p. 504).

Isso é o que comentou Boris Nikolaievski, historiador marxista menchevique e cunhado de Rikov, que se reuniu várias vezes com Bukharin em Paris quando realizou sua última viagem à Europa (março e abril de 1936). O ex-chefe da Oposição de Direita manifestou saber perfeitamente que sua vida corria perigo: “tinha o obituário da sua morte na cabeça” afirmara Nikolaievski: “Mas então, por que voltaria? ‘Como não vou a voltar? Para transformar-me em um exilado? Não, eu não poderia viver como vocês, como um exilado. Não, aconteça o que acontecer” (Cohen, idem, p. 530).

Não pensar em escapar ao seu “destino” somente poderia expressar um apego dramático ao Estado soviético burocratizado: “Era clara a sua indignada hostilidade para com a política brutal de Stalin: ‘se compadecia’ do assediado camponês por ‘motivos humanitários’ e enxergava os projetos industriais excessivos, caros, ‘como um glutão monstruoso que devorava tudo, privando as grandes massas de artigos de consumo’. Mas, ao próprio tempo, conservava a fé na revolução e no partido, enxergando-se assim vinculado, psicológica e politicamente, ao sistema” (Cohen, idem., p. 505).

Se sacrificaria assim no altar de um aparto (o “Estado soviético”) que dizia “representar” os interesses da classe trabalhadora, mas que já não o fazia realmente: pelo contrário, não era mais que um instrumento substituto da mesma. Se lhe outorgava então uma lealdade para um fetiche: morrer por uma causa que não era a da classe trabalhadora se não o seu contrário: um aparato contrarrevolucionário que se havia erguido contra a classe! [7]

Houve um segundo problema que incendiou as confissões: a ideia que os seus comportamentos haviam ficado na “calçada à frente” dos desenvolvimentos; haviam cometido um “crime contra a história”. Se tratava de uma “dupla consciência” (como já nos referimos a cima): se por um lado se consideravam inocentes, pelo outro se haviam equivocado. Eram “culpados” de haverem ficado do “lado equivocado”: “Uma conformidade para com uma formula muito conhecida, qualquer oponente aos bolcheviques [deveriam dizer ao stalinismo, R.S] era objetivamente e por definição opositor à revolução, ao socialismo e, por extensão, ao bem estar humano, a margem das quais foram as intenções subjetivas da dita pessoa.” (Arch Getty e Oleg Naumov, La lógica del terror, idem., p.41).

Isto é muito claro na tremenda carta que Bukharin escreve a Stalin no final de 1937: “Por deus, não creias que te estou censurando de nada, nem se quer no mais profundo de minha consciência. Não nasci ontem. Sou perfeitamente consciente que os grandes planos, as grandes ideias, e os grandes interesses devem se antepor a todo o resto e sei que seria mesquinho por minha parte situar a questão de minha própria pessoa a par das tarefas universais e históricas que repousam ante tudo, sobre teus ombros. Mas é aí aonde reside meu sofrimento mais profundo e me encontro ante o paradoxo mais grave e angustiante”.

Uma concepção determinista da história, fatal, que enxergava realizando os seus trabalhos como “História a cavalo” (como descreveria Hegel a Napoleão), e frente a qual as pessoas de carne e osso nada importavam, nada poderiam fazer: um curso histórico que excluía uma “terceira possibilidade”, e frente a essa apenas Trotsky teve a imensurável honra histórica de escapar. “Sim, a última palavra não está dita jamais, o erro não é um crime, a dissidência não é uma traição.” (Bensaïd, ¿Qui est le Juge? Pour en finir avec le tribunal de l’Historie, Fayard, 1999, p. 130).

O fetichismo de Estado e da História com maiúscula, o considerar-se do lado “equivocado dos desenvolvimentos”, a falta de distancia critica frente aos fatos consumados, foram outros tantos fatores que se somaram com o do temor de perder a própria vida, a quebra física e moral de uma década de capitulações, a preocupação pela família, etcetera, e que deram lugar às confissões mais impactantes que já se escutou na história.

E tudo por que: pela perda de perspectivas históricas, algo que nenhum revolucionário deve tratar de permitir que ocorra inclusive se se está na “meia noite do século” como foram os anos 30 do século passado.

[1] O problema da legitimação de Stalin se demonstrou mais complexa que pensar que simplesmente fora um autocrata odiado: a imensa mudança vivia pela sociedade soviética durante os anos 30 atuou como fator legitimador, sem perder de vista todos os modos da lógica pulverizadora do domínio burocrático.

[2] Recordemos que o método confissão (auto culpabilização obtida pela força), é um princípio que vem da Idade Média e que a justiça burguesa há deixado de lado.

[3] A classe trabalhadora havia sido removida do poder: completamente atomizada, havia ficada o mais longe que se pode conceber de uma verdadeira ditadura proletária, que não é outra coisa, como apontava Marx, que os trabalhadores organizados como classe dominante; se bem a propriedade seguiria estatizada, o Estado se transformaria em burocrático.

[4] Há que mostrar, de todas as maneiras, que Bukharin emitiu declarações contraditórias caracterizadas pelo mesmo como um “estranho desdobramento da consciência”. Publicamente se reconhecera “culpado”. Mas na sua última carta para Stalin (10/12/37, voltaremos sobre ela mais a baixo), e sobre tudo em sua “Carta às futuras gerações do partido” (que fez com que sua jovem esposa a memorizasse para que não pudesse ser destruída!), se declarou inocente. Como afirma Henrique Carneiro, foi quiçá um dos intelectuais marxistas que sofreu um dos maiores dramas existenciais do século passado.

[5] Se trata de uma aguda definição tomada de Daniel Bensaïd, que permite entender o que de mais profundo havia nas confissões (uma definição, em realidade, tomada do El cerco y el infinito de Arthur Koestler, cuja temática está dedicada às Grandes Purgas e se inspirava quase seguramente em Bukharin).

[6] É conhecido que Bukharin conseguiu passar um acordo para que a sua jovem companheira não fosse assassinada (mas mesmo assim passou quase vinte anos no Gulag!), assim como para evitar que as suas ultimas obras fossem destruídas.  

[7] Algo que somente Trotsky chegaria a compreender, tirando todas as conclusões do caso; Bukharin lhe faria uma sorte de “homenagem” em uma de suas últimas confissões quando declararia que “haveria que ser Trotsky para não capitular…”